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CECILIA MEIRELES } OBRA Po Nem osso de ouvido pela terra tua, Teu canto é perdido, passaro da lua Péssaro da lua, por que estis aqui? Nem a cangéo ta precisa de ti CANCAOZINHA DE NINAR © Mak o convalescente mira. — Que pena, que pena no seu mirar! —- Como quem namora, suspira, fe quem tem medo de se cnamorar. Agua, que pareces um ramo de flores, 9 nome dos humanos amores mora na espuma do mar... © céu o convalescente my — Que pena, que pena no seu mirur! — Como quem vai morrer, suspira, © quem tem medo de ressuscitar Nuvem, que pareces um ramo de flores, © nome dos fumanos amores mora no halito do ar: EMBALO ADoRMECO EM ‘Ti_minha vida, — flor de sombra ¢ de solidao — da terra aos céus oferecida para alguma constelagai Nao pergunio. mais motivo, nao pergunto mais a razdo de viver no mundo em que vivo, pelas coises que morrerao. Adormego em ti minha vida, imével, na noite, e sem voz. A lua, em meu ‘peito perdida, ¥é que tudo em mim somos nbs, cr VAGA MOSICA 163 hd mios de amor para a tua auséncia, E esse € 0 vestigio que nao se some: resto de todos, teu proprio resto. ~ Coisa que passas, como 6 teu nome? CANGAO MINIMA, No Mustéxio do Sem-Fim, equilibra-se_um planeta. E, no planeta, um jardim e. no jardim, um canteiro; no canteiro, ‘uma violeta, ¢, sobre ela, 0 dia inteiro, entre o planeta e 0 Sem-Fim, a asa de uma borboleta. A VIZINHA CANTA DE QUE ONDA Sai tua vor, que ainda vem dmida e trémula, — corpo de cristal, = coragao de estrela...? Tua voz, planta marinha, drvore crespa € orvalhada: — ramos transparentes, = folhas de prata?. E de onde vai resvalando um puro, limpido orvalho: — durdvel resina, = dolorida tégrima. ..? PEQUENA CANCAO AJA, Hernindes Passaro da lua, que queres cantar, essa terra tua, sem flor e sem’ mar? 162 CECILIA MEIRELES | OBRA POETICA algué nbrard qi pousou, na terra, sobre uns VELHO ESTILO Abri_mi 08 fechei meus bragos, — nio tinha nada! De ti s6 resta 0 que se consome. Vsis para. a morte? Vais para. a. vids? Tua presenga nalguma parte 6 jd sinal da tua partida E eu disse a todor desse teu fo, er ¥ VAGA MOSICA 61 Dos linhos claros da aveia fez o vento retorcidas, rolas, miserdveis teias. Que sopro de ondas estranhas! Que sopro nos cemitérias! pelos campos e¢ montanhas! Que sopro forte € profundo! Que sopro de acabamento! Que sopro de fim de mundo! Da varanda do colégio, do pitio do sanatério, miravam tal sortilégio ‘olhos quietos de meninos, com esperangas humanas © com terrores. divinos. A tardinha serenada foi dormindo, foi dormindo, despedagada e calada, S6 numa ruiva amendocira uma cigarra de bronze, por brio de cantadeira, girava em esquecimento @ sanha enorme do vento, forjando 0 seu movimento num grave cintico lento.. VELHO ESTILO CorPo MARTIR, conkego © teu meérito obscura: tu soubeste ficar imével como 0 firmamento, para deixar passar as estrelss do espitito, ardenda no seu fago e voando no seu vento, Corpo miirtir que é& dor, que és transe, que és silencio, © onde, obediente, vai batendo 0 coracio, sei que foste esquecido e, quando um dia te acabares. nao 6 por ti que os olhos chorario, MEIRELES,- 6 160 CECILIA MEIRELES | OBRA POBTICA Por que fazer © menor. gesto. se nada sci, se nada sofro, se estou perdida em mim, to perdida came 0 som da voz no sell sopro? LEMBRANCA RURAL CHtio VERDE ¢ mole. Cheiros de selva. Babas de lodo. A encosta barrenta aceita o frie, toda nua. Carros de bois, falas ao vento, bragos, foices. Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva Casebres caindo, na erma tarde. Nem existem na histéria do mundo. Sentam-se 4 posta as mes descalgas. E tao profundo, o campo, que ninguém chega a ver que € triste. ‘A roupa da noite esconde tudo, quando passa. Flores molhadas. Ultima abelha, Nuvens gordas Vestidos vermelhos, muito longe, dancam nas cercas, Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze. Debaixo da ponte, a Agua suspira, presa Vontade de ficar neste sossego toda a vider bom para ver de frente os olhos turvos das. palavras, para andar & toa, falando sozinha, enquanto as formigas caminham nas Arvores DESCRICAO. AMANHECEU pela terra um vento de estranha sombra, que a tudo declarou guerra, Paredes ficaram tortas, animais enlouqueceram eas plantas cairam mortas. palido mar tao branco levantava ¢ desfazia um vyerde-livido flanco. E pelo céu, tresmathadas, iam nuvens’ sem destino, fem fantasticas. brigadas. CECILIA MEIRELES OBRA POETICA Nota bditoriat Arnisio CoUTINHO Poesia do Sensivel ¢ do Imagini Novicit Bingvifica e Ribltopiafie Dancy Dastasceso Fortune Criica Manto oF AxDRane, OsMtar PIMENTEL, CUNKA LEO, José PAULO MOREIRA D4 FONSECs MEnorTt DEL Picettta, NUNO DE Sanat, Pavio RON, MLRILG MENDES, OKO GasPak SIMOrs, Xilogracuras de Gracitta FUENSALIDG \e sis” . RIO DE JANEIRO, EDITORA NOVA AGUILAR S.A.. 198 ae VAGA MOSICA 139 Que nao alvoreca nova ocasiao! Que 0 tempo se esqueca de recordagao! (Nem minha cabega Rem meu coragao, Solidao!) EM VOZ BAIXA SEMPRE que me vou embora As soliddes deste mundo conhego-as todas de cor. Desse-me & sorte um cavalo, ou um bareo em cima do mar! Relincho ou marulho — alguma coisa que me acompanhar! Mas nao. Sempre mais comigo vou levando 0s passos meus, alé me perder de todo no indetetminado Deus. CANGAO SUSPIRADA. Pox QUE DESEJAR libertar-me, se € tio bom nao ver o teu rosto, se ando em meu sonho como, num rio, alguém que € feliz e estd morto? Por que pensir em qualquer coisa. se tudo esta sobre a minha alma: vento, flores, aguas, estrelas, e miisicas de noite’ e albas? Nos e6us em sombra, hi fontes_mansas que em silencio e esquecida bebo. Flui © destino em_ minha bo € a elernidade entre os meus dedos. Is CECILIA MEIRELES. | ORRA POETICS ‘Andar,.. Perder 0 seu passo nna noite, também perdida. ‘Um poeta, & mereé do espago, nem necessita de vida, Andar. fenguanta consente Deus que seja a noite andada. Porque 9 poeta, indiferente. anda por andar’ — somente. Nao necessitn de nada. PARTIDA Do Rico semeado, da fonte bebida, do sono dormido, vou sendo levada.. (Os outros no sentem que estou de partida, sem mapa, sem guia — com dats marcad: No estrondo das guerras, que valem meus pulses? No mundo em desordem, meu corpo que adianta? ‘A quem fazem falta, nos campos convulsos, mets olhos que pensam, meu libio que canta? Por dentro das pedras, das nuvens, dos mares, cruzando com as Aguias, es mortos, os peixes, vou sendo levada para outros lugares, & mundo sem deuses, sem sonhos. sem tares! embora me prendas, para que me deixes! EMBALO DA CANCAO Que A voz adormega que cania a cangio! Nem o eéu floresca nem floresga 0 chao. ($8 — minha cabesa, 6 — meu coracio. Solidao.) oo RITMO © riTMo em que gemo doguras e magoas € tim dourado remo por douradas aguas. Tudo, quando passo, olha-me © suspira. — Sera meu compasso que tanto os admira? EPITAFIO DA NAVEGADORA A Gaxtdn Figueins Se TE PERGUNTAREM quem era essa que ds areias e gelos quis ensinar @ primavera; € que perden seus othos pelos mares sem deuses desta vida, sabendo que, de assim perdé-los, ficaria também perdida; fe que em algas ¢ espumas presa deixou sua alma agradecida; essa que sofreu de beleza e nunca desejou mais nada; gue aunca teve uma surpresa em sua face iluminada, dize: “Eu nfo pude conh sua hist6ria est4 mal contada, Ja, mas seu nome, de barca e estrela, foi: “SERENA DESESPERADS” 144 ILIA MEIRELES / OBRA POETICA © REI DO MAR MUTTAS VELAS. Muitos remos, Ancora € outeo falar Tempo que naveyaremos no se pode calcular Vimos as Pleiades. Vemos agora a Estrela Polar. Muitas velas.- Muitos’ remos. Curta. vida, “Longo mar Por agua brava ot serena deixamos nosso cantar, vendo a vor como & pequena sobre 0 comprimento doar. Se alguém ouvir, temos pena: 86 cantamos pata omar. . Nem tormenta nem tormento nos poderia parar. (Muitas velas, Muitos remos. Ancora é outro falar...) Andamos entre agua e vento procurando 0 Rei do Mar. MAR EM REDOR MEUS OUViDOS esto coma as conchas sonoras: miisica perdida no meu pensamento, nna espuma da vida, na areia das horas Esqueceste a sombra no vento. Por isso, ficaste ¢ partiste, ¢ ha finos deltas de felicidade abrindo 0s bragos num oceano triste, Soltei meus anéis nos aléns da savdade. Entre algas ¢ peixes vou flutuando a noite inteira, Almas de todos os alogados chamam para diversas. lados esta singular companheira, T VAGA MOSICA 137 Por assim tio docemente meu mal transformar em verso, oxald: Deus nao. 0 aumente, para trazet 0 Universo de pélo a polo contente! A MULHER E A TARDE 0 DENSo LAGo e/a terra de our até hoje penso nessa luz vermelha envolvendo a tarde de um lada e de outro. E nas verdes ramas, com chuvas guardadas, € em nuvens beijando os azuis © Os rox0s. Até hoje penso nas rosas de areia hnos_ventos de vidro, nos ventos de ‘prata, cheios de um perfume quase doloroso. Perguntava a sombra: “Que hi pelo teu rosto?” “Que ha pelos teus othos?” — a agua perguntava, E cu pisando a estrada, ¢ eu pisando a estrada, vendo o lago denso, vendo a terra de outo, com pingos de chava numa luz vermelha E eu nao respondendo nada. Sonho muito, fala pouco. Tudo so riseos de louco © estrelas da madrugada. CANGAO DE ALTA NOITE ALTA Norte, lua guicta, miuros trios, praia rasa. Andar, andar, que um poeta nfo necessita’ dec Acaba-se a iiltima porta 0 testo € 9 chao do abandono, Um poeta, na noite morta, no necessita de sono, CECILIA MEIRELES | OWRA POBTICA Os passaros da madrugada nao tem coragem de cantar, vendo 0 meu sonho intermindvel ea esperanga do meu olhar. Procurei-te em vo pela terra, por sobre o mar gas nem pelo sonho, por que insisto em te imaginar? Quando vierem fechar meus oalhos, talvez nao se deixem fechar. Talvez. pensem que 0 tempo val © que vens, se 0 tempo voltar. A DOCE CANCAO A Cristina Christie PUS-ME A CANTAR minha pena com uma palavra tio dy de mancira tio serena, gue. até Deus pensou que fosse felicidad — ¢ nao. pena, Anjos de Tira dourada debrugaram-se da altura Nao houve, no chio, eriatura de que ew ndo fosse’invejada, pela minha voz tio pura Acordel a quem dormia, fiz suspirarem defuntos Um areo-iris de alegria da minha boca se erguia pondo 0 sonho ¢ # vida juntos © mistério do meu canto, Deus nao soube, tu nao viste. Prodigio imenso’ do_pranto: = todos perdidos de encanto, s6 eu morrendo de triste! VAGA MUSICA was PEQUENA CANCAO DA ONDA Os petxes de prata ficaram perdidos, com as velas ¢ 05 remos, no meio do mar. A areia chamava, de longe, de longe, oouviaese a areia chamar e chorar! A areia tem rosto de _masica © 0 resto é tudo luar! Por ventos contrarios, em noite sem luzes, do meio do oceano deixei-me rolar! Meu corpo sonhava com a areia, com a arvia, desprendi-me do mundo do mar! Mas 0 vento dew na ar ‘A areia é de desmanchar. Morro por seguir meu sonho, Jonge do reino do mar! CANGAO DA MENINA ANTIGA. A Diogo de Macedo Esta € a dos cabelos Jouros e da roupinha encarnada, que cu via alimentar pombos, sentadinha numa escada, Seus cabelos foram negros, seus vestides de outras cores, e alimentou, noutros tempos, a eorvos devoradores. Seu cranio estara vazio, seus ossos sem vestimenta, —e a terra haverd sabido © que ela ainda alimenta, Talvez Deus veja em seus sonhos — ou talvez nao veja nada — que esse € a dos cabelos louros € da roupinha encarnada, 146 CECILIA MEIRELES / OBRA PORTICA que do alto degrau do dia as covas da noite, escuras, desperdigou sua vida elas outras criaturas. .. REGRESSO AL. , Xammar (Campo perdido. Misicas suspirando, ai! sem meu ouvido!) Bois esperam, mirando: corpo cheio de céu, luas nos olhos. tecordativos. Rodas, charruas, sol, abelhas. Colar de prata dos rios sobre gargantas vermelhas. (Bu andava batalhando — ai! como andei batalhando! — com mortos € vivos, campo!) Levai-me a esses longes verdes, cavalos do vento! * Pois o tempo esta chorando por nao ver colhide ‘meu contentamento! EPIGRAMA A servico da Vida fui, a servigo da Vida vim; 36 meu softimento me instru, quando me record de mim. (Mas toda magoa se dilui: permanece a Vida sem fim.) | VAGA MOSICA De altos mastros ainda rondo tua lembranga nos are O resto é sem importincia. entamente, nao hi nada de ti, sobre este horizonte, desde que ficaste ausente Mas & isso o que _me mata: sentir que esd nao sei onde. mas sempre na minha frente. Nao acredites em tudo que disser a minha boca sempre que te fale ow cante. Quando nao parece, & muito, quando & muito, € muito pouco, © depois nunca € bastante... Foste 0 mundo sem ternura fem cujas.praias morreram, meus desejos de ser tua A figua salyada me escuta fe mistura nas arcias meu pranto e © pranto da lua, Pensa no que me di e como falavas, © como te rias Tua voz mora ‘no mar, A mim nao fizeste rir © nunca viste chorar, (Porque © tempo sempre foi Tongo para me esqueceres © curto para te amar.) CANGAO QUASE MELANCOLICA Paxet as Acuas do mew sonho para teu rosto se-mirar. Mas 86 a sombra dos meus othos ficou por cima, a procurar. CECILIA MEIRELES / OBRA POETICA | VAGA MOSICA RECORDACAO Acors, 0 cheiro aspero das flores leva-me os olhos por dentro de suas pétalas. Eram assim teus. cabelos: twas pestanas eram assim, finas e curvas ‘As pedias limosas, por onde a tarde ia aderindo, tinham a mesma exalugao de agua secrets, de talos molhados. de pole de sepulero ¢ de ressurreigio. E as borboletas sem voz dangavam assim veludosamente. Restitul-te na minha meméria, por dentro das flores! Deixa virem teus alhos, como besoures de nix, tua boca de malmequer orvathado, € aquelas tuas maos dos inconsolaveis. mistérios, com suas estrelas e cruzes. € Muitas coisas tio estranhamente escritas nay suas nervuras nitidas de folha, — e incompreensiveis, incompreensiveis. MEU AMOR nao tem importincia nenhuma. jo tem © peso nem de uma rosa de espumat Desfotha-se por quem? Para quem se perfuma? © meu amor nao tem importancia_nenhuma. CANCOES DO MUNDO ACABADO. 