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PIERRE BOURDIEU QUESTOES DE SOCIOLOGIA “O autor retine nesta compilacio vinte ¢ um textos que sio todos eles tracos de palayras ditas, sob a forma de conferéncias, comunicagdese intervencdes em coloquios, ou entrevistas dadas a diversos jornais. Ligeiramente retoca- dos, estes textos guardam as virtudes da oraliclade: a complexidade das deft nigGes € das andlises constrGi-se progressivamente | A forma oral, com as suas regras ¢ légica proprias, permite aceder Aq s hesitagdes € ie a forma escrita justamente tem por fingao mascara istituem. Assitn, © as correcgdes através das quais aniilises © conceitos se ¢ ira mais proxima e mecanismo de investigacao é restituide de uma ran mais acessivel. [...] A complexidade nao 6, desta forma, dada de um blo- co mas construida passo a passo, de um modo que o leitor, mesmo pouco familiarizado com a sociologia, pode facilmente seguir.” Roger Chartier em Libération, a 27 de Janeiro de 1981 PIERRE BOURDIEU (1950-2002) — Figura intelectual novivel do século XX, foi director da Escola de Altos Estudos em Giéncias Sociais, director da Revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e Catedritico de Socio- logia no Collage de France. No seu trabatho, persiste o intransigente rigor intelectual © aplicado aos diversos mecanismos de dominacao que atravessum a socie- dade, Unindo estes dois mundos, esta vertigem dupla pela investigacao ¢ pela politica faz dele um dos iltimos grandes socidlogos, indiferente as fronteiras interdisciplinares ¢ que alia um pensamento impiedoso & inter Wlémico vengao civica ¢ ao exercicio da cidadania, SEN 72-754-297-b IN| a Marcens 47 COLECCAO MARGENS Publicados: A Minha Bricanilise, José Martinho (2.* edig3o) Ensaios sobre a Evolugdo do Homem € da Linguagem, Amiénio Bracinla Vieine ‘Tramgressio ¢ Autuconceito dos Jovens, Feliciano H. Veiga (2." edigio) © Saber Médico do Povo, Beria Nunes Tabela para Uma Nebulosa, Carlos Amaral Dias Menina ¢ Maga, Teresa Joaquim Universal Singular, Tite Cardose ¢ Cunha No Reino das Fadas, Maria da Conceijdo Costa A Aleachofra © a Cebola, Jost Pero Sequeina A Grupanilise, Marts Rita Mendes Leat Bion Hoje. Carlas Amaral Dias, Antinio Muniz de Rezende © David Zimerman Entre a Escols ¢ 0 Lar, Ricardo Vieira (2* edigiv) Da Lingua de Ninguém 4 Praga da Palavea, Miguel Seraay Prreiea © Espaco ¢ o Tempo! Intraligugies, Paulo Nuno Pereins As Arvores de Deus © as Suas Flores, Antdnin Manuel Marques O Travesti, Lisa Antares Pensa s Emocio, Maria de Filtima Sarsfield Cabral A Paicoterapia como Aprendizagem, Maria Rita Mendes Leat (2° echgio) Entrevista ¢ Diagndstico, Enldiia Tornas de Best Dios. José Martinho © Trabalho, Dominique Méda A Nogio de Cultura nas Ciéneias Sociais, Denys Cuthe © Negative ou o Retorno a Preud, Carlos Amaral Dias Gozo, fore Martinhs Exercieios de Cidadaoia, Miguel Serras Pereina Poema em Branco, Miguel Sernas Pereina Compreender 0 Comportamenco Animal, Marien S, Dawkins (2 edic3o) Sonho, Delitio ¢ Linguagem, Vasce Curado Do Mundo da Imaginagio 3 Imaginago do Mundo, Colective Loucos Sio 0s Outros, Jaime Mitiecira (2,* edigio) Ecologia © Relacdes Hurmanas, Domingos Neto © Lugar da Utopia, José Manuel Hetero Elogio ¢ Refutagio do Engenho, fost Antonio Marina Agustina Bessa-Luis: A Paixio da tncerteza, José Manuel Helena latemet, @ Exease Inquiccante, Alain Finkielkraut ¢ Paul Soriano Antropologia do Sonho, Sophie Jama Ditos Il - Conferéncias Psicanaliticas, José Martinho Textos com Psicaniilise, Eduardo Sé Teoria dos Sentimentos, Garlor Gautilla det Pino laa DE SOCIOLOGIA QUESTOES DE SOCIOLOGIA Trapucko pe Micuer Sennas Perea FIM DE SECULO ‘Ouvrage publi avec le concours du Ministre francais chargé de La Culture — Centre National da Livre. Livro publicado com 0 apoio do Minisério Francés da Cultura ~ Gentro Nacional do Livto. . QUESTOES DE SOCIOLOGIA “PETULO ORIGINAL QUESTIONS DE SOCIOLOGLE suron, MERLE LOURDIEL TRADUGAO DO FRANCES MIGUEL SEILILAS PEREIRA cara FERNANDO MATEUS sun 972-754-197-6 DEPGSITO LEGAL 201575/03 © Les Enrrions px Mivurr, 1984 Fim ne Sécuto- Eorcdrs, Socispape UNIPESsOAL, LoA., Lisuoa, 2003, cs INDICE Prdlogo A atte de resistir as palavras Uma ciéncia que incomoda O socidlogo cm questi Os intelectuais no entram no jogo? Como libertar os intelectuais livres? Para uma sociologia dos socidlogos O paradoxo do socidlogo O que quer dizer falar Algumas propricdades dos campos O mereado linguistico Accensura A “juventude” ¢ s6 uma palavea A origem e 2 evolugio das espécies de melémanos A metamorfose dos gostos Como se pode ser desportista? Alla costura e alta cultura Mas quem criou os “eriadores"? A opiniio pablica nio exicte Cultura ¢ polities A greve ¢ a accio politica o facismo da inteligéncia indice remissivo 3 23 4 65 7 83 n 101 no 127 145, 151 163 169 181 205 27 233 247 263 277 283 PROLOGO Nio gostaria de fazer anteceder de um longo preambulo escrito 0s textos aqui reproduzidos, que sio todos eles transcrigdes de discursos orais e destinados a nao-especialistas. No entanto, creio ser necessario dizer pelo menos por que foi que me pareceu util e legitimo, publicar assim sob uma forma mais facil, mas mais imper- feita, proposigdes que, para alguns, abordam temas que ja tratei noutros lugares ¢ de maneira sem diivida mais rigorosa e mais completa. Asociologia difere das outras ciéncias pelo menos num ponto: exige-se dela uma acessibilidade que nao se pede 4 fisica ou sequer A semiologia ¢ 4 filosofia. Deplorar a obscuridade talvez seja tam- bém uma maneira de testemunhar que se quereria compreender, ou tera certeza de compreender, coisas que se pressente merece~ rem ser compreendidas. Em todo o caso, nio ha sem davida dominio em que 0 “poder dos especialistas” ¢ 0 monopolio da “competéncia” seja mais perigoso ¢ mais intolerivel. E a socio- logia nio seria digna de que se lhe dedicasse uma hora de esforgo se devesse ser um saber de especialista reservado aos especialistas. Nao me deveria ser necessanio lembrar que nenhuma ciéncia poe em jogo paradas sociais tio cvidentemente como o faz a sociologia. E isso que faz a dificuldade particular tanto da produgio do discurso cientifico como da sua transmissio. A sociologia toca ! Lugares para os quais em cada caso aqui remeto, no final, para que © leitor possa, se assim o desejar, ir mais longe. interesses, por vezes vitais. E nfo podemos contar com os patrdes, os bispos ou os jornalistas para clogiarem a cientificidade de tra- balhos que pdem a descoberto os fundamentos escondidos da sua dominagio e para trabalharem na divulgagio dos seus resul- tados, Aqueles que se impressionam com as patentes de cientifi- cidade quetos Poderes (temporais ou espirituais) gostam de atnibuir devem saber que, na década de 1840, o industrial Grandin agrade- cia, na tribuna da Camara, aos “verdadeiros homens de ciéncia” que tinham mostrado que empregar criangas era muitas vezes um acto de generosidade. Continuamos a ter os nossos Grandin eos nossos “verdadeiros homens de ciéncia”. E 0 socidlogo nio pode contar muito, no seu esforgo por difundir o que descobriu, com todos aqueles cuja profissio é produzir, dia apés dia, semana apés semana, sobre todos os temas obrigatorios do momento, a “violéncia”, a “juventude”,a “dro- ga”, 0 “renascimento do religioso”, etc., etc., os discursos nem sequer falsos que se transformam hoje em temas de dissertagao obrigatérios dos alunos do liceu. No entanto, teria grande neces- sidade de ser auxiliado nesta tarefa. Porque nio ha forga intrin- seca da ideia verdadeira ¢ porque o proprio discurso cientifico ¢ apanhado pelo quadro das relagdes de forca que poe a descoberto. Porque a difusio desse discurso esta submetida as leis da difusio cultural que enuncia ¢ porque os detentores da competéncia cultural que € necessiria 4 sua apropriagio nao sio os que tém mais interesse nesta apropriagio. Em suma, na luta contra o dis- curso dos altifalanres, homens politicos, ensaistas, jornalistas, o discurso cientifico tem tudo contra si: as dificuldades ¢ as len- tiddes da sua elaboragio, que o faz chegar, as mais das vezes, depois da batalha; a sua complexidade inevitivel, de molde a desencorajar os espiritos simplistas ¢ com prevengoes ou, sim- plesmente, as que nao tém o capital cultural necessario 4 sua descodifica¢ao; a sua impersonalidade abstracta, que desencoraja a identificag3o e todas as formas de projecgSes gratificantes, ¢ sobretudo a sua distincia relativamente as idcias feitas e 4s con- viegdes primeiras. Nao se Ihe pode dar qualquer forga real a no ser na condi¢ao de se acumular sobre ele a forga social que Ihe 10 permita impor-se. O que pode exigir que, por uma contradi¢io aparente, se accite jogar os jogos sociais, cuja logica se (d)enuncia. ‘Tentar evocar Os mecanismos da moda intelectual num dos lugares de topo da moda intelectual, utilizar os instrumentos do marketing intelectual, mas para os fazer veicular aquilo que comummente ocultam, em particular a funcdo desses instrumentos ¢ dos seus utilizadores comuns, tentar evocar a légica das relagdes entre o Partido Comunista ¢ os intelectuais num dos drgios do Partido Comunista destinado aos intelectuais, ete., ¢, aceitando de ante- mio a suspeita do compromisso, tentar virar contra o poder inte- Jectual as armas do poder intelectual dizendo a coisa menos espe- rada, a mais improvavel, a mais deslocada no lugar em que ¢ dita; € recusar “pregar aos convertidos”, como faz o discurso comum que 56 é to bem entendido porque sé diz ao seu piiblico aquilo que cle quer ouvir dizer. " A ARTE DE RESISTIR AS PALAVRAS* P. O discurso burgués sobre a cultura tende a apresentar o interesse por ela como desinteressado. Vocé mostra, pelo contririo, que esse interesse, ¢ até mesmo o seu aparente desinteresse, propor- ciona lucros. — Paradoxalmente, os intelectuais tém interesse no cconomi- cismo que, reduzindo todos os fenédmenos sociais e em particular os fendmenos de troca 4 sua dimensio econdmica, lhes permite nao se porem em jogo. E por isso que € preciso lembrar a exis- téncia de um capital cultural ¢ que este capital proporciona ganhos directos, em primeiro lugar no mercado escolar evidentemente, mas também noutros lugares, ¢ também ganhos de distingio — estranhamente esquecidos pelos economistas marginalistas — que resultam automaticamente da sua raridade, quer dizer do facto de ele estar desigualmente distribuido. P. As praticas culturais sio sempre, portanto, estratégias que distanciam do que é “comum” e “facil”, sio aquilo a que vocé chama “estratégias de distingio”. — Podem ser distintivas, distintas, sem procurarem sequer sé~ -lo. A definigao dominante da “distingo” chama “distintos” aos comportamentos que se distinguem do comum, do vulgar, sem intengio de distingio. Nestas matérias, as estratégias mais “ren- * Entrevista com Didier Eribon a propésito de La distinction, Libération, 3.¢4 de Novembro de 1979, pp. 12-13. 