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ep} oO oO oc 2 soueg oedunssy,d 9sor a Abordagens _ eye) tel] areetrreney Wc rc)- 1 Wee a ‘www.vozes.com.br — Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barros, José D’Assungio O campo da histéria : especialidades e abordagens / José D’ Assungo Barros. — Petr6polis, RJ : Vozes, 2004. ISBN 85.326,3009-X Bibliografia 1. Hist6ria — Pesquisa 2. Historiografia I Titulo. 04.1899 cDD-907.2 Indices para catalogo sistematico: |, Histéria : Campos : Historiogeafia 907.2 2. Historia : Especialidades : Historiografia 907.2 3, Histria : Modalidades : Historiografia 907.2 José D’Assungao Barros O campo da historia Especialidades e abordagens y EDITORA VOZES Petropolis © 2004, Editora Vozes Ltda. Rua Frei Luis, 100 25689-900 Petrdpolis, RI Internet: http:/www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderd ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrénico ou mecinico, incluindo fotocdpia ¢ gravagio) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem per- io escrita da Editora, ISBN 85.326.3009-X, Este livro foi composto e impresso pela Euditora Vozes Lida, SUMARIO Preficio .. O Campo da Histéria 9 1. Clio Despedagada ..... 9 2. Os lotes da Histéria 15 (Compartimentos, Dimensdes, abordagens e dominios) 3, Demografia, Cultura Material e Geo-Histéria 2 (Hlist6ria Demogréfica, Hist6ria da Cultura Material, Geo-Histéria 4, Mentalidades ... 37 (Histéria das Mentalidades, Psico-Histéria) 5. Historia Cultural e Hist6ria Antropol6gi 55 (Hist6ria Cultural, Histéria Antropolégica e Etno-Hist6ria) 6. Hist6ria do Imaginst 9 7. Historia Politica e Hist6ria Social ...... soo 106 (Histéria Politica, Histéria Social) 8. Hist6ria Econémica 125 9. Abordagens peel 32) (Hist6ria Oral, Hist6ria do Discurso, Histéria Imediata, Hist6ria Serial e Hist6ria Quantitativa, Histéria Regional, Micro-Histéria) 10. Uma profusio de Dominios. 180 (A diversidade de dominios histéricos, A Biografia, Mutagdes, Conclusiio) Referéncias bibliograficas ... indice Onomastico z wu 221 Indice Remissivo ... INDICE DE QUADROS Quadro 1: © Campo Hist6rico Quadro 2: A Hist6ria Cultural Quadro 3: A Histéria Politica 108 Quadro 4: A Historia Social ... ld Quadro 5: A Hist6ria Econdmica 126 Prefacio — texto que aqui se apresenta traz simultaneamente alguns tragos ensafsticos, certos objetivos didéticos bem definidos, e a inten- do de balancear a historiografia tal como ela pode ser hoje vista no que se refere as suas sub-especialidades. Aproveita-se a ocasifio para uma reflexdo inicial sobre a tendéncia dos saberes modernos a uma crescente hiper-especializagio, com as lacunas e os limites que este tipo de hiper-especializagiio acaba acarretando. A origem do texto esté precisamente na preacupagio com 0 fato de que, embora a Histéria hoje se divida em intimeros campos ou sub-especialidades, estas divisdes acabem parecendo um pouco ambfguas tanto para o ptiblico ndo-especializado que consome Histéria, como para aqueles que percorrem uma trajet6ria acadé- mica com vistas a consolidar uma formagiio que os habilitaré, assim se espera, a produzir Hist6ria de boa qualidade (no sentido de pesquisas e textos historiograficos). Ouve-se falar em Histéria Cultural, em Hist6ria das Menta- lidades, em Histéria do Imagindrio, em Micro-Hist6ria, em Historia Serial, em Hist6ria Quantitativa ... 0 que define estes e outros campos? E um dos objetivos deste texto contribuir, precisamente, para um esclarecimento relacionado a cada uma das varias modal dades em que, nos dias de hoje, freqtientemente se divide 0 campo historiografico. ‘Nota-se néo raramente uma grande confusiio entre algumas destas modalidades de Histéria, e uma expressiva dificuldade dos interessados em Histéria em situar um trabalho historiogrdfico qualquer dentro de um destes campos. Veremos que na verda- de isto nao € posstvel, j4 que a ampla maioria dos bons traba- lhos historiograficos situa-se na verdade em uma interconexiio de Jost D’ASSUNGAO BARROS modalidades. Se siio bons, so complexos. E se sio complexos, hio de comportar algum tipo de ligagao de saberes, seja os interiores ou exteriores ao saber historiogratico. Muito da confusio sobre o que é uma sub-especialidade ou © que € outra, ou sobre como enquadrar uma dada obra neste complexo caleidosc6pio de sub-especialidades que coincide com o campo disciplinar da Histéria, esta no fato de que algumas coletaneas de balanceamentos historiogréficos misturam inadver- tidamente critérios de classificagio sem alertar devidamente 0 leitor, que acaba perdendo a oportunidade de desenvolver uma maior clareza sobre a rede de modalidades que organiza o pensa- mento historiogrifico na atualidade, A chave para compreender estes varios campos, conforme veremos, esté em distinguir muito claramente as divisdes que se referem a dimensdes (enfoques), as divisdes que se referem a abordagens (ou modos de fazer a Hist6ria), ¢ as divisdes intermi- naveis que se referem aos domfnios (éreas de concentragao em tomo de certas tematicas e objetos possiveis). O texto, por fim, apresenta-se como oportunidade para di cutir aspectos de Teoria e Metodologia em Histéria. Ao falarmos em cada uma das modalidades historiograficas, estaremos simulta- neamente discutindo seus objetos preferenciais, seus aportes te6- ricos, seus métodos, suas fontes privilegiadas, e sempre que pos- sivel apresentaremos um balango de algumas das principais obras que poderiam estar inscritas nestes campos. Os imbricamentos entre os varios campos, as miituas invasdes de fronteiras, as afinida- des e as interconexdes possiveis, as diferengas e incompatibilidades +. um pouco de tudo isto ser4 visto neste livro que, embora se esforcando por delinear com preciso os ambientes internos Historia, aproveita tal esforgo para propor uma historiografia mais complexa, capaz de criatividade na exploragiio de suas dimensoes, abordagens e dominios. O Campo da Histéria 1. Clio Despedagada Uma caracteristica crescente da historiografia moder- na € que ela tem passado a ver a si mesma ~ de maneira cada vez, mais explicita e auto-referenciada - como um campo frag- mentado, compartimentado, partilhado em uma grande gama de sub-especialidades e atravessado por muitas ¢ muitas tendéncias. Fala-se hoje em muitos tipos de “hist6ria”, quando na historiografia profissional do inicio do século XIX os historiadores tinham uma idéia bem mais homogénea do seu oficio, O historiador de hoje é um historiador da cultura, um historiador econdmico, um historiador das mentalidades, um especialista em Hist6ria da Mulher, um medieva- lista ibérico ou um especialista nos estudos da Antigtlidade Cléssica, ‘ou quem sabe ainda um doutor em Histéria do Bras particularmente especializado nos processos de visitagio da Inquisi- Ho do Santo Oficio ... De igual maneira, existem os historiadores marxistas, ou mais especificamente os historiadores marxistas da linha gramsciana, thompsoniana ou qualquer outra, os historiadores weberianos, os micro-historiadores da linha italiana, ou sabe-se 14 quantas outras orientagdes. O oceano da historiografia acha-se hoje povoado por int- meras ilhas, cada qual com a sua flora e a sua fauna particu- lar, Ou, para utilizar uma metéfora mais atual, podemos ver a Historiografia como um vasto universo de informagdes percor- rido por indmeras redes, onde cada profissional encontra a sua conexiio exata ¢ particular. Exemplo: um historiador gramsciano Colonial mais José D'ASSUNGAO BARROS 10 que investiga exclusivamente a hist6ria da cultura tomando por objeto a Mulher da época do Brasil Colonial. Doravante, pelo resto de sua vida, 6 s6 tedondas € em artigos para revistas especializadas - ao mesmo tempo em que zelosamente orientaré teses de mestrado direcionadas para aspectos ainda mais especficos dentro desta conexio particular, que por acaso também constituird o contetido fundamental de seu curso semestral na Universidade em que trabalha, A hiper-especializagio do conhecimento hist6rico é um da- do curioso e as vezes alarmante. Naturalmente que este nfio é um fenémeno que ocorreu apenas com a histéria: umna ciéneia como a Fisica também foi se dividindo a partir dos seus primérdios em muitos compartimentos internos, como a Termodinamica, a Otica, a Mecfnica ¢ tantos outros. Longe vio os tempos iluministas, em que um mesmo fisico podia se interessar por diversificados objetos de investigagtio que iam da ética & termodinamica. Mas, reconhe- gamos, houve também um tempo em que o mesmo pensador que escrevia um tratado de fisica ou um compéndio de metodologia experimental podia escrever um livro sobre a Hist6ria da Inglaterra. Em todo 0 caso, prossigamos com os nossos exemplos E preciso acrescentar ainda que, para além desta fragmen- tago da Fisica em uma diversidade de subcampos especializados, a partir do século XX esta mesma Fisica comegou a partir-se em muitos tipos de Fisica conforme a perspectiva e visio de mundo por eles encaminhada. Assim, superada a Fisica Classica como possibilidade de dar todas as respostas & compreensiio dos fenéme- nos fisicos, surgiram por exemplo a Fisica Quintica, a Fisica da Relatividade, ¢ tantas outras. Conforme se vé, aqui falamos nao mais de compartimentos de estudo no interior da Fisica como campo de conhecimento humano, mas sim de novas maneiras de conceber a prépria Fisica, Algo similar também ocorre com a Histéria, que hoje em dia se v6 tanto fragmentada em uma mirfade de compartimentos internos — cada qual portador dos seus proprios objetos ou das suas proprias obre isto que ele falard em conferéncias, em mesas- (© -cAMPo Da tisTORIA abordagens — como também repartida em varias visdes diferenciadss do que seja a propria Hist6ria enquanto campo do conhecimento. A partir daf poderemos comegar a perceber que a fragmentagio do saber, na verdade, é um fenémeno que se acentua no século XX através de dois caminhos distintos e independentes, embora no fim das contas ambos acabem contribuindo para este mesmo fim que é a cisio da Histéria ou de qualquer outro campo do saber no seu caleidoscépio interno. De um lado, sobressai o fendmeno crescente da “especiali- zagio”: © médico jé nfo sera sequer mais especializado em ortorri- nolaringologia — talvez. seja um especialista na narina esquerda ou no ouvido direito. O advogado ser4 especializado em processos destinados a assegurar indenizagdes motivadas por danos ambien tais, ¢ talvez conclua que ser ainda mais adequado especializar-se na legislagio dos vazamentos nucleares. Pode se dar até mesmo que um tinico vazamento Ihe oferega clientes pelo resto de sua vida profissional. Além da fragmentagéo de especialidades, sobressai de outro lado a célebre crise dos paradigmas: j4 ndo existem nos meios acai micos muitos estudiosos que acreditem na existéncia definitiva de “uma tinica maneira de ver as coisas”. Esta fragmentacdo de perspec- tivas, assim poderemos chamé-la, nflo é de resto apandgio do saber cientifico. A propria Histéria das Artes Visuais, que para os sécules anteriores conhece capitulos sobre os estilos de pintura tio bern amrumados por eras sucessivas — como a Arte Gotica, a Arte Renas- centista, a Arte Barroca ou a Arte Neoclissica — depara-se quando chega ao século XX com uma partilha do campo da expressio artistica em intimeras tendéncias, tais como 0 Cubismo, 0 Abstracionismo, 0 Expressionismo, 0 Neoclassicismo modemo, 0 Realismo, o Surrealismo ... por af poderfamos estender indefinida- mente esta gama de subdivisGes que na verdade niio se sucedem umas as outras no tempo, mas partilham a mesma época, mostrando que as artistas modemos j4 nfo reconhecem mais um padro de referéncia minimamente consensual. Deste modo, podemos dizer que a Arte e 0 "1 Jost D'ASSUNGAO BARROS 12 conhecimento cientifico acompanham juntos, de alguma maneira, este mesmo fenémeno da fragmentagdo de perspectivas que é o pano de fundo da