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Oost ei eT BIBLIOTECA DE HISTORIA Vol. n? 2 ee ee POR RRB aia) DECIO FREITAS PALMARES A GUERRA DOS ESCRAVOS S*EDICAO Esta edigto contém as ampliagdes da 2* e 3* edites, « partir de pesqui- sas realizadas pelo autor nos arqulvos portugueses em 1974, e fecebet 0 serine de una ney Bogan de Zab un nove capt, nad (0S QUE PREFERIRAM MORRER. RUMANAS. E EDUCAGAO Copyright by Edigdes Graal Lida Capa Sonia Maria Goulart Foto Pablo Arias CIP-Brasil, Catalogagio-na-fonte Sincato Nacional dos Editores de Livros, RI. Freitas, Décio. F936p Palmares: a guerra dos escravos / Décio Freitas. — 42 ed. — Rio de Janeiro: Edigdes Graal, 1982. (Biblioteca de historia; 2) Bibliografia 1. Brasil — Histéria — Palmares, 1630.1695 1. Titulo Il. Série CDD — 981.03 78.0681 CDU — 981 "1630-1695" 1978 — 2! Edigdo : 1981 — 3? Edigao PR-00019074-0 1982 — 4? Edigao Direitos ada Rua Hermenegildo de Barros 31-A — Gléria 20.241 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil Fone: 252-8582 Consetho Editorial Antonio Candido Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso 1990 Impresso no Brasil/Printed in Brazil | Kche ridos por EDICOES GRAAL Ltda. HE 80.8 agi Ot DE CIEVCIAS HUMANAS cat 51/97 BLIOTECA 30/31 VRARIA ME 8 Terma | SUMARIO Apresentagio, 1 Homens Livres e Eseravos, 15 Angola Janga, 37 Guerra e Rebello, 53 A guerra do Mato, 71 Ganga-Zumba, 701 Zumbi, 123 Cruzada contra Palmares, 149 Os que Preferiram Morrer, 186 Fontes ¢ Bibliografia, 197 aye LIVROS DO AUTOR — Palmares — la Guerrilla Negra (Nuestra America. Mon- tevidéu, 1971) — Palmares — A Guerra dos Escravos (1.4 edicao, Movimen- to, Porto Alegre, 1973; 2.8 edicdo, Graal, Rio, 1978, 3.4 edicdo, Graal, Rio, 1981) — Insurreiges Escravas (Movimento, Porto Alegre, 1976) — Escravos ¢ Senhores-de-Escravos (1.4 Edigao, Universidade de Caxias do Sul e Escola Superior de Teologia Sao Lourengo de Brindes, Caxias do Sul e Porto Alegre, 1977; 28 edico, Graal, Rio, 1982) — 0s Guerritheiros do Imperador, (Graal, Rio, 1978) — 0 Escravismo Brasileiro, (Escola Superior de Teologia So Lourengo de Brindes, Editora Vozes, Porto Alegre, 1980) — Escravidéo de tndios e Negros no Brasil, Escola Superior de Teologia Sao Lourenco de Brindes, Instituto Cul- tural Portugues, Porto Alegre, 1980) — Cultura e Ideologia no RS (co-autoria com Nelson Boeira, Flavio Loureiro Chaves, José Hildebrando Dacanal, Saratov ‘Tarso Fernando Genro, Sergius Gonzaga, Maria Eliza- ‘Algoas do Sal’ 'MACEIO Tentative de locelisacio geopréfica beth Lucas e Sandra Jatahy Pesavento, — Mereado das Tomvonsies dos Aberto, Porto Alegre, 1980) PALMARES — 0 Capitalismo Pastoril (Escola Superior de Teologia Sao ete eae pelo gedgrafo M.A. Thatehrn Lourenco de Brindes, Porto Alegre, 1980) wat 5.0 19 29 30 47 $0 60 70 80 90 100m — Teoria da Colonizagéo no Rio Grande do Sul (a sair) — Breve Histéria da Revolugéo de 30 (em preparo) 110" APRESENTACAO Enquanto houve escravidio no Brasil, os escravos se revoltaram ¢ marearam a sua revolta em protestos armados, cuja iteraco néo encontra paralelo na histéria de qualquer outro pais do Novo Mundo. Essas revoltas, entretanto, ainda nGo obtiveram aquilo que Lucien Febvre denominou lapidar- mente de “direito @ histéria”. Nao apenas so mal conhe- cidas — no geral sequer se faz idéia da freqliéncia e inten- sidade com que se produziram — senéo que tratadas como episédios marginais do proceso histérico brasileiro, A marginalizacéo das revoltas escravas obedeceu a mil- tiplos e fortes interesses histéricos, entre os quais ressaltam como mais dbvios os de preservar os mitos habilmente ela- borados e hoje solidamente arraigados do caréter pacifico daquele processo e da brandura do sistema escravista bra- sileiro. Ainda que a marginalizacdo estivesse implicita na obra que implantou as bases do historicismo oficial brasi- leiro, a Histéria Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de ‘Varnhagem, somente veio a ser teorizada por Nina Rodrigues, casualmente 0 pioneiro dos estudos sobre o negro. As re- voltas escravas constituiram, segundo Nina Rodrigues, nfo casos de protesto social, mas fenémenos de criminalidade multitudingria ou, na melhor das hipéteses, de regressio tri- bal. A tese fez fortuna tanto mais rapida quanto que legi- timava a repressio as revoltas escravas e conferia aos amos um papel historicamente progressista, como quando procla- ma, por exemplo, que com 0 esmagamento de Palmares se eliminou “a maior ameaca & civilizagio do futuro povo bra- sileiro”. Quando 0 contrario é que é verdade: o mal provelo precisamente da incapacidade dos escravos de destrufrem um sistema econdmico e social que bloqueava o progresso do pais. Os antropélogos que, com Artur Ramos a frente, se em- penharam em valorizar ¢ dignificar a contribuicio negra no Brasil — o que se traduziu em muitas investigacdes validas fecundas — nem por isso deixaram de incorrer em andloga marginalizacdo histérica das revoltas escravas, Pretenderam que 0 objetivo dos rebeldes consistia apenas em preservar a sua heranca africana, néo em lutar contra a escravidéo como sistema econémico e social. Em outras palavras, no per- eeberam 0 contetido politico e revoluciondrio das revoltas es- cravas. ‘Nao foi menos alienada a posigéo do revisionismo histé- rico brasileiro, do qual seria de se esperar que, por coerén- cia ideolégica ¢ metodolégica, se debrucasse atentamente s0- bre os movimentos das grandes massas oprimidas do regime escravocrata. Esse revisionismo simplesmente ignorou as re- voltas escravas — tal como se jamais houvessem acontecido — pretendendo que as tinicas ‘manifestacdes libertérias da Colénia e do Império foram as das insurreicées de homens livres. Na verdade, perdeu de vista 0 fato essencial de que essas insurreigdes livres néo apenas deixavam de dtacar a base objetiva da opressio e do atraso vigorantes no Brasil — 0 escravismo como sistema econdmico e social — como em iltima insténcia the emprestavam a sua adesio. ‘Nenhuma categoria social lutou de forma mais veemente e consegiiente contra a escravidéo que a dos préprios escra- vos. Nem por terem fracassado em seus esforgos deixaram de condicionar em grau considerével o processo hist6rico brasileiro, em quase todos os seus aspectos mais importantes. No dia em que forem resgatadas da grande face oculta bra- sileira — face mais ampla e importante que a visivel e ofi- cial — as revoltas escravas projetardo luz sobre um sem-néi- mero de contradicées histéricas que de outro modo sempre permaneceréo incompreensiveis. Na hist6ria das revoltas escravas brasileiras, a de Pal- mares ocupa lugar impar. Néo fol apenas a primeira, mas, também, a de maior envergadura. No decurso de quase um séeulo 03 escravos da entdo capitania de Pernambuco resis- tiram as investidas das expedicdes continuamente enviadas por uma das maiores poténcias coloniais do mundo. Proje- ta-se como o acontecimento dominante da histéria pernam- bucana na segunda metade do século XVII e como um dos mais sérios problemas que a administracio colonial lusitana teve de enfrentar no Brasil. Pois inimeras vezes a coroa admitiu francamente que a extin¢io de Palmares teve uma 12 importancia comparével & da expulsio dos holandeses. Co- mandadas por alguns dos melhores chefes militares da épo- ca, mais de trinta expedicées — provavelmente o nimero passou de quarenta — marcharam contra Palmares, no mais prolongado e rduo esforgo bélico da histéria colonial, & parte 0 da luta contra os holandeses. Na histéria das Amé- ricas, 86 perde em importancia para a de Haiti. Um histo- riador como Oliveira Martins, que certamente no pecava por simpatia para com os eseravos, viu em Palmares uma Ifada e batizou Macaco, a capital palmarina, de Tréia Negra. Ainda hoje, & distincia de quase trés séculos, seu acento Ii- bertério e ‘seu socialismo infuso suscitam emogéo e entu- siasmo. ‘Séo gigantescas, e, em muitos aspectos, insuperdveis, as Gificuldades para a reconstituicéo da histéria palmarina.” A primeira das dificuldades provém da pobreza das fontes. Se ‘@ pobreza jé 6 desalentadora em tudo que se refira ao sé- culo XVII, bem se pode imaginar como o seré quando se trate de revoltas escravas. Embora este livro retina mais material sobre Palmares que qualquer outro jé publicado, nem por isso esgotou as fontes, que tudo indica serem ainda numerosas nos arquivos portugueses. De qualquer maneira, certas lacunas jamais poderao ser supridas, como, por exem- plo, a da inexisténcia de fontes diretas dos proprios palma- rinos, pelo que somos forcados a nos contentar com as in- formagées provenientes dos seus encarnicados inimigos. repiblica negra seré sempre vista a distAncia e s6 fugaz- mente conseguiremos ’s vezes relancear o seu interior, Ademais, a histéria palmarina nio poderé ser feita sem © subsidio de estudos especiais e em profundidade do regime escravista brasileiro e, em particular, do pernambucano. Nada mais indispensével para um conhecimento exato da trutura econémico-social contra a qual lutaram os negros pal- marinos, Nao seré menos indispensével a histdria do tratico, que como se sabe ainda esté por fazer-se. Necessitaremos dela para determinar o peso demografico dos escravos, rastrear a sua extragdo geogréfica e étnica, e, enfim, descobrir 6 que havia de genuinamente africano na ‘organizagéo palms- rina, Nem assim, contudo, estario resolvidos todos os pro- blemas. Subsistiré o da histéria africana, que, a despeito dos progressos ultimamente realizados, dista muito de ser B 4 satisfat6ria, Por exemplo, como se vé dos trabalhos de Evans-Pritchard e Pathé Diagne, 0 que se sabe dos sistemas politicos africanos é muito vago e em certos aspectos quase nada. No entanto, sem um conhecimento exato dos mesmos ser impossivel qualquer concluséo definitiva sobre o que constituia heranga africana na organizacdo politica dos pal- marinos. Outro tanto se poderia dizer sobre a organizagdo econémica e social de Palmares. Este é, pois, um livro de ambigées limitadas, no pre- tendendo ser uma histéria de Palmares, na cabal acepcio do termo. Tal histéria ser& aqui mais entrevista que conheci- da, numa visio panorémica, lacunosa e fragmentéria: por fortuna, néo tanto que nos impeca de apreciar a sua impor. tincia hist6rica e sentir o seu poderoso sopro épico. HOMENS LIVRES E ESCRAVOS + illo parecia esta terra sono um retrato do terreal paraiso. — Fret Manuel Calado em 0 Yaleroso Lu- eldeno ¢ Trumjo da Liberdade, publicado fem Lisboa em 1648. L Nos fins do sééulo XVI — no se pode ainda estabelecer qzatamente 0 ano — mublevaram-te ot escravos_negros de um grande engenho de actiear localizado no extremo sul da Capitania de Pernambuco, Armados de folces, chucos ¢ aus, atacaram e dominaram amos e feitores. E assim, vi- ram-se senhores do engenho que fora tanto tempo o instru- mento da sua opressio. Mas quedaram perplexos: que fazer da liberdade que haviam conquistado? Nio ignoravam que se ficassem no engenho seriam ata- cados por tropas numerosas e bem armadas contra as qui seria imitil qualquer resisténcia, Bem sabiam que lhes se- ria impossivel manterem-se escondidos em alguma das pe- quenas povoacdes portuguesas espalhadas ao longo do lito- ral. Nem se sentiam tentados a repetir a malograda expe- riéncia de outros escravos fugitives que levantavam toscas moradas em pontos situados a escassas léguas da faixa lito- rinea. A tinica vantagem que esta iiltima solugio oferecia era a de se conservarem livres por um certo tempo. Pois, mais dia menos dia, seriam descobertos e capturados pelos eapitées-do-mato. N&o desconheciam que a tética empre- gada por esses rafeiros profissionais do escravismo era rigo- rosamente infalivel. Safam em busca dos fugitives e os ca- gavam pacientemente. Uma vez achados os escravos, podiam Teduzi-los facilmente gragas superioridade das armés. Fel- to isso, levavam os cativos de arrasto até os amos e recebiam a paga do servico prestado. 