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O problema religioso em Carl Rogers Henrique Justo, FSC’ 56 nas asas da mistica, o espiito pode Cconcluir sua ascensao (Alexis Carrel. Fervor religioso de Carl até os 20 anos. Amplagao de horizontes crise de f8. Dedicagdo @ terapia, ensino e pesquisa. Emergéncia da espiritualidade na velhice. Influéncia de Rogers na diregao espiritual e catequese, Palavras-chave: Fé, indiferenca religiosa, crise, espiritualidade. Religious ardor of Cari Rogers up to his 20 years. Amplification of horizons and faith crisis. Dedication to psychotherapy, to teaching and to research. Emergency of the spirituality in old age. His influence in spiritual guidance and catechesis, Key words: Faith, religious indiference, crisis, spirituality 1 AMBIENTE FAMILIAR: RELIGIAO E TRABALHO. Rogers nasceu em 8 de janeiro de 1902, no bairro Park de Chicago, sendo 0 quarto de seis filhos: cinco homens e uma mulher. O pai tinha diploma de engenheiro; a mae seguira dois anos curso universitario. Ele pertencia a Igreja 1 Na certeza de que 95 considcragdes abaixo, pouco ventiladas, concorram para o melhor cconhecimento de uma faceta do autor que tantos de nés tém por guia e inspirador é que as enivego para divulgagao. Talvez sivam de estilo para alguém mais se abalancar a dissertacao de mestrado ou tese de doutorado sobre as relagdes e efeitos reciprocos de psicologia: psicoterapia € religiao. Esse tema foi sdlida e amplamente explorado pela Dr. Luciana Femando Marques em sua tese defendida na PUCRS, em 2000. Traduziu e validou dois instrumentos especificos, apicando-os a 506 membros de 11 reiigibes distintas, idades variadas e diferentes nives de instrugo. Conclusao: “Todas as opdes religiosas se correlacionaram significativamente com bem-estar reigioso e existencial, sendo menores naquelas pessoas que se diam sem religido.” Luciana € protessora no curso de especializagio na Abordagem Centvada na Pessoa mantido pelo Centro Universitrio La Salle, Canoas, RS. i ite | LaSatle-R Este, Clén Cut | Cancas | v8 | nt 65-79 Ouoro 2008 | * Prof no Unilasalle Drem Pedagogia. Livres Docente en Psicologia (PUCRS. Congregacional; ela, a Batista. Aos domingos, a participagdo no culto da Igreja Congregacional era regra A mée, confessa Carl na autobiografia (1971, original de 1967, p08), era muito crente, tornando-se mais e mais rigida com a idade Nas oragées em familia, costumava citar duas passagens biblicas, que se me gravaram na meméria, dando idéia de sua religiosidade: Sai de entre as nagdes e ficai separados. Toda a nossa retidao nao passa de farrapos ante Ti, Senhor. E 0 progenitor? 0 pai valorizava igualmente muito a oracao em familia ea freqiientacao da igreia etc, porém com menos sentimento. Esse ritual religioso era observado os sete dias da semana, com ou sem visita na casa: apés o café, sentados em circulo, cada membro lia versiculos da Biblia. Em seguida, o pai (atten) ou, na auséncia deste, a mae lia) fazia uma oragao espontanea, variando cada dia, certamente inspirada na idéia dos textos lidos. O ambiente eta rigorosamente religioso, como se pode verificar: Implcitamente entendiamos que nao deveriamos dancer, jogar cartas, nem ir a0 cinema, nem fumar, nem beber, hem dar mostras de interesse sexual (ROGERS, 1971, p. O Seis anos antes do lancamento da autobiografia, solicitado a falar sobre sua caminhada pessoal na Universidade de Brandeis (1961, p. 5), disse’ Fui educado num lar muito unido, em atmosfera religiosa e moral estrita e intransigente, levando valorizacao da virtude e empenho no trabalho Fui 0 quarto de seis filhos. Os pais tinham muita solictude por nds, com nosso bem-estar quase sempre na mente, Foram também, de varias maneiras, muito controladores do__—_nosso comportamento, Eles pensavam, e eu aceitei, que nés éramos diferentes de outras pessoas: sem bebidas alcodlicas, sem danga, baralhos ou teatro, vida social reduzida e muito trabalho, ‘Muito trabalho, com o adjetivo ‘muito grifado. A comprovacao vird em seguida. Resumindo: um lar de cima religioso intenso e estrito. Quando Car nasceu, a familia situava-se na camada superior da classe média. Dois principios maiores a orientavam: religi © trabalho, As duas primeiras décadas de existéncia de Carl ficaram marcadas por essa divisa. 2 ESCOLA E TRABALHO Cagula da familia por mais de cinco anos, aprendeu muito com os manos maiores, que o ensinaram a ler. Nao demorou que iniciasse aleitura de livros. Encantavam-no especialmente histérias da Biblia narradas em linguagem simples, 0 que nao pouco alegrou os progenitores tao religiosos. Leu-as varias vezes, do comego ao fim, do Génesis ao Apocalipse (do primeiro a0 titimo livro da Biblia) [Aqui me identifico com Rogers relanceando os olhos sobre uma Historia Sagrada de prima mais velha e vizinha, fiquei encantado, comprando um exemplar ilustrado para mim em Sale - Educ. Cién Cul. v8} ntl 565-70 = seguida. O primeiro livro adquirido por mim. Embora muito religiosa, a religiosidade nao era opressiva, mas alegre, ainda que séria, em minha familial ‘A professora da primeira série achou-o muito adiantado para ficar nessa aula, sendo promovido logo paraasérie seguinte. Contava seis anos enovemeses. O pai do célebre escritor Ernesto Hemingway era professor nessa escola, Opequeno Car continuo sendo leitor infatigavel. James Finimore era o autor favorito. Menino retraido, sensivel, preferia livros e seu mundo de sonhos a jogos e competicdes esportivas. Aluno excelente, sempre com as notas mais, altas, Os mestres estimulavam 0 gosto da leitura ea curiosidade intelectual Segundo depoimento de sua mana Margaret, Carl devorava os livros que Ihe caiam nas maos, sobretudo de aventuras, guerras, indios e piratas. Na falta de livros, recorria a enciclopédias € dicionarios onde, eventualmente, encontrava alguma informagao sobre sexo, matéria tabuna familia, Maistarde, entreteve seus manos menores, Walter e John, durante horas, narrando-thes historias e aventuras. Uma de suas criagdes— didlogo entre duasfolhas até cairem da érvore — mereceu destaque 1na escola, sendo ali exposta. Os pais trataram de tomar a casa atraente aos filhos e aos amigos deles. Inclusive, instalaram uma quadra de t6nis, sobretudo usada pelo mano mais velho e colegas. A musica era igualmente cultivada. Seguido escutavam discos de 6peras. Carl aprendeu a tocar piano muito bem. Quando 0 futuro psicdlogo completou doze anos, compraram os pais uma granja ao oeste de Chicago. © pequeno ficou fascinado pelo ambiente rural. O trabalho seguia normas cientificas, orientado por agrénomo da Universidade. Contudo, além do panorama bucélico, diz na autobiografia, tinha que ordenhar doze vacas de manha e & tarde, deixando-the bragos e mos dormentes. Durante um periodo, teve seu cargo os cuidados dos suinos da granja. No verdo (durante as férias escolares), lavravatodo o dia Este titimo trabalho ajudou-o a tomar decisdes aut6nomas em casos imprevistos. Assim foi levado paralelamente estudo e tarefas na granija. A leitura de autor sobre borboletas noturnas e a descoberta de duas na casca de uma drvore levou-o ao primeiro projeto de pesquisa independente, como diz. Desde os ovos foi acompanhando as fases da evolugao das borboletas, fornecendo- thes a alimentagao adequada. Um livro de Morison the ensinou, aos catorze anos, a planejar e realizar experiments, tendo grupo experi- mental e de controle, critérios para manter a constancia das condicées, como variar os processos a fim de verificar os resultados da alimentagao sobre a produgao de came ¢ leite. Diz "LJ haver adquirido conhecimento sobre métodos cientificos de campo e aprendido a respeité tos” ae a] [ise (Oxtono 2003 periodo de férias entre 0 ensino médio e 0 universitario 0 marcaria. Tinha dezessete anos, O pai the arrumou trabalho em madeireira de trés tios, com miltiplas sucursais, em Dakota Norte. Trabalhava duro, confessa, das oito da manha as cinco da tarde, carregando e descarregando madeira, preenchendo formulatios, descarregando tijolos, removendo carvao com a pa. As refeigdes eram feitas numa pensao familiar. Entretanto, ndo me sentia demasiado sozinho, j4 que, a noite, passava muito tempo com livros novos. Nesse periods, li Carlyle, Vitor Hugo, Dickens, Ruskin, Emerson, Scott, Poe € muitos outros. No didrio transmite-nos impresses sobre os autores: Dickens com seu humor; Twain fazendo-Ihe esquecer a saudade de casa com suas risadas, Tive algumas discussoes com Emerson e Van Dyke, Mas 0 autor que me cativou com seu feitigo foi Vitor Hugo. Hugo € prodigioso’ Lemos em seus apontamentos: Tive muito tempo para refletir. Sinto que cheguei mais perto de Deus. Penso que ainda ha intimeros pontos que me deixam perplexo e confuso (KIRSCHENBAUM, 1979) Ja em casa, Rogers faz avaliagdo da experiéncia de trabalho e solidao: Langandlo alhar retraspectiva sabre 0 verdo, vejo haver lucrado muito de varias maneitas (.1 Aprendi, durante a auséncia, a apreciar mais a vida da grania e estou inteiramente resolvido a ser um fazendeiro (a farmer’) 3. NA UNIVERSIDADE DE WISCONSIN Emsetembro de 1919, dirigiu-se a Universidade de Wisconsin, onde ja estava matriculado. O grande objetivo: estudar agricultura cientifica, projeto dos progenitores para Carl. Wisconsin tinha excelente escola nessa especialidade. Havia, contudo, razao maior para ele ir desta instituigdo de ensino superior: os Rogers ‘sempre’ estudaram em Wisconsin: os pais, os manos maiores eamana Coerente com o lema ficar unidos, entrou na Associacao Crista de Mogos, presidida por seu mano Ross, com o qualtambém partilhava o quarto. Embora com notas excelentes, os dois anos e meio passados ali tiveram sobre ele débil impacto académico. Ponto que salientou foi a altitude de um agrénomo, professor seu, depreciando os conhecimentos livrescos. Dizia: "Nao seja a droga de um vagao de munigao; seja um fuzil! O ensinamento afina com a idéia de Montaigne: preferir cabeca bem feitaa cabeca bem cheia ‘Marcou-0 a participacao no ‘Ag- Triangle’, grupo de estudantes de agricultura da Associagao Crista de Mogos, sob a coordenagao do professor George Humphrey. Ainda que Rogers o reputasse bem intencionado, mas débil, com o andar do tempo, deu-se conta de ser ele ‘exemplo de lideranca facilitadora, © Jider nao seguia nenhuma instrugao e nao estabelecia nenhuma regra ou programa para 0 jovem rapaz ou seus colegas de classe. O grupo era inteiramente entregue a seus proprios esquemas (WOOD, 1983, p. 88). Resultado? Deixados completamente livres para se engajarem em qualquer tipo de La Sale Educ. Cién. Cult me atividade, os estudantes rapidamente superaram a auséncia de lideranca e rapidamente envolveram-se em varios tipos diferentes de projetos. Tomando as suas proprias decisoes e fazendo suas escolhas, eles aprenderam rapidamente e organizaram um método de autogoverno. Estabeleceram 0 seu proprio curriculo e arganizaram todas as formas de atividades sociais € educacionais (WOOD, 1983, p. 88). Wood observa que esse método ‘ocupou a mente de Rogers durante o ano. De inicio Ihe pairavam duvidas sobre a competéncia do lider, até descobrir 0 que estava comunicando implicitamente: Nao sou importante: 0 que é importante € 0 que estou oferecendo para voces, a experiéncia real de aprendizagem (ROGERS, 197 1) ‘Além disso, fora da familia, “o jovem timido encontrou uma proximidade real e intimidade com outros." Ele mesmo reconheceu Aqui, pela primeira vez, descobri 0 que significa ter camaradas e, mesmo, amigos. Por dois anos, esse grupo significou muito para mim, até eu mudar para 0 ‘College’ de Letras, e Ciéncias; gradativamente perdi 0 contato com ele” ROGERS, 1980, p. 30). Nos anos importantes da adolescéncia, nao tive nenhum ‘amigo intimo @ somente contatos pessoais superficiais (ROGERS, 19707 Nessa época, chegou a conhecer uma estudante de Artes, Helen, que viria a ser sua esposa. Descobriu que pensamentos intimos e sonhos para 0 futuro poderiam ser partilhados com outra pessoa, sendo notavel a experiéncia de crescimento. Longe do lar, em meio a pessoas diferentes, com mentalidades novas, vit Carl aparecerem outras perspectivas de vida; havia inumeras outras possibilidades além de fazendeiro. No inic jo do segundo ano, registra no dirio. a dtivida sobre 0 caminho inicialmente percebido como Unico e definitivo: Todo 0 ano, as férias e a escola me revelaram maravilhosas oportu- nidades, As vezes me pergunto, tornar-me-ei bom fazendeiro por ser trabalho que aprecio e para 0 qual ‘sou talhado, Se carreira melhor sursir, espero ter a coragem de segui-la Rezo para isso. (ROGERS apud KIRSCHENBAUM, 1979) Apés assistir a palestra sobre ‘Escolha Profissional’ (Selecting a Life Worle, escreve: Oh! E maravilhoso sentir que Deus me quer orientar para a profissao da minha vida (my life work), (.1 Oh! Como quero conservar minha vida ‘em harmonia com Deus, para que Ele me possa guiar. ‘Senhor, pego tua orientagao. Estou procurando 0 reino do Céu. Alem de mim, somente Tu conheces a porta na qual eu bato. Ajuda-me, Senhor, a ver com espitito reto para alcangé-lo. Amém’ (ROGERS apud KIRSCHENBAUM). Nos planos para 1920, consta Quero viver mais perto de Deus para formar mais intensa amizade com Ele € utilizar mais tempo e empenho na comunhao com Ele, 7 No cap, 2 de A Way of Being, quase 20 p, narra Carl Rogers seu préprio crescimento em relagoes humanas, desde a infancia até idade avangada; desde a crenga de que ‘o homem & essencialmente mau’, portanto, do qual se deve desconfiar, até ‘profunda confianga em mim ‘mesmo, nos individuos e nos grupos’ [ia Sate-F Ea. Cisn Cue oan ad pc | | a Nos titimos dias de 1919 e nos primeiros de 1920, participou de encontro da Associagao Crista de Mogos, dedicado a educacao e a motivar jovens para anunciar o Evangelho. Lema: "Nossa geracao evangelizaré 0 mundo” (ROGERS, 1971,p.21). Esse encontro acendeu nele “grande chama’. Havendo escutado duas colocagées de Sherwood Eddy, registra: Tomei minha decisao final. Deus me ajude a mantéla! Todos os meus sonhos anteriores parecem insignificantes (‘cheap’) agora, porque me resolvi pela maior das miss6es sobre o globo. Encontrei ‘© que nao havia descoberto antes: a paz de Deus que ultrapassa toda compreensao [...1 E maravilhoso (ROGERS, apud KIRSCHENBALIM, 1979) Na autobiografia confessa: Rogers Os oradores iam diretamente aos coragées do publico, remexendo-os profundamente. |... Por ocasiao desse congresso, subitamente decidi orientar minha vida de maneira diferente e tornar-me pastor (ROGERS, 1971, p, 21) Apesar deste e de outros momentos de certeza, observa Kirschenbaum, essa resolucao nao foi absoluta, Ficou indeciso por dois ou trés anos, mas “comecou a orientar a vida mais € mais na direcao do ministério. Auxiliou a organizar conferéncias religiosas no “campu’. Viajou para encontros em varios Estados Deu uma guinada em direcao 8 futura vocagao, passando do curso de agricutura para 0 de histéria, que the proporcionaria melhor preparacao ao ministério. Continuou a coordenar seu grupo no Boys Club. Em 1921, comegou a considerar seriamente a necessidade de cristianizar as relacdes internacionais, as sociais, as da indkistria e politica. Sua decisao vocacional amadurecera Estou decidido mas do que nunca quero entrar na miss8o de Cistianizagao into Christian works) e ssinto-me resolvido a ser ministro, rural ou ndo, nao sei ROGERS, apud KIRSCHENBALIM, 1979) NNo verdo de 19211 foi o responsavel por acampamento de ito conselheiros escolares e cem meninos pobres, a maioria de descendéncia italiana, em Milwaukee. Parte do dia auxilariam na colheita de cerejas afim de ajudar a pagar 05 custos, e outras horas eram reservadas a programas da Associagdo Crist& (ROGERS, 1980, p. 30-31) Car, escreve Kirschenbaum, tomou 2 tarefa muito a sério, sentindo-se responsavel ndo somente pelo programa