modemidade e da pés-modemidade. Mas com o problema da especializagio crescente temos questdes de outra ordem, que siio as que aqui nos interessam neste momento em que estamos prestes a nos embrenhar por dentro das subdivisdes a partir das quais os historiadores examinam atualmente © campo da Histéria. A especializagiio, de saida, é um problema antigo, que no campo do conhecimento veio acompanhada das perdas de uma cultura mais humanistica, mais completa e mais complexa. Contra este problema basico da humanidade modema, que gera incessantemente mais e mais especialidades — todas devi- damente complementadas por um crescente isolamento disciplinar ~ bate-se precisamente um grupo cada vez maior de pensadores que apregoa a necessidade da interdisciplinaridade e da “interligagzio dos saberes”. Serllo novos tempos que se avizinham? Nao o sabemos, j4 que até 0 momento parece ainda vigorar uma exigéncia de especiali- zagio que premia 0 destro-otorrinolaringologista em detrimento do clinico geral. Na segunda metade do século XIX, esta ordem de proble- mas j4 se anunciava menos ou mais discretamente, Assim, 0 Zaratustra de Friedrich Nietzsche j4 se deparava, em uma das paginas desta famosa obra filosofica, com um daqueles “aleijdes a0 avesso” que tanto horrorizavam o filésofo alemfio. Ao caminhar Por uma ponte, Zaratustra havia tropecado em uma gigantesca orelha. Mas olhando melhor, acabou verificando que sob a ore- Tha movia-se ‘alguma coisa, muito mirrada, de modo que acabou entendendo que a monstruosa orelha achava-se rigorosamente apoiada sobre um pequeno caule que era na verdade um homem. O Povo da regio apressou-se a dizer-lhe que a grande orelha nao era somente um homem, mas sim um grande homem, um genio, Zaratustra, contudo, guardou-se de acreditar que aquele era na verdade mais um dos intimeros aleijées ao avesso, “homens aos quais falta tudo, salvo que tém demais de alguma coisa — homens ‘OcAMPO DA nisToRIA que nao passam de um grande olho ou de uma grande boca ou de um grande ventre ou de qualquer outra coisa grande”'. Esta hiper-especializagio de que j4 nos falava o Zaratustra de Nietzsche € um fen6meno que de algum modo chega com a modernidade, com a exigéncia de mais e mais fungdes necessérias 4 vida moderna, com a complexificagao crescente do conhecimento humano, com os novos horizontes que nao cessam de abrir aos seres humanos novas cortinas de possibilidades. Mas longe de ser apenas uma necessidade dos infinitos desdobramentos do conhe- cimento, a hiper-especializagio é também a opgio de uma comuni- dade cientifica que se desinteressou de uma cultura mais abran- gente, mais humanistica, Ser um “especialista em ouvido esquer- do” em determinadas horas do dia no impediria que nas demais horas o médico hiper-especializado ouvisse misica de boa qualida- de, que lesse boa literatura, que buscasse conhecer tanto quanto possivel de Histéria, que se inteirasse acerca dos avangos recentes da Fisica Quantica. Sobretudo, para a eficdcia de seu proprio oficio, sera sempre necessério nao perder de vista 0 conhecimento mais generalizado de Medicina, pois pode ser que um problema de ngramento na narina esquerda seja na verdade decorréncia direta de um aumento da pressio arterial ou de qualquer outro fator que nada tenha a ver mais especificamente com a sua sub- especialidade. Os problemas pertinentes & fragmentago do saber afetam também, de maneira intermitente, a pritica historiogrifica de nossos dias (0 diagnéstico econdmico pode niio dar conta de um problema das mentalidades, ¢ 0 sangramento social que produz uma revolucdo politica pode ter como causa mater uma questo religiosa). Isolado no seu pequeno mundo, o historiador deve enfrentar os riscos de sua hiper-especializagio ao mesmo tempo 1. Friedrich NIETZSCHE, Assim Falow Zaratustra, Sto Paulo: Circulo do Livro, 1976, p. 149-150 [original: 1883-1885). 13 JOSE: D’ ASSUNGAO BARROS 14 em que recebe estimulos sociais ¢ institucionais para aprofundé-la cada vez mais. Sem contar com o ja tio discutido agravante de que — com a propalada crise dos grandes modelos de ‘historia total’ — a Hist6ria ja to fragmentada em ‘dimensdes’ (econdmica, politi social) partiu-se com 0 apoio da midia e das demandas editori em inumerdveis “migalhas” relacionadas aos novos ‘dominios histéricos’ (historia da religiosidade, da feitigaria, da vida privada). © historiador das Gltimas décadas do século XX viu-se assim autorizado, tanto pela tendéncia a hiper-especializagio do homem modemo como pelas novas modas historiograficas, a cuidar zelosa- mente do seu pequeno canteiro, como se nada mais importasse além de uma rosa rara, Com tudo isto, talvez de maneira ainda mais delicada do que © cientista que se dedica ao seu fragmento particular de cigneia, © historiador que se hiperespecializa em determinada dimensio historiogréfica e em determinado objeto deve se por em guarda contra a possibilidade de se transformar em uma gigantesca orelha que se prende a um caule. Ha sempre 0 risco de que os excessos na dedicagéio a “apenas ouvir” o levem a desaprender a “caminhar”, e que esta impossibilidade mesma o impega de se locomover para melhor se posicionar de modo a captar novos sons no futuro, Enfim, a auséneia de pés, de um corpo saudavel com todos os seus membros e érgiios prontos a funcionar, pode até mesmo dificultar o projeto de alguém se tornar uma boa orelha! Abandonando por ora 0 mundo enigmético das metéforas, diremos que a hiper-especializagiio em Hist6ria Econémica (ou qualquer outro campo) pode conduzir ao esquecimento de que 0 mundo humano no pode ser decalcado do social, do politico, do mental, ou de que a especializagio exclusiva em métodos de Hist6ria Serial pode impedir que se resolva um problema histérico naquele ponto onde se requer precisamente uma boa hist6ria qualitativa, uma recolha de depoimentos através da Hist6- ria Oral, e assim por diante. Ocampo Da nistoRtA Munidos deste alerta, tentaremos compreender a seguir os varios compartimentos em que a historiografia parece hoje se divi- dir, Nao importa a que enfoque 0 historiador se dedique ou esteja mais habituado, dificilmente ele poderé aleangar um sucesso pleno no seu oficio se nao conhecer todos os outros enfoques possiveis — talvez para conect4-los em determinadas oportunidades, talvez para compor com alguns deles 0 seu proprio campo complexo de sub- especialidades, ou talvez. simplesmente para perceber que a histéria 6 sempre miiltipla, mesmo que haja a possibilidade de examiné-la de perspectivas especificas. 