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1. A QUE SAO FIEIS TRADUTORES E CRITICOS DE TRADUGAO? Paulo Vizioli ¢ Nelson Ascher Discutem John Donne! If the translator neither restitutes nor copies an original, it is because the original lives on and transforms itself. ‘The translation will Wuly be a moment in the growth of the original, which will complete itself in enlarging itself [..J And if the original calls for a complement, it is beca- se at the origin it was not there without fault, full, com- plete, total, identical to itself, From the origin of the the original to be translated there is fall and exile. Jacques Derrida “Des Tours de Babel” I. PRELIMINARES Em 29 de abril de 1985, 0 jornal Folha de S. Paulo publicow uma resenha assinada por Nelson Ascher sobre Jolin Donne: O Poeta do Amor e da Morte, antologia biliny da por Paulo Em 5 de maio do mesmo ano, a Folha publi- cou a réplica de Vizioli e, no domingo seguinte, a tréplica do critico Ascher. ‘As questées centrais que nutriram essa polémica sio tam- bém fundamentais para aqueles que se dedicam ao estudo ¢ A pratica da traducio. A tarefa do tradutor, como a tarefa do eriti- co de traducio, é norteada por preocupagées relativas a uma pre- tensa “fidelidade” devida ao chamado texto “o: im Entretanto, o que em geral se omite na tentativa de se atingir ou avaliar essa “fidelidade” é exatamente 0 status do original. Quan- 16 4 Que Sao Fiéis ..? do avalia uma traducio, estard o eritico considerando o mesmo “original” que 0 tradutor? Ou, em outras palavras, concorda- riam critico ¢ tradutor a respeito dos significados do texto de partica? E em torno dessa pergunta que se desenyolve a reflexio que da corpo a este trabalho. Através da anilise da polémica Vizioli x Ascher, convido o Icitor a repensar as questdes da fidelidade em tradugio ¢ da avaliacdo de textos traduzidos, a partir de wn formulagio do conccito de texto “original” I. PERSPECTIVAS TEORICAS Ha alguns anos, venho tentando desenvolver uma reflexio s tedricos da traducio que se coloca em (© a0 conceito tradicional de texto “original” ¢, conseqiientemente, ao conceito tradicional de fidelidade ¢ A vi do do ato de traduzir que esses conceitos propoem, Em linhas muito gerais, as teorias da linguagem que emer- _gem da tradicio intelectual do Ocidente, alicercadas no logocen- trismo e na crenga no que Jacques Derrida chama de “significado transcendental,’ tém considerado o texto de partida como um objeto definido, congelado, receptaculo de signilicados estaveis, geralmente identificados com as intencdes de scu autor. Obvi mente, esse conceito de texto traz consigo uma concepgao de lei tura que atribui ao leitor a tarefa de “descobrir” “originais” do texto (ou de seu autor). Ler seria, em tiltima andli se, uma atividade que propée a “protecio” dos significados origi nalmente depositados no texto por seu autor. Embutida nessa concep¢ao de Ieitura, delineiase a concepgio de traducao que tem orientado sua teoria e pratical taduzir € transportar, é trans- (ferir, de forma “protetora”,-os signilicados que se imaginam esta- yeis, de um texto para outro e de uma lingua para outra. Assim, into mais “protetor” puder ser o trabalho do tradutor, quanto " conseguir chegar, melhor seré seu re- qu mais prdximo do “origin: | sultado. A essa tradicio opéem-se, implicita ou explicitamente, algu- mas correntes do pensamento contemporanco: a “arqueologia” de Michel Foucault, a “semioclastia” de Roland Barthes e, sobre- A Que Sao Fiéis ...? 