13 dosas” sio as que nao se vivem como estratégias. As que consis- tem em gostar ou até mesmo em “‘descobrir” a cada momento, como que por acaso, aquilo de que se deve gostar. O ganho de distingio é 0 ganho proporcionado pela diferenca, a distancia, que separa do comum. E este ganho directo é dobrado por um ganho suplementar, ao mesmo tempo subjectivo ¢ objective, o ganho de desinteresse: 0 ganho que hi no facto de alguém se ver —¢ ser visto—como alguém que nao procura o ganho, alguém total- mente desinteressado. P. Se toda a pritica cultural ¢ um por a distancia (voc? chega até mesmo a dizer que a distanciagao brechtiana € um por a distan- cia o povo), a ideia de uma arte para todos, de um acesso para todos 4 arte nao tem sentido. O * ¢ uma ilusio, que deve ser denunciada. —Eu proprio participei na ilusio do “comunismo cultural” (ou linguistico), Os intelectuais pensam espontaneamente a rela- ¢30 com a obra de arte como uma participagao mistica num bem comum, sem raridade, Todo o meu livro vem lembrar que o acesso 4 obra de arte requer instrumentos que nio estio univer~ salmente distribuidos. E por conseguinte que os detentores desses instrumentos se garantem ganhos de distingio, ganhos tanto maiorés quanto mais raros so os instrumentos em causa (como & © caso dos que sio necessarios para a apropriagio das obras de vanguarda), omunismo cultural” P. Se todas as priticas culturais, se todos os gostos classificam num lugar determinado do espago social, nao teremos de admitir de facto que a contraculcura é uma actividade de distingao como as demais? ~Teriamos de nos entender acerca daquilo a que se chama contracultura, O que é por definicio dificil ou impossivel, Ha contraculturas: tudo que existe 4 margem, fora do establishment, exterior 4 cultura oficial. Num primeiro momento, vernos bem que esta contracultura é definida negativamente por aquilo contra que se define, Estou a pensar, por exemplo, no culto de tudo o 14 que est fora da cultura “legitima”, como a banda desenhada. Mas no é tudo: nao saimos da cultura fazendo a economia de uma anilise da cultura ¢ dos interesses culturais. Por exemplo, seria facil mostrar que o discurso ecolégico, estilo caravana, roda livre, excurso verde, teatro de pé descalco, etc., esta cheio de alusdes desdenhosas € distintas ao “metro-trabalho-casa” e as férias em “carneirada” dos “pequenos burgueses comuns”’. (As aspas so obrigatérias a todo o momento. E muito importante: nio se trata de marcar a distancia prudente do jornalismo oficial mas de significar a separagao entre a linguagem da anilise ¢ a linguagem corrente, em que todas estas palavras sio instrumentos de uta, armas e paradas em jogo nas lutas de distingio.) P. As marginalidades, os movimentos de contestagio, nao abalam, assim, os valores estabclecidos? — Evidentemente, comego sempre por mostrar 0 outro lado e por lembrar que as pessoas que se querem a4 margem, fora do espaco social, se situam no mundo social, como toda a gente. Aquilo a que chamo 0 seu sonho de voo social exprime muito peueruinenes uma posi¢ao em falso no mundo social: a que carac- teriza os “novos autodidactas”, os que frequentaram o sistema escolar até uma idade bastante avangada, o bastante para adqui- rirem uma relacio “cultivada” com a cultura, mas sem obterem titulos escolares ou sem obterem todos os titulos escolares que a sua posi¢ao social de origem lhes prometia. Dito isto, todos os movimentos de contestagao da ordem sim- bélica sio importantes pelo facto de porem em questo o que Parece Sbvio; o que é posto fora de questio, indiscutide. Sacodem as evidéncias. Era 0 caso de Maio de 1968. E 0 caso do movi- mento feminista que nio podemos arrumar dizendo que é obra de “burguesas”. Se estas formas de contestagao incomodam, muitas vezes, os movimentos politicos ou sindicais, ¢ talvez porque vao contra as disposicGes profiundas ¢ os interesses especificos dos homens de aparelho. Mas é sobretudo porque, atendendo a que experiencia da politizacao, a mobilizagao politica das classes domi- nadas deve ser conquistada, quase sempre, contra o doméstico, 0 15 privado, o psicolégico, ete., tém dificuldade em compreender as estratégias que visam politizar o doméstico, o consumo, o trabalho da mulher, etc. Mas seria aqui necessiria uma longa anilise Em todo o caso, deixando fora da reflexdo politica dominios inteiros da pratica social, a arte, a vida doméstica, etc., ete., expo- mo-nos a formidaveis retornos do recalcado. P. Mas que poderia ser, entio, uma verdadeira contracul- tura? — Nio sei se posso responder a essa pergunta. Aquilo de que estou certo € que a posse das armas necessarias para cada um se poder defender contra a dominagio cultural, contra a dominagio que se exerce através da cultura e em seu nome, deveria fazer parte da cultura. Tratar-se-ia de uma cultura capaz de por a dis~ tincia a cultura, de a analisar ¢ nao de a inverter, ou, mais exacta- mente, de Ihe impor uma forma invertida. E neste sentido que o meu livro é um livro de cultura ¢ de contracultura. Mais geral- mente, penso que uma verdadeira contracultura deveria forne- cer armas contra as formas moles da dominagio, contra as formas avangadas de mobilizagio, contra a violéncia mole dos novos idedlogos profissionais, que muitas vezes se apoiam numa espe- cie de racionalizagio quase cientifica da ideologia dominante, contra os usos politicos da ciéncia, da autoridade da ciéncia, ciéncia fisica ou ciéncia econdémica, sem falar da biologia ou da socio- biologia dos racismos avangados, quer dizer altamente eufemiza~ dos. Em suma, trata-se de assegurar a disseminagio das armas de defesa contra a dominagao simbélica, Seria também necessario, na ldgica de que falava hi pouco, fazer entrar na cultura neces- sariamente politica uma grande quantidade de coisas que a defini- go actual tanto da cultura como da cultura politica excluem... E nao desespero da possibilidade de um grupo ser um dia capaz de vir a empreender um tal trabalho de reconstrugao. P. Nao se devera insistir no facto de vocé nao querer sobre- tudo produzir uma “culpabilidade”, uma “ma consciéncia” entre 9s intelectuais? 16 —Pessoalmente, tenho horror a todos os que visam produzir a “culpabilidade” ou a “md consciéncia”. Penso que tem jogado de mais, em particular com 05 intelectuais, 0 jogo sacerdotal da culpabilizag3o. Tanto mais que é muito facil resolver essa culpa- bilidade por meio de um acto de contri¢ao ou de uma confissio piblica. Quero simplesmente contribuir para produzir instru- mentos de anilise que ndo exemptem os intelectuais: penso que a sociologia dos intelectuais € um preliminar a toda a ciéncia do mundo social, que € necessariamente feita por intelectuais. Inte- lectuais que tivessem submetido a sua propria pratica intelectual ¢ 0s seus produtos, ¢ nio o seu "ser burgués", a uma critica sociolégica estariam melhor armados para resistir as estratégias de culpabilizago que exercem contra eles todos os aparelhos ¢ que visam impedi-los de fazer aquilo que enquanto intelectuais poderiam fazer por e sobretudo contra esses aparelhos. P. Mas nio receia que as suas anilises (por exemplo do lugar dos valores de virilidade no estilo de vida da classe operaria) ve- nham a reforcar o obreirismo? — Sabe, quando escrevo, reccio muitas coisas, quer dizer muitas mis Icituras. O que explica, ¢ disso sou acusado muitas vezes, a complexidade de algumas das minhas frases, Tento desencorajar antecipadamente as mis leituras que muitas vezes posto prever Mas 05 avisos que introduzo num parénteses, um adjectivo, as- pas, cte., no tocam senao aqueles que nao tém necessidade deles. E cada um retém, numa analise complexa, o aspecto que menos 0 incomoda. Dito isto, creio que ¢ importante descrever, trata~s¢ de um facto social como os outros, mas muitas vezes mal compreen pelos intelectuais, os valores de virilidade no interior da classe Operaria. Entre outras razGes, porque estes valores que esto ins- critos no corpo, quer dizer no inconsciente, permitem com- preender muitos comportamentos da classe operiria ¢ de alguns dos seus porta-vozes. E Sbvio que nio apresento o estilo de vida da classe operiria ¢ 0 seu sistema de valores como um modelo, um ideal. Tento explicar o apego aos valores de virilidade, 4 forca fisica, fazendo notar, por exemplo, que é obra de pessoas que nao 17 podem contar muito mais que com a sua forca de trabalho ¢, eventualmente, de combate. Tento mostrar aquilo em que a rela~ Go com o corpo, que é caracteristica da classe operaria, esti no principio de todo um conjunto de atitudes, de comportamentos, de valores, € que permite compreender tanto a maneira de falar ou de rir como a maneira de comer ou de andar. Digo que a ideia de virilidade é um dos altimos refiigios da identidade das classes dominadas. Tento por outro lado mostrar os efeitos, politicos entre outros, que pode ter a nova moral terapéutica, a que debitam todo o dia publicitarios, jornalistas de revistas femininas, psica- nalistas do pobre, conselheiros conjugais, ete., cte. Isto nao quer dizer que cu exalte os valores de virilidade nem os usos que deles sio feitos, quer se trate da exaltag’o do bom brutamontes, predis- posto aos servigos militares (0 lado Gabin-Bigeard' que inspira um horror fascinado aos intelectuais), ou da utilizagao obreirista do estilo bom rapaz ¢ sem papas na lingua que permite economi- zar a anilise ou, pior, fazer calar a anilise. P. Vocé diz que as classes dominadas nio tém mais que um papel passivo nas estratégias de distingao, que indicam apenas um sentido negativo. Portanto, para si, nio ha “cultura popular”, — A questio nao é saber se hi ou nao ha para mim “cultura popular”. A questio é saber se ha na realidade alguma coisa que pareca Aquilo a que assim chamam as pessoas que falam de “cul- tura popular”, E a isso respondo que nio. Dito isto, para sair de toda a barafunda que rodeia essa nogio perigosa, seria necessaria uma anilise muito longa. Prefiro ficar por aqui, O que poderia dizer em meia diizia de frases, como de resto tudo 0 que até aqui disse, poderia ser mal compreendido. E depois gostaria muito, gostaria mais, em todo 0 caso, de que se lesse o meu livro.,.. P. Mas a verdade é que vocé assinala a relago que une na classe operiria a relag3o com a cultura e a consciéncia politica. ! Respectivamente actor ¢ general franceses que se tornaram “simbolos viris". (N, do T) 18 —Penso que o trabalho de politizagao muitas vezes se acom- panha de uma iniciativa de aquisicao cultural, vivida muitas vezes como uma espécie de reabilitacao, de restauragio da dignidade pessoal. E qualquer coisa que yernos muito bem nas memoérias dos militantes operirios da velha escola. Esta iniciativa libertadora parece-me ter efeitos alienantes, na medida em que a reconquista de-uma espécie de dignidade cultural se associa a.um reconheci- mento da cultura em nome do qual se exercem numerosos efeitos de dominacio, No estou a pensar s6 no