2. Os lotes da Histéria Existem basicamente duas grandes ordens de dificuldades que costumam tornar confusos os esforgos de classificar e organi: zar internamente a Hist6ria em sub-dreas especializadas, Uma corresponde a uma intrincada confusiio de critérios que costuma presidir estes esforcos classificatérios, questo que deixaremos para discutir mais adiante. A outra ordem de dificuldades, da qual gostariamos de falar em primeiro lugar, corresponde ao fato de que uma abordagem ou uma prética historiogréfica no pode ser rigorosamente enquadrada dentro de um tinico campo. Apesar de falarmos freqiientemente em uma “His Econémica”, em uma “Histéria Politica’, em uma “Hist6ria Cul- tural”, ¢ assim por diante, a verdade é que nao existem fatos que sejam exclusivamente econdmicos, politicos ou culturais. Todas as dimens6es da realidade social interagem, ou rigorosamente sequer existem como dimensées separadas, Mas 0 ser humano, em sua nsia de melhor compreender 0 mundo, acaba sendo obriga- do a proceder a recortes € a operagGes simplificadoras, e é neste sentido que devem ser considerados os compartimentos que foram criados pelos préprios historiadores para enquadrar os seus varios tipos de estudos histéricos. (ria 15 JOSE D'ASSUNGAO BARROS 16 Preocupados com uma “religagio dos saberes” — depois deste conturbado século que de certa maneira foi o ‘século das especializagées” ~ nao faltam os autores que alertam para os peri- 0s ¢ empobrecimentos do isolamento e da compartimentagao: “Sabe-se que o historiador tem o costume de arrumar 6s fatos em envelopes que se transformaram em enti- dades trans-hist6ricas, em categorias temporais e uni versais: 0 social, 0 econdmico, 0 politico, o religioso, o cultural ... Depois de proceder a esta distribuigio e a esta etiquetagem, por razdes de competéncia pessoal ou por escolha disciplinar, o historiador atémm-se co- mumente a uma tinica ordem de fatos”” A safda é nao utilizar as classificages como limites ou pretexto para 0 isolamento. Nao se justifica o recuo diante de uma curva demogréfica, quando o objeto de estudo 0 exige, sob 0 pretexto de que a sua é apenas uma Historia Cultural. Da mesma forma, um historiador econémico nfo pode recuar diante dos fatos da cultura (ou dos aspectos culturais de um “fato econdmi- co”). Peter Burke registra em seu livro sobre a Escola dos Anna- Jes um exemplo extraido do grande historiador econémico Witold Kula: “[] Kula faz uma anélise econdmica dos latifindios poloneses nos séculos XVII e XVIII. Mostrou que 0 comportamento econémico dos proprietérios de terras poloneses era 0 oposto do que previa a economia clés- sica. Quando prego do centeio, seu produto principal, aumentava, produziam menos, e quando 0 prego abai xava, produziam mais. A explicaeiio deste paradoxo deveria ser encontrada, diz Kula [...] no reino da cultu- 2. Serge GRUZINSKI, “Acontecimento, bifurcagio, acidente e acaso observagdes sobre a histéria a partir das periferias do Ocidente”. In E. MORIN (org). A Religacao dos Saberes. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 391. O cAMP Da nisroRta ra, ou das mentalidades. Tais aristocratas nfo estavam interessados em Iucros, mas em manter um estilo de vida, da maneira a que estavam acostumados. As varia- ‘ges na produgio eram tentativas de manter uma renda padrio. Seria interessante imaginar as reagdes de Karl Marx a essas idéias”* fundador do Materialismo Hist6rico teria possivelmen- te reagido bem A flexibilidade de Kula, poderfamos acrescentar. ‘final, em sua andlise politica e econdmica do 18 Brumério de Luts Bonaparte (1952), Marx nfo recua diante dos fatos do “jmagindrio” (palavra que ainda estava longe de ser cunhada). Sua explicagio para a ascensio de Luis Bonaparte ao governo francés na segunda metade do século XIX, com base nos votos dos camponeses, est ancorada precisamente em uma andlise do imaginério, do peso que a imagem de Napoledo Bonaparte (tio de Lufs Bonaparte) ainda exercia sobre a populagio. Este é um livro que todos 0s historiadores, marxistas ou no marxistas, deveriam ler atentamente’, Em vista destes e de tantos outros exemplos que poderiam ser extrafdos de obras historiogrdficas magistrais, fica a ligo de que 0 esclarecimento do campo ou da combinago de campos em que se insere um estudo mio deve ter efeito paralisante, nem servir como pretexto para justificar omissdes. Definir o ambiente intradisciplinar em que florescera a pesquisa ou no qual se consolidaré uma atuaco historiografica deve ser encarado come um esforgo de autoconhecimento, de definir os pontos de partida mais significativos — e no como uma profissio de fé no isola- mento intradisciplinar. 3. Witold KULA, Economic Theory of the Feudal System, apud Peter BURKE, A Escola dos Annales ~ 929-1989, Sio Paulo: UNESP, 1991, p. 110-111 [Edigdo polonesa original da obra de Witold Kula: 1962}. 4. Karl MARX, “O 18 Brumério de Luis Bonaparte”. In Os Pensadores, vol. XXX, Sio Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 329-410 [original alemdo: 1852). 