7 tudo, a “desconstrugiio” de Jacques Derrida, que trazem, em maior ou menor grau, a influéneia do pensamento brilhante € demolidor de Friedrich Nietzsche ¢ dessa revolugio intelectual que Freud instalou no centro da reflexio do homem sobre si Num ensaio magistal ¢ quase cruel, originalmente intitula- do “Uber Waliheit und Liige im aussermoralischen Sine” datado de 1878, Nietzsche desmaseara a grande ilusio sobre a qual se alicercam nossas “verdades”, nossa filosofia, nossas ciéncias, 0 pensamento que chamamos de “racional”. Segundo Nietzsche, toda “verdade” estabelecida como tal foi, no inicio, apenas um. “estimulo nervoso”. Todo sentido que chamamos de “literal” foi, no inicio, metéfora ¢ somente pode ser uma criagio humana, um reflexo de suas circunstincias ¢, nio, a descoberta de algo que Ihe seja exterior: primeira metéfora: um estimulo nervoso transformado em percepeio, Essa percepgao, entdo, acoplada a um som. Quando falamos de Arvores, cores, neve e flores, acredita. mos saber algo a respeito das coisas em si, mas somente pos- suimos metiforas dessas coisas, ¢ essas metaforas nao correspondem dle maneira alguma 4 esséncia do original, Da mesma forma que o som se manifesta como mascara eféme- ra, 0 enigmtico x da coisaem-si tem sua origem num esti- mulo neryoso, depols se manifesta como percepgio e, finalmente, como som, (p. 178) A reflexio de Nietzsche sobre o carter ficticio” de todas as nossas “verdades” © de todos os nossos significados chega exata- mente onde teria chegado a reflexio do préprio pai da lingtifsti- ca estrutural, Ferdinand de Saussure, se este pudesse ter le: as tiltimas conseqiiéncias suas conclusdes acerca do signo arbitré- rio € convencional. Ao admitir, em sua teorizagio sob que © significante é “imotivado, arbitrério em relagio ao signifi. cado, com o qual nao tem nenhum lago natural na realidade" (p. 83), Saussure teria que admitir também que esse significado 6, também, sempre “atribuido” e nunca imanente, 6 que implica di- zer que esse significado ¢ sempre “produzido” por convengdes ¢ nunca “descoberto”, ¢ que mndara 4 medida que mudarem as so- ciedades ¢ as convengées que as regem. 18 A Que Sao Fiéi ‘Assim, de acordo com a perspectiva aberta por Nietzsche, 0 homem no é um descobridor de “verdades” originais ou exter- nas ao seu desejo, mas um criador de significados que se plas- que nos organizam em mam através das convencoes comunidades. Eo impulso que leva 0 homem a buscar a “verda- de”, a fazer ciéncia e a formular teorias, segundo Nietzsche, nio passa de umia dissimulagio de seu desejo de poder, conseqiiéncia de seu instinto de sobrevivéncia € de sua inseguranca enquanto habitante de um mundo que mal conhece e que precisa dominar. O homem inventa “verdades” que tenta impor como tal a seus se- melhantes para se proteger de outros homens ¢ de outras “verda- des’, ¢ para sentir que controla um mundo do qual pode apenas saber muito pouco. Em complementaridade ao pensamento “desconstrutor” de Nietzsche acerca das possiveis relagdes entre sujeito ¢ objeto, po- demos incluir a psicandlise de Freud, cujo conceito de “incons- ciente” vira do avesso a prdpria nogao de sujeito: 0 homem cartesiano que se definia pelo seu racionalismo passa a definir-se pelo desejo que carrega consigo, que molda seu destino ¢ sua vie sio de mundo, e do qual nio pode estar plenamente consciente. Quer consideremos 0 desejo de poder, ou o inconsciente, como propulsor da criagio do conhecimento, das ciéncias ¢ de todos 05 “significados” e “verdades” humanas, estaremos descartando a pussibilidade de um relacionamento puramente objetivo, ou pur ramente subjetivo, entre homem ¢ realidade, entre sujeito ¢ obje- to, entre Icitor € texto. Essa linha de reflexao nao traz consigo, como poderiam ar- gumentar alguns, a implicagio absurda de que o mundo real existe sem um sujeito que o perceba. Traz, sim, a implicagio de que 0 sujcito nie podera escapar dos desejos que o constitnem & das circunstincias — seu tempo, sta ideologia, sua formagao, sua Imente, “fazem sua cabeca”, para usar essa feliz expressio da giria contemporanea. ‘Atrayés da dtica apenas esbocada a plista estabelecermos normas de leitura que contassem com a possibilidade do resgate total dos significados “originais” de um texto, ou das intengaes de seu autor. O leitor de um texto nao pode proteger os significados originais de um autor porque, a ri- gor, nem o préprio autor poderia estar plenamente consciente psicologia— que, ‘a, seria ingénuo e sim- A Que Séo Figis..? 