1 MEus OLHoS andam sem sono, somente por te avistarem de uma tao grande distancia, 137 AGOSTO. SopRs, VENTO, sopra, vento, ai, vento do més de’ agasto, Passa por sobre meu rosto © sobre o meu pensamento. Vai levando meu desgosto! Langa destes altos montes 3s frias covas do oceano meu sonho sem horizontes, claro, puro e sobre-humano. Sem saudade mais nenbuma te oferego meus segredos, para serem flor de espuma que a praia mova em seus dedos, quando se vestir de bruma Mova entre a Ina inconstante e a inconstantissima areia, que todo 0 mundo assim creia ‘meu sonho morto e distante, morto, distante, acabado, 6 vento do cé profundo! que tudo & bom, no passado, que nos fez sofrer, no mundo, ao ter de ser suportado. MUSICA, Do Lavo de oeste, do lado do mar, hé rosas silvestres para respirar, © 0 chao se reveste de musgos de luar, Do lado de oeste, dg lado do mar, hd um suave cipreste para me embaler. Pssaros celestes me virdo cantar. 148 CECILIA MEIRELES Coragao sem mestre, sonho sem lugar, quem ha que me empreste arco de embarcar? Do lado de oeste, do lado do mar, descerei com Vésper até me encantar. Quero estar inerte, sob a chuva eo luar. Tu, que me fizeste, me virés buscar, do lado de ceste, do lado do mar? CANGAO EXCENTRICA ANDO A PROCURA de espago para 0 desenho da vida. Em niimeros me embs € perco sempre a medida. ‘Se penso encontrar saida, em vez de abrir um compasso, Projeto-me num abrago © gero uma despedida. Se volto sobre 0 meu passo, € 4 distancia perdida. Meu corasdo, coisa de ago, comesa a achar um cansigo esta procura de espago para 0 desenho da vida. Jé por exausta © descrida ngo me animo a um breve trago: — saudosa do que nio faco, — do que fago, arrependida. CANGAO QUASE INQUIETA DE UM Labo, a eterna estrela, ¢ do outro a vaga incerta, OBRA POETICA VAGA MOSICA (sto, sto coisas que digo, que invento, para achar 4 vida boa A cangio que vai comigo € a forma de esquecimento do sonho sonhado a toa...) © RESSUSCITANTE A Ester de Caceres Mes pfs, minhas_maos, meu rosto, mew flanco, — fogo de papoulas! E hoje, lirio. branco! Pela minha boca, por minhas olheiras, — arroios. partidos! E hoje, albas inteiras! Eu era o guardado de sinistras’ covas! E hoje visto nuvens cindidas © novas! Vi apodrecendo, com dor, sem lamento, meu corpo, meu sonho © meu pensamento! E hoje, sou levado por entre as caidas coisas, —~ transparente! (Aroma sem nardo! Fuga sem violéncia!) E de cada lado choram doloridas mas de antiga gente, 12 CECILIA MEIRELES / OBRA POETICA Os marinheiros. cantayam Ai, noite do mar nascida! Estrelas de luz instavel saiam da agua perdida, Pousavam como assustadas em redor da minba vide. Dos teus horizontes quietos nunca mais me esquecerci. Por longe que ande, estou perto. Toda em time encontrarei Foste © campo mais funesto por onde me dissipei. Remos de sonho passavam por minha melancolia Como um naufrago entre os salvos, meu coragdo se volvia. — Mas nem sombra de_palavras houve em minha boca fria Néo rogava. Nao chorava. Unicamente mortia. CANGAO DO CAMINHO Por AQUI vou sem programa, sem rumo, sem nenhum itinerario. O destino de quem ama é vario, como 6 trajeto do fume. Minha cancdo vai comigo. Vai doce. Tio sereno & seu compasso que penso em ti, meu amigo. = Se fosse. em vez da cangao, teu brago! Ab! mas logo ali adiante — tio perto! — acaba-se a terra bela Para este pegueno instante, decerto, € melhor ir 96 com ela. VAGA MOSICA 9 meu pé dangando pela extremidade ‘da espuma, © meu cabelo por uma planicie de luz deserta Sempre assim de um lado, estandartes do vento. do outro, sepuleros. fechados. E eu me partindo, dentro de mim, ara estar-no mesmo momento de ambos os lados. Se existe a tua Figura, se és © Sentido do Mundo, deixo-me, fujo por ti, nunca mais quero ser minhat (Mas, neste espetho, no fundo desta’ fria luz -marinha, como dois bagos peixes, nadam meus olhos & minha procura.... Ando contigo — e sozinha. ‘Vivo Jonge — e acham-me aqui...) Fazedor di minha vida, nao me deixes! Entende a minha cangao! Tem pena do meu murmirio, retine-me em tua mio! Que eu sou gota de merctirio, dividida, desmanchada pelo chao VIGILIA DO SENHOR MORTO TEV ROSTO PassaVA, teu nome corria por esses lugares do sol e da lus, Como se contava a tua biografia! E eu, pela esperanga de poder ser tua, como vim de longe, teimando com a terra, deixando suspiros para cada rua! Guerreiro cortudo de injérias de guerra wo trouxe consigo nenhuma ferida Como esta que tenho e que jé se nfo cerra 180 CECILIA MEIRELES / OBRA POETICA Por tanta subida, por tanta descida, aqui dou contigo, no teu morto leito, eu, que vim por ti salvando a minha vida! Fria sombra, apenas, teu rosto perfeit. Covas de cegueira, teus olhos, apenas. Muro de siléncio teu tombado peito. Sangue que tiveste, por perdidas cenas Serramou-se, Jonge, & € po do po sem gl preso no destino das coisas terrenas, Por que serei triste com a minha meméria, diante do teu_corpo sem auréolas? Triste pela minha viagem’? pela tua histéria? Este € © Senhor Morto — e este, somente, existe. Noite de vigilia, sem mais esperanga, alguma coisa em mim o assiste que nao se vai, que nao se cansa, VIAGEM No PERFUME dos meus dedos, hd um gosto de softimento, como o sangue dos segredos no gume do. pensamento. Por onde & que vou? Fechel_ ay portas sozinha Custaram tanto a rodar! Se chamasse. ninguém vinha. Para que se ha de chamar? Que caminho estranho! Eras coisa tio sem forma, Ho sem tempo, tio sem nada. sircoviris do mew dihivio! — que nem podias ser vista nem quase- mesmo pensada, Ninguém mis cuminha? rr VAGA MOSICA 1s A noite bebewte as cores ara pintar as estrelas Desde entio, que € dos meus olhos? Voaram de ‘mim para as nuvens, com redes para prendé-las. Quem te aleangara? Dentro da noite mais densa, navegarei sem rumores, seguindo por onde fores come um sonho que se pensa. Por onde & que vou? EPIGRAMA DO ESPELHO INFIEL. A foo de Castro Osirio ENTRE 0 DESENHO do meu rosto © 0 seu reflexo, meu sonho agoniza, perplexo. Ah! pobres linhas do meu rosto, desmanchadas do lado oposto, e sem nexo! E a ligrima do seu desgosto sumida no espelho convexo! EXILIO Das Tuas Savas to verdes nunca mais me esquecerei. Meus labios mortos de sede para as ondas incline. Romperam-se em teus rochedos: 86 bebi do que chorei Perderam-se os meus suspiros desanimados, no vento, Recordo tanto 0 martitio em que andou meu pensamento! E meus sonhos ainda giram como naguele momento, 192 CECILIA MEIRELES | OBRA POETICA medusas, estrelas, roseas € vermelhas, fe algas