15 ee Tomaram uma resolucéo desesperada: buscar refigio na regio conhecida pelo nome de Palmares. ‘Niio se tinha conhecimento de que alguém ja houvesse penetrado naquela regido tenebrosa. Nesse tempo 0 povoa- mento da Capitania de Pernambuco néo arredava da costa e as suas lindes extremas para a hinterlandia nao excederiam provavelmente de vinte ou trinta léguas. Tudo o mais era terra incdgnita. Tal, sobretudo, o caso da remota zona de terras altas dos Paimares, uma imensa selva virgem que principiava na parte superior do rio Séo Francisco e ia ter- minar sobre o sertio do Cabo de Santo Agostinho. A abun- dincia de palmeirais dera o nome & regido. Descreve-a um documento do século XVII como “um sitio naturalmente &s- pero, montanhoso e agreste, com tal espessura e confusio de ramos, que em muitas partes é impenctrével a toda luz; a diversidade de espinhés e Arvores rasteiras serve de impedir 08 passos e intrincar os troncos”. Sabia-se que naquelas hhostis e incdgnitas paragens se ocultava um mundo animal de ongas, chacais, serpentes e mosquitos, todos uma ameaca mortal para o homem. Como todas as florestas tropicais, era falazmente dadivosa. A sua mesma exuberancia como que esmagava e oprimia a vida. O clima versétil oscilava entre frios rigorosos e estiagens implacdveis. Os préprios autée- tones haviam sempre evitado a regiéo. Os rebeldes concluiram que néo tinham muita escolha: ou a floresta, ou a reescravizagéo. Puseram-se em marcha com suas mulheres e suas ferramentas de trabalho. Mar- charam muitos dias antes de penetrar na selva densa e es- cura, Depois, foram abrindo caminho lenta e penosamente através de arvores monstruosas, cujas copas entrelacadas mal deixavam filtrar a luz. Galgaram e desceram serras. Até que, no topo de uma dessas serras, resolveram parar. Abri- ram clareiras na selva e edifiearam suas chocas cobertas de palha. Chamaram as chocas de mocambos — do quimbundo ‘mukambu — termo que depois os portugueses usariam para designar genericamente as povoacées construfdas nas matas ‘brasileiras pelos escravos fugitivos, Nio é provivel que tenham sido muitos os sobreviventes & longa e perigosa marcha pelas selvas palmarinas — conta a tradigio que o grupo inicial de rebeldes fora de quarenta ‘mas, qualquer que tenha sido o mimero, constitufram o 16 tion niicleo primitive da futura repiblica de Palmares, um Estado Negro que resistiu até o fim do século XVIII as incessantes e encarnicadas tentativas de destruicio empreendidas pelos senhores de escravos da capitania de Pernambuco. © primeiro nticleo de negros palmarinos se estabeleceu na Serra da Barriga, hoje situada no Estado de Alagoas. Ali comegou e, um século depois, acabou a epopéia palmarina. 1 A capitania fora doada em 1534 pelo rei de Portugal a um veterano das guerras no Oriente chamado Duarte Coelho, compreendendo a doacio sessenta léguas de litoral e dai pa- ra o centro sem limite marcado. Era pensamento do rei pro- mover a defesa e 0 povoamento do territério mediante um sistema que pode ser qualificado como um arremedo do clas- sico feudalismo europeu. Os poderes recebidos pelo dona- tério 86 no eram soberanos porque faltava o de cunhar moeda e as instrugdes régias determinavam que na colénia haveria fidalgos, artesios e servos, tudo mais ou menos & maneira da sociedade portuguesa do século XVI. Uma das importantes diferencas consistia em que 0 pa- pel de servos fora reservado aos autéctones, néo a campone- ses de Portugal, ¢ foi precisamente nisso que falharam os planos do monarea. Quando, por exemplo, em 1536, Duarte Coelho se transferiu para Pernambuco com familiares e de- pendentes a fim de tomar posse da doacdo, péde rapidamente concluir que os indigenas nao serviam para o papel que lhes fora atribufdo. No inicio estabeleceram com o donatério re- lagdes completamente pacificas e amistosas, deixando-se con- verter ao cristianismo, ajudando no devassamento do terri- tério e até trabalhando de bom grado nas primeiras lavouras de subsisténcia. Mas explodiram numa feroz rebeldia quan- do viram que o donatério queria apenas despojé-los das suas terras e das suas ancestrais liberdades. Entéo, como em toda @ parte nas Américas, seguiram-se longos anos de es- forgos tio infiteis como sangrentos para sujeitar os indige- nas. N&o que estes fossem natural e insuperavelmente re- fratérios & vida sedentéria e ao trabalho organizado. O ca- 80 & que ndo se achavam historicamente preparados para a serviddo ou a escravidio, A diferenca dos astecas, dos incas e dos mesmos africanos. Nas suas sociedades primitivas, ainda néo se haviam formado minorias dominadoras que os ” tornassem submissos & opressio ¢ & exploragio, facilitando assim a tarefa dos colonizadores. Se os jesuitas tiveram éxito na sua deslumbrante experiéncia das missdes guaranis, foi exatamente porque criaram uma organizacdo econémica e social inspirada em instituicdes familiares aos indigenas: propriedade coletiva da terra, trabalho cooperative e igual- dade econémica. Partindo das peculiaridades histéricas dos indigenas, os jesuitas conseguiram elevé-los a téenicas su- periores de producéo e a formas de vida civilizada. Quando um belo dia os indigenas se aliaram aos entre- lopos’franceses — que nas suas incursdes ao Brasil sempre souberam explorar habilmente o édio dos autéctones aos por- ‘tugueses — a situago do donatrio se tornou critica. Pra- ticamente confinado a um precério fortim no litoral, impe- trou ao rei que Ihe mandasse camponeses lusitanos. Nao eram poucos os que nesse tempo queriam sair do reino para iniciar nova vida em terras distantes. Bem que precisavam emigrar. Os primeiros anos do reinado de D. Joo III foram de grande miséria popular em conseqtiéncia de mis colheitas, a que se seguiram pestes devastadoras. A coroa, o clero e 2 nobreza haviam monopolizado quase todas as terras agricolas, das quais duas tercas partes se achavam fincultas. “Os lavradores — escreve 0 historiador Luis Au- gusto Rebelo da Silva — preferiam ver convertidas em de- sertos as propriedades menos produtivas a regé-las com 0 suor do rosto para que a mio do fisco, do clero ou dos senho- yes, arrebatassem da eira ou dos lagares todos os frutos do seu trabalho”. Os camponeses que