19 de todas as intengdes ¢ de todas as varidveis que permitiram a produgio ¢ a divulgacio de seu texto, Da mesma forma, no mo- mento da leitura, o leitor nao podera deixar de lado aquilo que 0 constitui como sujeito ¢ como leitor — suas circunstancias, seu momento hist6rico, sua visio de mundo, seu proprio inconscien- te, Em outras palavras, leitor somente poderd estabelecer uma relagio com o texto (como todos nés, a todo o momento e em todas as nossas relacdes), que ser sempre mediada por um pro- cesso de interpretagio, um proceso muito mais “criativo” do, que “conservador", muito mais “produtor” do que “protetor”. ‘Assim, o significado nao se encontra para sempre depositado no texto, A espera de que um leitor adequado 0 decifre de maneira correta. O significado de um texto somente se delineia, ¢ se cria, a partir de um ato de interpretagao, sempre provisdria ¢ tempo- rariamente, com base na ideologia, nos padroes estéticos, élicos € morais, nas circunstancias histéricas € na psicologia que consti- tuem a comunidade sociocultural — a “comunidade interpretati- va", no sentido de Stanley Fish — cm que é lide. O que vemos num texto é exatamente que nossa “comunidade interpretati- va" nos permite ler naquilo que lemos, mesmo que tenhamos como tinico objetivo 0 resgate dos scus significados supostamen- te “originais”, mesmo que tenhamos como tinico objetivo nao nos misturarmos 20 que lemos. Do mesmo modo que nao pode- mos deixar de lado 0 que somos ¢ 0 que pensamos quando nos relacionamos com 0 mundo real, também nao podemos ler um n que projetemos nessa leitura as circunstancias € 0s pa '§ que nos constituem enquanto-leitores-e membros de uma determinada comunidade. ‘Aplicadas & tradugio, essas conclusdes necessariamente re- formulam os conceitos tradicionais de texto “original” ¢ de fideli- dade. Assim, nenhuma traducio pode ser exatamente fiel_ao “original” porque o “original” nao existe como um objeto estivel, guardiio implacavel das intengdes originais de seu autor, Se ape- nas podemos contar com interpretacdes de um determinado tex- to, leituras produzidas pela ideologia,.pela localizagao temporal, geografica e politica de um leitor, por sua psicologia, por suas ‘ircuristancias, toda traducao somente poderd ser fiel a essa pro- dugio. De maneira semelhante, ao.avaliarmos uma traducio, a0 ‘compararmos 6 texto traduzido ao “original”, estaremos apenas 20 A Que Sao Figis...? ¢ tio.somente comparando a tradugio 4 nossa interpretacio do atamente a “mes “original” que, por s ma" do tradutor. a vez, jamais pod II 0 CONFRONTO TRADUTOR X GRITICO Em sua resenha, depois de uma breve introdugio A poesia de John Donne, Nelson Ascher“inicia os comentarios sobre as tradugécs de Paulo Vizioli, tomanda camo paralelo as traduces do poeta ¢ ensaista Augusto de Campos. Em primeiro lugar, 0 critico nao concorda com o titulo da antologia de Vizioli: “cha- mélo [a John Donne...] de ‘o poeta do amor e da morte’, como faz Vizioli no titulo do livro, é perder de vista a esséncia de sua poesia’. A “falha” de Vizioli, Ascher contrapde o “acerto” de Au- gusto de Campos, que deu 2 sta antologia de poemas do poeta inglés o titulo “o dom e a danacio", “sublinhando”, segundo As- cher, “um dos recursos favoritos do poeta, 0 jogo de palavras”, Prosseguindo sua comparagio entre as duas traducoes, As- cher