7 JOSE D'ASSUNGAO BARROS ‘Uma segunda ordem de dificuldades que costuma confundir as tentativas de subdividir internamente 0 Campo Histérico refere- se a uma inadvertida mistura dos critérios que so habitualmente utilizados para a classificagio das varias “histérias”. Fala-se por exemplo em uma Histéria Demogréfica ou em uma Hist6ria Politi- ca, nogdes que se referem a ‘dimensGes’ ou a fatores que ajudam a definir a realidade social (a populagio, o poder); fala-se de uma Historia Oral ou de uma Historia Serial, que sio classificagSes da Historia que remetem ao tipo de fontes com as quais elas lidam ou 2s ‘abordagens’ que os historiadores utilizam para tratar estas fontes (a entrevista, a serializagio de dados); fala-se da Micro-Hist6ria ou da Histéria Quantitativa, que sao classificagdes relativas 20s campos de observagao abordados pelo historiador (a micro-realidade, 0 néime- ro); fala-se em uma Histéria das Mulheres ou em uma Historia dos Marginais, que sio classificagdes relacionadas aos ‘sujeitos’ que fazem a Histria (a Mulher, 0 Marginal); fala-se em uma Historia Rural ou em uma Histéria Urbana, que sio subdivisdes relativas aos ‘ambientes sociais’ examinados pelo historiador (0 Campo, a Ci- dade); fala-se de uma Histéria da Arte ou de uma Historia da Sexualidade, que sio Ambitos associados aos ‘objetos’ considerados na pesquisa hist6tica (a Criagiio Artistica, o Sexo). Poder-se-ia falar ainda em uma Histéria Vista de Baixo, para simbolizar uma inversio de perspectiva em relagio & tradicional historiografia que partia do poder dominante, e até em uma Histéria Imediata, modalidade his- toriogréfica em que 0 autor € ao mesmo tempo historiador e perso- nagem dos acontecimentos que descreve ou analisa, Todos estes exemplos constituem legitimas especiali- dades da Histéria, Mas as dificuldades comegam a se mostrar quando estas varias classificagdes, oriundas de critérios bem di- ferentes e estranhos entre si, so misturadas indiscriminadamente para organizar os varios “lotes” da Histéria, 18 © Campo Histérico Quadro 1 Historia Oral Historia do Diseurso ‘Micro-Histéria intern Seria “Arqueologia Historia da Cultura Material Histéria Deroy Historia Ezonémiea i da Sesualidade Historia Antropologica Psico-Histria JOSE D’ASSUNGAO BARROS 20 © ‘Quadro 1° foi elaborado com o intuito de organizar estes critérios — distribuindo-os em ‘dimensées’, ‘abordagens’ ¢ ‘dominios’ da Histéria — e buscando esclarecer as varias divisdes que estes critérios pocem gerar. De certo modo, as trés ordens de critérios correspondem a divisdes da Histéria respectivamente relacionadas a “enfoques”, “métodos” e “temas”. Uma dimensao implica em um tipo de enfoque ou em um ‘modo de ver’ (ou em algo que se pretende ver em primeiro plano na observagio de uma sociedade historicamente localizada); uma abordagem im- Plica em um ‘modo de fazer a histéria’ a partir dos materiais com 0s quais deve trabalhar 0 historiador (determinadas fontes, de- terminados métodos, e determinados campos de observagao); um dominio coresponde a uma escolha mais especifica, orientada em relagio a determinados sujeitos ou objetos para os quais sera dirigida a atengiio do historiador (campos teméticos como o da ‘hist6ria das mulheres’ ou da ‘hist6ria do Direito’), Desnecessério dizer que os historiadores podem unir em uma nica perspectiva historiogréfica uma dimensio (por exem- plo, a Hist6ria Econémica), uma determinada abordagem (a His- ‘6ria Serial), e um certo dominio (a Histéria dos Camponeses). Na verdade, muitos outros tipos de combinagées serio possiveis, até mesmo no interior de um grupo de critérios, mas deixaremos para mencionar isto no momento apropriado. No Quadro 1 veremos que a primeira ordem de classifi- CagGes a nos referirmos é aquela gerada pelas varias dimensdes da vida humana que podem constituir enfoques historiogrificos, embora na realidade social efetiva estas dimensdes nunca apare- gam desligadas entre si. Teremos entiio uma Histéria Demogréti- ca, uma Histéria da Cultura Material, uma Histéria Econémica, uma Hist6ria Politica, uma Hist6ria Cultural, e assim por diante. E preciso ter em vista, antes de mais nada, que estas di- mensoes a serem definidas como ‘instincias da realidade social’ io em todos os casos construgdes do historiador, contendo a sua OCAMPO Da misTORIA, parcela de arbitrariedade e a sua possibilidade de flutuagoes a0 longo do desenvolvimento da hist6ria do pensamento historio- grafico. A cada novo periodo da historiografia, uma dimensio pode como que se desprender da outra, ou entiio duas dimensdes que antes andavam separadas podem voltar ase juntar, A Histéria das Mentalidades, a Histéria do Imagindrio e a Historia Antropolégica, por exemplo, foram enfoques que de certo modo se desprenderam hé algumas décadas da Historia da Cultura; e a Histéria da Cultura Material organizou-se a partir de um certo setor da Histéria Econémica que estava diretamente voltado para 0 consumo e que passou a se conectar com certos aspectos enfatizados pela Hist6ria Cultural, ao mesmo tempo em que se beneficiava das preocupagdes crescentes com a vida cotidiana que surgiram no decurso do século XX. H4 também as dimens6es que so constituidas pelo contato da Histéria com outras disciplinas, como a Geo-Histéria, que surgiu de uma in- terface do trabalho historiografico com a Geografia. E também digno de nota o fato de que algumas dimensées podem comegar por ser construfdas por contraste com outras, por vezes gerando certas oposigées mais marcantes, até que em seu desenvolvimento posterior certas interfaces possam ser estabele- cidas ou retomadas. De certo modo, a Hist6ria Social e a Hist6ria Econémica do século XX comegaram a ser edificadas a partir de um contraste com a velha Hist6ria Politica que se fazia no século XIX ~ ¢ isto resultou no provisério abandono de alguns objetos por estas novas sub-especialidades (por longo tempo, desapare- ceriam da pritica historiogrifiea profissional do século XX a biografia de personalidades politicas importantes e a histéria das arandes batalhas, temas que depois retornaram nas iltimas dé- cadas do século XX). Em suma: 0 caleidoseépio historiografi- co sofre os seus rearranjos. E estes rearranjos so eles mesmos produtos hist6ricos, derivados das tendéncias de pensamento de cada época e das suas motivagées politicas e sociais. Os para digmas acabam sendo substitufdos uns por outros, por mais que 21 JOSE D'ASSUNCAO BARROS 22 tenham perdurado, e trazem a seu reboque novas tébuas de classificagio, Posto isto, seré possivel dividir a Histéria conforme ela é hoje compreendida pelos historiadores profissionais em dimens6es relativas a certos enfoques que sio priorizados na apreensio da vida e da organizago de uma sociedade. Vejamos algumas destas divisées possiveis. 3. Demografia, Cultura Material e Geo-Histéria A maior parte das dimensdes que indicamos no ambito esquerdo do Quadro 1 sera por si s6 evidente para os leitores bem informados de hoje em dia. Afinal, correspondem a categorias relativamente divulgadas, mesmo pela literatura menos especiali- zada (e que de certo modo sio categorias de nosso tempo, por isto mesmo sujeitas a retificagées pelas geragdes posteriores). O que pode-mos dizer de antemao é que cada uma das dimensoes que Procuraremos delimitar a seguir € atravessada por uma “nogio” muito mareante, embora nem sempre muito precisa e por ve- zes polissémica. A Histéria Politica e a Historia Cultural, por exemplo, so atravessadas respectivamente pelas nogées de “poder” e de “cultura”, das quais se sabe serem extremamente polissémicas (basta lembrar que © conceito de “cultura” tem dezenas de sentidos que estiio hoje em uso nas ciéncias huma- nas). A Histéria das Mentalidades & atravessada pela ambigua nogio de “mentalidade”, e na verdade abarca dois aspectos importantes da vida humana que sio os ‘modos de pensar’ 08 ‘modos de sentir’ (€ possfvel, quem sabe, que um dia ela venha a cindir-se em uma ‘histéria das mentalidades’ propria- mente dita e em uma ‘histéria das sensibilidades’). A Histéria do Imaginério é atravessada pelo conceito de “imagem”, que nio se prende apenas ao de imagem visual, mas abarca também 0 am- bito das imagens verbais e das imagens mentais, OCAMPO Da msrénia ‘Apenas para dar a partida nesta busca de maior transpa- réncia classificatéria, poderemos comegar discutindo a Histéria Demogréfica, que enfatiza o estudo de tudo aquilo que se refere mais ou menos diretamente & ‘Populagio’: as suas variagdes quantitativas e qualitativas, o crescimento e declinio populacio- nal, os movimentos migratérios, e assim por diante. Desta forma, € a nogio de “populagéo”, com tudo o que ela implica, 0 que atravessa a constituigdo desta sub-especialidade da Histéria. A medida que vai conectando os aspectos mais especi- ficamente relacionados as categorias populacionais (como a mortalidade ou a natalidade), com freqiiéncia obtidos atra- vés de métodos estatisticos e da abordagem quantitativa, pa- ra depois relacionar estes aspectos de modo a dar a perce- ber a vida social de uma determinada comunidade, a Histéria Demogréfica estabelece interfaces com a Histéria Social. Para utilizar uma imagem mais eloqiiente, a Histéria Demogréfica vai se convertendo muito claramente em um tipo de Histéria Social na raziio direta em que a ‘hist6ria da mortalidade’ vai deri- vando para uma ‘histéria da morte’, mostrando-se também neste particular a possibilidade de uma interface ainda mais espec‘fica com aHist6ria das Mentalidades. Assim, um historiador que esteja preocupado em coligir informagées sistematicas a respeito de uma determinada popula- co historicamente localizada — ou, ainda mais especificamente, sobre os niveis ¢ tipos de mortalidade desta populagio — estara realizando uma Histéria Demogréfica de cardter ainda descritivo, em que pese a sua importincia para estudos posteriores. Poderd dar a perceber — através de grdficos construfdos com informac&es cuidadosamente extrafdas de fontes seriadas — aspectos relativos a idade média com que costumavam morrer os individuos deste ou daquele grupo social, os tipos de morte que mais freqlien- temente softiam (oriundas de doengas, de envelhecimento ou de violéncia social), os bens que costumavam testar para seus herdeiros, os valores monetirios que eram habitualmente des- 23 JOSE D'ASSUNGAO BARROS 24 pendidos nos seus enterros, os tipos de destino que tinham seus corpos (cremados, enterrados, engavetados), a qualidade da madeira empregada nos ataiides, a presenga ou no de epititios, a ocorréncia de extrema-ungiio, ou sabe-se 14 quantos outros aspectos que poderiam compor um panorama informativo sobre a morte na sociedade examinada. Este seria obviamente um grande panorama descritivo, ob- Jeto possivel de uma Histéria da Mortalidade no sentido em que esta pode ser definida precisamente pela recolha deste tipo de informa- des. A “Morte” propriamente dita € contudo um fenémeno social. Ela gera representagdes, comogées, expectativas espirituais para os que iro partir e expectativas materiais para os que vio ficar. A incidéncia de um determinado nimero de mortes através da Peste Negra, comprovada para perfodos como o do século XIV, pode ter gerado na época um certo imaginéio, ter produzido transformagées na religiosidade, ter modificado formas de sociabilidade, ter dado origem a novos objetos da cultura material (como as velas de sétimo dia ou os caixdes da madeira menos nobre para atender & demanda de um niimero crescente de mortos). Um enterro pode ser examinado no que se refere a certos usos sociais, como por exemplo a presenga de carpideiras ou a ocorréncia de determinado tipo de discursos de despedida, ou ainda a forma de luto e resguardo oficialmente aceita que a vitiva deverd observar para ndio correr 0 risco de transgredir as normas aceitas pelo grupo. Os ritos, costumes, tabus, sentimentos, caréncias e represen- tages gerados pelo fendmeno da morte so obviamente objetos de uma Hist6ria Social conforme a definiremos mais adiante, ou po- dem ser também objetos de uma Hist6ria Cultural, de uma Histéria Econémica, ou mesmo de uma Histéria Politica (dependendo da importincia simbélica do morto). O historiador da demografia