recreativo, mas também elo crescimento moral (1979, p 21-221 Menino acusado de furto tomou- 0 apatte, “falou com ele, ameacou-o e * Kirschenbaum escreveu biografia de Rogers, conferindo, com ele e esposa, todo o texto. Além de ter a disposicao vasta correspondéncia, 0 didio, 0 relat6rio do congresso da China e inécitos, Carl he forneceu o enderego em tomo de 300 colegas, parentes, amigos e ‘inimigos’ que trabalharam com ele ou o conheciam fazia anos (P. XIV). Afirma o biégrafo ter pasado, a0 todo, cerca de seis semanas com 0 casal nessa tarefa. Colheu, igualmente, depoimentos do casal de filhos, da mana e de dois manos, um deles the enviando 17p. de informagoes, eas valnt 65-79 ‘Outon0 2003 rezou sobre ele. Tentamos, declara, 0 uso de todos os recursos @ nossa disposicdo, inclusive o divino’. Segui seia 0 que denominou, cinco meses apés, ‘a maior experiéncia de minha vider Por qué? Por qué? ~ se perguntava, Esta é pergunta da minha vida Certamente Deus me quer para alguma grande tarefa, algo que reserva somente para mim. Sinto como Davi se sentiu a0 ser ungido or Samuel, e que isto seja real para ‘mim como foi para Davi: 'e 0 Espirito do Senhor esteve sobre ele dali em diante’. Certamente a mao de Deus € visivel nessa ultima e maior oportunidade e responsabilidade que me sobreveio. Que eu seja suficientemente forte para isso. {1 Estou hoje com 20 anos de idade (ROGERS, apud KIRSCHENBAUM, 1979) Essas declaragGes pessoais dispensam qualquer comentério sobre as disposigbes de Carl antes de iniciar a travessia do Pacifico. 4 VIAGEM A CHINA... INICIO DE GUINADA RELIGIOSA Na escolha de dez delegados dos Estados Unidos para a Conferéncia Mundial da Federagao Crista, em Pequim (China), em 1922, um dos indicados foi Carl Rogers. A perda de um semestre académico seria compensada por inusitada experiéncia Estudantes e professores asseguraram ofinanciamento do longo percurso de navio. Essa viagem vem retratada em numerosas cartas e no volume Diério da China, 86 paginas datilografadas em espaco um.* O estado de satide manteve-se excelente. Foi dos 10% que escapou ao enjéo maritima nas tés semanas de navegacao. Os cito dias do encontro foram algo fascinante: discussdes, debates, sessdes yetais, cunferéncias, grupos informais entre os delegados: duzentos estrangeiros e seiscentos chineses. Em artigo para 0 boletim da Associagao Crista de Mogos, informou estarem presentes paises tao distantes como Tehecoslovaquia e Poldnia, Burma e Ceilgo, brancos, amarelos, pretos, todos procurando entender-se uns aos outros, comparando e discutindo ‘seus problemas e oportunidades, na esperanca de se unirem em discipulado real e vivo de estudantes ctistaos do mundo, O contato com os colegas, as discussées de pontos diversos, tornaram Rogers menos rigido na concepgao da religido, iniciando progressivo distanciamento da concepgao herdada em familia No quinto dia, anota haverem debatido numerosos pontos duvidosos. Textualmente: Somos um grupo de lideres com olhar para frente, mentalidades jovens a construir a prépria 16, no dogmiticos, seguros de ser a prépria interpretagao a nica, Quanto mais falamos e pensamos, tanto mais acho Possivel definir 0 que eu mesmo reio e 0 que eu considero essencial (ROGERS apud KIRSCHENBAUM, 1979, p. 24 “Esse didrio pode ser publicado, segundo indicagdes do autor, somente apés xis niimero de ‘anos depois de sua morte. Kirschenbaum teve acesso a esse documento. LaBale A. Educ. Cién. Cut. | Caras | v8 at p.65-79 Durante a viagem de volta, escreve, empolgado com a experiéncia: Naturalmente, todas essas amizades, a viegem de ampliagéo de horizon- tes “eye opening trip’, o tempo que tive para refletr na viagem de navio, etc. modificaram-me extraordina- riamente. Acima de tudo, talvez, mudei para 0 dnico ponto de vista légico: desejo conhecer a verdade sem olhar donde venha, de um cristo ou nao. Desde que tomei essa atitude (e foi processo gradual iniciado antes de deixar a casa