emigraram para o Brasil sofreram a amarga decepcio de ver desatendidas pelo donatirio as suas duas principais exigéncias — terras e liberdade pessoal. No. bastasse isso, 0 donatério freqlientemente pren- dia, agoitava e até enforcava os recalcitrantes, 0 que nfo era para surpreender, pois um veterano das guerras no Oriente devia entender muito pouco de tudo que néo fosse pilhagem e violéncia. Pelo que, os camponeses lusitanos chegaram & concluséo inteiramente sensata de que a servidéo na patria era preferivel 4 da distante, perigosa e indspita coldnia, A solugio dbvia, ja adotada com brilhantes resultados na ‘Madeira, nos Agores, em Sao Tomé, na Hispaniola e na Nova 18 Espana, seria a importagio de escravos africanos. Os ca- naviais floresciam e as colénias prosperavam onde quer que os negreiros portugueses descarregassem as suas levas de eseravos africanos. No caso do Brasil, contudo, a dificul- dade residia no fato de haver na primeira metade do século superprodugéo mundial de agicar, Ymico produto capaz de tornar compensador 0 trifico de africanos, No comego da segunda metade do século, chegou final- mente a vez do Brasil. A Europa enriquecida pelas desco- bertas sentiu de sibito uma pantagruélica fome de acécar. Capitais ¢ técnicas de origem predominantemente néo-portu- guesa afluiram para Pernambuco e Bahia, e nas suas pe- gadas apareceram os escravos africanos, pois como assinalou © historiador José Antonio Saco, “entre a produgio de ag- car e 0 comércio de negros houve desde o principio to es- treita vineulagéo que tudo o que influfa em aumentar ou di- minuir aquela, dava nesta um resultado equivalente”. Fecundadas pelo trabalho negro, as capitanias de Per- nambuco e Bahia ganharam vida. Ao longo do litoral flo- Tesceram os canaviais e se multiplicaram os engenhos. Pe- los fins do século XVI, Pernambuco e Bahia jé sobressafam no mercado mundial como os maiores produtores de aciicar. E para que isso fosse possivel, os traficantes descarregavam nas costas brasileiras uma média anual de cinco mil negros. Nasceu assim o sistema escravista brasileiro, o mais s6- ido, recaleitrante e longevo das Américas, segundo 0 evi- denciam circunstincias tais como a de ter sido o Brasil a Giltima nagio a suprimir o tréfico, a declarar livres os ven- tres e a abolir a escravidéo. Ir Como era Pernambuco nos fins do século XVI? Qual a sua organizagéio econdmica ¢ social? Como viviam seus ‘ha- bitantes e quais os seus costumes? © viajante europeu que pela primeira vez visitasse a capitania, nfo poderia deixar de sentir-se algum tanto desa- pontado,' Sob a sugestio de erdnicas, correspondéncias ¢ re- 0 Intos de marinheiros, formara a imagem de uma coldnia de esplendor e riqueza sem iguais. E 0 que agora deparava com os proprios olhos era um quadro de pobreza e atraso, mesmo & luz dos padrées de Portugal, pais que jé entéo se notabi- lizava como 0 arcaismo da Europa. Desembarcando no porto de Recife, um ancoradouro magnificamente abrigado mas de acesso dificil e perigoso, 0 viajante conheceria logo a povoacio. Situada na zona por- tudria e assentada nas terras baixas de uma planicie aluvio- nal de ilhas, mangues e pauis, era entdo pouco mais que um miserével aglomerado de armazéns, chocas e umas duzentas casas. A povoagéo se tornara conhecida pelo nome de O Po- ‘vo e era realmente 0 povo, pelo menos tal como o entendiam os portugueses, que nela vivia: mercadores, pequenos funcio- nérios, artesios, negros forros, soldados. seria impro- vavel que 0 viajante presenciasse um desembarque de escra- vos chegados da Africa. Trés séculos depois a cena seria descrita de maneira impressionista, mas nem por isso in- fiel, por Oliveira Martins, historiador que por certo nao sen- ‘tia maiores simpatias pelos negros, como eabe inferir do fato de que os considerava “um tipo antropologicamente inferior, nio raro proximo do antropéide, e bem pouco digno do nome de homem”. Os eseravos haviam navegado trés ou quatro meses em condigdes atrozes. Desembarcavam do navio ne- greiro: € A luz clara do sol dos trépicos aparecia uma co- Iuna de esqueletos cheios de pistulas, com o ventre protube- rante, as rétulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bi- chos,'com 0 ar parvo e esgazeado de idiotas. Muitos néo se tinham de pé; tropecavam, cafam, e eram levados aos om- bbros como fardos. Despejada a carga na praia, entregues os comhecimentos das pecas-da-India 20 caixeiro do negreiro, a fiimebre procissio partia a internar-se nas moitas da costa, para ai comecarem as peregrinagoes sertanejas; e 0 capitao, voltando a bordo, a limpar 0 pordo, achava os restos, a que- bra da carga que trouxera; havia por vezes cingilenta e mais eadiveres sobre quatrocentos escravos”. Se precisasse de um criado, o viajante teria de alugar ou comprar um negro. Tanto poderia alugé-lo a algum dos muitos particulares que faziam meio de vida da locago de eseravos, como adquirislo aos comerciantes que expunham a » mercadoria A porta do estabelecimento. © que certamente tentaria em vao, seria encontrar algum homem livre, fosse branco ou negro forro, que se dispusesse a desempenhar qual- quer funcéo propria de escravos. ‘A imunda, fétida e promiscua Recife seria considerada intolerével pelo viajante europeu. Essa povoacio somente se converteria num lugar razoavelmente habitével depois da sua ocupacio pelos holandeses, que construfram belas residéncias, abriram ruas ¢ ligaram as ithas por pontes, permitindo-lhe iniciar a carreira que faria dela a invejada capital de todo © nordeste brasileiro. Se quisesse conhecer um nécleo popu- lacional que oferecesse alguma semelhanca com uma_verda- deira cidade, o viajante teria de andar alguns quilémetros até Olinda, sede oficial da capitania. Construida a escassa distancia do porto e sobre uma coluna sobranceira ao oceano da qual se descortina um panorama fantasticamente belo, era a residéncia dos altos funcionérios, do clero e dos mais abas- tados senhores de engenho. Honrava-se de possuir quatro conventos de frades e um de religiosas, sete igrejas