observa que 0 que as distingue, “de fato", éa “concepgo de tradugio que as nortcia”. Enquanto a de Vizioli é a “obra empe- nhada de um erudito”, “um valioso subsidio para o estudo ¢ a apreciagio do autor, correta e esclarecedora”, a de Augusto de Campos é 0 “trabalho magistral de um pocta”, “o préprio Donne em portugués”. Entre o trabalho “erudito” de Viziol ¢ 0 trabalho “magistral de poeta”, Ascher prefere, obviamente, 0 segundo: Vi- zioli, “um erudito profissional ¢ competente, mas poeta amador”, nio pode substituir o trabalho de *um poetatradutor ¢ inventor de linguagens profissional”. Enquanto a tradugio de Virioli € “itil e muito necesséria”, por sua. “fungao didatica ¢ informati- va", somente a de Augusto de Campos é “obra criativa”. Assim, segundo Ascher, Augusto de Campos criow para Donne uma “Jinguagem prépria ¢ uma dic¢io poética condizente”, ao passo que a de Vizioli é “conservadora ¢ com uma diccio poética ultra- passada”. Apropriadamente, Paulo Vizioli fundamenta sua resposta a Ascher num argumento cujas implicagées ¢ conseqiiéncias pre- tendo desenvolver no proximo segmento deste uabalho. Como sugere Vizioli, o que, 11a verdadc, parcee incomodar ao critico é A Que Sao Fieis...? 21 que suas tradugées sio, de certa forma, “infiéis” as versdes de Augusto de Campos: ‘Tive a nitida impressio de que, na verdade, o seu autor se revoltou menos com as pretendidas deficiéncias de meu tra- batho que com minha petulincia em incursionar por terve- no onde antes perambulara Augusto de Campos. Nessa linha de argumentagio, Vizioli questiona, por exemplo, 0 critétio que leva Ascher a considerar “um lance realmente inven- tivo” de Augusto de Campos a incorporacao de um verso de Lu- picfnio Rodrigues ao poema “A Aparigio” (“Onde seras, falsa yestal, uma muther/Qualquer nos bragos de um outro quak quer”). Gonforme questiona Vizioli E sera mesmo verdade, como sugere Ascher, que a dade do trabalho poético e responsivel fica garant do ele enxerta no texto dos poctas ingleses v Lupicinio Rodrigues? De modo semelhante, a0 comentario de Ascher sobre a “diego poética ultrapassada” de suas traducdes, Vizioli responde que sua diccao poética é “propositadamente ultrapassada” jé que se trata de um autor nascido no século XVI. Finalmente, em seu comen- tério mais certeiro, Paulo Vizioli aborda a comparacio estabeleci- da por Ascher entre sua tradugao (“Mals cobertura tu desejas do que um homem?") ¢ a de Augusto de Campos (“A coberta de um homem te é bastante?") do verso final da elegia “Going to Bed” (What need’st thou have more covering than a man?" Nao traduzi o pocma com base na versio de Augusto de Campos, mas diretamente do original inglés. La, 0 poeta fala em covering, ndo em cobertor. E covering € cobertura mesmo, com 0 duplo sentido de “cobrir 0 corpo com as ves- tes” ¢ “cobrir sexualmente”. IV, A GRITICA DA CRITICA Como ja foi sugerido, a questo central cm torno da qual Vi- tioli ¢ Ascher se confrontam é basicamente o significado e 0 va. lor dos originais de Donne. 3 A Que Sao Figis...? cr ido de vista” a “esséncia” da poe berd H ca de Ascher, que atribui a Vizioli o “defeito” de “ter ia de John Donne, se torna ‘cialmente problematica quando consideramos a carreira “SP? airbada que essa poesia tem seguido desde sua criagio, no sé- aa XVII A prépria designagio de “metafisico”, com que até \ ee se rotula esse poeta inglés, j4 foi, como lembra T. 8. Eliot, 4 de um insulto até um indicador de gosto singular € agradé- WAG" (p. 2560, minha trachugio). JeanJacques Denonain lista al- V4 Sighificados possiveis da mesma designacio, entre os quais i curse “Liloséfico”, “pedante”, “irreal ou fantéstico” (citado Campos, p. 124). Como escreve Vizioli na introdugao a anto- ey resenhada por Ascher, Ben Jonson, amigo e contempori- ‘de Donne, afirmava que este “merecia ser enforcado por fa do que fizera com a métrica’. John Dryden, nascido em #4, ano da morte de Donne, “admirava as suas sitiras”, mas accitava os outros poemas”. Finalmente, Samucl Johnson, > leitor importante, “detestava suas jungdes forcadas de '4,s sem correlacdes” (p. 4). ‘Teriam Ben Jonson, Dryden ¢ Samuel Johnson (apenas para _ntionar 0s ciiticos citados acima) também deixado de reco- krer a “esséncia” da poesia de Donne? Se houvesse, na poesia a penne, out em qualquer outro texto, como quer Ascher, algo eS Jo una “esséncia”, um significado intrinseco ¢ imanente, que puesse Ser eternamente preservado, niio deveria essa *esséncia” ao alcance de scus leitores mais categorizados? Por que te- *sugusto de Campos o privilégio de possuir 0 acesso a esse ‘ado tio recéndito do texto de Donne? Além disso, em que 8 pode Ascher se frmar ao sugerir que, para traduzir Donne ‘ Yesséncia” de sta poesia), de maneira efetiva, é salutar, por Ceinplo, que se incorpore ao pocma “A Aparicio” um verso de Liicinio Rodrigues? 'Naturalmente, as respostas que proponho a essas perguntas cemeiBem das concepgdes textuais que esbocei rapidamente no a7 deste trabalho, O que Ascher ve como a “esséncia” da poc- in Je Donne, ou como o *préprio Donne em portugués”, nio ia ‘a, nia realidade, do reflexo de sua leitura do poeta, leitura Pay Que parece ter sido forjada nas tradugdes ¢ nas concepgdcs cas desenvolvidas por Augusto de Campos. O “John Donne” "Ascher admira é o “John Donne” produzido peia tradicao m- outr iaeit Pe estat hifi bast! (ou ted gue A Que Sao Fieis...? 23 telectual & qual se filia Augusto de Campos. Ao criticar 0 titulo do livro de Vizioli, ou sua opcio por uma “linguagem conserva- dora” e por uma “diccio pocticamente ultrapassada”, o que As- cher contrapde a Vizioli nao é, de modo algum, a “esséncia” da poesia de Donne, mas sua prépria visio da visio critica de Au- gusto de Campos sobre 0 mesmo pocta. De forma semelhante, 0 que Augusto de Campos vé e admira em Donne é 0 que vé ¢ ad- mira em outros poetas do passado ¢ do presente, aos quais at bui pontos em comum com 0 Coneretismo, movimento estético do qual é figura proeminente: Donde a valorizagio, no presente, € a revalorizagio, no pas- sado, de toda poesia once repontem os tracos dessa liicida luta com a linguagem, em contraposi¢io Aquela poesia satis: feita, na qual a linguagem nao passa de mero recipiente pas- sivo de assentes sentimentos sentimentais. (Campos, p. 126) Enquanto a tradicao na qual se inscreve Augusto de Campos valoriza “a luta com'a linguagem, os jogos de palavras”, a tradi- cdo A qual se filia Vizioli parece privilegiar outras caracteristicas. Em sua introdugio A antologia de Donne, Vizioli escreve sobre os metafisicos: Os escritores dos novos tempos, devendo projetar as suas i 1s seus conllitos interiores, precisavam de um es- tilo mais dinamico, recorrendo, por isso, 20 movimento € & teatralidade. Tinham que causar impacto [...]. 0 pocta pode, no entanto, cespertar o assombro de virias maneiras. Uma delas consiste em servir-se da linguagem coloquial direta, mas carregada de ironia e paradoxos ¢ entremeada de ima- gens complexas ¢ incomuns, surpreendendo os leitores pelo inesperado; outta reside no tom dignificaclo € nobre, conce- dido pela riqueza do vocabubirio ¢ pelas complicagdes. de sintaxe, deslumbrando pela magnificéncia. (p. 2) Se nos detivermos apenas nos subtitulos das antologias assinadas por Vizioli e Augusto de Campos (respectivamente, “o pocta do amor ¢ da morte” ¢ “o dom e a danacio”), podemos observar que, enquanto Augusto privilegia 0 wit — © gosto pela ironia, pelo paradoxo ¢ pelo jogo de palavras — Vizioli privilegia o que ele mesmo chama de “o terrivel dualismo” da época em que vi- 24 A Que Sao Fiéis yeu Donne. E, como ter percebido 0 leitor familiarizado com 0 discurso do barroco literdrio, tanto o wif, como o dualismo, 20 concilidveis, sio, na verdade, uidas a esse movimento ¢s- invés de constituirem opostos in cavacteristicas paralclas em geral at tético. ‘Ao afirmar que 0 que distingue “de fato” as duas traducdes € “a concepgao de tradugio que as norteia”, Ascher parece estar se referindo as duas concepc6es opostas de tradugao tradicional. mente citadas: uma, atribuida a Vizioli, é a tradugao “literal”, pro- xima as palavras do “original”, “obia cmpenhada de um erudite” que “se contenta com uma linguagem conservadora ¢ com uma dicgao poeticamente ultrapassada”, “valioso subsidio para o est do ca apreciagio do autor, correta ¢ esclarecedora”; a outra, atr buida a Augusto de Campos, ¢ a tradugio supostamente jativa", com “lances inventivos”, “trabalho magistral de um poeta’, que consegue o impossivel: criar, “de certa forma, o prd- prio John Donne em portugués”. Obviamente, essas das con Cepgdes de traducio também se basciam a hipétese de que Int uma “esséncia”, um sentido original ¢ estavel, na poesia de Don- ne, 3 qual apenas alguns eleitos podem ter acesso. Assim, segun- do Ascher, embora Vizioli seja um tradutor “erudito”, capaz de oferecer, com seu trabalho, *um valioso subsfdio para 0 estudo a apreciacao” da poesia de John Donne, seus esforgos nao conse- guem “realmente” produzit um Donne em portugués, porque nao atingem a “esséncia" do texto inglés. Como jé foi observado, a traducio de um pocma ¢ a avalia: Gio dessa traducao nao poderao realizarse fora de um ponto de Vista, ou de uma perspectiva, ou sem a mediagao de uma “inter- pretacio”.' Portanto, a tradugio de um poema, ou de qualquer butro texto, inevitavelmente, serd fiel A visio que o tradutor tem dese poema ¢, também, aos objetives de sua tradugio. Portanto, fa questio nao é — como afirma Nelson Ascher — que Vizioli contenta” com uma linguagem conservadora ¢ com uma diccao poética ultrapassada, ou que ao seu trabalho “crudito” falte o ge hio de poeta, A linguagem e a dicgio postica escolhidas por Vi Zioli sao resultado de suas concepcoes acerca da poesia de Donne e acerca da traducio’ de poesia, isto é, so, como ele mesmo ob- serva em sua réplica ao critico Ascher, “propositadamente ultra: passadas por se tratar de um autor que nasce no eéculo XVI" 25 A Que Sao Fieis Ou seja, para Viziol, a tadugio da obra de John Donne deve ter como objetivo a manutengao do que considera a linguagem ¢ dliceno poctica do poeta inglés. Para Vizioli, um poeta do século XVI deve ser apresentado aos leitores do século XX como um poeta do século XVI, sua tradugio deve trazer a marca do “origi- ar, deve “soar” antiga. Augusto de Campos, por sua ver, cré que’a tradugio de um poeta do passado somente ter valor se puder ser absorvida pelos poetas do presente, No preficio a Ver So Reverso Controverso, Augusto escreve: ‘A minha maneita de amélos [aos poetas que adh Gurilos. Ou deglutilos, segundo a Lei Antropet ‘ald de Andrade; sé me interessa 0 que nao Tradugao. para mim € persona, Quase heterdnimo. Entrar dentro da pele do fingidor para refingir tudo de nove, dor por dor, som por som, cor por cor. Por isso munea me pro- eis traduzir tudo, S6 aquilo que sinto. $6 aquilo que minto, Bu que minto que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa ‘em stra propria persona. (p.7) Nese contexto, justifica-se, entre outras coisas, a inclusto de um verso de Lupicinio Rodrigues & tradugio de um poem inglés do Século XVI, que Ascher considera, como vimos, “um lance inven- tivo”. Tanto Paulo Vizioli quanto Augusto de Campos sao “féi suas concepgées tedricas acerca de traduga fe Donne ¢, nesse sentido, tanto as tradugbes de um, como de outro, sio legitimas e competentes. Inevitayelmente, as traducoes Ge cada um deles agradarao aos leitores que, consciente ou in- Conscientemente, compartilharem de seus pressupostos, ¢ desa- gradardo aqueles que, como Ascher, jé foram seduzidos por pressupostos diferentes. © accrea da poesia NOTAS 1. Uma versio preliminar deste trabalho foi publicada em Traducte « Comuniardo ~ Revista Brasileira de Tradutores,n® 9, Sac Paulo, dezembro de 1986, pp- 133-147 26 A Que Sao Fidis...? 2. Ver, a propésito, Gayatri C. Spivak no “Translator’s Preface” & sua ver- so inglesa de De la grammatologie, de Jacques Dersida, p. XVI. 3. Minha Ieitura e as citagdes desse texto partem da versio inglesa: “On Truth and Falsity in Their Ultramoral Sense”. Todas as waducdes de refe- réncias a esse © a outros textos em inglés sio minhas. 4. A propésito, ver também “As Rela Perigosa entre Teorias¢ Po liticas de Tradugio”, neste volume. sep BIBLIOGRAFIA ARROJO, Rosematy. Oficina de Tradueao ~ A Teoria na Pritiea, Sio Pau To: Atica, 1986, ARROJO, Rosemary. “As Relagdes Pe de Tradugio”, neste volume. CAMPOS, Augusto de, Verso Reverso Controverso. Sio Paulo: Editora Perspectiva, 1978. DERRIDA, Jacques. Of Grammatology (trad. de Gayatri more: The Johns Hopkins University Press, 1975, DERRIDA, Jacques. “Des Tours de Babel.” In Joseph F. Graham (org.), Difference in Translation. Ithaca: Cornell University Press, 1985. ELIOT, T. 8. *The Metaphysical Poets” (1921), In Abrams, Donaldson, Smith, Adams, Monk, Lipking, Ford ¢ Daiches (orgs.), The Norton Anthology of English Literature. Nowa Yorks W. W. Norton & Gompa- ny Ine., 1975, FISH, Stanley. Js There a Text in This Class? ~ The Authority of Interpretive Communities. Cambridge: Harvard University Press, 1980. NIETZSCHE, Friedticlt, “On Truth and Falsity in Their Ultramoral Sense.” In Early Greek Philosophy & Other Essays (traduzido por Maximilian ‘A. Mugge). Londres ¢ Edimburgo: T. W. Foulis, 1911. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingitstica Geral (traduzido por An- tonio Chelini, José Paulo Paes € Izidoro Blikstein). Sio Paulo: Edito- ra Gultrix, 12*edigio. VIZIOLI, Paulo. 0 Poeta do Amor ¢ da Morte. Sio Paulo: J. C. Ismacl, 1985, igosas entre Teorias ¢ Politicas Spivak). Balti- 2. AS RELAGOES PERIGOSAS ENTRE TEORIAS E POLITICAS DE TRADUGAO' ‘Translation continues to be an invisible practice, every- where around us, inescapably present, but rarely acknowl- edged, almost never figured into discussions of the trans- lations we all inevitably read. This eclipse of the transla. tor’s labor, of the very act of translation and its decisive mediation of forcign writing, is the site of multiple deter- minations and effects — linguistic, cultural, institutional, political. But it must first be noted that translators them selves are among the agents of their shadowy existence. Lawrence Venuti “Introduction” — Rethinking Translation Num ensaio sobre “A Tarefa do Tradutor”, a classica refle- xo de Walter Benjamin accrea das aporins desse oficio tio complexo, Paul de Man sintetiza a concep¢ao de tradugio en- tranhada na cultura ocidental desde, pelo menos, Cicero ¢ Ho- ricio: /Q) ) © wadutor munca pode fazer © que o texto original fee (7 | Quatquer tradugio é sempre inferior em relagio 20 original, | €0 tradutor esta, como tal, perdido logo a partida, £ por de- finigio mal pago, é por definicio sobrecarregado com traba- jpteiciaes definigio aquele que a histéria nio fixara | realmente como um igual a no ser que por acaso seja tam- | bém poeta, mas nem sempre é esse o caso. (p. 110)® JU Essa condenacao a inferioridade ¢ a descaso perpetuada pelo senso comum de uma cultura centrada na valorizagao do logos € na busca impossivel do significado exterior ao sujeito, imune A

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