Paterna, encontrei as mais prodigiosas novas riquezas na vida de Cristo e na Biblia como um todo 1 Pela primeira vez na vida, estou ansioso por contar as pessoas 0 que creio a respeito d’Ele e seu Reino maravilhoso que veio estabelecer (ROGERS apud KIRSCHENBAUM, 1979, p. 25 As cartas que a familia ia recebendo revelaram que os pontos de vista de Carl sobre religio se estavam tomando progressivamente diferentes, gerando inquietagao. Chegou a insinuar que Jesus Cristo nao era uma deidade: “Jesus, escreve, foi o homem que chegou mais perto de Deus do que qualquer outro na historia.” ‘Ao regressar a casa em agosto = informa-nos Kirschenbaum ~ havia uma brecha intelectual e emocional entre ele e a maioria da familia, Nunca mais se restabeleceu a ponte de ligaGao entre as partes. Houve discussdes acaloradas e conflitos. “Desde a Viagem, os objetivos € filosofia foram meus”, observa Carl, Mais tarde, confessa claramente: Eu fui um rebelde, Nao sei datar isso, mas certamente a partir dos doze ou treze anos em diante posso lembrar- me de incidentes especificos de rebeldia contra o pensar dos pais (HART; TOMLINSON, 1970, p. 506). Segundo Fuller (1982, p. 25), aestreiteza da crenca dos pais levou © a compreender a integridade pessoal como algo que surge através da resisténcia autoridade externa. A ambivaléncia respeito & rigida piedade dos progenitores veio tona saindo do lar ao college, onde integrou organizagao religiosa juvenil e, a primeira vez na vida experienciou real abertura e intimidade. Em suma:areligiao se the tomou mais esclarecida, menos rigida e menos ortodoxa. Resolveu seguir a carreira de pastor, amadurecida em Wisconsin 5 NO SEMINARIO DA UNIAO TEOLOGICA (Nova lorque’: 1924-1926. Carl optou por esse Seminario, “o mais liberal do pais e com lideranga intelectual em publicagdes de religido.” Os pais se opuseram. Para eles, 0 estabelecimento era o ‘diabo disfargado’. Se escolhesse 0 Seminario. de Princeton (muito conservadon, o pai he pagaria os estudos. Carl, porém, concorreu e obteve bolsa de estudos no Seminério de sua preferéncia, em que ndo havia pressao ortodoxa de espéciealguma. Voce estava al para forjar © proprio modo de pensar, religiao moderna e liberal No verao (férias) de 1925, acompanhado da esposa, Helen (haviam casado em agosto de 24), assumiu, como pastor, pequena igreja de East Dorset, Vermont. Era costume do Seminério oferecer campo de tre =p | La Sale - A. Educ. Cién. Cult, | Canoas v8} ntl p65-70 me treinamento aos estudantes, assumindo responsabilidades pastorais em tempo integral Os onze sermdes de Carl estavam recheados das tltimas novidades no modo de encarar a religiao. “Muito trabalho meu dei na preparacgao dos meus sermées”, confessa. Duragao: néo mais de vinte minutos. Na extensa entrevista com Hart (1970, p. 504), confessa: "Quando estive no seminério de teologia, tinhamos que escrever sermoes; foi um bom exercicio’. Helen ensinava asmeninas jogos nao conhecidos al; Gragas & compreensao de Ministro de localidade vizinha, pode esquivar-se da penosa celebracdo de ceriménia fénebre, "o primeiro encontro com a morte*. No segundo ano, matriculou-se em varias disciplinas do famoso Teachers College, da vizinha Columbia University, fascinando-o 0 curso de psicologia clinica. Havia otimo relacionamento e intercambio entre ambas as instituigoes. Nos fins de semana, trabalhava como orientador (director) de educagao religiosa na Primeira Igreja Congregacional do subirbio de Vernon (Nova lorque), que era comunidade de seus trezentos membros, classe média, modemos no pensar. Achou a celebracao do culto languida, estéril. Um dos objetivos imediatos: solugdo de problemas. Instituiu procisses, mais musica de 10, uniforme para 0 coral e retatorio das aulas de religido e do andamento dos projetos. Estava muito engajado em atendimento individual e discusséo de grupo. Gracas a estas atividades, entreviu Carla possibilidade profissional de se dedicar a pessoas