e algu- mas importantes edificagdes piblicas. Contava 700 casas de pedra e cal e mais de 20 engenhos com quatro a cinco mil escravos, Viajando ao longo da costa tropical e semi-érida, co- mheceria nficleos de povoamento que, embora denominados pomposamente de “vilas”, nfio passavam na realidade de al- deias, geralmente mediocres e 0 mais das vezes miseriveis. Essas vilas representavam o centro escassamente povoado de reas mais amplas denominadas distritos. Pelos distritos se achavam disseminados os engenhos de aciicar e as plan- tages de cana. Em rigor as povoagdes sequer obede- ciam ao tipo clissico da aldela européia — as casas agru- las em grande mimero numa pequena area. O engenho que era o verdadeiro centro da vida coletiva. Nas po- ‘voagées erguiam-se uma igreja, freqiientemente um convento, duas ou trés edificagées piiblicas e um reduzido nimero de residéncias ou estabelecimentos comerciais. Isso era tudo. Nada possivelmente surpreenderia mais o viajante que © fato de no ver na coldnia sinais das riquezas tio faladas na Europa, Observaria, por exemplo, que, a despeito de pos- suirem extenses de terras enormemente grandes e explora- rem o trabalho de centenas de escravos, os senhores de en- 21 genho levavam uma existéncia até certo ponto modesta. A ‘menos que proviesse das regides mais empobrecidas de Por. tugal ou da Espanha, o viajante reputaria inveridicas as ver- sdes que celebravam a vida opulenta e o Iuxo oriental dos senhores de engenho. Havia certamente um ou outro senhor de engenho que vivia em tais condigdes, porém isso nfo au- torizava de modo algum a freqiiente generalizacéo de que todos desfrutavam de idéntica ou similar situacio. Geral- mente falando, nosso viajante constataria, como trés déca- das depois Johannes Van Walbeeck e Henrique de Moucheron, altos funcionarios da Companhia das Indias Ocidentais, que os senhores de engenho se contentavam “com uma casa de barro, contanto que vé bem o seu engenho e a sua cultura”; que em suas casas possuiam “poucos méveis, além daqueles que so necessirios para a cozinha, cama e mesa, e nfo po- dem ser dispensados”; que os homens “usam pouco de ves- tidos custosos, vestem-se de estofos ordindrios ou ainda de panos”; que as senhoras de engenho se vestiam custosamen- te, mas as jéias que usavam eram em geral “falsas”; que a alimentacio'consistia de “um pouco de farinha e peixe seco”. ‘Uma vez que o trabalho escravo realmente produzia grandes riquezas, impunha-se a concluséo de que tais rique- as se escapavam por entre os dedos dos senhores de enge- nho. Se nosso viajante fosse algum dos afortunados merca- dores holandeses, alemées, italianos e, em menor escala, por- tugueses, que por esse tempo se enriqueciam com a produ- lo das ‘colénias americanas, nfo teria dificuldade em com- preender as causas do singular fenémeno. A principal resi- dia no diabélico mecanismo do coméreio triangular: a expor- taco de artigos de baixo preco da Europa para a Africa Ocidental, a troca destes artigos por negros, a permuta de negros por acicar na América e, finalmente, a venda do agicar na Europa. Com o negro adquirido na Africa em troca de uma pistola ou alguns litros de conhague, podia-se comprar na América pouco mais ou menos uma’ tonelada de acicar, a qual por sua vez rendia na Europa uma pingue soma de dinheiro. Isso ndo era tudo. Ao passo que a co- tagio do acticar declinava incessantemente nos portos de em- barque, aumentavam na mesma ou em maior proporeio os pregos dos escravos e das manufaturas européias. De modo que os senhores de engenho saiam da operagdo quase inva- riavelmente endividados. Para usar a expressio dos econo- n mistas, a balanca de pagamentos era desfavorével & colénia, Isso explicava 0 fato de que na capitania praticamente nfo houvesse dinheiro e que todos se queixassem da “falta de moeda”. Péde por isso um historiador econdmico de nossos dias, Fréderie Mauro, chegar 4 conclusio de que nos enge- nhos de agtiear 0 luero era “praticamente nulo e a empresa deficitaria”. Nosso viajante necessariamente daria razio a um frade chamado Manuel Calado, que viveu em Pernambu- co na terceira década do século XVII. Segundo Calado, os poderosos e soberbos senhores de engenho de Pernambuco es- tavam reduzidos & ingloria fungo de “feitorizar” escravos em beneficio exclusivo de distantes e invisiveis interesses de além-mar. Iv A experiéneia feudal do rei Joo IIT nfo deixou outra conseqiiéncia perdurdvel além de algumas superfetagdes juri- dicas e institucionais sem importancia significativa na vida econdmica e social. Essas superfetagdes, contudo, estavam destinadas a sobreviver tenazmente no vocabulario das auto- ridades coloniais e dos moradores de Pernambuco. Foi o caso, entre outros, da nomenciatura empregada para designar as classes da sociedade colonial. Se 0 viajante vomasse tal nomen: clatura ao pé da letra, seria induzido a conjeturar — como depois o fizeram sucessivas geragées de historiadores brasi- leiros — que aquela era uma sociedade feudal, quando se tratava, na_verdade, de uma sociedade escravista na mais cabal acepedo do termo, ou melhor, essencialmente um sis- tema econdmico e social baseado na propriedade e explora- cdo de escravos. Os homens se dividiam fundamentalmente em duas ca- tegorias: livres e eseravos. A separacio entre livres e es- eravos era insuperdvel, mas havia uma estratifieacéo social igualmente rigida na populac&o livre. No alto, os senhores de engenho, uma minoria rapace e tirénica de menos de trinta familias entrelacadas pelo sangue e pelo casamento. Dentro das limitagses do estatuto colo- nial, eram quase onipotentes. Haviam monopolizado as ter- 2B ras jé desbravadas, possuiam a maior parte dos escravos, serviam-se da massa de indios domesticados, ocupavam og altos cargos piblicos, dominavam os érgios politico-adminis- trativos locais, controlavam a justica e comandavam as mille cias. Tinham’o érgio do seu poder politico nos chamados “senados da cémara”, cujos membros se elegiam anualmen« te entre os “homens ‘bons da terra”, isto é, os