peso dos titulos esco- lares nos aparelhos; penso em certas formas de reconhecimento incondicional, porque inconsciente, da cultura legitima e daqueles que a detém. Nao tenho sequer a certeza de que certas formas de obreirismo agressivo nao encontrem o scu principio num reconhe- cimento envergonhado da cultura ou, muito simplesmente, numa vergonha cultural nao controlada, nao analisada. P. Mas as transformagdes da relagio com o sistema escolar que vocé descreve no seu livro nio serao de natureza a transfor- mar nio s6 as relagdes com a cultura, mas também as relagdes com a politica? —Creio, ¢ mostro-o mais precisamente no meu livro, que estas transformagGes, ¢ em particular os efeitos da inflago ¢ da desvalorizagio dos titulos cscolares, se contam entre os factores de transformagio mais importantes, em particular no dominio da politica. Penso em particular em todas as disposi¢des anti-hierir- quicas Ou mesmo ann-institucionals que se manifestaram muito para além do sistema de ensino ¢ cujos portadores cxemplares so 08 0s 2que completaram o pré-universitario ou as novas cama- das de empregados, espécie de os da burocracia, Penso que sob as oposicées aparentes, pc/esquerdistas ou CaT/crpT®, e talvez mais ainda sob os conflitos de tendéncias que dividem hoje todas 2 Operinios especializados ou qualificados apenas para o exercicio de uma tarefa simples © mais ou menos mecanicamente repetitiva, (N. do‘T:) 2 Centrais sindicais francesas, respectivamente Confidération génénale du travail (Confederasa0 Geral do Trabalho) ¢ Confédénation flangaise démocratique dee travait (Confederag3o Francesa Democritica do Trabalho), (N. dé) 19 as organizages, descobririamos os efeitos de relagdes diferentes com o sistema escolar que se retraduzem muitas vezes sob a forma de conflitos de geragSes. Mas para se precisarem estas intuic¢des seria necessério proceder a anélises empiricas que nem sempre so possiveis. P. Como se poder constituir uma oposi¢io 4 imposicao dos valores dominantes? —Correndo o risco de o surpreender, responderei com uma citagao de Francis Ponge: “E entio que ensinar a arte de resistir as palavras se torna dtil, a arte de nao se dizer sendo o que se quer dizer. Ensinar a cada um a arte de fundar a sua propria retérica é uma obra de salvagao publica.” Resistir 3s palavras, nio se dizer senao 0 que se quer dizer: falar em vez de ser falado por palavras de empréstimo, carregadas de sentido social (como quando se fala por exemplo de um “encontro de aipula” entre dois respon- saveis sindicais ou quando o Libération fala dos “nossos” navios a propésito do Normandie ¢ do France), ou falado por porta-vozes que sio eles proprios faludos. Resistir 4s palavras neutralizadas, eufemizadas, banalizadas, em suma a tudo o que faz a solemdade coca da nova retérica dos altos responsiveis administrativos‘, mas também is palavras gastas, repisadas, até ao siléncio, das moges, resolugdes, plataformas ou programas. Toda a linguagem que é produto do compromisso com as censuras, interiores ¢ exteriores, exerce um efeito de imposi¢io, imposigio de impensado que desencoraja 9 pensamento. Houve quem se servisse demasiadas vezes do alibi do realismo ou da preocupagio demagogica do ser-se “compreendido pelas massas” para substituir o slogan 4 andlise. Penso que acabam por ter de se pagar todas as simplificagdes, todos os simplismos, ou por fazer corm que os paguem os outros. __ + No original, rithorique énarchique, o que serve para designar a retérica da Ecole nationale d’administration (cuja sigla ¢ EINA, de onde o adjectivo énarchique ou “enarea") que se destina a formar os quadros superiores da administragio © € uma das mais célebres “grandes escolas" de elite (grandes froles) do ensino superior em Franga. (N. doT) 20 P. Os intelectuais tém ent3o um papel a desempenhar? — Sim, evidentemente. Porque a auséncia de tcoria, de andlise tedrica da realidade, coberta pela linguagem de aparclho, faz nascer monstros. O slogan e 0 anitema conduzem a todas as formas de terrorismo. Nao sou tio ingénuo que pense que a existéncia de uma anilise rigorosa e complexa da realidade social baste para por ao abrigo de todas as formas de desvio terrorista ou totali- tario. Mas tenho a certeza de que a auséncia dessa anilise Ihes deixa o campo livre. E por isso que, contra o anticientismo que anda no ar do tempo c do qual os novos idedlogos se alimentam abundantemente, defendo a ciéncia e até mesmo a teoria quando esta tem por efcito proporcionar uma melhor compreensio do mundo social. Nao temos de escolher entre 0 obscurantismo ¢ 0 cientismo. “Entre dois males”, dizia Karl Kraus, “recuso-me a escolher o menor”. O facto de nos darmos conta de que a ciéncia sc tornou um instrumento de legitimacao do poder, que os novos dirigentes governam em nome da aparéncia de ciéncia econdmico-politica adquirida em Sciences Po* e nas Business-schools, nio deve condu- zir-nos a um anticientismo romantico ¢ regressivo, que coexiste sempre, na ideologia dominante, com o professar do culto da ciéncia, Trata-se antes de produzir as condigées de um novo expirito cientifico ¢ politico, libertador porque liberto das censuras. P. Mas nao ha assim o risco de se recriar uma barreira de linguagem? —O meu objectivo é contribuir para impedir que se possa dizer seja 0 que for sobre o mundo social. Schoenberg dizia um dia que compunha para que as pessoas deixassem de poder escre- ver misica. Escrevo para que as pessoas, ¢ antes do mais aqueles que tém a palavra, os porta-vozes, deixem de poder produzir, a propésito do mundo social, um ruido que tem as aparéncias da miisica. > Ou seja, Beale de Sciences Politiques (Escola de Ciencias Politicas), outra das mais prestigiadas grandes écoles jf referidas na nota de tradugio anterior. (N.doT) 21 Quanto a dar a cada umt os meios de firndar a sua prépria retérica, como diz Francis Ponge, de ser o seu proprio porta-voz verdadeiro, de falar em lugar de ser falado, tal deveria ser a ambi- cao de todos os porta-vozes, que seriam sem davida coisa com- pletamente diferente do que sio se se dessem 0 projecto de tra- balhar pela’sua propria extingao. A verdade ¢ que podemos sonhar, por uma vez... 22 UMA CIENCIA QUE INCOMODA * P. Comecemos pelas questées mais evidentes: as ciéncias sociais, ¢a sociologia em particular, serio verdadeiramente ciéncias? Por que razao vocé experimenta a necessidade de reivindicar a cien- tificidade? —A sociologia parece-me ter todas as propriedades que deti- nem uma ciéncia. Mas em que grau? A questao é essa. Ea resposta que se Ihe pode dar varia muito segundo os sociélogos. Eu diria apenas que ha muitas pessoas que se dizem ¢ se créem socidlogos e que contesso ter certa dificuldade em reconhecer como tais. Em todo o caso, hi muito que a sociologia saiu da pré-histona, quer dizer da época das grandes teorias da filosofia social com que os profanos muitas vezes a identificam. O conjunto dos socidlo- gos dignos desse nome pée-se de acordo em torno de um capital comum de aquisic¢ées, conceitos, mérodos, procedimentos de verificagio. Resta o facto de, por razdes sociolégicas evidentes centre outras porque desempenha muitas vezes o papel de disci plina refiigio —, a sociologia ser uma disciplina muito dispersa (no sentido estatistico do termo) ¢ isto de diferentes pontos de vista. © que explica que a sociologia dé a aparéncia de uma disciplina dividida, mais préxima da filosofia que das outras ci¢ncias. Mas © problema nao esti af: se se manifestam tantos escripulos acerca da cicntificidade da sociologia, ¢ porque a sociologia incomoda. * Entrevista com Pierre Thuillier, La Recherche, n." 112, Junho de 1980, pp. 738-743. P. Vocé nao é Ievado a por-se questdes que objectivamente se pdcm 4s outras ciéncias, embora os cientistas nao tenham, concretamente, de as por? — A sociologia tem 0 triste privilégio de se confrontar inces- santemente com a questio da sua cientificidade. E-se mil vezes menos exigente para com a historia ou a ctnologia, para ji no falarmos da geografia, da filologia ou da arqueologia. Incessante- mente interrogado, o socidlogo interroga-se ¢ interroga inces- santemente. O que faz com que se acredite num imperialismo sociologico: 0 que € esta ciéncia incipiente, balbuciante, que se permite submeter a exame as outras ciéncias! Estou a pensar, evidentemente, na sociologia da ciéncia. De facto, a sociologia nio faz mais que pér 4s outras ciéncias questdes que lhe poem de maneira particularmente aguda. Se a sociologia é uma ciéncia critica, talvez seja por estar cla propria numa posicao aritica, A so- ciologia constitui problema, como costuma dizer-se. Sabe-se por exemplo que lhe foi imputado Maio de 1968. Contesta-se nao 6a sua existéncia enquanto ciéncia, mas também a sua existéncia pura e¢ simples. Neste momento sobretudo, em que alguns que tém infclizmente o poder de o conseguir, trabalham no sentido da sua destruigig. Ao mesino tempo que reforcam por todos os meios a “sociologia™ edificante, estilo Institue Auguste Comte ou Sciences Po, O que ¢ feito em nome da ciéncia, e com a cumpli- cidade activa de certos “cientistas” (no sentido trivial do termo). P. Por que razio a sociologja constitui um problema particular? —Porqué? Porque desvela coisas escondidas ¢ por vezes recal- cadas como a correlagao entre o sucesso escolar, que é identifi- cado coma “inteligéncia”, ¢ a origem social ou, melhor, 0 capital cultural herdado da familia. Sio verdades que os tecnocratas, os epistemocratas — quer dizer bom namero dos que léem a socio- logia e dos que a financiam — nao gostam de ouvir, Outro exem- plo: mostrar que © mundo cientifico é lugar de uma concorrén- cia que. orientada pela busca de ganhos especificos (prémios, Nobel ¢ outros, priordade da descoberta, prestigio, etc.), e con- duzida em nome de interesses especificos (quer dizer irredutiveis 24 aos interesses econdmicos sob a sua forma comum e percebidos por isso como “desintcressados”), ¢ pér cm questo uma hagio- grafia cientifica da qual participam muitas vezes os cientistas e da qual tem necessidade para acreditar naquilo que fazem. P. De acordo: a sociologia parece agressiva ¢ incémoda. Mas por que razdo o discurso sociolégico teri de ser “cientifico"? Os jomalistas também pdem questdes incomodas; ora nem por isso se reclamam da ciéncia. Por que é decisivo que haja uma fronteira entre a sociologia e um jornalismo critico? — Porque ha uma diferenga objectiva. Nao ¢ uma questao de ponto de honra. Ha sistemas coerentes de hipdteses, conceitos métodos de verificagao, tudo o que comummente se associa 4 ideia de ciéncia. Por conseguinte, por que nao dizermos que ela é uma ciéncia se é de facto uma? Tanto mais que a parada em jogo ¢ muito importante: uma das manciras de por de lado ver- dades incémodas é dizer que no sio cientificas, o que equivale a dizer que sio “politicas”, quer dizer suscitadas pelo “interesse”, a “paixio”, portanto relativas ¢ relativiziveis. P. Se