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Editora da Unicamp Rua Cectlio Feltrin, 253, Cidade Universitfria - Baro Geraldo CEP 13084-110 - Campinas - SP - Brasil Tel.: (0192) 39.3720 Fax: (0192) 39.3157 anatol rosenfeld PRISMAS DO TEATRO Sy [eT Ff cvrorrenrecina == Ay Copyright ©1993. by Editors Perspective ids neni Calpain Pio {Cnn Basa div Se) Rosa Ana TOT Pra oT Atl Rosell. SS Pa Peete ‘ion Unie i Pd Coins oa ene ud Canpns 18). (Dea, 7 258) ISBN £527.00." Pepe) Isa 531002182 (Bip Isa 45268205 (nea) 1. Teo 2. Teo in erin Tha, Se, aia cop-n2 (edema 1 Te ii crise mB Dinstosresrvados “Avenida Brigades Las Ann 3025 (01401-00 Sie Paulo-SP~ Brit ‘Telefon (01) S55-8368 Fax (11) 885-6878 193 NOTA DOS EDITORES Nao 6 um acontecimento rotinciro: trés editoras - a Perspectiva, a da UNICAMP e da USP ~ se unirem pa- ra a publicagio de sete livros de um tinico autor. Mas nem 6 comum o autor, nem so comuns 0s livros. O au- tor 6 Anatol Rosenfeld, ensafsta, critico de literatura e de teatro, pensador, mais conferencista do que professor re- gular, cujos vinte anos de falecimento a publicagao des- ses livros procura rememorar; os sete livros que agora ‘io publicados so inéditos deixados por Rosenfeld, Tealmente conservados € criteriosamente editados por seu grande amigo ¢ editor, o Professor Jacé Guinsburg. Nao 6 dificil apontar a importancia de tais livros: a pr6- pria variedade dos assuntos - desde os mais densamente teGricos, como os que esto em Texto/Contexto IT, até os hist6ricos que tratam da cvolugdo do Teatro ou os mais, ambiciosamente antropolégicos, tratando de futebol ou a4 de ritos afro-brasileiros - acrescenta elementos precio- sos para uma mais ampla caracterizagio do intelectual 4que foi Anatol Roscafeld. Um intelectual europeu que, a exemplo de alguns raros compankeiros de geragio, como Paulo Ronai ou Otto Maria Carpeaux, soube fazer da terra brasileira de adocdo um cenério proficuo para uma extraordinéia presenga cultural. Neste sentido, a home- nagem que as trés editoras agora lhes prostam € a mais justa e a mais adequada: néo apenas o acrescentamento de obras inéditas a uma bibliografia jé bdsica na Cultura Brasileira mas 0 resgate de textos fundamentais que ve- sham enriquecer esta mesma Cultura, propiciando um pensar rigoroso ¢ inventivo sobre temas sempre atuais, Jodo Alexandre Barbosa Eduardo Guimardes R NOTA DOS ORGANIZADORES A preparacéo deste volume, assim como dos demais que retinem postumamente os escritos de Anatol H. Ro- senfeld, é resultado de uma longa pesquisa, iniciada em 1988, nos arquivos organizados por Nanci Fernandes ap6s a morte do autor em 1973. ‘Contando j4 com precedentes que levaram, em anos anteriores, A publicacéo, por Nand Fernandes ¢ J. Guinsburg, de coletineas de trabalhos provenientes do mesmo fundo, como Teatro Modemo, O Mito ¢ 0 Heréi no Modemo Teatro Brasileiro, Esirutura e Problemas da Obra Literéria, O Pensamento Psicol6gico, Mistificacoes Literéras, a presente organizacio conclui um antigo pro- jeto da Editora Perspectiva ~ dar acesso ao piblico lei- tor & extensa e diversificada contribuisao do eritico Ana- tol H. Rosenfeld, que, tendo de sair da Alemanha hitle- rista, se radicou no Brasil no fim dos anos 30. Sua incisi- B servados a contos, poesias, crénicas ¢| ‘conclufdos, de caréter ensaistico. Af escritos das sucessivas etapas que 0 Jongo dos quarenta anos de sua vida 1 dos e reflexdes sobre filosofia, pol. m nosso cestética, literatura, teatro, imprensa, jos, arti- nigo p6blica ¢ propaganda, omas em Tal € o conjunto que agora vem uropeus cionando uma visio abrangente do la. sxpreen- do pela producio interessada, sensiv wltura © observador sagaz ¢ analista profundo Rosenfeld. volumes, “juais re- $ sete, ja “ados os “rreu ao “fo estu- pologia, va e pertinente intervenclo no debat meio se fez através de um sem-ném gos e conferéncias que focalizavam pauta na literatura, nas artes € no pe ¢ internacionais, como penetrantes ¢ dentes abordagens de aspectos ¢ pro da sociedade brasileiras. PRISMAS DO TEATRO © pensamento teatral de Anatol H. Rosenfeld en- contra certamente as suas principais sinteses no livro Teatro Epico ¢ em ensaios publicados em Texto/Contexto I, como € 0 caso de seu antolégico tratalho “O Fenéme- no Teatral”. Contudo, a sua abundante produgio nessa rea esté longe de esgotar a sua esséncia nas obras acima citadas: O fato de ele thes ter dado uma forma acabada nao x- clui a substéncia de tudo 0 mais que escreveu sobre 0 tema, A questo ndo se reduz a critérios rigorosos, pudo- icos ou restrigdes autocriticas, nem tampouco as condigdes em que os diversos materiais foram com- postos, isto é, se provieram ou nio de sua colaboragéo em jornais, revistas, palestras, aulas ¢ verbetes para enci- clopédias. Tudo 0 que chegou a publcar obedeceu, de ——— um modo geral, as mesmas injung6es ¢ uns néo foram trabalhos menos encomendados ou realizados profissio- nalmente do que outros, uma vez que tal era o meio de subsisténcia do Autor. