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MARILENE CORREA DA SILVA METAMORFOSES DA AMAZONIA ‘Tese de Doutorado apresentada a0 Departamento de Cigncias Sociais do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientagio do Prof. Dr. Octavio anni.) Este exemplar corresponde redagao final da tese defendida © aprovada pela Comisstio Julgadora em 20/05 / 1997, Banca; Prof. Dr. Octavio tanni_{ | /< /- 1 *_(orientador/UNICAMP) {membro) Profta). Drfa (membro) Proffa), pra a So ee (cent (membro) maio/1997 AGRADECIMENTOS © pensamento social sobre a Amazé6nia ¢ variado ¢ de consideravel acervo para um balango critico. Dadas as atuais circunstancias, as analises sobre a Amaz6nia sio auxiliares para compreensiio de suas formas de conexdo com o mundo, de onde surgiu, primeiro como solugéio diplomatica, depois como fonte de fantasia. A Amaz6nia ainda é um lugar do mundo capaz de surpreender. Suas metamorfoses propiciam as cigncias da natureza ¢ da sociedade constantes desatios. A todos que contribuiram na producdo ¢ difusdo do conhecimento cientifico, que relacionaram a Amazénia a questdes mais amplas, somos gratas pela contribuigdio. A colaboragdo do pensamento académico tem sido fundamental na abertura de novos campos de pesquisa € na inquietago que desperta sobre temas e problemas do mundo contemporaneo. Devo especial agradecimento a alguns professores que, ao participarem da nossa formagto, desde o mestrado, foram além do formalismo da docéncia, constituiram-se em interlocutores de preocupagées ¢ intuigdes que necessitavam de incentivo ¢ rigor. Impossivel deixar de cité-los, pelo exemplo de independéncia profissional, capacidade de tolerdncia ¢ habilidade de divergéncia: Professora Dra. Elide Bastos ¢ Professor Dr. Renato Ortiz. Ao Professor Dr, Octavio lanni qualquer agradecimento ¢ insuficiente. Sua vitalidade intelectual, sua integridade moral e a avalia¢do sincera das possibilidades de seus orientandos, qualidades que aprendi a conhecer, transformaram as tarefas do doutorado em um privilégio de convivéncia. Agradecimentos especiais ao Rosha, pela cessio de originais dos jornais ¢ informativos dos movimentos indigenas, que estendo ao Canadian Council ¢ ao Stockholm Environment Institute, pelos dados ¢ documentos obtidos. Minha familia foi um duplo motor de aceleragdo e de motivagao deste trabalho. Devo ao Matheus, ao Lucas e ao Marcilio horas roubadas da intimidade familiar, do carinho compartilhado. Devo as minhas irmas, Maria de Nazaré ¢ Géo, o apoio fisico as minhas insuficiéncias humanas. Devo as minhas netas uma auséncia hem sempre compreendida, Devo a Pérsida, Jorginho e Cristina, filhos-irmaos, a presenca fisica insubstituivel em seus ritos de passagem para a autonomia profissional e pessoal Devo aos amigos de Id e de ca novos compromissos. Agradego, novamente, a oportunidade dessa cumplicidade. SUMARIO I-A Amazénia no ambito da Globalizagio----- -----------+------- oO I~ Zona Franca---------+-2-2-2- 222-202-0222 ee ee ee ee eee ee ee 13 1 - A produgaio de espagos na selva- 13 2- A Zona Franca na ordem internacional. 23 3 -A transnacionalizagéio da AmazGnia- ------------------------- 37 III - Questéo Indigena. 56 1 - Problemas e controvérsias- - 56 2- A conquista da cidadania formal- - -- B 3 - A questio indigena na “aldeia global”- --------------------- 84 IV - Ecossistema. oT 1 -“Patriménio da Humanidade”: a ordem mundial dos “bens culturais” e dos “bens naturais 7 2 - Temas globais da ciéncia como “visdes” da Amaz6nia no mundo--- 123 3 - O espago global da “nave espacial” Terra- - V - Agroindustria 1 - Delineamentos e perspectivas- - - -------------+--+--------- 147 2 - Configuragses ¢ limites. 161 3 - Modelos ¢ combinagdes 17 VI - Regio, Nagao, Mundo - 195 Bibliografi - 204 1- A AMAZONIA NO AMBITO DA GLOBALIZACAO ‘A maioria dos estudos sobre Amazénia faz referéncia ao “esquecimento da regio” pelo Estado-nagio e pelo mundo (Velho, 1976).! A partir dessa consideragdo, reiterada ¢ absorvida como consenso. desdobram-se questdes alusivas ao “desenvolvimento regional”, suas possibilidades, seus fracassos. Com muita freqléncia, a questo do “esquecimento” articula-se a do “desenvolvimento tardio™ ou malconduzido; com muita veeméncia, essas apreciagdes saem do campo dos fatos para “ideologizarem-se” como se fossem problemas de escolha, de decisio politica incorreta A globalizagao do capitalismo pode sugerir outra interpretagao da Amazénia e dos estudos amazénicos. Se examinada a luz do quadro dos fendmenos suscitados pelas articulagdes mundiais da economia, a tese do “esquecimento” ndo se sustenta Do mesmo modo, 2 tese da opgdo politicamente incompetente nas escolhas de modelos de desenvolvimento regional nao resiste ao cotejamento com as foreas que dinamizam a realidade mundial. Tanto 0 “esquecimento” como as “escolhas” privilegiam a vontade de grupos e/ou de coletividades donos de seu destino, promotores e produtores da ordem social que os articula. Na verdade. essa pretensa autonomia de decisdo pode ser interpretada como um produto de inimeras combinagées. de estratégias. forgas econdmicas, manifestagdes culturais que tomam 2 Nagdo como referéncia intelectual de andlise No Ambito dessas observagdes, ha algumas considerages que podem conduzir a um outro patamar compreensivo. Parte-se aqui da hipdtese de que @ Amaz6nia sempre esteve na lembranga dos atores sociais. sejam estes representados pelas forgas de processos de mudanga ou por individuos privilegiados. 0 fato de que ‘A nio ser como mito € no curto periodo do auge da borracha. 0 Brasil e 0 mundo viveram quase como se a Amazinia ndo existisse” (Velho. 1976, p. 193) a regio continua a despertar preocupaco quanto ao seu desenvolvimento deve-se mais & intensidade dos impactos de suas formas de ocupagio do que ao esquecimento propriamente dito. A Amazénia pode ser vista como uma formagao econémico-social produzida pela dinamica do capitalismo e, portanto, sujeita aos processos de expansio e crise do capital. Varios momentos ¢ movimentos na realidade da Amazénia indicam que esta perspectiva ¢ fecunda, mas ndo isenta do confronto com alguns problemas. © primeiro deles, e 0 mais amplo, é de como conduzir uma reflex8o sobre a Amaz6nia no quadro de fenémenos e processos sociais globais, sem cair nos rétulos “nacionalista”, “regionalista” ou “internacionalista”, Dizendo de outro modo, como lidar com a interpretagdo do “especifico”, do “particular”, do “diverso” num quadro articulado por sistemas processos de grande alcance e intensidade como no caso de relagdes econdmicas ¢ culturais mundializadas. Em grande medida, todo 0 esforgo da reflexdo pode waduzit enriquecida pelos fatos da globalizagdo, uma vez que nem a metamorfose do local sé na seguinte pergunta: como a dialética do singular e do universal pode ser em global, nem a redugao do global no especifico acrescentam, por si sds, clareza aos processos de mudanga social em curso na Amazonia? O segundo problema, com igual teor de dificuldade, é o de demonstrar quais, € como, os fendmenos emergentes da globalizagéo alcangam a Amazonia ¢ the imprimem uma configuragdo distintiva de outras épocas. Repor a questio da Amazénia sob 0 2ngulo do mundo envolve outros problemas de ordem metodolégica, entre os quais 0 da aceitagdo de que os processos mundiais emergentes se realizam. de fato, a partir do local As implicagdes desses problemas so de todas as ordens. O mundo e o local passam a ser unidades de anilise para as quais convergem processos e fendmenos novos e remanescentes. Os tempos e espacos da mudanga tém uma autonomia dos tempos ¢ espacos organizados tradicionalmente, além de conterem dimensoes explicativas diversas. com elementos distintos. A consideragdo da existéncia de tempos ¢ espagos diferentes e desiguais. que se cruzam sob a forma de forgas articuladoras das dimensdes globais da sociedade contemporanea, pode ser uma perspectiva inovadora para a andlise da Amaz6nia no ambito da globalizagao. © mundo que a globalizagio produz envolve diferentes movimentos e sentidos. No caso da Amazénia, os impactos da globalizagao confundem-se com os processos de dominio da natureza, de ocupagdo econdmica, de fronteiras fisicas e politicas. Os impactos também refletem ou dinamizam mudangas culturais, perspectivas de autodeterminagao social, de interlocugio mundial e, ainda, o imaginario universal. No quadro da globalizagio. a Amazénia tanto é uma territério datado e situado como é uma idéia, uma fabulagéo, uma utopia, No limite, pode constituir-se em um “nao-lugar”, cuja caracteristica mais contraditéria ¢ ser um lugar no mundo; um “n&o-lugar™ da diversidade, outra face do nao-lugar padronizado (cf. Augé, 1992). A medida dos impactos da globalizagao na Amazénia pode delimitar-se nas formas que a regio assume. A invenc&o de locais ou areas funcionalmente organizadas para a realizagdo de tarefas especiais ¢ um modo de explicar como os lugares sdo historicamente produzidos, ou como eles se inserem na dinamica mundial. Da mesma maneira, recorre-se as explicacdes da relagdo entre capitalismo vocagéo econdmica. ou de como a expansio e crise do capitalismo criam zonas econémicas como conexdes da moderna economia mundial. Articulando essas abordagens, ganha relevancia a questo de como se realizam os processos de apropriagiio € organizagdo de recursos. espacos. populagdes sob determinados modelos. O drama de uma época para os grupos sociais e lugares relacionados constituiggio de uma ordem emergente ¢ fora do seu controle inclui outro conjunto tematico criado pela globaliza¢do. No exemplo da Amazénia, os ciclos e interciclos histéricos so marcos que a situam nos processos de prosperidade e crise mundiais. Como uma regiéo geopoliticamente delimitada no mercantilismo, no absolutismo monarquico, na transigtio feudal-capitalista, no colonialismo, a Amaz6nia sofreu mudangas acentuadas com os processos de expanstio ¢ crise do capitalismo Populacdes, espagos, paisagens, expressam oscilagdes de movimentos amplos na regio. As relagées mundiais contemporéneas impéem outras circunstancias historicas de inseredo da Amazénia na dinamica global, de onde a regido reemerge com feigdes ¢ paradoxos acentuados. Quanto mais a Amazénia é vista como um espago geopolitico, um paraiso fiscal, um patriménio da humanidade, uma zona econémica emergente, um banco genético planetario, mais as contradigdes pretéritas © presentes dos ciclos historicos da acumulagdo origindria, do capitalismo internacional. da economia mundial ganham complexidade no plano local Situar a Amazénia no Ambito da globalizagao contraditéria implica demonstrar como ¢ quais processos e forgas mundiais se manifestam localmente em Conjunturas especiais. Um mapeamento descritivo com este propdsito pode elucidar momentos ¢ movimentos de montagem ¢ de desmontagem de elementos dinamizadores das realidades ditas regionais, As estratégias de desenvolvimento adequadas a nova divisio internacional do trabalho podem ser ilustradas como forgas traduzidas em projetos que, ao subsumirem-se em processos mais amplos, abrem Possibilidades de obtengdo de resultados opostos aos desejados pelos seus Promotores. Os chamados ciclos extrativos, industrial ¢ agricola, na Amazénia, adquirem outra conotagdo se examinados com este propésito, Do mesmo modo, as operagdes multilaterais, as ages militares, as rearticulagdes econdmicas, as relagées internacionais ganham outros significados quando situadas neste patamar. O debate sobre a internacionalizacao da Amaz6nia, sobre as implicagdes continentais do seu desenvolvimento, sobre o destino de suas populagdes e de seus recursos galvaniza-se quando essas forgas configuram planos distintos para o futuro da regido: manté-la como unidade fisica e politica historicamente referida a um centro ou “balcanizicla” em novos territorios ¢ territorialidades. com zoneamentos e interesses emergentes. Ha niveis de abordagem da realidade em curso na AmazOnia que dao maior visibilidade a0 modo como a globalizagao se processa localmente. No nivel da internacionalizagao da economia, a Amazénia recebeu, entre os anos 70 e 80, uma concentragao de esforgos para o desenvolvimento capitalista, mediante 0 alcance geografico da industrializagto de ponta, da transformagdo das atividades de subsisténcia em agroindistria, da intensificagaéo do extrativismo mineral e madeireiro, na criagdo de infra-estrutura de transportes e comunicagées comprometidos com a expansio do capitalismo na regiéo. A magnitude dessas operacdes, concatenadas com as necessidades de ajuste da economia internacional, criou zonas de enclave para onde transplantaram-se modos de organizagao da produgao ¢ da circulagao de mercadorias, compativeis técnica e socialmente com a nova divisdo internacional do trabalho e com as telagdes de mercado mundiais. A autonomizagfo dessas estruturas € processos, livres dos entraves institucionais locais, liberou forgas transnacionais para articulagées econdmicas descentralizadas, desterritorializadas, reterritorializadas e comandadas & distancia A dindmica da internacionalizagao da economia, que reconfigura a Amazénia os anos recentes, € qualitativamente diferente das conjunturas de insergao Periférica da regio em outros momentos da expansao e crise do capitalismo. Uma vez situados os ciclos extrativistas da borracha de fins do século XIX e inicio do século XX nas relagdes econdmicas mais abrangentes da época, a Amazénia é vislumbrada como area especializada de produgdo de matéria-prima acoplada as necessidades extemas da producdo capitalista central. No entanto, as foreas sociais liberadas no bojo desse incremento econémico inauguraram iniciativas de moderizacio que extrapolaram as necessidades do processo produtivo em curso. O desenvolvimento da ciéncia na aplicagdo de novos materiais na industria automobilistica potencializou as forgas produtivas. e a produgdo de riqueza foi extensiva a toda a cadeia do setor. A expansdo do capital internacional articulou os movimentos de verticalizagdo do processo de trabalho dos seringais amazénicos 40 processo de produgiio monopolista e, simultaneamente, transfigurou a regiéo no limite das necessidades operacionais das economias centrais. O nivelamento das condigdes de realizagdo do trénsito de mercadorias, pessoas. equipamentos, formas de controle, longe de homogeneizar as relagdes técnicas e sociais da produgio e do intercdmbio internacional, produziu, ao mesmo tempo, desigualdades e diferengas estruturais nos processos de acumulagao e de concentragdo de capitais. Quando os novos arranjos da economia congelam a mobilidade de pessoas, recursos ¢ mercadorias, a dindmica deste fluxo é interrompida e desviada para outras zonas de transito da economia e relagées internacionais. A chamada crise da economia regional é, predominantemente, uma forma local de repercussio das crises de expanstio e reajustamento da economia mundial As contradig6es de ontem e de hoje ndo se confundem, ainda que, na composigdo do mesmo ciclo longo, as contradigdes de uma e de outra convivam de forma acentuada nas relagdes contempordneas da Amazénia com o mundo. As estratégias mundiais das forgas econémicas aduzem outros problemas & compreensio da AmazOnia. A modemizacao tardia, mais acelerada e articulada contemporaneidade do mundo, transpde o limite tedrico em que o desenvolvimento ¢ a crise de medidas modernizadoras aparecem acoplados as ordens nacionais. Os esiduos de surtos da modernizagdo na Amazénia em épocas passadas estio materializados nas ruinas, nos prédios piblicos e em outros indicadores intermitentes dos eventos ¢ medidas modeladoras de uma modernizacdo sujeita a limites fisicos e politicos. A crise da modernizagao nos ultimos anos, quando enfocada a partir dos Processos de globalizagao da economia e da sociedade. pode ter uma correspondéncia imediata com o nivel mais avangado de autonomizagaio das articulagdes intemacionais na Amaz6nia. A crise dos “grandes projetos”, que inclui uma poderosa estratégia de concatenacdo de interesses externos viabilizados por governos conjunturas politicas favorecedoras. ¢ um conjunto de grande forca demonstrativa de como, em circunstancias especiais, os lugares ou regides atrasadas podem espelhar, de modo claro, a natureza contraditéria dos processos sociais globais Uma incursdo pelos estudos das questées sociais na Amaz6nia, nas iltimas décadas, constata um flagrante desconforto nas tentativas de enquadramento dos Processos em curso na regidlo, no espectro explicative do Estado nacional, Tal desconforto também se manifesta quando as contradigdes do capitalismo na regidio s80 abordadas como uma orquestragao malévola do capital, passivel de ser evitada por decisto politica da sociedade e de grupos, A sensagdo de existéncia desse constrangimento intelectual dos autores ¢ das perspectivas de andlise & tao maior quanto mais intensa é a caracterizagao de particularidade ou especificidade regional contida no ambito da formagao ¢ do desenvolvimento nacional. E possivel supor que a razio desse desconforto ¢ inconsisténcia tenha a ver com o fato de que, a fim de se manter a regitio como parte do territério nacional, foi necessario que as articulagdes da economia intemacional a considerassem produtiva, vidvel. Houve época em que o pensamento politico liberal no Brasil considerava que sé povos fortes, organizados ¢ produtores de grandes recursos, como o norte-americano. teriam a oportunidade de retird-la do isolamento natural, do estagio de criagdo inacabada.? deslocamento da andllise desses estudos para uma perspectiva tedrica no aleance de fenémenos ¢ processos que transcendam os limites de uma centralidade pode dar outra conotagdo as configuragées residuais da Amazénia. Isto porque processo de integracdo da regio a uma articulago mais ampla do que as fronteiras culturais e geograficas de seus grupos étnicos significou um esforgo profundo de impor uma nova territorialidade aos espagos sociais tradicionalmente constituidos. E curioso que a fabricagéo de uma centralidade com certa uniformidade politico- * Tavares Bastos era defensor desta idéia e usou-a em argumento para justificar a abertura da navegagao da Amaz6nia aos povos, efetivada em 7 de dezembro de 1866. “Em 1870. gragas a um parecer seu, solicitado por Cotegipe, deu-se ao norte-americano George Church a concessio da estrada de ferro que se chamaria Madeira-Mamoré, nome sugerido or Tavares Bastos” (Régo, 1989, p. 129; cf. Bastos, 1937a, p. 377; 1937b, p. 237). administrativa na Amazénia so tenha sido possivel em confronto constante com as populagdes regionais e indigenas. Essa é uma circunsténcia em que as contradigdes desenvolvidas € combinadas pelos processos de globalizagéio adquirem importante forga explicativa, Questdes das relagdes entre etnicidade e globalizagdo, soberania ¢ globalizagao, territério e globalizagdo reabrem problemas da cultura ¢ da historia cruciais para a resignificag&o da sociedade regional no curso da ordem global Indimeros aspectos podem ser vislumbrados no interior deste ponto de vista. As populagdes indigenas, pode dizer-se, foram varias vezes “vencidas” no trajeto regional do desenvolvimento capitalista. Mesmo assim, a dimensio politica da questdo étnica agrega-se as demais contradigdes desse desenvolvimento, rompe as barreiras culturais das nacionalidades e irrompe na sociedade global com muita forga Persuasiva. Os direitos de autodeterminagao sao redefinides no jogo internacional que inclui mediagoes e articulages multilaterais, organizagdes ndo-governamentais, frentes transnacionais de solidariedade com os chamados “povos da floresta”. Ha, na Amaz6nia, uma coalizdo insélita que envolve os direitos de autodeterminagdo sem excluir uma tendéncia formal de recuperagéo da territorialidade tradicional das Populagdes amazénicas. A luta indigena pela demarcagdo de terras ganha simpatia da cidadania mundial e a adeso explicita de blocos, entidades, instituigdes influentes nas relagdes de poder da ordem global. Ganha, também, opositores declarados A questdo do territério configura-se numa problematica maior, que é a de sua fluidez ¢ resignificagao fisica ¢ politica continental ¢ local - base de sustentagao de formulages acerca da perda de uma ordenagdo central soberana - e de questdes de interesses planetarios sobre a biodiversidade, a protecéio aos ecossistemas amaznicos ¢ as suas populacdes regionais. Hoje, a Amazénia pode compor tanto 0 ideério de bem-estar dos consumidores de melhores produtos de todo 0 mundo como um patamar civilizatério de propostas ambientalistas “politicamente corretas” da cidadania mundial. A difusdo do fato de que os sistemas naturais sio interligados em escala planetaria, ¢ de que o bem-estar e a sobrevivéncia dos habitantes da Terra dependem de um equilibrio, reabre as questdes da soberania, do desenvolvimento sustentivel, do zoneamento ecologico ¢ do futuro do planeta. Essa concertagdo inicial inclui medidas ¢ debates globais de protegao ambiental, pesquisa cientifica, mobilizagao politica mundial. Inclui também, em grande medida, perspectivas de recolonizacao da regiao e tendéncias de reinveng&o da natureza, seja com sentido refundador do espirito comunitério de regides, povos, saberes, praticas, seja com principios de autonomia e solidariedade como possibilidades éticas de uma ordem politica emergente. Um conjunto de processos e relagdes sécio-historicas estd imbricado no confronto de novas frentes de ocupagao econdmica. A globalizagiio da economia, possibilitada pela mobilidade vertiginosa de meios. recursos e processos produtivos ¢ por uma capacidade de articulagdo sem limites realizada pela revolugdo da informatica, na era do satélite, configura um conflito, aparentemente inconciliavel, entre interesses agrupados na economia de escala e na economia ecoldgica, Este conflito complexifica o debate entre modelos de ocupagio e de desenvolvimento da Amazénia que se combinam ou se opdem a desterritorializagdo de utopias mundiais € sua reterritorializagao no plano local. © pragmatismo da transplantagdo das forgas Produtivas que caracteriza uma zona econdmica, uma conexdo de escala, um feixe de movimentagao financeira é to contundente quanto um idealismo holistico, que age Tumo a uma ruptura historica com © intervencionismo econdmico intemacional ¢ desterritorializado. Este antagonismo de perspectivas de ocupagao econdmica pode ser “desideologizado” ao ser situado na tematica da globalizagdo, A medida da vivéncia do homem em sociedade ¢ a de uma natureza humanizada onde a poesia de Ovidio. reimerpretada, dé atualidade a fibula de Erisicton. como personagem da decadéncia da civilizacdo* Longe de ser antinémica, a relagdo entre sistema e * “Foi 0 poeta latino Ovidio que nos legou em as Metamorfoses, a fibula de Erisicton, 0 algoz das florestas. Conta como o impio € ambicioso grego violou os bosques consagrados historia parece recuperar-se com a nogao de “humanidade sem fronteiras” articulada 4 possibilidade de uma “sociedade internacional” com base “bioldgica” ¢ “sociologica” da “universalizagao totémica” (Lévi-Strauss, 1970, pp. 189-190). A globalizacdo altera radicalmente a geopolitica da Amazénia, na medida em que a antiga espacializado esta se recobrindo de fungées que no esto restritas 4s coordenadas tradicionais de regulamentagao dos seus espagos internos. Uma nova caracterizagao geografica sobrepuja as condigSes naturais e tradicionais da Amazonia Continental, A requalificago desigual dos espagos, produzidos ¢ incorporados as correntes de globalizagdo, recria a geografia com novos elementos organizadores da dindmica espacial. A substituigdo dos fluxos de matéria por fluxos de informagSes, que criam novas hierarquias e polarizagées (Milton Santos, 1994), altera a qualidade das formas e normas de agregacdo regionais, nacionais ¢ continentais. Como a AmazOnia carrega, historicamente, as segmentagdes referentes as fronteiras © espagos das independéncias sul-americanas, a “questo amazénica continental” acrescenta outros ingredientes as relagdes internacionais, aos acordos ¢ tratados de cooperagtio amaz6nica. “Quanto mais a globalizagdo se aprofunda, impondo regulagées verticais novas a regulagSes horizontais preexistentes, tanto mais forte € a tensio entre globalidade ¢ localidade, entre o mundo e 0 lugar. Mas, quanto mais o mundo se afirma no lugar, tanto mais este Gltimo se torna tnico”.* a Ceres com o ferro do machado e que a deusa, como castigo, mandou a fome voar até seu leito © soprar-Ihe a garganta, Tao logo acordou, Erisicton foi dominado por uma fome atroz. Comia, ¢ comia, sem parar, o que bastaria para uma cidade, e nada o saciava. Exigiu todos os produtos do mar, da terra, do ar, vendeu tudo o que tinha para comprar alimentos, até consumir todos os seus bens, mas a fome continuou a devorar-Ihe o saco sem fundo do ventre, Restou-Ihe apenas a filha, fiel condoida, e ele afinal a vendeu. Por fim pds-se a arrancar os préprios membros ¢ a dilaceri-los com os dentes, Comeu-se, entdo, até desaparecer” (Art, 1994), Sobre 0 mito de Erisicton, ver Hamilton, 1995, pp. 439-440; Gama Kury, 1994, p. 129. “ Milton Santos abre no Brasil um indiscutivel niicleo tematico nas pesquisas da globalizagao que revigora a importancia da geografia nas ciéncias sociais contemporaneas. Os espagos da mundializagao, em Santos, so também construgdes intelectuais de um todo, com estrutura e funcionamento sistémico, que se apresenta como “teatro de fluxos ¢ Repée-se, portanto, a legitimidade do problema de como os lugares se tomam mundializados por outra substincia onde a ciéncia, a técnica e a informagio so incluidas na definigdo das totalidades geogrificas globais, mediante novas racionalizagdes Uma dimensio exposta nas relagdes da Amazinia com o mundo € a que se afigura nas divergéncias mais explicitas entre as “‘identidades” eas “homogencidades”. As concepeGes antagénicas sobre os impactos e tensdes entre as culturas tradicionais e as formas de interferéncia da civilizagdo ocidental na regitio constituem dificuldades de abordagem e de didlogo. Se a complexidade dessa esfera pudesse ser resumida, dir-se-ia que grande parte das discordancias entre campos interpretativos dos fenémenos e processos culturais se da na fronteira da ciéncia com a ficgao, das ideologias com o pensamento cientifico. Problemas ¢ questdes tidos como “resolvidos”, com o avango da autonomia metodolégica da antropologia, so desafiados pela liberdade artistica das abordagens abrangentes da literatura, mesmo quando o lugar, 0 particular, é a unidade que conduz ao desenvolvimento da anélise ficcional. Entre as formulagées referidas que envolvem o debate sobre a mundializagao. da cultura. 0 reexame das representacbes da Amazénia neste plano identifica, pelo menos, dois grandes divisores compreensivos no tratamento das manifestagdes culturais. O primeiro € 0 que se refere ao problema do encontro de mundos diferentes e dos modos em que a transculturagao processa diversidades e diferengas culturais como “um didlogo tragico”, apesar da fascinagao reciproca que o encontro de culturas sempre provoca (cf. Borges, 1992). O segundo ¢ 0 que persegue, na busca da singularidade, da especificidade, uma caracterizagao que represente 0 objetos materiais ¢ imateriais” formadores de subespagos, de subsistemas de utilizagao desigual. “Eis por que os territorios nacionais se transformam num espago nacional da economia intemacional ¢ os sistemas de engenharia criados em cada pais podem ser mais bem utilizados por firmas transnacionais do que pela propria sociedade nacional” (Santos, 1994, pp, 53-55). patriménio cultural particular da Amaz6nia no mundo. Pesquisas recentes sobre 0 imaginario. sobre a tematica de formulacdes que configuram 0 outro, os mundos dispares ou, no dizer de Borges, “mundo de extremos”, permitem supor que esses divisores so conjuntos interpretativos que permeiam a sociologia, a literatura, a antropologia, a economia e a historia. Como em todas as ciéncias sociais, as crises da realidade recrudescem crises e controvérsias entre campos de conhecimento; a globalizagao da sociedade ¢ a mundializagdo da cultura podem, num primeiro momento, parecer “paradigmas” inadmissiveis para uma reflexio da Amazénia “Desencantar” uma regio onde a fabulagdo © o “encantamento” recriam-se constantemente é um desafio a mais que a pesquisa sugere. * So exemplos ilustrativos os estudos de Neide Gondim (1994), que sustenta a tese de que © imaginario que inventou a Amaz6nia contém elementos da mitologia indiana, da historiografia greco-romana, relatos dos peregrinos, missionarios, viajantes € comerciantes (P. 9), € de Joao de Jesus Paes Loureiro (1995), para quem a cultura amazénica é governada pela funcao estética do imaginario: o estético, “resultante de uma relago entre o homem e a natureza se reflete e ilumina a cultura” (pp, 63-64) Il- ZONA FRANCA 1- A producio de espacos na selva A criagdo da Zona Franca de Manaus é geralmente enquadrada no conjunto de ages do Estado autoritario, a partir de 1964, No entanto, a Lei n. 3.173, de junho de 1957, que resultara do projeto de um deputado do Amazonas, Francisco Pereira da Silva, ainda nao sofrera regulamentacao quando os militares assumiram o poder. Castelo Branco fora comandante militar na Amazénia; sabia da necessidade e da expectativa por investimentos de grande porte para a movimentagdo econdmica da regio, A Amazénia era, para Castelo Branco, um desafio para o porte de grandes, ousados € visionarios investidores, E com essa conviccao que ouve de Daniel K. Ludwig o seu plano para a “domesticagdo” da floresta tropical. Néo ha razdo patridtica alguma para convencé-lo acerca das conviegées de Ludwig: os poves subdesenvolvidos terdio acesso 4 educagdo, havera “grande expansdo na demanda mundial de papel” este era o grande negocio justificador de um projeto florestal com Potencial de retorno financeiro entre seis e oito anos (cf Campos, 1994, pp. 732- 733). © nacionalismo militar sempre teve varias nuances. As manifestagdes do Conselho de Seguranga Militar no ofereceram perigo, na avaliagdo de Castelo Branco. a seguranga do territorio brasileiro, “Mr, Ludwig — concluiu Castelo — nao € um perigo para a Amazonia, A Amaz6nia é que é um perigo para Mr. Ludwig, como o foi para Henry Ford. com suas plantagdes de borracha em Belterra. Vamos dar ao investidor ousado a oportunidade de fazer uma experiéncia de domesticagio da floresta tropical” (Campos, 1994, p. 733) A referencia supracitada nao ¢ acidental. O investimento em inffa-estrutura na Amazé6nia. na opinido dominante, $6 seria justificado em fungao de megaprojetos, Roberto Campos encarna a autoconsciéncia do governo militar, neste e em outros aspectos. Assim, o “desenho” da “Operagdo Amazénia” vai emergindo, sob a sua coordenagao. Em face do desafio de enfrentar a Amazénia, 0 objetivo do entdo presidente era eliminar a estratégia do medo, do ressentimento e da omissao. A tarefa de montagem de um esquema global de desenvolvimento da Amazénia envolveu a reformulagdo de mecanismos anteriormente criados, agora avaliados como inadequados; 0 Banco de Crédito da Amazénia e a Superintendéncia do Plano de Valorizagao da Amazonia, “O esquema concebido se assentava num tripé: 0 Banco da Amazénia, a SUDAM ¢ a Zona Franca de Manaus. O Banco da Amazénia substituiria o desacreditado Banco de Crédito da Amazénia, passando a exercer fungdes de banco regional. depositirio de incentivos, a exemplo do Banco do Nordeste, A SPVEA cederia lugar a uma agéncia regional de desenvolvimento, a SUDAM, modelada similarmente 2 SUDENE, com a responsabilidade de administrar os incentivos fiscais e 0 FIDAM (Fundo de Desenvolvimento da Amazénia), canalizando os recursos da rentincia fiscal para projetos prioritarios. A terceira perna do tripé foi a Zona Franca de Manaus, (...) Uma idéia importante nessa decisio foi a implantagao, pelo Peru, de uma zona de livre comércio em Iquitos, que tomnaria essa cidade um pélo rival de desenvolvimento da Amazénia. A criagdo da ZOFRAN se justificaria portanto como parte de uma estratégia preventiva para evitar maior esvaziamento da economia, j4 deprimida, de Manaus. Determinei ao grupo de trabalho que aproveitasse os trabalhos que eu proprio liderara para a criagao da Zona Franca da Guanabara (ZOFRANCA), projeto formulado em 1960, pelo embaixador Sette Camara, governador interino da Guanabara, apés a mudanga da capital para Brasilia, Nessa ocasidio, haviam sido estudados os estatutos de varios modelos de zonas francas, inclusive das ‘Zonas de Comércio Exterior’ de Nova York, Nova Orleans, € Seattle, os estatutos dos portos livres europeus de Trieste e Hamburgo, e varias iniciativas paralelas no Panama, Chile, Argentina e México” (Campos, 1994, pp. 739-740). A ilustragio do fervor a0 qual Roberto Campos langou-se & “montagem” da “Operagdo Amazénica” serve ao propésito de avaliar dois argumentos interligados ¢ ambos muito difundidos dez anos atrés: 0 da iniciativa de “gente da terra” na concepgao da Zona Franca e aquele que destaca a dinamizagdo da economia regional © a criagao de empregos, como ponto positive da decisio do Estado autoritario em desenvolver a regio ¢ integré-la, economicamente, a sociedade nacional. Tanto em Manaus quanto em Belém surgiram autodenominagdes de uma “tecnocracia regional” para dar vigor & idéia de Zona Franca como produto local. Uma anilise oportuna, sem perder tempo com apreciacées sobre as adesdes locais ao militarismo, Tegistra, pela primeira vez, do dmbito académico para os meios de comunicagdo, 0 sentido, a dindmica ¢ os provaveis desenvolvimentos implicitos nos modelos de zonas francas. Numa série de artigos pedagégicos no Jornal do Comércio, de Manaus, sob o titulo “Como se produzem as zonas francas”, Renan Freitas Pinto (1986) expds que nem a originalidade, nem o compromisso com o desenvolvimento regional faziam parte das dindmicas historicamente conhecidas das zonas francas, mas que era ponto pacifico a sua natureza de dinamizagdo ¢ desenvolvimento de setores da economia mundial em regides em proceso de integragdo ao sistema capitalista, Estava inaugurada, a partir dessa abordagem, uma visdo inibidora dos cultores do poder do planejamento no desenvolvimento regional, da onipoténeia do Estado autoritério na efetivagdo de medidas para a Zona Franca de Manaus ¢ do carater “redentor” de um novo ciclo de crescimento econémico para a Amazénia. 1s. Rio perdeu a oportunidade de se tomar, no comeso da década de 60, um precursor das cidades-entreposio como Hong Kong ou Cingapura,(...) Criar zonas de processamento de exportagdes era minha obsessio antiga, E esse seria um dos objetivos fundamentais da Zona Franca de Manaus. Que ela se tenha tornado anos depois principalmente uma zona de Processamento para 0 mercado interno foi, até certo ponto, um desvio de rota. Os artigos 4” € 5* do Decreto-lei n, 288, de fevereiro de 1967, sinalizavam claramente uma orientegd exportadora” (Campos, 1994, p. 140). 15 Muitos aspectos das “impossibilidades civilizatérias” de a Amazénia ser parte constituinte dos caminhos homogéneos propostos pela unidade da nagdo sao desfeitos com este enfoque. A enunciagdo de alguns angulos desses argumentos sdo fundamentais para a configuragdo de um clima em que 0 otimismo. 0 oportunismo e 0 adesismo nao deixavam espago para uma avaliago realista da Zona Franca de Manaus, A explicitagao de uma area de livre-comércio — com posterior implantagao de distritos industriais no quadro de uma estratégia mais ampla do capitalismo, no ambito de uma necessidade crescente da criagao ¢ ampliagao de formas de lucro — e de como essa logica funda desenvolvimentos novos ¢ particulares, em unidades de produgdo que se articulam ao conjunto global da economia capitalista, reduz a Zona Franca de Manaus ao seu significado mais explicito. Outro ponto lembrado por Freitas Pinto é fundamental para esclarecer um posicionamento que impregnou muitas cabecas ilustradas: a Zona Franca de Manaus era o golpe mortal a possibilidade de afirmagiio de um capitalismo nacional independente; a economia “brasileira” ja fora imternacionalizada, especialmente na esfera da producdo industrial. Quando o Distrito Industrial da Zona Franca de Manaus entra em funcionamento, ocorre, simultaneamente, um aumento de investimentos estrangeiros industriais nas do Brasil: idéntico fendmeno esta ocorrendo nas empresas estatais (Freitas Pinto, 1986, p. 2). Confere a criagdo da Zona Franca outra significagdo que waz 4 tona um problema classico, apontado por Hegel. em A filosofia do direito: o carater limitado da sociedade burguesa ao resolver internamente suas contradigdes crescentes ¢ tender, mediante um movimento que se reproduz para fora, a reprodugdo da expansao capitalista, criando novos mercados e produzindo outras oportunidades de negocios (cf. Hegel, 1967, 149-152). Harvey (1982) aponta nessa consideragao de Hegel a abordagem de Marx acerca da tendéncia de as sociedades ampliarem seus Problemas internos tomando como recurso a expansio espacial da dindmica que os 16 provoca, ao alargar a analise do comércio internacional, do avango mundial da produgo e das formas de transformagdo que esse avango provoca; ¢, ainda, a permanente disposigéo da lei crescente e decrescente da taxa de lucro em racionalizar os meios e processos da produg&o capitalista.? Longe de ser um problema restrito a questdes locais, a Zona Franca de Manaus incluia elementos constituintes da historicidade do capitalismo ¢ dos seus desenvolvimentos mais complexos e recentes, por tratar, entre outros aspectos, de avancos técnicos irreversiveis na sua dindmica de producdo de espacos. Em 1976, segundo a pesquisa “A nova divisdo internacional do trabalho” (cf. Freitas Pinto, 1986), 49,5% de mais de mil empresas brasileiras eram estatais, 24.4% eram empresas privadas nacionais ¢ 22.1% empresas estrangeiras. Freitas Pinto destaca duas observagdes desses dados. A primeira refere-se 4 tendéncia ao aumento da participagdo de empresas estrangeiras em dez anos e, ao mesmo tempo, a0 processamento da compra de um grande niimero de empresas nacionais por empresas estrangeiras. A segunda diz respeito ao fato de que, embora tenham crescido setorialmente, 0 campo de ago ¢ a capacidade produtiva das empresas estatais, no houve ampliagdo significativa de empresas novas nesta drea em contraste com 0 aumento do capital estrangeiro no controle das empresas industriais nacionais. Estas, “em sua maioria constituiam-se como concessiondrias ou mantenedoras das grandes empresas estrangeiras” (idem, p. 5). ‘A andlise em aprego inclui outros componentes vitais para a subsequente interpretagdo de abordagens sobre zonas francas: a tendéncia ao desenvolvimento de produtos mundiais em diferentes partes do mundo ¢ o fato de, a exemplo de outras, a Zona Franca de Manaus constituir uma regido produtiva do mercado mundial descentralizada. impondo-se sobre 0 protecionismo nacional de paises que ja “Hegel propée, em poucas palavras, solugdes imperialistas e coloniais para as Contradigées internas de uma sociedade civil fundada na acumulacdo de capital” (Harvey, 1982, pp. 417-418) detinham a exclusividade da produgao industrial para o atendimento do mercado externo. Para estes paises, uma zona franca nao deveria produzir para o mercado mundial porque jé havia, em seus territorios, empresas estrangeiras produzindo mercadorias com esta finalidade (idem), A discusso sobre a expansio geogrifica das relagdes econdmicas na estabilizago global do capitalismo repde o papel da produgdo e/ou da desativagao de processos de trabalho ¢ estruturas industriais em regides envolvidas pela economia mundial, inclui experiéncias localizadas controversas. Na Amazénia, os exemplos das passagens do capital pela regido so surpreendentes. A estrada de ferro Madeira- Mamoré, contempordnea de outras construgdes da malha ferroviéria brasileira e hoje conhecida como a “estrada dos mortos”, passou cingiienta anos sendo construida e menos de cingiienta anos sendo utilizada. Foot Hardman trata o tema no circuito da “transposigéo do reino das fantasmagorias para o espeticulo”, das “formas cadenciais. intermiténcias e descompassos da modernidade industrial”. (...) “A vertigem fantasmagérica do homem modemo possui um mesmo fundo, tanto nos “centros” como nas ‘periferias’ do sistema. Variam as figuras, a intensidade, as especificagdes. Mas a sensagdo de deslocamento perene, 0 corte das raizes, as peripécias da retina, a navegaco a deriva so fendmenos experimentados, desde o inicio da Idade moderna. cada vez mais em escala planetéria” (Hardman, 1991, p. 17). A constatagao mais utilitéria nao deixa de conter a perplexidade desses descompassos. “A grande ironia da construgdo da estrada de ferro Madeira-Mamoré € que, ao ser concluida, © comércio da borracha que ela deveria beneficiar iniciava sua decadéncia, A selva voltou a ocupar a floresta” (Esteves, 1993, pp. 49-50) Sujeita aos fluxos ¢ refluxos da economia internacionalizada, a Amazénia tambem sofre as variagdes de riqueza e de ruina de um mundo acometido de periodos de expansto e de estagnagdo, de bem-estar e de depressdes. No plano mais amplo. € possivel admitir que 2 ordem pés-guerras reestruturou as relagdes politicas € econdmicas em termos de avango da internacionalizagao da economia, cujas consequéncias estenderam-se a todas as partes do globo. Hobsbawm destaca, entre varias, a importancia, em primeiro lugar, “da produgo de uma ‘economia mista’ que a0 mesmo tempo tornou mais facil aos Estados planejar e administrar a modemizagao econdmica”, a maior renda aumentou a demanda de produtos e servigos basicos ¢ de luxo, expansdo que “democratizou 0 mercado” (Hobsbawm, 1995, p. 264). Outra consequéncia, em segundo lugar, foi a multiplicagio da capacidade produtiva da economia mundial, que possibilitou uma divisio internacional do trabalho mais elaborada e sofisticada, permitindo néo 6 a explosdo do comércio de produtos industrializados dez vezes maior, mas também a descentralizacdo da Revolugdo Industrial, apesar de a Era do Ouro, que estava ancorada nos paises-sedes do capitalismo. nao restringir-se a nenhuma regido (idem, pp. 264-265). A avaliacdo dessa expansdo parte dos efeitos da Guerra Fria, que provocou nas relagdes ocidentais quatro itens de consenso: o sistema comercial e financeiro global ndo poderia mais entrar em colapso, nem resultar na “autarquizagio” de economias nacionais; a substituigio da libra pelo dolar como a unica moeda capaz de conter os potenciais riscos contra a estabilizagdo: a suplementagao publica ao funcionamento do mercado para evitar sua estagnacio; e. ainda, 0 desemprego em massa, No entanto, as reformas do capitalismo conduzidas pela Guerra Fria, que criaram a ordem mundial desse periodo. executadas pela ONU, Banco Mundial e FMI, nao funcionaram idealmente conforme os planos. mas se mantiveram no cardter internacional de suas articulagdes. E a partir de 1960, como consequéncia também dessa intemacionalizagdo crescente, que “uma economia cada ver mais transnacional se configura, ou seja, que um sistema de atividades econémicas para 0 qual os territorios © fronteiras de Estados no constituem 0 esquema operatorio basico, mas fatores complicadares. No caso extremo. passa a existir uma “economia mundial’ que na verdade nfo tem base ou fronteiras determindveis e que se estabelece, ou antes impée limites ao que mesmo as economias de Estados muito grandes e poderosos podem fazer. Em dado momento, no inicio da década de 1970, uma economia transnacional assim tornou-se uma forga global efetiva. E continuou a crescer. no minimo mais rapidamente que antes, durante as Décadas de Crise apos 1973. Na verdade, seu surgimento criou em grande parte os problemas dessas décadas”* quadro de intensificagao da intenacionalizagdo da economia e da transigaio para outro nivel de realizago das relagdes mundiais deve-se, na opiniao de Galbraith, a uma mudanga basica na dindmica da produgdo. Se antes as economias mais avancadas e capitalizadas obrigavam as demais proteger-se dessas vantagens das primeiras, posteriormente as desvantagens das indiistrias jovens foram suplantadas pela mobilidade, agressividade e simplificagdio que passaram a exercitar contra a complacéneia e a burocratizago dos empreendimentos pioneiros. Dois resultados imediatos alteram esse aspecto da dinamica industrial: 0 suprimento de ‘mao-de-obra torna-se mais facil para as industrias novas, uma demanda espontanea flui para _os empreendimentos emergentes, “a industria basica desloca-se, inexoravelmente, na diregdo da forca de trabalho nova, sdfrega e barata. (..) A vantagem dos paises novos quanto a forga de trabalho permanece. © nos paises industriais mais antigos as atitudes econdmicas adaptam-se a isso. Ao invés de, como antes, exigirem a protegdo das indisstrias incipientes comeca-se a exigir, nesses paises mais antigos, a protegao das indiistrias velhas ¢ senis contra os paises recém- chegados e seus salarios mais baixos” (Galbraith, 1994, pp, 23-25), A anélise de Galbraith n&o esquece de assinalar que a mudanga do relacionamento entre a economia e a politica mudou radicalmente a partir dessa dinmica das relagdes econémicas; também nao esquece de referir 0 valor que a nogao de determinismo econémico, utilizada por Marx, tem na abertura de uma * Hobsbawm (1995) apdia-se em dados para sustentar que a formacdo da economia mundial foi acompanhada de crescente miernactonaltacdo: “Entre 1965 ¢ 1990, a Porcentagem do produto mundial destinado as exportagdes iria duplicar” (p. 272)

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