se pde a sociologia a questao da sua cientificidade, nao sera também por ela se ter desenvolvido com um certo atraso em relago 4s outras ciéncias? em divida. Mas isso deveria fazer ver que esse “atraso” se liga ao facto de a sociologia ser uma ciéncia especialmente dificil, especialmente improvavel. Uma das dificuldades maiores reside no facto de os seus objectos serem paradas em jogo de lutas; coisas que se escondem, que se censuram, pelas quais ha quem esteja disposto a morrer. O que é¢ verdade para o proprio inves- dgador que esta em jogo nos seus préprios objectos. E a dificul- dade particular que ha em fazer sociologia liga-se muitas vezes ao facto de as pessoas terem medo daquilo que vao encontrar. A sociologia confronta sem parar aquele que a pratica com reali- dades rudes; desencanta. E Por isso que, contrariamente ao que se cré muitas vezes, tanto dentro como fora dela, nao oferece nenhuma das satisfagdes que a adolescéncia procura muitas yezes 2 no cometimento politico, Deste ponto de vista, situa-se inteira- mente no pélo oposto das ciéncias ditas “puras” que, como a arte ¢ muito especialmente a mais “pura” de todas, a musica, si0 em parte, sem divida, refiigios para onde nos retiramos para es- quecer o mundo, universos depurados de tudo 0 que constitui problemapcomo a sexualidade ou a politica. E por isso que os espiritos formais ou formalistas fazem em geral uma sociologia mediocre. P. Vocé mostra que a sociologia intervém a propésito de questées socialmente importantes. O que pde o problema da sua “neutralidade”, da sua “objectividade”. O socidlogo podera ficar fora ea salvo da confusio, em posigao de observador imparcial? —O socidlogo tem por particularidade ter por objecto cam- pos de lutas: nao s6 o campo das lutas de classe, mas o proprio campo das lutas cientificas. E 0 sociélogo ocupa uma posicio nestas lutas em primeiro lugar enquanto detentor de um certo capital, econdmico e cultural, no campo das classes; em seguida, enquanto investigador dotado de um certo capital especifico no campo da produgao cultural e, mais precisamente, no subcampo da sociologia, Trata-se de um aspecto que ele deve ter sempre presente no espirito, para tentar controlar tudo o que a sua pratica, o que cle vé © nao vé, 0 que ele faz © nio faz — por exemplo os objectos que escolhe estudar—, deve sua posigio social, E por isso que a sociologia da sociologia é, para mim, uma “espe- cialidade” entre outras, mas uma das condi¢6es primeiras de uma sociologia cientifica, Parece-me com efvito que uma das causas principais do erro em sociologia reside numa relagio incontrolada com o objecto. Ou mais exactamente na ignorincia de tudo o que a visio do abjecto deve ao ponto de vista, quer dizer a posigio ocupada no espaco social € no campo cientifico, As oportunidades de se contribuir para produzir a verdade parecem-me com efeito depender de dois factores principais, que estio ligados 4 posi¢io ocupada: o interesse que se tem em saber ¢ em fazer saber a verdade (ou, inversamente, em a esconder € em a esconder a si proprio) ¢ a capacidade que se tem de pro- 26 duzi-la. & conhecida a afirmacdo de Bachelard: “S6 hi ciéncia do que esta escondido.” O socidlogo estara tanto melhor armado para des-cobrir esse escondido quanto. melhor armado estiver cientificamente, quanto melhor utilizar o capital de conceitos, de métodos, de técnicas acumulado pelos seus predecessores, Marx, Durkheim, Weber, e muitos outros, e quanto mais “critico” for, quanto mais for subversiva a intengao consciente ou inconsciente que © anima, quanto mais interess¢ tiver em revelar o que é censurado, recalcado, no mundo social. E se a sociologia nio avan¢a mais depressa, como a ciéncia social em geral, talvez seja, em certa medida, porque os dois factores tendem a variar em razao inversa. Se 0 socidlogo consegue produzir um pouco que seja de ver- dade, nao é apesar de ter interesse em produzir essa verdade, mas porque tem interesse nisso — 0 que é muito exactamente o inverso do discurso um tanto estupidificante sobre a “neutralidade”’. Este interesse pode consistir, como em qualquer outro lugar, no descjo dese ser o primeiro a fazer uma descoberta ¢ de se apropriar de todos os direitos a tal associados ou na indignacio moral ou na revolta contra certas formas de dominagio ¢ contra aqueles que as defendem no interior do campo cientifico. Em suma, nio ha imaculada conceigio; nio haveria muitas verdades cientificas se tivéssemos de condenar esta ou aquela descoberta (basta pensar na “dupla hélice”) a pretexto de as intengdes ou os procedimentos dos seus autores nao terem sido 14 muito puros. P. Mas no caso das ciéncias sociais, 0 “interesse”, a “paixdo”, © “empenhamento”, nio poder3o conduzir A cegucira, dando assim razio aos defensores da “neutralidade"? — De facto, ¢ é isso que constitui a dificuldade particular da sociologia, esses “interesses", essas “paixdes”, nobres ou igndbeis, nao conduzem i verdade cieatifica a nio ser na medida em que se acompanhem de um conhecimento cientifico daquilo que os determina, ¢ dos limites que impSem ao conhecimento. Por exem- plo, todos sabemos que o ressentimento ligado ao fracasso sO toma quem o experimenta mais licido em relacio ao mundo 27 social cegando-o ao mesmo tempo em relacdo ao proprio principio dessa lucidez. Mas isto nao é tudo. Quanto mais avangada é uma ciéncia, quanto mais importante € o capital de saberes acumulados nela, miais as estratégias de subversio, de critica, sejam quais forem as suas “motivacdes”, devem, para ser eficazes, mobilizar um saber importante. Em fisica, é dificil triunfar sobre um adversirio tecorrendo ao argurmento de autoridade ou, como ainda acon- tece em sociologia, denunciando 0 contetido politico da sua teoria. ‘As armas da critica devem ser nela cientificas para serem cficazes. Em sociologia, pelo contrario, toda a proposi¢ae que contradiga as idcias feitas se expde a ser suspcita de preconceito ideoldgico, de tomada de partido politica. Fere interesses sociais: os interes- ses dos dominantes que sao camplices do silencio, e do “bom senso” (que diz que aquilo que ¢ deve ser, ou nao pode ser de outra mancira); os interesses dos porta-vozes, dos altifalantes, que tém necessidade de ideias simples, simplistas, de esteredu- pos. E por isso que lhe sio pedidas mil vezes mais provas (0 que esti, com efeito, muito bem) que aos porta-vozes do “bom senso”, E cada descoberta da ciéncia desencadeia um imenso trabalho de “critica” retrégrada, que tem a seu favor toda a ordem social (os créditos, os postos, as honras ¢, portanto, a crenga) ¢ que visa recobrir 0 que tinha sido descoberto. P. Ha pouco, citou de um mesmo folego Marx, Durkheim ¢ Weber. © que cquivale a supor que as respectivas contribuigdes s$o cumnulativas. Mas as suas abordagens sio, de facto, diferentes. Como conceber que haja uma ci sidade? — Hi mais que um caso em que nio podemos fazer avangar a ciéncia a nao ser na condi¢io de fazermos comunicar teorias éncia dnica por tris dessa diver- Opostas, que muitas vezes se constituiram umas contra as outras. Nio se trata de operar essas falsas sinteses eclécticas que pulularam em sociologia. Diga-se de passagem, a condenacao do eclectismo tem servido muitas vezes de alibi a incultura: é dio facil e Ho confortavel encerrarmo-nos numa tradigao; o marxismo, infeliz- 28 mente, preencheu em grande medida esta fungao de tranquiliza— gio preguicosa. A sintese nJo é possivel sendo ao prego de uma posicao em questdo radical que conduz ao principio do antago- nismo aparente, Por exemplo, contra a regressio comum de marxismo no sentido do economicismo, que sO conhece a econo- mia no sentido restrito da economia capitalista e que explica tudo pela economia assim definida. Max Weber alarga a anilise econémica (num sentido generalizado) a terrenos habitualmente abandonados pela economia, como a religiao. Assim, caracteriza a Igreja, por meio de uma férmula magnifica, como detentora do monopélio da manipulacao dos bens de salvagio. Convida a um materialismo radical que investiga as determinantes econdmicas (no sentido mais amplo) cm terrenos onde reina a ideologia do “desinteresse”, como a arte ou a religiao. A mesma coisa se passa com a nogio de legitimidade. Marx rompe com a representacao corrente do mundo social fazendo ver que as relag6es “encantadas” — as do paternalismo por exem- plo—escondem relagdes de forga. Weber aparenta contradizer radicalmente Marx: lembra que a pertenga ao mundo social im- plica uma parte de reconhecimento da legitimidade. Os profes- sores — eis urn belo exemplo de efeito de posi¢io —retém a dife- renga. Preferem opor os autores a integra-los. E mais comodo para elaborar li¢des claras: primeira parte Marx, segunda parte Weber, terccira parte cu proprio... Ao passo que a légica da investiga¢io conduz a superar a oposig¢io, remontando A raiz comum. Marx evacuou do seu modelo a verdade subjectiva do mundo social contra a qual estabeleccu a verdade objectiva desse mundo como rela¢io de forcas, Ora, se 0 mundo social se reduzisse & sua verdade de relagio de forgas, se nio fosse, em certa medida, reconhecido como legitimo, as coisas nao funcionariam. A repre- sentacao subjectiva do mundo social como legitimo faz parte da verdade completa desse mundo. P. Por outras palavras, vocé esforga-se por integrar num mes- mo sistema conceptual contributos teérices arbitrariamente sepa- rados pela Histéria ou pelo dogmatismo. 29 ~ Durante a maior parte do tempo, o obsticulo que impede os conceitos, os métodos ou as técnicas de comunicar nao € légico mas sociolégico. Os que se identificaram com Marx (ou com Weber) no podem apoderar-se do que lhes parece sera sua negac3o sem terem a impressio de se negar, de se renegar (nio devemos esqueter que para muitos dizcrem-se marxistas ndo € mais que uma profissio de fé—ou um emblema totémico). O que vale tam- bém para as relagécs entre “tedricos” € “empiristas”, entre defen- sores da investigagao dita “fundamental” e da investigacio dita “aplicada”. E por isso que a sociologia da ciéncia pode ter um efeito cientifico. P_ Deverd entender- ie que uma sociologia conservadora esta condenada a ser superficial? ~ Os dominantes véem sempre com maus olhos 0 sociélogo, ou o intelectual que faz as suas vezes quando a disciplina ainda nao esta constituida ou nao pode funcionar, como hoje na URss. Sio ctimplices do siléncio porque nada tént a replicar ao mundo que dominam ¢ que, por isso, hes aparece como evidente, como “6bvio”. O mesmo é dizer, uma vez mais, que o tipo de ciéncia social que podemos fazer depende da relagio que mantemos com o mundo social, ¢ portanto da posigio que ocupamos nesse mundo, Mais precisamente, esta relagio com o mundo traduz-se na fungdo que o investigador atribui consciente ou inconscientemente 4 sua pritica © que governa as suas estratégias de investigacio: objectos escolhidos, métodos usados, etc. Pode ter-se por fim compreender @ mundo social, no sentido de compreender para compreender. Podem-se procurar, pelo contrario, técnicas que permitam manipuli-lo, pondo assim a sociologia ao servigo da gestdo da ordem estabelecida. Para que se compreenda melhor, um exemplo simples: a sociologia religiosa pode identificar-se com uma investiga¢o de destino pastoral que toma por objecto os leigos, as determinantes sociais do praticar ou do nio-praticar, uma espécie de estudos de mercado permirindo racionalizar as estratégias sacerdotais de venda dos “bens de salvagio”; pode 30 pelo contrario dar-se por objecto compreender o firncionamento do campo religioso, do qual os leigos sio apenas um aspecto, ocupando-se por exemplo do funcionamento da Igreja, das estra— tégias através das quais ela se reproduz e perpetua o seu poder —e entre as quais se devem contar os inquéritos socioldgicos (originalmente levados a efeito por um cénego). ‘Uma boa parte dos que se designam como socidlogos ou econo- miistas sio engemheiros sociais que tém por fungao fornecer receitas aos dirigentes das empresas privadas e das administracées. Oferecem uma racionalizagao do conhecimento pratico ou semi-instruido que os membros da classe dominante tém do mundo social. Os governantes tém hoje necessidade de uma ciéncia capaz de raciona- lizar, no duplo sentido, a dominac¢io, capaz ao mesmo tempo de reforgar os mecanismos que a asseguram e de a legitimar, E ébvio que esta ciéncia cncontra os seus limites nas suas fungOes praticas: tanto entre os engenheiros sociais como entre os dirigentes da economia, nunca pode operar uma posigio em questio radical. Por exemplo, a ciéncia do presidente do conselho de administragao da Compagnie bancaire, que € grande, muito superior sob certos aspectos a de muitos socidlogos ¢ economistas, encontra o seu limite no facto de ter por fim Gnico ¢ indiseutido a maximizagio dos ganhos dessa institui¢ao. Exemplos desta “ciéneia” parcial, a sociologia das organizagdes ou a “ciéncia politica”, conforme sao ensinadas no Instituto Auguste Comte ou em “Sciences Po”, com 9s seus instrumentos de predilecgao, como as sondagens. P. A distingio que vocé faz entre os tedricos ¢ os engenheiros sociais nao pora a ciéncia na situacSo da arte pela arte? — De maneira nenhuma, Hoje, entre as pessoas das quais de- pende a existéncia da sociologia, so cada vez mais as que per- guntam para que serve a sociologia. De facto, a sociologia tem tantas mais probabilidades de frustrar ou contrariar os poderes quanto melhor preencher a sua func3o propriamente cientifica- Esta funcio nao é servir alguma coisa, quer dizer alguém. Pedir 4 sociologia que sirva alguma coisa € sempre uma maneira de se Ihe pedir que sirva o poder. Ao paso que a sua fun¢io cientifica at é compreender 0 mundo social, a comegar pelo poder. Opera io que nao é socialmente neutra ¢ que preenche sem ditvida alguma uma funcao social. Entre outras razGes porque nao ha poder que nio deva uma parte — © nio a menor— da sua eficacia ao descgnhecimento dos mecanismos que o fundam. P. Gostaria agora de abordar o problema das relacées entre a sociologia ¢ as ciéncias vizinhas, O seu livro sobre A Distingao comega com a seguinte frase; “Ha poucos casos em que a socio- logia se assemelhe tanto a uma psicanilise social como quando se confronta com um objecto como o gosto.” Seguem-se quadras estatisticos, relatorios de investigacées, mas também anilises de tipo “literario”, como as encontramos em Balzac, Zola ou Proust. Como se articulam estes dois aspectos? — Olivro é 0 produto de um esforgo por integrar dois modos de conhecimento. a observagao etnogrifica, que nio pode apoiar- -se senfio num pequeno ntimero de casos, ¢ a anilise estatistica que permite estabelecer regularidades ¢ situar os casos observa~ dos no universo dos casos existentes. E por exemplo a descrigio contrastada de uma refeigio popular ¢ de uma refei¢do burguesa, reduzidas aos seus tragos pertinentes. Do lado popular, temos o primado declarado da funcéo, que se encontra em todos os consu- mos: quer-se que o alimento seja stebstancial, que “fique no corpo”, como se pede ao desporto, com o culturismo por exemplo, que dé forga (os miisculos aparentes). Do lado burgués, temos o pri- mado da forma ou das formas (“formas a observar") que implica uma espécie de censura ¢ de recalcamento da fungao, uma este~ ticizagao, que se encontrara por toda a parte, tanto no erotisma enquanto pornografia sublimada ou denegada como na arte pura que se define precisamente pelo facto de privilegiar a forma em detrimento da fungio. De facto as anilises declaradas “qualitati- vas” ou, pior, “literdrias”, sdo capitais para se compreender, quer dizer explicar completamente o que as estatisticas se limitam a constatar, & semelhanga sob este aspecto do que fazem as estatisticas de pluviometria, Conduzem ao principio de todas as priticas observadas, nos mais diferentes dominios. 32 P. Para voltar 4 minha pergunta, quais so as suas relacdes com a psicologia, a psicologia social, etc.? —A ciéncia social nio tem parado de tropecar no problema do individu e da sociedade. Na realidade, as divisdes da ciéncia social em psicologia, psicologia social c sociologia constituiram- -se, em meu entender, em tomo de um erro de defini¢do inicial. A evidéncia da individuagao biolégica impede de ver que a socic- dade existe sob dusas formas insepariveis: de umn lado as institui- ges que podem revestir a forma de coisas fisicas, monumentos, livros, instrumentos, etc.; do outro as disposigdes adquiridas, as maneiras duradouras de ser ou de fazer que encarnam em corpos (caque cu chamo os habitus), © corpo socializado (aquilo a que se chama 0 individuo ou a pessoa) no se opde 4 sociedade: & uma das suas formas de existéncia. P. Noutros termos, a psicologia estaria entalada entre a bio- logia de um lado (que fornece as invariantes fundamentais)-¢ a sociologia do outro, que estuda a maneira como essas invariantes se desenvolvem. E que se encontra portanto habilitada a tratar de tudo, até mesmo daquilo a que se chama a vida privada, a amizade, o amor, a vida sexual, etc. ~ Absolutamente, Contra a representagao comum que consiste em associar sociologia ¢ colectivo, devemos lembrar que 0 colec~ tivo esti deposto em cada individuo sob a forma de disposigdes dura~ douras. como as estruturas mentais. Por exemplo, em A Distingao, esforgo-me por estabelecer empiricamente a relacio entre as classes sociais ¢ 0s sistemas de classificagio incorporados que, produzidos na hist6ria colectiva, sio aquisigdes na historia individual, essas por exemplo que o gosto aplica (pesado/leve, quente/frio, bri- Thante/baco, etc.). P. Mas entio, o que € 0 biolégico ou o psicolégico para a sociologia? —A sociologia toma o bioldgico ¢ 0 psicolégico como um dado. E esforga-se por estabelecer como o utiliza o mundo social, © transforma, o transfigura. O facto deo homem ter um corpo, 33 de'esse corpo ser mortal, pe s6e grupos problemas difictie: Eetou a pensar no livro de Kantorovitch, Os Deis Corpos do Rei, em que o.autor anslisa.os subterfiizios socialmente apravadas através dos quais se arranja maneira de afirmar a existéncia de uma realeza transcendente relativamente ao corpo real do rei, por intermédio do qual sobrevém a imbecilidade, a doenca, a fraqueza, a morte. “© rei morteu, viva o:1ci.” Nao: podia-deixar de pensar nele, P. Vocé fala também de descrigdes etnograficas... —A distin¢do entre etnologia ¢ sociologia é picamente uma falsa fronteira. Como tento fazer ver no meu ultimo livro, O Sen- tido Prético (Le sens pratiquc), é um puro produto da historia (colo- nial) que nao tem qualquer espécie de justificagao logica. P. Mas nio havera diferencas de atitudes muito marcad. Em etnologia temos a impressio de que © observador permanece exterior ao seu objecto ¢ que regista, no limite, aparéncias cujo sentido nao conhece. O socidlogo, pelo seu lado, parece adoptar © ponto de vista dos sujeitos que estuda. — De facto, a relagao de exterioridade que vocé descreve, ¢ a que chamo objectivista, ¢ mais frequente cm etnologia, sem diivida porque corresponde a visio do estrangciw, Mas certos etndlogos jogaram também o jogo (0 duplo jogo) da participagio nas repre- sentagéecs indigenas: o emdlogo enfeitigado ou mistico. Sera até mesmo possivel inverter a sua afirmagao, Certos socidlogos, porque trabalham as mais das vezes através da pessoa interposta dos inquiridores ¢ nunca tém contacto directo com os inquiridos, tendem mais para o objectivismo que os etndlogos (cuja primeira virtude profissional é a capacidade de estabelecerem uma relagio real com os inquiridos). Ao que vem somar-se a distancia de classe, que nao é menos poderosa que a distincia cultural, E por isso que nio ha, sem duvida, ciéncia mais inumana que a produ- zida para os lados de Columbia, sub a férula de Lazarsfeld, ¢ na qual a distancia produzida pelo questionario ¢ pelo inquiridor interposto é redobrada pelo formalismo de uma estatistica cega. Aprende-s¢ muito sobre uma ciéncia, sobre os seus métodos, os 34 seus conteidos, quando se faz como a sociologia do trabalho, uma espécie de descrigio de posto. Por exemplo, 0 sociélogo burocritico trata as pessoas que estuda como unidades estatisticas intercambiaveis, submetidas a questdes fechadas e idénticas para todas. Ao passo que o informador do etndlogo ¢ um personagem eminente, longamente frequentado, com 0 qual se fazem entre- vistas aprofundadas. P. Vocé opGe-se, portanto, 4 abordagem “objectivista” que substitui o modelo 4 realidade; mas também a Michelet, que visava ressuscitar', ou a Sartre, que quer aprender significagdes por meio de uma fenomenologia que the parece, a si, arbitriria? —Exactamente. Por exemplo, dado que uma das fungdes dos rituais sociais é dispensar os agentes de tudo o que pomos de- baixo do termo de “vivido”, nada é mais perigoso que por 0 “vivido” onde o nio ha, por exemplo nas praticas rituais. A idei de que nao ha nada de mais generoso que projectar 0 proprio “vivido” na consciéncia de um “primitive”, de uma “feiticeira” ou de um “proletino” pareceu-me sempre ligeiramente etnocén- trica. O melhor que o socidlogo pode fazer é objectivar os efei- os incvitiveis das técnicas de objectivagio que ¢ obrigado a empregar, escrita, diagramas, planos, mapas, modelos, ete. Por exemplo, em © Sentido Pritico, tento mostrar que, 4 falta de terem apreendido os efeitos da situagio de observador ¢ das técnicas que empregam para captar o seu objecto, os etndlogos constituiram © “primitivo” como tal porque nde souberam reconhecer nele 0 que cles proprios sio assim que param de pensar cientificamente, quer dizer na pritica. As légicas ditas “primitivas” sio muito simplesmente logicas praticas, como a que nds aplicamos para ajuizar de um quadro ou de um quarteto. P. Mas nao sera possivel descobrir ao mesmo tempo a légica de tudo isso e conservar 0 “vivido”? ' Na concepgio de Michelet, a histéria visava, com efeito,“‘a ressurreigio: integral do pasado”. —Ha uma verdade objectiva do subjective, ainda quando contradiz a verdade objectiva que deve ser construfda contra ele. A ilusio nao é, enguanto tal, ilusdria. Seria trair a objectividade fazer como se os sujeitos sociais nao tivessem representacao, expe- riéncia das realidades que a ciéncia constréi, como por cxemplo as classesSociais. E necessario, portanto, aceder a uma objectivi- dade mais elevada, que di lugar a essa subjectividade. Os agentes tém um “vivido” que nao éa verdade completa daquilo que fa- zem ¢ que faz, contudo, parte da verdade da sua pratica. Tomemos por exemplo um presidente que declara “esta aberta a sessio” ou um sacerdote que diz “eu te baptizo”. Por que ¢ que esta lin- guagem tem um poder? Nio sio as palavras que agem, através de uma espécie de poder magico. Acontece que, em condigées sociais dadas, certos termos tém forga, Tirana sua forga de uma instituigao. que tem a sua légica propria, 9s titulos, o arminho ¢ a toga, a catedra, o verbo ritual, a crenga dos participantes, etc. A sociolo- gia lembra que nao éa palavra que age, nem a pessoa, intercam- biivel, que a pronuncia, mas a instituigao. Mostra as condigdes objectivas que devem estar reunidas para que a cficicia desta ou daquela pritica social se exerga, Mas nao pode ficar por ai, Nao deve esquecer que para que isso funcione € necessirio que o actor ereia que esti no principio da eficacia da sua acco. Ha sistemas que funcionam inteiramente a crenga ¢ nio tema —nemi sequer a economia — que nio deva em parte a crenga 0 facto de poder funcionar. P. Do ponto de vista da ciéncia propriamente dita, com- preendo bem a sua operagao. Mas o resultado é que desvalonza 0 “vivido" das pessoas. Em nome da ciéncia, arrisca-se a tirar as pessoas as suas razdes de viver. © que é que the dio direito (se assim se pode dizer) de as privar das suas ilusdes? =Também me acontece perguntar-me se o universo social completamente transparente ¢ desencantado que seria produzido por uma ciéncia social plenamente desenvolvida (¢ largamente difundida, se é que cal € possivel) nao seria invivivel. Creio, apesar de tudo, que as relagées sociais seriam muito menos infelizcs se 36 as pessoas controlassem pelo menos os mecanismos que as deter minam a contribuir para a sua propria miséria. Mas talvez a tinica fiuncao da sociologia seja fazer ver, tanto pelas suas lacunas visiveis como pelas suas aquisicdes, os limites do conhecimento do mundo social ¢ tornar assim dificeis todas as formas de profetismo, a comegar evidentemente pelo profetismo que se reclama da ciéncia. P, Tratemos das relagdes com a economia, ¢ em particular com certas andlises neoclissicas como as da Escola de Chicago. De facto, o confronto é interessante porque permite ver como duas ciéncias diferentes constrdem os mesmos objectos, a fecundi- dade, o casamento e muito especialmente o investimento escolar. —Seria um imenso debate. © que pode enganar ¢ que, como 0s cconomistas nco-rmarginalistas, ponho no principio de todos 05 comportamentos sociais uma forma especifica de interesse, de investimento. Mas s6 as palavras sio comuns. O interesse de que falo nada tem a ver com o self-interest de Adam Smith, interesse a-histérico, natural, universal, que nio é de facto mais que a universalizagio inconsciente do interesse engendrado ¢ suposto pela economia capitalista. E nio & por acaso que, para sair deste naturalismo, os economistas tem de invocar a sociobiologia, como Gary Becker, num artigo intitulado Altruism, egoism and genetic fitness: o “self-interest”, mas também “o altruismo em relagio aos descendentes” ¢ outras disposigdes duradouras encontrariam a sua explicagao na selecc3o 20 longo do tempo dos tragos mais adaptativas. De facto, quando digo que ha uma forma de interesse ou de fun¢io no principio de toda a institui¢ao ¢ de toda a pratica, nao faco senio afirmar o principio de razao suficiente, que est impli- cado no proprio projecto de dar razao ¢ que é constitutivo da propria ciéncia: este principio quer com efeito que haja uma causa ou uma razio permitindo explicar ou compreender por que é que tal pratica ou tal instituicao é em vez de no ser e por que € assim em vez de qualquer outra mancira. Este interesse ou esta fun¢3o nada tém de natural ¢ de universal, contrariamente a0 que créem os economistas neoclassicos Cujo homo economicus 37 no & mais que a universalizag3o do homo capitalisticus. A etnolo- gia ¢ a historia comparada mostram que a magia propriamente social da institui¢io pode constituir quase seja 0 que for como interesse € como interesse realista, quer dizer como investimento (no sentido da economia mas também no da psicanilise) objec- tivamente retribuido, a mais ou menos longo prazo, por uma economia, Por exemplo a economia da honra produz ¢ recom- pensa disposi¢des ccondmicas © priticas aparentemente ruino- sas~ tio “desinteressadas” so —, ¢, portanto, absurdas, do ponto de vista da ciéncia econdmica dos economistas. E, contudo, os comportamentos mais loucos do ponto de vista da razao econd- mica capitalista tem por principio uma forma de interesse bem compreendido (por exemplo o interesse que hi em “estar acima de toda a suspeita”) e podem portanto constituir o objecto de uma ciéncia econdmica. O investimento é a inclinagio a agir que se engendra na relagio entre um espago de jogo propondo certas paradas em jogo (aquilo a que chamo um campo) ¢ um sistema de disposigdes ajustado a esse jogo (aquilo a que chamo um habitus), sentido do jogo e das paradas em jogo que implica ao Mesmo tempo a inclinagado ¢ a aptidio para jogar o jogo, tomar interesse no jogo, ser-se tomado pelo jogo. Basta pensar no que é, nas nossas sociedades, o investimento escolar, que encontra © seu limite nos preparatérios que dio acesso as grandes écoles?, para se saber que a instituigao é capaz de produzir o investimento ¢, neste caso, 0 sobre-investimento, que sio a condi¢ao do fun- cionamento da institui¢io, Mas poderiamos moscri-lo igualmente a propésito de nao importa que forma de sagrado; a experiéncia do sagrado supde inseparavelmente a disposigio adquirida que faz existir os objectos sagrados enquanto tais e os objectos que exigem objectivamente a abordagem sacralizante (o que vale para a. arte nas nossas sociedades). Por outras palavras, o investimento € 0 efcito histérico do acordo entre duas realizagdes do social; nas coisas, pela instituicio, e nos corpos, pela incorporagio. 2 Ver 2 nota de tradugio anterior sobre a natureza das grandes doles no sistema de ensino francés. (N. do) P. Essa espécie de antropologia geral que vocé propde nao sera uma mancira de realizar a ambi¢io filos6fica do sistenia, mas com os meios da ciéncia? — Nao se trata de nos ficarmos eternamente pelo discurso total sobre a totalidade que a filosofia social praticava ¢ que é ainda hoje moeda corrente, sobretudo em Franga, onde as tomadas de posigio proféticas deparam ainda com um mercado protegido. Mas creio que, na preocupagio de se conformarem com uma representacao mutilada da cientificidade. os socidlogos se encami- nharam para uma especializagio prematura. Nio acabariamos de enumerar os casos em que as divisdes artificiais do objecto, as mais das vezes segundo contornos realistas, impostos por fron- teiras administrativas ou politicas, sio o obstaculo maior 4 compreensao cientifica. Para nao falar sendo do que conhcgo bem, citarei por exemplo a separacio entre a sociologia da cultura © a sociologia da educagio; ou da economia da educagaio ¢ da sociologia da educagao. Creio também que a ciéncia do homem mobiliza inevitavelmente teorias antropoldgicas; que niio pode realmente progredir a nio ser na condicio de explicitar essas teorias que os investigadores mobilizam sempre praticamente ¢ que nao sio as mais das vezes senio a projecgao transfigurada da sua relagio com © mundo social’. > Poderio cneontrar-se desenvolvimentos complementares cm: P. Bour- dieu, “Le champ scientifique", Actes de la recherche en sciences sociales, 2-3, Junho de 1976, pp. 88-104; “Le langage autoris¢. Note sur les conditions de l'efficacité sociale du discours rinuel”, Actes de la rechenhe en sciences sociales, 5-6, 1975, pp. 183-190, “Le mortsaisit le vif, Les relations entre l'histoire réifiée et histoire incorporée™, Actes de la recherche en sciences sociales, 32-33, Abril-Junho de 1980, pp. 3-14. 3 O SOCIOLOGO EM QUESTAO* P. Por que € que emprega um jargio particular e particular~ mente dificil quc torna muitas vezes 0 seu discurso inacessivel a0 profano? Nio haveri uma contradi¢ao em denunciar o monopélio que os cientistas se outorgam c em restaurd-lo no discurso que o denuncia? — Basta muitas vezes deixar-se falar a linguagem comum, aban- donarmo-nos ao laisser-faire linguistico, para accitarmos sem o sabermos uma filosofia social, O dicionirio esti pejado de mito- logia politica (estou a pensar, por exemplo, em todos os pares de adjectivos: brilhante-sério, alto-baixo, raro-comum, etc.). Os amigos do “bom senso”, que estao na linguagem comum como. peixes na agua ¢ que, em matéria de linguagem como noutras matérias, tém as estruturas objectivas do seu lado, podem (ressal- vados os eufemismos) falar uma linguagem clam como Agua de rocha ¢ dar guerra ao jargio. Pelo contrario, as ciéncias sociais devern conguistar tudo o que dizem contra as ideias feitas que veicula a linguagem comum ¢ dizer o que conquistaram numa linguagem predisposta a dizer outra coisa inteiramente diferente. Quebrar os automatismos verbais nao é criar artificialmente uma diferenca distinta que ponha o profano 4 distancia; é romper * Estas perguntas so as que me pareceram muis importantes entre as que me foram mais fiequentemente postas no decorrer de diferentes discusses Que tive recentemente em Paris (na Ecole polytechnique),em Lyon (na Univer- sidade Popular),cm Grenoble (na Faculdade de Letras), em Troyes (no Institut tniversitaire de technologie), © em Angers (na Faculdade de Letras). 41 com a filosofia social que se encontra inscrita no discurso espon- tineo, Pér uma palavra por outra é muitas vezes operar uma transformagio epistemolégica decisiva (que corre de resto 0 risco de passar desapercebida). Mas nao se trata de escapar aos automatismos do bom senso para ¢ F nos automatismos da linguagem critica, com todas as palavras que funcionaram demasiadas vezes como estereétipos ou palavras de ordem, todos os enunciados que servem nio para enunciar o real mas para tapar os buracos do conhecimento (tal é muitas vezes a fungio dos conceitos com maitiscula e das proposigdes que introduzem, ¢ que muitas vezes pouco mais so que profissdes de f€ por meio das quais © crente reconhece o crente), Estou a pensar nesse “basic marxism”, como diz Jean- -Claude Passeron, que floresceu no decorrer dos tltimos anos em Franga: essa linguagem autom. que se move por si propria, mas no vazio, permite falar de tudo economicamente, com um pequenissimo ndmero de conceitos simples, mas sem que se pense grande coisa. © simples facto da conceptualizagao exerce muitas vezes um efeito de neutraliza Gao, Sendo de denegacao. A linguagem sociolégica nao pode ser nem “neutra” nem “clara”, O termo de classe nunca serd um termo neutro enquanto houver classes: a questio da existéncia ou da nio-enisténcia das classes é uma parada em jogo da luta entre as classes. © trabalho de escrita que é necessirio para se chegar a um uso rigoroso € controlado da linguagem s6 raramente conduz aquilo a que se chama clareza, quer dizer 0 reforgo das evidéncias do bom senso ou das certezas do fanatismo. Por contraste com uma investigagao literaria, a busca do rigor conduz quase sempre a sacrificar a bela formula, que deve a sua forga e a sua clareza ao facto de simpliticar ou falsificar, a uma ¢xpressio mais ingrata, mais pesada ntas mais exacta, mais con- trolada, Assim a dificuldade do estilo provém muitas vezes de todos os matizes, todas as correcgdes, todos as adverténcias, sem falar das reiteragGes de defini¢Ges, de principios, que sio necessirias para que o discurso veicule em si proprio todas as defesas possiveis contra os desvios ¢ as versées distorcidas, A atengao a estes signos 42 onlticos &, sem divida, directamente proporcional 3 vigilincia, ¢ portanto 4 competéncia, do leitor— 0 que faz com que as adver- téncias sejam tanto melhor percebidas por um leitor quanto mais inditeis sie para ele. Podemos esperar apesar de tudo que desen- corajem o verbalismo e ecolalia, Mas a necessidade de recorrer a uma linguagent artificial talvez se imponha 4 sociologia mais fortemente que a qualquer outra ciéncia. Para romper com a filosofia social que assombra os termos correntes e também para exprimir coisas que a linguagem comum nio pode exprimir (por exemplo tudo o que se situa na ordem do isso-é-Obvio), 0 socidlogo tem de recorrer a termos forjados —e por isso protegidos, pclo menos relativamente, contra as pro- jecqSes ingénuas do sentido comum, Estes termos defendem-se tanto melhor do desvio quanto mais a sua “natuteza linguistica” os predisponha a resistir as leituras apressadas (é 0 caso de habits, que evoca a aquisi¢io, ou até mesmo a propricdade, o capital) ¢ sobretudo talvez na medida em que se insiram, se integrem numa rede de relages que acarretam as suas imposigdes logicas: por exemplo alodoxia, que diz de facto uma coisa dificil de dizer ou até mesmo de pensar em poucas palavras — 0 facto de se tomar uma coisa por outra, de crer que uma coisa ¢ diferente daquilo que é, ete. — ¢ um termo que se insere na rede das palavras com a mesma raiz, doxa', dox6fo, ortodoxia, heterodoxia, paradoxo. Dito isto, a dificuldade da transmissio dos produtos da inves- tigagao socioldgica esta muito menos associada do que se cré i dificuldade da linguagem. Uma primeira causa de mal-entendido reside no facto de os leitores, até mesmo os mais “cultivados”, nio terem mais que uma ideia muito aproximativa das condi¢ées de produgio do discurso de que tentam apropriar-se. Por exemplo, * Adoxa é a opinilo por contraste com a saber ou discurse racional, Esta oposigio terminolagica entre dava e logos correspande, porém, nomeadamente na filosofia platnica, a uma oposi¢3o ontoldgica entre o mundo do devir (necescariamente imperieito ¢ deficiente) ¢ 0 dominio das Idcias (subtraidas 20 tempo do devir ¢, 56 elas, pasiveis de verdadeiro conhecimento ou saber propriamente légico). No uso que far de dora, Pierre Bourdieu entende-s sobretude come o dominio do sentido imediaco ¢ nao reilectido que deseo nhece a sua propria génese e razdo de ser. (N dol! a3 ha uma leitura “filoséfica” ou “teérica” dos trabalhos de ciéncias sociais que consiste em reter as “teses””, as “conclusdes”, indepen- dentemente da operagao da qual sio © produto (quer dizer, concre- tamente, em “saltar” as anilises empiricas, os quadros estatisticos, as indicacdes de método, etc.). Ler assim é ler um outro livro Quando “condenso” a oposigao entre as classes populares e a classe dominante na pposicdo entre o primado dado a substincia (ou 4 fungio) ¢ 0 primado dado 4 forma, pode haver quem ouga um discurso filosdfico quando @ preciso ter presente que uns comem feijes © outros alface, que as diferencas de consumo, nulas ou fracas em matéria de roupa de dentro, sio muito fortes em matéria de roupa de fora, etc. E verdade que as minhas andlises sio o produto da aplicagio de esquemas muito abstractos a coisas muito coneretas, estatisticas de consumo de pijamas, de slips ou de calgas. Ler estatisticas de pijamas a pensar em Kant nao é 1a muito evidente... Toda a aprendizagem escolar tende a impedir de pensar em Kant a propdsito de pijamas ou a impedir de pensar em pijamas ao ler Marx (digo Marx porque quanto a Kant vocés concender-mo-io demasiado facilmente, ainda que, deste ponto de vista, seja a mesma coisa), Ao que acresce o facto de muitos leitores ignorarem ou recusa- rem 0s proprios principios do mado de pensamento sociolégico, como a vontade de “explicar o social pelo social”, nos termos de Durkheim, que ¢ muitas vezes percebida como uma ambigio imperialista, Mas, mais simplesmente, a ignorancia da estatistica ou, melhor, a falta de habituagao ao modo de pensamento estatis- tico, conduzem a canfundir o provavel (por excmplo a relagio entre a origem social ¢ sucesso escolar) com 0 certo, 0 necessirio. De onde todas as espécies de acusagdes absurdas, como a denincia do fatalisma, ou das objecgdes sem objecto, como o insucesso de uma parte dos filhos da classe dominante que é¢, muito pelo con- trario, umn elemento capital do modo de reproducao estatistico (um “sociélogo”, membro do Institut?, dispendeu grandes ener- 2 Trata-se do Institut Auguste Comze, tomado aqui como emblemitico da sociologia oficial, a que Bourdieu chama por yezes “burocritica”, (N. do T)) 44 gias na demonstracio de que nem todos os filhos de diplomados pela Ecole polytechnique acabavam diplomados pela mesma esco- ]a!). Mas a principal origem de mal-entendidos reside no facto de, comummente, quase nunca se falar do mundo social para dizer o que ele é e quase sempre para dizer o que ele deveria ser_ Q discurso sobre o mundo social ¢ quase sempre performativo: contém desejos, exortagbes, acusagdes, ordens, etc, Segue-se que © discurso do sociélogo, embora se esforce por ser constativo, tem todas as probabilidades de ser recebido como performativo. Se digo que as mulheres respondem menos frequentemente que os homens as perguntas das sondagens de opiniao — ¢ tanto menos quanto mais “politica” ¢ a natureza da pergunta—, havera sen~ pre alguém para me acusar de excluir as mulheres da politica. Porque, quando digo 0 que é, entende-se: ¢ est bem que seja assim. Do mesmo modo, descrever a classe operaria como ela é, € incorrer na suspeita de querer encerri-la no que é como num destino, de querer afundd-la ou de querer exaltd-la, Assim, a cons- tatagao de que, a maior parte do tempo, os homens (¢ sobretudo. as mulheres) das classes culturalmente mais desprovidas de meios confiam as suas escolhas politicas ao partido da sua escolha e, na ocorréncia, ao Partido Comunista, foi compreendida como uma exortagio a entrega ao Partido. Dec facto, na vida comum, nao se descreve uma refei¢io popular a nio ser para a considerar mara— vilhosa ou repulsiva; nunca para se compreender a sua logica, dar dela razao, compreendé-la; quer dizer darmo-nos os meios de-a tomar como é, Os leitores léem a sociologia com os dculos do seu habitus, E alguns descobrirao um reforgo do seu racismo de classe na mesma descrigao realista que outtos achario suspeita de ser inspirada pelo desprezo de classe. Hi aqui o principio de um mal-entendido estrutural na comu~ nicagao entre o socidlogo ¢ o seu leitor. P. Nio pensa que, dada a maneira como se exprime, sb pode ter intelectuais como Icitores? N3o seri um limite a eficicia do seu trabalho? ~A infelicidade do sociélogo é que, a maior parte do tempo, as pessoas que tém os meios técnicos de se apropriarem do que ele diz nao tém a menor vontade de se apropriarem, o menor interesse em se apropriarem do que ele diz, tendo até mesmo interesses poderosos na sta recusa (0 que faz com que pessoas sob outros aspectos muito competentes possam revelar-se intei- ramente indigentes no que se refere 3 sociologia), ao passo que aqueles que teriam interesse em apropriar-se do que ele diz no possuem os instrumentos de apropriagao (cultura tedrica, ete). O discurso sociolégico suscita resisténcias que sio inteiramente andlogas na sua lgica ¢ nas suas manifestagdes aquelas com que depara o discurso psicanalitico, As pessoas que léem que ha uma correlagio muito forte entre o nivel de instrugao e¢ a frequéncia dos museus tém todas as probabilidades de frequentarem os mu- seus, de serem amadores de arte prontos a morrer por amor da arte, de viverem © seu encontro coma atte como um amor puro, que se incendiow 4 primeira vista, ¢ de oporem intimeros siste- mas de defesa a objectivagio cientifica, as leis da difusio do discurso cientifico fazem com que, apesar da existéncia de instancias de transmissio ¢ de media- dores, a verdade cientifica tenha todas as probabilidades de chegar aos que estio menos dispostos a acciti-la ¢ muito poucas pro- habilidades de alcangar aqueles que teriam mais interesse em rece- bé-la. No entanto, pode pensar-se que bastaria fornecer aos segun- dos uma linguagem na qual se reconhe¢am ou, melhor, na qual se sintam recontecidos, quer dizer aceites, justificados de existir como existem (0 que necessariamente Ihes oferece toda a boa sociologia, ciéncia que, enquanto tal, dé razdo), para provocar uma transformagio da sua relagio com aquilo que slo, O que sera necessirio divulgar, disseminar, é o olhar cientifico, esse olhar ao mesmo tempo objectivante ¢ compreensivo, que, virado sobre si proprio, permite a cada um assumir-se e até mesmo, se assim posso dizer, reivindicar-se, reivindicar o direito a ser-se © que se é. Estou a pensar em palavras de ordem como “Black is beautiful” dos negros americanos ¢ na reivindicagao do direito ao natural look, 4 aparéncia “natural”, das feministas. Acusaram-me 46 de empregar por vezes uma linguagem pejorativa para falar de todos aqueles que impdem necessidades novas de sacrificar assim auma imagem do homem que faz pensar no “homem de natu- reza, mas numa versio socializada. De facto, nio se trata de encertar 0s agentes sociais num “ser social original” tratado como um destino, uma natureza, mas de lhes oferecer a possibilidade de assumirem 0 seu habitus sem culpabilidade nem’sofrimento. Eo que se deixa ver bem no dominio da cultura em que a miséria vem muitas vezes de um despojamento que nio pode assumir- se. O que se trai sem divida na minha maneira de falar de todos 96 estetas, dictistas, conselheiros conjugais ¢ outros vendedores de necessidades, ¢ a indigna¢ao contra essa forma de exploragio da miséria que consiste em impor normas impossiveis para vender em seguida meios ~ as mais das vezes ineficazes — de preencher a distancia entre essas normas ¢ as possibilidades reais que ha de as realizar Neste terreno, que ¢ completamente ignorado pela anilise politica, embora seja lugar de uma ac¢io objectivamente politica, os dominados sio deixados apenas com as suas préprias armas; esto absolutamente desprovidos de armas de defesa colectivas com que enfrentar os dominantes ¢ os seus psicanalistas do pobre. Ora, seria facil mostrar que a dominacio politica mais tipica- miente politica atravessa também estas vias: por exemplo, na Distin- so, eu queria abrir o capitulo sobre as relagSes entre a cultura € a politica com uma fotografia, que acabei por nao incluir, receando que fosse mal lida, em que se viam Maire e Séguy? sentados numa cadeira Luis xv diante de Giscard, ele proprio sentado num canapé Luis xv. Esta imagem designava, da maneira mais evi- dente, através da mancira como cstavam sentados, como tinham jos, em suma de todo o estilo corporal, aquele das partici- pantes que tem do seu lado a cultura, quer dizer 0 mobiliirio, o cenario, as cadeiras Luis xv, mas também as maneiras de usar tudo isso, 2 maneira de estar, aquele que € 0 possuidor desta > Secrevirios-gerais das centmais sindicais francesas CFDT ¢ CGT, respec- tivamente ¢ na alrura da escritura da obra. (N. doT) 7 cultura objectivada e aqueles que sio possuidos por esta cultura, em nome desta cultura. Se, diante do patrao, o sindicalista se sentc, no fundo, “embaracado”, como costuma dizer-sc, ¢ em parte pelo menos porque dispéc apenas de instrumentos de anilise, de auto-andlise, demasiado gerais e demasiado abstractos, que nao Ihe dio qualquer possibilidade de pensar ¢ de controlara sua relacdo coma linguagem ¢ com © corpo. E este estado de aban- dono em que o deixam as teorias ¢ as anilises disponiveis € par- ticularmente grava —ainda que o estado de abandono em que se encontra a sua mulher, na sua cozinha de um apartamento de bairro econémico, frente as imposturas das apresentadoras da RTL ou de Europe também deva ser levado cm conta—, porque ha uma quantidade enorme de gente que vai falar por seu intermé- dio, © porque é pela sua boca, pelo seu corpo, que vai passar a palavra de um grupo inteiro, € porque as suas reacgdes assim gencralizadas poderao ter sido determinadas, sem que ele o saiba. pelo seu horror aos meninos mimados que usam o cabelo com- prido ou aos intelectuais com dculos P. A sua sociologia nao implicara uma visio determinista do homem? Qual é a parte deixada 4 liberdade humana? ~ Como toda a ciéneia, a sociologia aceita o principio do determinismo entendido como uma forma do principio de razio suficiente. A ciéncia que deve dar razdo daquilo que é, postula por isso mesmo que nada é sem razio de ser. O socidlogo acres- centa social: sem razio de ser propriamente social. Perante uma distribuigdo estatistica, postula que existe um factor social que explica esta distribuigao c se, tendo~o encontrado, ha um residuo, postula a existéncia de um outro factor social, ¢ assim por diante. (E © que faz crer por vezes num imperialismo sociolégico: de facto, é de boa guerra e toda a ciéncia deve dar conta, com os seus meios prdprias, do maior nimero de coisas possiveis, 0 que inclui coisas que sdo aparentemente ou realmente explicadas por outras ciéncias. E sob esta condieao que pode par 3s outras cién- cias —e asi prdpria ~ verdadeiras questdes, e destruir explicagdes aparentes ou por claramente 0 problema da sobredeterminagio.) 48 i) Dito isto, confunde-se muitas vezes sob o termo de deter- minismo duas coisas muito diferentes: a necessidade objectiva, inscrita nas coisas, ¢ a necessidade “vivida”, aparente, subjectiva, © sentimento de necessidade ou de liberdade. O grau em que o mundo social nos parece determinade depende do conhecimento que dele temnos. Pelo contririo, o grau em que 0 mundo € real- mente determinado nao é uma questio de opiniao; enquanto socié- logo, nio tenho de ser “pelo determinismo” ou “pela liberdade” mas de descobrir a necessidade, se existe. onde ela se encontra. Pelo facto de todo o progresso no conhecimento das leis do mundo social elevar o grau de necessidade perecbida, ¢ natural que a ciéncia social, quanto mais avangada estiver, mais seja acusada de “determinismo”. Mas, contrariando as aparéncias, é clevando o grau de neces- sidade percebida ¢ dando um melhor conhecimento das leis do mundo social, que a ciéncia social di mais liberdade. Todo o progresso no conhecimento da necessidade é um progresso na liberdade possivel. Enquanto 0 desconhecimento da necessidade encerra uma forma de reconhecimento da necessidade. ¢ sem ditvida a mais absoluta, a mais total, uma vez que se ignora como tal, o conhecimento da necessidade nio implica de mancira nenhu- maanecessidade desse reconhecimento. Pelo contririo, faz apare- cer a possibilidade de escolha que est4 inserita em toda a relagio do tipo se ternos isto, entéo teremos aquilo:a liberdade que consiste em escolher aceitar o se ou recusi-lo é¢ desprovida de sentido enquanto se ignorar a relagio que o une a um entiv. © expor a luz do dia as leis que supdem o laisser-faire (quer dizer a aceitagao inconsciente das condigdes de realizagio dos efeitos previstos) estende o dominio da liberdade. Uma lei ignorada é uma natu- reza, um destino (€ o caso da relagio entre o capital culeural herdado ¢ 0 sucesso escolar), uma lei conhecida aparece como a possibilidade de uma liberdade. P. Nio é perigoso falar de lei? — Sim, sem diivida alguma. E evito 0 mais possivel fazé-lo. Os que tém interesse no laisser-faire (quer dizer em que nio se 49 modifique o se) véem a “lei” (quando a véem) como um desti- no, uma fatalidade inscrita na natureza social (sao, por exemplo, as leis de bronze das oligarquias dos neo-maquiavélicos, Michels ‘ou Mosca). De facto, a lei social é uma lei histérica, que se per- petua enquanto se deixa que funcione, quer dizer enquanto aqueles que serve (por vezes sem que cles o saibam) estao em medida de perpetuar as condicGes da sua eficacia. O que devemos perguntar é aquilo que se faz quando se enun- cia uma lei social até entio ignorada (por exemplo a lei de transmis- sio do capital cultural). Pode-se pretender fixar uma lei eterna, como fazem os socidlogos conservadores a propdsito da tendén- cia para a concentragio do poder, Na realidade, a ciéncia deve saber que nao faz mais que registar, sob a forma de leis tendenciais, a légica que é caracteristica de 11 certo jogo, mum certo momento, e que joga a favor dos que, dominando 0 jogo, esto em condigdes de definir de facto ou de direito as regras do jogo. Dito isto, a partir do momento em que é enunciada, a Ici pode tornar-se uma parada em jogo de lutas: luta para a conservat conservando as suas condigées de funcionamento; luta para a transformar transformando essas condigdes. O expor 4 luz do dia as leis tendenciais é a condi¢io de sucesso das acgdes que visam desmenti-las, Os dominantes esto comctides coma lei, ¢ portanto com uma interpretagio fisicalista da lei, que a faz regressar ao estado de mecanismo infraconsciente. Pelo contrario, os domi- nados estio cometidos com a descoberta da lei enquanto tal, quer dizer enquanto lei histérica, que pode ser abolida se vierem a ser abolidas as condigdes do seu funcionamento, O conhecimento da lei da-thes uma oportunidade, uma possibilidade de contrariar 0s efeitos da lei, possibilidade que nio existe enquanto a lei é desconhecida ¢ se exerce sem que o saibam aqueles que a sofrem. Em suma, do mesmo modo que desnaturaliza, a sociologia des- fataliza também. P, Um conhecimento cada vez mais avangado do social nio se arriscara a desencorajar toda a acgao politica de transformacio do mundo social? 50 —O conhecimento do mais provavel € 0 que torna possivel, em fungio de outros fins, a realizag3o de menos provavel. E jo- gando conscicntemente com a Iégica do mundo social que se podem fazer advir os possiveis que nao parecem inscritos nessa légica. A verdadeira acco politica consiste em servirmo-nos do conhe- cimento do provavel para reforgar as oportunidades do possivel. Opée-se 20 utopismo que, semelhante nisso 4 magia, pretende agir sobre o mundo por meio do discurso performativo. O que é proprio da aceao politica ¢ exprimir ¢ explorar, muitas vezes mais inconsciente que conscientemente, as potencialidades inscritas no mundo social, nas suas contradi¢des ou suas tendéncias imanentes. O socidlogo —é 0 que faz deplorar por vezes a auséncia do politico no seu discurso — descreve as condigdes com as quais a acc3o politica deve contar ¢ das quais dependerao 0 seu sucesso ou 0 seu insucesso (por exemplo, hoje, o desencanto colectivo dos jovens). Poe assim em guarda contra o erro que leva a tomar © efeito pela causa ¢ a ter por efeitos da ac¢io politica as condigdes histéricas da sua efica- cia. Isto sem ignorar o efeito que a acgio politica pode exercer quando acompanha ¢ intensifica, pelo facto de as exprimir ¢ de orquestrar a sua manifestagio, disposigdes que no produz, ¢ que Ihe preexistem. P. Sinto uma certa inquieta¢ao perante as consequéncias que se poderiam tirar, sem divida através de uma compreensio dis- torcida do que vocé diz, da natureza da opiniao, tal como vocé a mostrou. A sua anilise nio corre o risco de ter um efeito desmo- bilizador? — Vou precisar um pouco. A sociologia revela que a ideia de opinido pessoal (como a idcia de gosto pessoal) é uma ilusio, Conclui-se daqui que a sociologia é redutora, que desencanta, que, tirando 4s pessoas qualquer ilusio, as desmobiliza, Querer-se-i dizer que a mobilizacio 86 é possivel na base de ilus6es? Se ¢ verdade que a prépria ideia de opiniao pessoal é socialmente determinada, que é um produto da histéria reprodu- zido pela educagio, que as nossas opinides sdo determinadas, mais 31 vale sabé-lo; © se temos alguma probabilidade de ter opinides pessoais, ¢ talvez na condigdo de sabermos que as nossas opinides nio sio assim espontaneamente 0 que sio. P_ Asociologia é ao mesmo tempo uma actividade académica ¢ uma actividade critica, ou até mesmo politica. Nao seri uma contradi¢io? — A sociologia tal como a conhecemos nasceu, pelo menos no caso de Franga, de uma contradi¢io ou de um mal-entendido. Durkheim foi alguém que fez tudo o que cra necessario para fazer existira sociologia como ciéncia universitariamente reconhe- cida. Quando uma actividade ¢ constituida em disciplina uni- versitaria, a questio da sua fungao e da fungao daqueles que a praticam deixam de se pér: basta pensar nos arquedloges, filé- logos, historiadores da Idade Média, da China ou da filosofia classica, aos quais nunca se pergunta para que servem, para que serve aquilo que fazem, para quem trabalham, quem tem neces~ sidade daquilo que fazem, Ninguém os poe em questo ¢ eles sentem-

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