numa relacdo de ajuda. A diregéo do Seminario autorizou um grupo de estudantes — Carl entre eles—arealizar um ‘semina valendo créditos, sem um mestre Condigéo: que jovem professor estivesse presente, mas s6 intervindo a pedido do grupo. Tema: estudo de perguntas e questionamentos dos membros. Na entrevista com Hart (1970, p. 506), declara haver tido na pessoa de McGiffert um dos professores mais versados de sua vida. Apresentava a propria opiniao sobre um tema ou alguma filosofia, Mas, sem dizé-lo diretamente, passava 0 recado: "Voces esto inteiramente livres para formar a opinido de vocés." Eis mais uma das sementes da aprendizagem centrada no aluno, Num trabalho escrito para a disciplina de Historia da Igreja, estudou Jesus, Pedro, Paulo, Agostinho, Francisco de Assis, Savonarola, Joao Huss, Erasmo, Lutero, Indcio de Loiola etc, comparando-thes a oragao, a doutrina, autoridade religiosa, 0 pensamento sobre imortalidade, relacdo com a Igreja, a Biblia. Verificou haver divergéncias entre eles quanto a esses pontos. Conclusdo de Rogers: A religiao crista satistez variadas necessidades psicolégicas em homens La Salle -R. Educ. Clén. Cut | Canoas | v8 at 69-79 2 ‘Oxtono 2003) diferentes... © importante nao é 2 religiao, mas o homem (ano, pagina. Na mesma conclusdo de- sembocou, igualmente, um trabalho seu sobre A fonte da autoridade em ‘Martinho Lutero,fomecendo the suporte intelectual € histérico & crescente convicg4o de que, “em ultima andlise, a confianga da pessoa se baseia na propria experiéncia”, chegando a certeza de que “o significado deve ser procurado na experiéncia pessoal e no fora dela’ (FULLER, 1982, p. 25). 6 OPCAO PELA PSICOLOGIA Encontrava-se Carl ante uma bifurcagao: de um lado, a religido the pedindo a fé em certa doutrina espectiica; do outro, Psicologia, Filosofia, com ampla liberdade de pensamento Decidiu-se pela Psicologia. No outono de 1926, abandonou os estudios do Seminério, ou melhor, optou por consagrar todo o tempo a Psicologia no Teachers College. Na opiniao de Oden (FULLER, p. 26), a emancipagao de Rogers dos rigidos marcos de Cristianismo Protestante acentuadamente conser- vador, quase fundamentalista, constituiu-se em apropriada e madura rejeigao de autoridade religiosa arbitrdria, opressiva, heterénoma e em movimento em dirego @ autonomia, liberdade, autodescoberta, de forma alguma adverséria do nucleo da heranca protestante. Observa 0 bidgrafo: "Carl deixou a Igreja para nunca mais voltar a uma religido formal” (p. 52). Ao Ihe perguntarem sobre sua religiao, costumava responder: “Sou demasiado retigioso para me limitar a determinada Igreja’ A ciéncia absorveu-lhe as preocupagées até a titima década de vida quando, novamente, a dimensdo espiritual Ihe surgiu no horizonte das idéias, desta vez, ndo caindo do alto, mas brotando da experiéncia com individuos e grupos. Escreve Boainain (1999, p. 98 1.10 préprio trabatho profissional de Rogers € 0 fator que gradativamente comeca a envolver sua atencao reflexao com a dimensao transcendente e espiritual do ser e da realidade, De outro lado, com a perda da companheira de vida, Helen, deparou: se, de frente, com 0 problema do apés- morte. Segundo Arias (1999, p. 23): © que parece claro é que essa espécie de vazio que 0 desejo de imortalidade e a consciéncia de seus limites deixam no homem sem respostas definitivas diante dos grandes problemas da vida e da morte, ou se preenche com Deus ou se buscam substitutos, Ninguém Quer deixar vazio esse buraco negro que nos persegue. Rogers, porém, ficou muito reticente e vago em face da religiosidade, da espiritualidade, do mistico, contrastando com a posicao inicial bem definida e entusiasta. Pouco pouco, como foi visto, 0 estudo, a reflexdo Ihe corroeram os alicerces do edificio religioso. Outros psicdlogos- psicoterapeutas sao bem mais explicitos, Escreve Jung (1991, p. 9): - > ee 65-79 | Outono 2000

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