proprios se nhores de engenho, Conquanto instituidas’ pela coroa com jurisdicdo restrita aos assuntos administrativos locais, a8 ee maras se adjudicaram as mais amplas atribuicdes, quase no havendo inatéria sobre a qual nao legislaSsem, chegando mesmo a invadir a esfera de competéncia dos governadores régios. © poder econémico dos senhores de engenho basea- va-se na propriedade de terras, de engenhos-reais e de es eravos. Tinham extensdes de terras desmedidamente gran- des, das quais s6 uma fnfima parcela era cultivada, fosse por eles préprios, fosse por arrendatrios chamados “lavradores de partido”. ' Os engenhos-reais se distinguiam dos comuns — chamados “engenhos de trapiche” — no fato de serem movidos a égua, disporem de maquinaria mais completa, de grande mimero de instalacdes acessérias, de téenicos na fa- Bricacéo de actear e sobretudo de um’ niimero elevado de escravos — 100 a 300 escravos negros. Terras, engenhos escravos formavam um complexo econémico insepardvel. No intuito de preservar esta unidade patrimonial, a lei eatabe- lecia que a justica no poderia penhorar nada’ das terras, do engenho ou’ dos escravos, nem separé-los em partes, salvo nos casos de arrematagio das pracas. Abaixo dos senhores de engenho vinham os “lavradores de partido”, aos quais os senhores de engenho arrendavam terras por prazo de oito ou mais anos. As condicdes do ar- rendamento eram extremamente duras. O lavrador assumia 8 obrigacdo de moer a sua cana no engenho-real, deixando em Pagamento ao senhor pelo menos metade do agiear produ- zido. Expirado 0 prazo do arrendamento e ndo renovado este, ficavam pertencendo ao senhor todas as benfeitorias da plantaco. O senhor concedia empréstimos ao lavrador s0b a leonina condigéo de que este Ihe vendesse antecipada- mente ¢ a preco vil toda a producio futura. Depois dos se- nhores de engenho, cram os lavradores de partido os maiores proprietérios de escravos, possuindo geralmente entre 20 a 50 escravos. Socialmente, gozavam de um prestigio 86 su- 4 wrado pelo dos senhores de engenho, a ponto de as vezes Forem seesso aos senados da edmnara, Seguiam-se os grandes mercadores de Recife, que se ocupavam na importagio de escravos e manufaturas, na ex- portagio de agiicar e fumo, na arrematacéo e cobranca de tributes, e em operagées financeiras de mtituo. Nao goza- vam de’uma situacdo social e politica compativel com 0 set peso econémico. Exemplos: nao partilhavam os privilégios dos senhores de engenho, do clero, dos militares e dos fun- ciondrios graduados; nao tinham 'acesso as cAmaras nem exerciam cargos administrativos, judiciérios ou eclesidsticos; nao dispunham de garantias reais em seus negécios, como, por exemplo, tornar penhoraveis e exegilivels por dividas as terras pertencentes a senhores de engenho. A preciria si- tuago destes homens de negécios melhor ilustrada pelo episédio ocorrido em 1592 com o cristéo-novo Joao Nunes, provavelmente entéo 0 homem mais rico da capitania. Nunes era credor, por grandes somas, dos poderosos senhores de Cristévéo Lins, Felipe Cavalcanti e Cristévao Vaz do Bom Jesus. Quando tentou forcar os devedores a saldarem ‘08 seus débitos, eles simplesmente o denunciaram ao Santo Oficio. Nunes foi preso e conduzido para Lisboa, de onde aparentemente nunca mais voltou. No principio do século XVII, o latente antagonismo entre senhores de engenho e grandes mercadores fez explosio num conflito sangrento co- mheeido como Guerra dos Mascates, no curso do qual os se- gundos tentaram sem éxito arrebatar aos primeiros a supre- macia politica da capitania, Mas seria errneo supor que esta burguesia mercantil constituisse uma classe ta interessada em suprimir o sistema escravista. A parte de ser ela propria um produto das relacdes comerciais da economia escravista colonial com o mercado mundial, tinha seus interesses e sua sorte estreitamente vinculados ao siste- ma, Na ordem decrescente da pirimide social, apareciam de- pois os artesiios ou, como se dizia, oficiais’ mecdnicos. Se ‘bem que legalmente’estivessem organizados em oficios cor- porativos nos moldes medievais, distavam muito de ser mo- Gestos trabalhadores auténomos. Quando, por exemplo, 0s documentos coloniais aludem a “pedreiro”, devemos pensar em um empreiteiro ou mestre de obras contratado pela coroa mediante alto salirio. Na maioria dos casos traziam do rei- 28 no algum capital e passavam logo a partilhar o generalizado desprezo por todo tipo de trabalho manual. Compravam e eravos aos quais ensinavam 0 oficio e depois se limitavam a recolher os jornais. A técnica que traziam do reino j@ era de si rudimentar e depois, naturalmente, néo experimentava progressos no regime de trabalho escravo. Os que faziam fortuna regressavam ao reino, ou compravam terras para se elevarem na escala social. No perfodo anterior & invasio holandesa chegou a hi ver uma classe mais ou menos numerosa de pequenos pro- prietérios Turais, chamados “pequenos sesmeiros”. A congé- nita e insuperdvel incompatibilidade entre a pequena proprie- dade familiar e o latifindio escravista condenava-os a0 de- Por volta de 1630, 0 processo de decompo- sgoria social “jé se achava adiantado e se completou rapidamente no curso da ocupacéo holandesa. Convertidos em agregados, rendeiros, parceiros e meciros, anunciavam jé na segunda’ metade do século XVII a futura massa de do quadro rural brasileiro. No: dizer de Rocha Pombo, “ficaram s6 os grandes proprietérios_e em volta destes a 'vassalagem mediante alguma coisa que nio era propriamente salério, mas um parco cibo para o dia, esmola somitica e amarga”. Os livres pobres figuravam em dltimo lugar na escala dos homens livres, acima, apenas, dos indios e dos escravos. Quando os documentos coloniais escrevem “povo”, deve- mos entender comerciantes, arteséos e, as vezes, até mesmo senhores de engenho. Os livres pobres eram designados sob © termo pejorative de “plebe”, “vulgo” ou “ralé”. Nessa ca~ tegoria social havia brancos,’ mamelucos, mulatos e negros forros. Como regra, essa gente padecia fome. O cronista Vilhena