verdes, r- VAGA MOSICA 165 Nés! — E no entanto eu sei que estio brotando pela noite lisa as lagrimas de uma cangao pelo que nao se realiza.. © a vor do vento ‘que nia are! sofrera, de quem teve pena, antigamente. EXPLICAGAO A Alberto de Serpa © PENSAMENTO é triste; 0 amor, insuficiente: © eu quero sempre mais do que’ vem nos mil Deixo que a terra me sustente guardo 0 resto para mais tarde. res. Deus nao fala comigo — ¢ eu sei que me conhece. A antigos ventos dei as ligrimas que tina. A estrela sobe, a estrela desce — espero a minha propria vinda. (Navego pela meméria sem margens, Alguém conta a minha histéria @ alguém mata os personagens.) ROMANCINHO. A Maria Dulce DISSERAM QUE ELE no vinha: mas assim mesmo o esperei Veio o rei, veio a rainha, — no veio 0 filho do reit PONTE Fricit, ponte: arcovicis, tia de aranha, gaze de gua. espuma, nuvem,. ‘lua. Quase ‘nada quase a morte, Por ela passeia, passeia, Sem esperanga_nenhuma, mett desejo de te amar. Céu que miro? — alta neblina, Longo horizonte, — mas 86 de mar. E esta ponte que se arque’ como um suspiro, — ténue renda cristalina — ser possivel que transporte a algum lugar? Por ela passeia, passeia meu de jo de te amar, Em franjas de areia, chegada do fundo Kinguido do. mundo. vezes, uma sereia vem cantar. E em seu canto te nomeia. CECILIA MEIRELES Por isso, a ponte se alteia, ¢ para longe se langa, nessa fragil teia, - invisivel, fina renda cristalina que a morte balanca, torna a balangar (Por ela passeia meu desejo de te amar.) VISITANTE Ques pesce ao adormecimento que me envolve © em que me perco. Feito um vento abrindo um cerco de penumbras, num jardim, € toca © meu pensamento com uma lamina de aurora, €.esereve-me, indo-me embora: Vive! € lemipracte de mim"? Quem, do mar do esquecimento, busca areias de lembranga. mas 120 sem forga e esperanga que outra vez volve a0 seu fim, mira seu rosto, um momento, a luz do meu sonho triste, compreende que nao existe © pergunta: “Por que vim?" GAITA DE LATA SE 0 AMOK ainda medrasse, aqui ficava contigo, ois gosto da tua face, desse teu riso de fonte. € do teu olhar antigo de estrela sem horizonte Como, porém, ji nao medra, ida tum com ‘a sorte sua! (Nao nascem lirios de lua pelos coragdes de pedra...) OBRA POETICA vee 191 E as ligrimas que correram extraviaram-se, na rede da espuma crespa Inglesinha de olhos ténues volteia, volteia no mar, em silencio Moluscos fostoresventes cobigam os arabescos de suas orelhas. Peixes de olhos densos bebem suas veias azuis ¢ violetas. Embalada em seus cabelos, noutros mundos entra, sempre mais imensos. Por entre anémonas, nadadeiras trémulas, sibitos espelhos, A cor dos planetas pinta seu rosto de cera e banha seus pensamentos. (Porque ela ainda pensa: algas pelo ventre, ais e verdes, medusas pelos artelhos. E ainda sent. Sente e pensa e vai serena embaladi em seus cabelos.) Inglesinha de olhos t8nues, com trangas de metro © meio, cor de lua nascente. Branca ampulheta foi vertendo, vertendo séculos inteitos. Desmanchow-the 0 seio, desfolhou-the os dedos as madeixas, 190 CECILIA MEIRELES | OBRA POETICA ] inglesinha do veleiro, com trangas de metro ¢ meio embaragando os peixes. Medusas roseas nos dedos, algas pela cabe azuis © verdes. Desceu muitos degraus de seda € alravessou muitas paredes de vidro fresco, Embalada em seus cabelos, navegava frios reinos de perso: por paisagens de anémonas, Eaudas. near nadadeiras trémulas. Mirava a lua seus dentes, seus olhos — de oceano cheios, seus léhios — hirtos de sede. Muito tempo, muito tempo. Medusas roseas nos dedos, pelo peito, estrelas, braneas e vermelhas, Em praias de triste areia, © vento, sem o veleiro, chorava de pena Inglesinha de olhos ténues, ao longe suspensa em liquids teias! Vestidos sem consisténci: medusas réseas.no ventre, algas pelos joelhos, azuis e verdes Landes ermas vao sofrenda e morrendo porque a perderam. Pelas aguas transparentes, suspiros que foram vé-ls ficaram prisioneiros. vaca Mosica 167 DESPEDIDA ADEUS, que € tempo de marear! Por que procuram pelos olhos meus rastros de chor iregdes de olivar? Quem fala em praias de cristal ¢ de ouro, abrindo estrelas nos aléns do mar? Quem pensa num desembarcadouro? —F hora. apenas, de marear, Quem chama sof? Mas quem procura o vento? € Jincora? © bussola? © rumo e lugar? Quem Tevanta do esquecimento esses fantasmas de perguntar? Lengo de adeuses, ja perdi... Por onde? — mut terra. andando, ¢ 36 dé tanto andar Nao faz mal. Que ninguém responde um lenge movido no ar. Perdi meu tengo © mew passaparte, — senhas initeis de ire chegar. Quem lembra a fala da ausénci num mundo sem correspondénei Viajante da sorte na barca da sorte, sem vida nem morte Advus, que € tempo de marear! TARDIO CANTO CANTA © MEU nome agreste, cheio de espinhos nome que me deste quando andei nos teus caminhos Canta esse nome hoje perdido, no tempo largo, sem mais nenhum sentido. margo, 168 CECILIA MEIRELES Como esperei teu canto, noites e dias! Necessitava. tanto! Tu nao podias. Ougo 0 teu grito ardente, cigarra do deserto! Mas ja ndo sou mais g Nao ando mais 130 perto: CANTIGA DO VEU FATAL Por causa do teu chapéu, por causa do teu vestido, vais matando teu mario. Quem diré que por um v se arma tamanho alarido de ficar homem perdido! Que se levanta um escareéu, por esse fino tecido de algas de siléncio urdido! Por causa do teu chapéu, por causa do teu vestido, vai morrendo teu marido! Morre com cara de réu, pensando em cada pedido que tem de ser atendido. Com isso, ind ter ao of E tu, de rosto garrido, haverds véu bem comprido! Esse vai ser 0 troféu de tanto ai, tanto gemido, tanto tempo arrependido. Porque, por esse chapéu, porque, por esse vestido, j esta 'morto 0 teu marido, $6 nao est num mausoléu: Vai por ten brago, transido, mal-comido € mal-roupido. OBRA POETICA VAGA MOSICA 139 Nao meta fundos de floresta nem de arhitréria fantasia. Nao... Neste espago que ainda resta, ponha uma eadeira vazia ISSAO 4 Afonso Duarte Na QueRMESse da miséria, fiz tudo 0 que no devia Se os outros se riam, ficava séria; se ficavam sécios, me ria. (Talvez 0 mundo nascesse certo; mas depois ficou errado. Nem longe nem perto se encontra 0 culpado!) De tanto querer ser boa, misturei 0 eéu com a terra, © por uma coisa dtoa level meus anjos i guerra ‘Ags mudos de nascimento fui perguntar minha sorte, E dei minha vida, momento a momento, por coisas da morte. Pus caleidoscépios de estrelas ‘entre cegos de ambas as vistas. Geometrias imprevistas, quem se inclinou para vé-las? (Talvez o mundo nascesse certo; ‘mas evadiu-se 0 culpado. Deixo meu coragio — aberto, A porta do céu — fechado,) NAUFRAGIO ANTIGO A Margarete Kuhn INGLesinits de othos ténues, corpo ¢ vestido desteitos em aguas solenes;

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