que pretenda fazer uma hist6ria que nao seja simplesmente informativa ou descritiva, mas também. problematizada, certamente encontrard caminhos para estabelecer conexdes entre as informagées numéricas © CaMPo a HisTSRIA, ou padronizadas e as inferéncias sociais e culturais. Dito de outra forma, ele se empenhard em realizar ndo s6 uma Hist6ria da Mortali- dade, mas também uma auténtica Histéria da Morte, ‘A Demografia Hist6rica atravessa hoje estes dilemas. J4 xiste aquela novidade da estatistica histérica que justificava na década de 1950 a feitura de teses mais descritivas ~ meras coletoras de informagGes sobre a mortalidade, a natalidade ou a nupcialidade. Hoje se espera que 0 historiador “problematize” a morte, 0 nas ‘mento ou casamento; que no apenas contabilize os movimentos migratérios, mas que também fale sobre as expectativas culturais sociais dos migrantes, que recupere um pouco da sua vida da apa- rente aridez a partir de uma documentagio que, se utilizada com finalidades meramente estatfsticas, nao traré para os leitores de his- téria mais do que um niimero, verdadeiro mas abstrato, preciso mas patético, matematicamente desencamado, Os problemas relativos ao risco de que um estilo ‘quantitati- vo niio-problematizado’ comprometa uma obra de Histéria Demo- grifica so comuns também a outros campos que se utilizam eventu- almente das técnicas estatisticas e de quantificagiio, como a Histéria Econémica, Na verdade, estes so riscos comuns a todos os campos historiogréficos que se sintonizam com a chamada Hist6ria Quan- titativa (expresso que se relaciona a uma ‘abordagem’, confor- me pode ser visto no segundo campo de critérios do Quadro 1). Da mesma forma que & um ato meramente descritivo registrar gratuit mente uma variago secular nos pregos de um certo produto, comp lar aspectos referentes a uma populagdo sem uma problematizacZo correspondente 6 um gesto historiogréfico vazio de um contetido maior. Voltaremosa esta questo quando discutirmos os horizontes ¢ 60s limites da HistGria Quantitativa. Postos estes cuidados, a Hist6ria Demogréfica é uma dimen- io importante a ser examinada pelos historiadores que se dedi- cam aos varios perfodos, e muitos deles tém prestado contribuigdes inestiméveis & compreensiio da vida rural, da vida urbana, das oci- lagdes nos niveis populacionais gerais ¢ localizados com as suas ine 25 José D’ASSUNCAO BARROS 26 devidas implicagées sociais. Os problemas mais comuns pertinentes a este campo de estudo estilo associados & compreensiio da relat dade do proprio mimero, Historicamente, nunca se pode dizer por exemplo que uma cidade & populosa ou pouco habitada, a no ser que seja avaliado 0 contexto da informagdio numérica a que chegou 0 historiador demografico, Assim, na Antigitidade Grega o filésofo Aristételes ja idealizava para uma cidade um efetivo populacional de no maximo cinco mil cidadios (excluindo as mulheres e escravos que também a habitariam). Trata-se de certo modo de uma critica Aquilo que Ihe parecia ser uma excessiva populagiio urbana para a cidade de Atenas, que no tempo de Péricles havia chegado a possuir 40.000 cidadios. Roma, alguns séculos depois, ating! de habitantes, o que faria da Atenas Classica uma cidade comparati- Vamente pequena (isto é, se os parimetros de uma época pudessem modelar a leitura de uma outra). Mas em compensago, a antiga pital do Império Romano teria a sua populagdo reduzida a menos de cem mil habitantes no periodo medieval. Este perfodo conhece Portanto um rebaixamento no limiar populacional urbano: lugares com dois ou trés mil habitantes tenderiam a receber o status de uma “cidade” de dimensdes consideriveis, conforme estes novos pardi- metros um milhio Hoje em dia, quando vivemos o dréstico problema da su- perpopulagdo mundial e quando consideramos que a maior parte da populagio de quase todos os paises mais importantes vive em cidades (fenémeno especifico do século XX) estes limiares de po- ppulagio urbana oriundos de outras épocas tornam-se irrisérios para 0 homem comum. Mas nio para 0 historiador. Tudo isto vem nos mostrar simultaneamente a importincia e a relatividade do aspecto populacional para uma caracterizagio da Cidade enquanto tal, Ou seja, 0 ntimero tomado isoladamente nao deve ter grande importan- cia para 0 historiador, a niio ser quando ele pode contextualizé-lo, produzir a partir dele inferéncias socioculturais, conecté-lo a outras OCAMPO DA HISTORIA, informagdes ¢ estabelecer hipéteses para a compreensio de uma sociedade. Outro problema a ser referenciado, além da ‘relatividade do nimero’, refere-se ao da ‘problematizagio do némero’. Um campo fértil de aplicagoes da demografia histérica aparece quando come- gamos a relacionar padres de comportamento populacional com as hecessidades politicas e sociais desta populagio. Malthus, jé no século XIX, fazia notar que diversas sociedades controlavam os sous limites populacionais face aos recursos alimenticios e materiais através da adogio de um padrdo de ‘casamento tardio’ (na faixa téria de 25 anos para as mulheres ¢ 30 anos para os homens), em uma época em que havia parcos meios de controle da natalidade. © ‘casamento retardado’ adicionado & ‘precariedade de recursos anticoncepcionais’ podia exigir 0 desenvolvimento de determinados padres de abstinéncia entre os jovens (jé que nfo eram desejados nestas sociedades os filhos ilegitimos que, de resto, comprometeriam com uma maior demanda por alimentos as possibilidades de sobrevi- vencia do grupo). / Conexdes como estas formaram um campo significativo para 0s historiadores associarem certos dados demogrificos a aspectos ideol6gicos. A valorizagio da vida ascética, as associagdes entre amor e sexo, a moralizagiio do sexo a partir de interditos, ou mesmo 0 surgimento de movimentos artisticos que valorizaram o “amor casto” (como ocorre com o Amor Cortés entre os trovadores da Tdade Média) ... tudo isto pode ter uma outra ponta nas necessidades vitais de contrabalangar nascimentos em uma sociedade que tem poucas alternativas anticoncepcionais, Toma-se necessirio nestas sociedades a criagio de ocupagdes dignas para o jovem que terd de retardar a constituigdo da familia: daf, na Idade Média, o engaja- ‘mento em aventuras como ‘cavaleiro andante” ou cruzado, a valori- zagio do santo, a altemativa do eremitismo. Surgem também as necessidades de criar um sistema para a distribuicio do patriménio familiar entre os herdeiros de um chefe de familia que morreu ~ 27 JOSE D'ASSUNGAO BARROS 28 algumas sociedades adotardo o sistema da primogenitura masculina, Para evitar que a propriedade fragmente-se entre varios herdei. 10s. Resultado disto: novos marginalizados no seio familiar, novas necessidades de priticas comportamentais espec nece: as, novas sidades de ideologias que obriguem todos a estas priticas, © dado demogréfico esta sempre preso a uma teia complexa: uma variacio em um aspecto populacional pode produzir a necessidade de um grande rearranjo na organizagao politica, nos tragos ideolégicos e nos bens culturais a serem produzidos pela Sociedade. A estas conexées o historiador demogrifico de- Ve estar atento, Sio apenas alguns exemplos, entre tantos, que mostram que a dimensio cultural ou politica ¢ a dimensiio de- ‘mogréfica devem ser postas a dialogar pelo historiador. Com os exemplos mencionados, fica claro que a Histéria Demografica — a boa Histéria Demogréfica ~ obriga-se a dialogar Com aspectos que a ultrapassam. O historiador nio deve se transfor- mar em um mero recenseador retroativo, como estamos tentando demonstrar. 5 preciso que, mesmo partindo dos fatos demografico: ele esteja atento aos fatos da cultura, aos fatos econémicos, aos fa. {os politicos, as ideologias, aos aspectos antropolégicos. A Historia Demografica reafirma hoje o seu lugar no campo hist6rico precisa- mente estabelecendo interfaces com 0s outros campos historiogréfi- Cos: com a Hist6ria Econémica, com a Histéria Social, com a Historia Politica, com a Hist6ria Cultural, ou com qualquer outra imensio a ser examinada pelo historiador. Eis aqui um exemplo marcante de que, mais do que nunca, o historiador deve evitar de se deixar trancafiar no isolamento de seu compartimento historiogrifico de maior interesse. A tendéncia do historiador do século XX1, pode- Se prever, serd a de trabalhar cada vez mais habitualmente em um campo de interconexGes, mesmo que ele conserve a sua especialida- de. Assim como 0 otorrinolaringologista niio deveria deixar de ser lum clinico geral em todas as horas, um historiador demogrifico no Pode deixar de se preparar para dominar satisfatoriamente o métier © Campo DA tsrORIA do historiador da cultura, do historiador social, do historiador cn relago a obras historiograficas voltadas para o aspecto demogrifico, elas comecaram a aparecer na década de 1950 ~ sob 0 impulso do método da “reconstiuigio familiar” desenvolvido pelo demégrafo Louis Henry, que comegou a aplicé-lo a sociedades do passado. O método propunha vincular as informagées relativas a nascimentos, casamentos e mortes em uma determinada regio, € pode ser apreendido no manual escrito por Louis Henry com o titulo de Técnicas de Andlise em Demografia Historica’. A partir dat sur- ge uma profusio de teses. Algumas vinculam a Histria De~ mogrifica a um campo novo, a Histéria Regional (divisio que em nosso quadro enquadramos no critério ‘abordagens’ mais especi- ficamente no sub-item ‘campo de observagio"). O historiador regional, como veremos oportunamente, € aquele que trabalha com uma determinada regio, e neste trabalho, dependendo do seu problema historiogrifico especifico, ele pode realizar uma Hist6ria Demografica (como também uma Histéria Econdmica, uma Histéria Cultural, e assim por diante). ; Para © caso do entrelagamento entre Histéria Demogré- fica e Histéria Regional, os pioneiros foram os historiadores franceses da década de 1950 e 1960, sobretudo Coubert com seu Beauvais et le Beauvaisis (1960), que focaliza uma regio france- sa no século XVII E esta, talvez, a primeira obra de ‘demogra- fia social’, Além de ser uma Histéria Regional cuidadosamen- te articulada com uma Demografia Histérica, trata-se de uma verdadeira andlise social, também atenta aos aspectos econdmi- cos, Na mesma linha terfamos os estudos de Pierre Vilar sobre a Catalunha (1962) — mas deixaremos para depois a mengao a sub- especialidades como a da Hist6ria Regional, jé que elas se teferem mais propriamente ao critério ‘abordagem’, e no ao cri- tério ‘dimensio’ de que aqui tratamos. 5. Louis HENRY, Técnicas de andlise em demografia histérica, p. 1988. 29 José D'ASSUNGAO BARROS 30 A Historia da Cultura Material estuda os objetos mate- Tiais em sua interagio com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por dominios hist6ricos que vao do estudo dos utensilios ao estudo da alimentagio, do vestudrio, da moradia e das condigées materiais do trabalho humano. A nogio que atravessa este campo é a da “matéria” (ou do ‘objeto mate- tial’, que pode ser tanto o de tipo duravel, como no caso dos monumentos e dos utensilios, como do tipo perecivel, como no caso dos alimentos). Contudo, este campo deve examinar nao 0 objeto material tomado em si mesmo, mas sim os seus usos, as suas apropriagdes sociais, as técnicas envolvidas na sua manipu- ago, a sua importincia econdmica e a sua necessidade social © cultural. Afinal, a nogio de “cultura” também nio deixa de atravessar este campo. Desta forma, 0 historiador da cultura material nio estard atento apenas aos tecidos e objetos da indumentéria, mas também aos modos de vestir, as oscilagdes da moda, as suas variagdes conforme os grupos sociais, as demarcagées politicas que por vezes se colam a uma determinada roupa que os individuos de certas minorias podem ser obrigados a utilizar em sociedades que aproxi- mam os critérios da “

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