descreveu-os como uma “congregacao de pobres fa- miliarizados com a fome”. A uma fome permanente € silenciosa, padeciam fomes tragicas por ocasiéo das pestes e das secas. Isso se devia a que em sua maioria nao exer- ciam qualquer ocupacio econdmica, nem podiam exercé-la, pois por um lado era imutavelmente limitado o mimero de ‘empregos assalariados, e, por outro lado, estavam impedidos de desempenhar misteres ce proprios de escravos. Consoante frisou J. H. Parry, os escravistas das Américas ti- nham a sua Lei de Gresham: o trabalho eserevo expulsava 6 o trabalho livre. A escravidio degradava todo e qualquer trabalho manual. Individuos que em Portugal haviam sido criados de servir, recusavam-se a isso no Brasil apenas porque se tratava de ocupacao de escravos. Nas pa- lavras de Vilhena, “‘tinham por melhor sorte o ser vadio, 0 andar morrendo de fome, e vir parar em soldado e as vezes em ladrao, do que servir um amo... ¢ isto por nfo fazerem © que os negros fazem”. Sucedia outro tanto com as mu- Iheres: “A filha do homem mais pobre, do mais abjeto, a mais desamparada mulatinha forra, com mais facilidade iréo para o patibulo do que servir a uma duquesa, se na terra houvesse, e este 6 0 motivo porque se acham’ nesta cidade tantas mulheres perdidas e desgracadas”. A mendicancia e a prostituiciio envileciam menos que o exercicio de trabalho proprio dos escravos. Nao constituindo uma verdadeira clas- se social unida pelos interesses e pelas aspiracdes, os livres pobres eram incapazes de expressar politicamente 0 seu des- contentamento. Nao se encontra na histéria colonial brasi- leira um 86 exemplo de iniciativas revolucionérias tomadas pelos livres pobres. ‘A massa de indios domesticados encontrava-se numa si- tuacdo muito especial. Colocados pela lei sob a jurisdicao dos padres — jurisdicéo omnfmoda no espiritual e parcial no temporal, como curadores e tutores do gentio — sua condigio era a de “meio livres, meio escravos”, como disse o padre Anténio Vieira. Na pritica, a sua condic&o se distinguia da dos escravos negros no fato de que néio se Ihes arrebatava a to- talidade da sua produc&o. Mas poucos eram os que desem- penhavam fung&o econémica, pelo comum como pescadores ou cagadores. Onde a massa de indios domesticados encon- trava a sua principal ocupacdo, era nas forcas destinadas a manter submissos 0s escravos negros e a proteger a domi- nagio social e econémica dos senhores de engenho. Todos estes mantinham em seus dominios formagdes paramilitares de fndios e mamelucos. Nas expedigdes organizadas para re- primir as rebelides escravas sempre preponderaram os indios € 08 mamelucos. significativo que Felipe Camarao, 0 in- dio mais ilustre da histdria brasileira, tenha iniciado sua carreira numa expedicao despachada pelo governador-geral Diogo Botelho contra os negros fortificados nos palmares do rio Itapicuru. Inimeras vezes, em Pernambuco e na Bahia, os jesuitas emprestaram indios domesticados — s6 em Per- ‘BIBLIOTECA n DE cieNcMs HUMANA: EDUCAG) nambuco havia no principio do século XVII mais de 8 mil indios em aldeias jesuiticas — para expedicdes contra escra- ‘vos sublevados. De resto, na histéria colonial brasileira tu- do persuade que, tendendo a aumentar perigoszmente o ni mero de escravos negros, a minoria dominante tratava de ampliar a sua base social mediante a egregagio ao status quo dos indios domesticados. Este 0 claro significado de ‘uma série de medidas, entre as quais se destaca a tio falada carta régia de 1717, que, consagrando uma situagio de fato havia muito vigorante, legitimou e inequivocamente encora- jou as de brancos ¢ indios e, mais que isso, declarou ‘os seus filhos e descendentes “habeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade”. Para que se meca toda a importéncia de tais disposigées, convém frisar que a legisla- lo colonial portuguesa sempre inabilitou para os cargos funeSes piblicas os portadores de qualquer dose de sangue africano. Nem mesmo os jesuitas deixaram de discriminar contra os negros e mulatos, excluindo de seus colégios os estudantes pardos “sé pela qualidade de pardos”. Era fre- qiiente a perfilhacio de bastardos de sangue indigena, mas néo se via um amo perfilhar o fruto de suas mancebias com negras. Bem pelo contrério, os amos mantinham tais filhos no cativeiro, como se pode ver do fato de que, em 1816, os mulatos formavam mais ou menos 10% da populagio escrava Brasil. v Em iltimo lugar, os escravos. ram a maioria da po- pulagéo e suportavam quase sozinhos o fardo da produgio econémica. ‘Aos africanos se impOs no Brasil a escravidio em sua forma pura. O escravo constitufa uma propriedade total e ilimitada do amo, privado de quaisquer ‘direitos e submetido a uma relagéo absoluta de dependéncia. ‘Néo tinha existéncia civil, vale dizer, nio era pessoa natural capaz de direitos e obrigagdes. As Ordenagdes Filipinas — recopiladas por ordem de Filipe I depois da anexagéo de Portugal 4 Espanha em 1580 — regulavam a compra e venda de escravos no mesmo capitulo dedicado aos animais, & digno de nota que essa compilacéo legislativa 2B | ndo se ocupava apenas de escravos negros ou mouros, porém, igualmente, de escravos brancos, situacéo bastante familiar no Portugal do século XVI, sobretudo nos mosteiros e con- ventos. O escravo podia ser vendido, alugado, penhorado, testado e, finalmente, morto. O amo possufa o fruto que ainda se gerava no ventre da mulher. A lei hipotecéria do Império andou mais longe, estipulando que o senhor podia hipotecar, com a escrava, seus filhos futuros, disposicio essa defendida no parlamento brasileiro ainda em 1870 pelo ju- rista Barros Cobra, para quem “o fruto do ventre da escrava pertence ao senhor desta t&o legalmente como a cria de qual- quer animal do seu dominio”. Outro jurista e parlamentar, Pereira da Silva, comparou 0 escravo ao “fruto da arvore, 0 produto da terra, a colheita da sementeira”. O padre André Joo Antonil, provincial dos jesuitas e reitor do colégio da Bahia no comeco do século XVIM colocava em pé de igual- dade “escravos, cavalos, éguas