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1. A QUE SAO FIEIS TRADUTORES E CRITICOS DE TRADUGAO? Paulo Vizioli ¢ Nelson Ascher Discutem John Donne! If the translator neither restitutes nor copies an original, it is because the original lives on and transforms itself. ‘The translation will Wuly be a moment in the growth of the original, which will complete itself in enlarging itself [..J And if the original calls for a complement, it is beca- se at the origin it was not there without fault, full, com- plete, total, identical to itself, From the origin of the the original to be translated there is fall and exile. Jacques Derrida “Des Tours de Babel” I. PRELIMINARES Em 29 de abril de 1985, 0 jornal Folha de S. Paulo publicow uma resenha assinada por Nelson Ascher sobre Jolin Donne: O Poeta do Amor e da Morte, antologia biliny da por Paulo Em 5 de maio do mesmo ano, a Folha publi- cou a réplica de Vizioli e, no domingo seguinte, a tréplica do critico Ascher. ‘As questées centrais que nutriram essa polémica sio tam- bém fundamentais para aqueles que se dedicam ao estudo ¢ A pratica da traducio. A tarefa do tradutor, como a tarefa do eriti- co de traducio, é norteada por preocupagées relativas a uma pre- tensa “fidelidade” devida ao chamado texto “o: im Entretanto, o que em geral se omite na tentativa de se atingir ou avaliar essa “fidelidade” é exatamente 0 status do original. Quan- 16 4 Que Sao Fiéis ..? do avalia uma traducio, estard o eritico considerando o mesmo “original” que 0 tradutor? Ou, em outras palavras, concorda- riam critico ¢ tradutor a respeito dos significados do texto de partica? E em torno dessa pergunta que se desenyolve a reflexio que da corpo a este trabalho. Através da anilise da polémica Vizioli x Ascher, convido o Icitor a repensar as questdes da fidelidade em tradugio ¢ da avaliacdo de textos traduzidos, a partir de wn formulagio do conccito de texto “original” I. PERSPECTIVAS TEORICAS Ha alguns anos, venho tentando desenvolver uma reflexio s tedricos da traducio que se coloca em (© a0 conceito tradicional de texto “original” ¢, conseqiientemente, ao conceito tradicional de fidelidade ¢ A vi do do ato de traduzir que esses conceitos propoem, Em linhas muito gerais, as teorias da linguagem que emer- _gem da tradicio intelectual do Ocidente, alicercadas no logocen- trismo e na crenga no que Jacques Derrida chama de “significado transcendental,’ tém considerado o texto de partida como um objeto definido, congelado, receptaculo de signilicados estaveis, geralmente identificados com as intencdes de scu autor. Obvi mente, esse conceito de texto traz consigo uma concepgao de lei tura que atribui ao leitor a tarefa de “descobrir” “originais” do texto (ou de seu autor). Ler seria, em tiltima andli se, uma atividade que propée a “protecio” dos significados origi nalmente depositados no texto por seu autor. Embutida nessa concep¢ao de Ieitura, delineiase a concepgio de traducao que tem orientado sua teoria e pratical taduzir € transportar, é trans- (ferir, de forma “protetora”,-os signilicados que se imaginam esta- yeis, de um texto para outro e de uma lingua para outra. Assim, into mais “protetor” puder ser o trabalho do tradutor, quanto " conseguir chegar, melhor seré seu re- qu mais prdximo do “origin: | sultado. A essa tradicio opéem-se, implicita ou explicitamente, algu- mas correntes do pensamento contemporanco: a “arqueologia” de Michel Foucault, a “semioclastia” de Roland Barthes e, sobre- A Que Sao Fiéis ...? 7 tudo, a “desconstrugiio” de Jacques Derrida, que trazem, em maior ou menor grau, a influéneia do pensamento brilhante € demolidor de Friedrich Nietzsche ¢ dessa revolugio intelectual que Freud instalou no centro da reflexio do homem sobre si Num ensaio magistal ¢ quase cruel, originalmente intitula- do “Uber Waliheit und Liige im aussermoralischen Sine” datado de 1878, Nietzsche desmaseara a grande ilusio sobre a qual se alicercam nossas “verdades”, nossa filosofia, nossas ciéncias, 0 pensamento que chamamos de “racional”. Segundo Nietzsche, toda “verdade” estabelecida como tal foi, no inicio, apenas um. “estimulo nervoso”. Todo sentido que chamamos de “literal” foi, no inicio, metéfora ¢ somente pode ser uma criagio humana, um reflexo de suas circunstincias ¢, nio, a descoberta de algo que Ihe seja exterior: primeira metéfora: um estimulo nervoso transformado em percepeio, Essa percepgao, entdo, acoplada a um som. Quando falamos de Arvores, cores, neve e flores, acredita. mos saber algo a respeito das coisas em si, mas somente pos- suimos metiforas dessas coisas, ¢ essas metaforas nao correspondem dle maneira alguma 4 esséncia do original, Da mesma forma que o som se manifesta como mascara eféme- ra, 0 enigmtico x da coisaem-si tem sua origem num esti- mulo neryoso, depols se manifesta como percepgio e, finalmente, como som, (p. 178) A reflexio de Nietzsche sobre o carter ficticio” de todas as nossas “verdades” © de todos os nossos significados chega exata- mente onde teria chegado a reflexio do préprio pai da lingtifsti- ca estrutural, Ferdinand de Saussure, se este pudesse ter le: as tiltimas conseqiiéncias suas conclusdes acerca do signo arbitré- rio € convencional. Ao admitir, em sua teorizagio sob que © significante é “imotivado, arbitrério em relagio ao signifi. cado, com o qual nao tem nenhum lago natural na realidade" (p. 83), Saussure teria que admitir também que esse significado 6, também, sempre “atribuido” e nunca imanente, 6 que implica di- zer que esse significado ¢ sempre “produzido” por convengdes ¢ nunca “descoberto”, ¢ que mndara 4 medida que mudarem as so- ciedades ¢ as convengées que as regem. 