e bois”. Legalmente, s6 ha- via duas maneiras do escravo adquirir a liberdade: pela morte natural ou pela alforria. Tedlogos e juristas se empenha- vam em intermindveis controvérsias para saber se em caso de ressurreicio 0 escravo conservava a liberdade adquirida através da morte natural. O padre Bremeu publicou longa dissertacdo na qual tratava de demonstrar que, se 0 escravO ressuscitasse, no perderia a liberdade adquirida pela morte, ficando sujeito, téo-somente, aos castigos que Ihe haviam sido impostos quando vivo. No Brasil nunca houve sequer um “Code Noire". Vez por outra, @ coroa exortava os amos a dispensarem melhor trata- mento aos escravos, mas, na prética, o principio do utere et abutere regia de maneira irrestrite. Nao havia qualquer limite & durac&o do trabalho do escravo, que se estendia da aurora & noite, tirando-se-lhe quinze e até mais horas 20 dia. Labutava domingos e feriados. Em rigor s6 desfruta- va de cinco dias de repouso ao ano: Natal, Wpifania, Péscoa, Ascenso e Pentecostes. Sabemos por Frei Domingos do Loreto Couto que essa situagio chegou a suscitar escripulos religiosos: sendo o escravo batizado e cristo, nfo estava ompreendido na obrigacéo de guardar o descanso dos do- mingos e dias santificados? A autoridade eclesiéstica li- qiiidou a controvérsia com o argumento de que as necessi- dades da produgio justificavam o infringéncia do mandamen- to biblico, Na economia escravista, era anti-econdmico destinar ter- ras e homens A cultura de géneros alimenticios. Por isso, 0 eseravo morria de fome em meio a riqueza que o rodeava ¢ que fora fruto do trabalho dos seus bragos. Apenas um que outro amo dava ao escravo um dia da semana para o cultivo de uma roca de mandioca. Conta o padre Antonil que muic tos escravos se alimentavam de raizes e com freqiiéncia por diam ser vistos rondando a casa do amo para suplicar algum alimento. Tnevitavelmente, os escravos apelavam para toda classe de ardis a fim de aplacar a fome. Exemplo: no tra balho noturno das moendas, sorviam &s ocultas o azeite doce que iluminava as lamparinas, Descoberto o ardil, passaram os amos a adicionar ao azeite um dleo nauseabundo e amargo “para que os negros nio lambessem os candeeiros”, segundo frei Vicente do Salvador. A roupa que recebiam de tempos em tempos, consistia em calges de fazenda grosseira. Ti- nham por moradia a’ senzala infecta, acanhada e promiscua. termo médio de vida dos escravos proletérios que tra- balhavam nos canaviais e engenhos nao excedia provavel- mente de cinco anos. Calcula-se que uma quinta parte do plantel tinha que ser renovado todos os anos. Uma vez que 0s traficantes s6 embarcavam negros jovens e em per- feito estado fisico — uma verdadeira “elite biolégica”, como disse um antropélogo — cabe admitir que essa elevada taxa de mortalidade provinha fundamentalmente das atrozes con- digtes de vida a que eram submetidos. Cifrava-se em 70% 80% a mortalidade infantil por ocasiéo do parto, afora os abortos praticados pelas negras “s6 para que nfo cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”, eonforme salienta o padre Antonil. Dai que fossem raras as criancas, principalmente nas plantacdes e nos engenhos. E, naturalmente, a populagéo negra néo podia crescer. ‘Acode aqui uma pergunta Iégica: se o escravo represen- tava a mais importante aplicacdéo de capital do senhor de engenho — podese calcular que o plantel de escravos repre- sentava entre 60% a 70% do valor de um engenho de aci- ear — como explicar-se que nio houvesse a preocupacéo de prolongar a vida daquela preciosa miquina de trabalho? ‘Mesmo admitindo a resposta dada no principio do século XIX por um senhor de engenho pernambucano ‘ao viajante inglés Henry Koster — que os Iucros produzidos pelo escra- 0 | 3 | vo 0 compensavam folgadamente dos ébitos — a pergunta continua valida: de qualquer modo, nao pagaria & pena pro- longar a vida do escravo? Note-se, em primeiro lugar, que depois de certa idade © escravo se tornava anti-econémico. Com freqléncia aos trinta anos estava fisicamente liqttidado, ou, pelo menos, des- qualificado para o terrivel trabatho do canavial ou do enge- tho. 0 valor do escravo declinava entio @ pouco mals ou menos uma terca parte do valor de um negro recentemente desembareado. Mais importante, passava a representar um peso morto no orgamento do amo, néo valendo a comida que comia. A partir daf, o amo tratava de se livrar daquela boca inétil. Crdnicas histéricas falam de amos que mands- vam matar o escravo improdutivo, mas o lente mais comum consistia em alforrié-lo, Nas condigdes da vida co- lonial, essa alforria no constitufa uma desgraga menor que a do ‘ativeiro. Como o escravo néio estava preparado para exercer oficios assalariados, nada mais Ihe restava que es- tender a mio a caridade piblica. Luiz dos Santos Vilhena descreve os forros entregues & mendicéncia, egos, aleljados, velhos © estropeados”. viu assim, nos portais das igrejas ¢ dos conventos. Em segundo lugar, o sistema do chamado “comércio triangular” impunha ao senhor de engenho a compra de sempre mais escravos, independentemente de suas necessi- dades econémicas. O senhor de engenho estava submetido a uma irremedidvel contradic&o: se nfo comprasse escravos 40 traficante, este » seu turno néo Ihe compraria o agicar. ‘Nio se imagine que a categoria social abrangida sob o termo genérico de “eseravos” formasse um conjunto homo- géneo. As excruciantes cargas do sistema pesavam quase ‘todas sobre a massa de homens e mulheres ocupados na la- voura canavieira (os “escravos de enxada e foice”) e no fo. brico de agiicar. Compreendiam pelo menos trés quartas partes da populagéo escrava e, naturalmente, era neles que mais viva crepitava a chama da revolta. A eates escravos os colonos chamavam de “bocais”, para distingui-los dos “ladi- Chamavam-se “ladinos” os escravos dotados de aptidio para certos misteres especializados. Tal 0 caso dos que pres- tavam servicos como barqueiros, carreiros, oleiros, vaqueiros, 31

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