18 A Que Sao Fiéi ‘Assim, de acordo com a perspectiva aberta por Nietzsche, 0 homem no é um descobridor de “verdades” originais ou exter- nas ao seu desejo, mas um criador de significados que se plas- que nos organizam em mam através das convencoes comunidades. Eo impulso que leva 0 homem a buscar a “verda- de”, a fazer ciéncia e a formular teorias, segundo Nietzsche, nio passa de umia dissimulagio de seu desejo de poder, conseqiiéncia de seu instinto de sobrevivéncia € de sua inseguranca enquanto habitante de um mundo que mal conhece e que precisa dominar. O homem inventa “verdades” que tenta impor como tal a seus se- melhantes para se proteger de outros homens ¢ de outras “verda- des’, ¢ para sentir que controla um mundo do qual pode apenas saber muito pouco. Em complementaridade ao pensamento “desconstrutor” de Nietzsche acerca das possiveis relagdes entre sujeito ¢ objeto, po- demos incluir a psicandlise de Freud, cujo conceito de “incons- ciente” vira do avesso a prdpria nogao de sujeito: 0 homem cartesiano que se definia pelo seu racionalismo passa a definir-se pelo desejo que carrega consigo, que molda seu destino ¢ sua vie sio de mundo, e do qual nio pode estar plenamente consciente. Quer consideremos 0 desejo de poder, ou o inconsciente, como propulsor da criagio do conhecimento, das ciéncias ¢ de todos 05 “significados” e “verdades” humanas, estaremos descartando a pussibilidade de um relacionamento puramente objetivo, ou pur ramente subjetivo, entre homem ¢ realidade, entre sujeito ¢ obje- to, entre Icitor € texto. Essa linha de reflexao nao traz consigo, como poderiam ar- gumentar alguns, a implicagio absurda de que o mundo real existe sem um sujeito que o perceba. Traz, sim, a implicagio de que 0 sujcito nie podera escapar dos desejos que o constitnem & das circunstincias — seu tempo, sta ideologia, sua formagao, sua Imente, “fazem sua cabeca”, para usar essa feliz expressio da giria contemporanea. ‘Atrayés da dtica apenas esbocada a plista estabelecermos normas de leitura que contassem com a possibilidade do resgate total dos significados “originais” de um texto, ou das intengaes de seu autor. O leitor de um texto nao pode proteger os significados originais de um autor porque, a ri- gor, nem o préprio autor poderia estar plenamente consciente psicologia— que, ‘a, seria ingénuo e sim- A Que Séo Figis..? 19 de todas as intengdes ¢ de todas as varidveis que permitiram a produgio ¢ a divulgacio de seu texto, Da mesma forma, no mo- mento da leitura, o leitor nao podera deixar de lado aquilo que 0 constitui como sujeito ¢ como leitor — suas circunstancias, seu momento hist6rico, sua visio de mundo, seu proprio inconscien- te, Em outras palavras, leitor somente poderd estabelecer uma relagio com o texto (como todos nés, a todo o momento e em todas as nossas relacdes), que ser sempre mediada por um pro- cesso de interpretagio, um proceso muito mais “criativo” do, que “conservador", muito mais “produtor” do que “protetor”. ‘Assim, o significado nao se encontra para sempre depositado no texto, A espera de que um leitor adequado 0 decifre de maneira correta. O significado de um texto somente se delineia, ¢ se cria, a partir de um ato de interpretagao, sempre provisdria ¢ tempo- rariamente, com base na ideologia, nos padroes estéticos, élicos € morais, nas circunstancias histéricas € na psicologia que consti- tuem a comunidade sociocultural — a “comunidade interpretati- va", no sentido de Stanley Fish — cm que é lide. O que vemos num texto é exatamente que nossa “comunidade interpretati- va" nos permite ler naquilo que lemos, mesmo que tenhamos como tinico objetivo 0 resgate dos scus significados supostamen- te “originais”, mesmo que tenhamos como tinico objetivo nao nos misturarmos 20 que lemos. Do mesmo modo que nao pode- mos deixar de lado 0 que somos ¢ 0 que pensamos quando nos relacionamos com 0 mundo real, também nao podemos ler um n que projetemos nessa leitura as circunstancias € 0s pa '§ que nos constituem enquanto-leitores-e membros de uma determinada comunidade. ‘Aplicadas & tradugio, essas conclusdes necessariamente re- formulam os conceitos tradicionais de texto “original” ¢ de fideli- dade. Assim, nenhuma traducio pode ser exatamente fiel_ao “original” porque o “original” nao existe como um objeto estivel, guardiio implacavel das intengdes originais de seu autor, Se ape- nas podemos contar com interpretacdes de um determinado tex- to, leituras produzidas pela ideologia,.pela localizagao temporal, geografica e politica de um leitor, por sua psicologia, por suas ‘ircuristancias, toda traducao somente poderd ser fiel a essa pro- dugio. De maneira semelhante, ao.avaliarmos uma traducio, a0 ‘compararmos 6 texto traduzido ao “original”, estaremos apenas

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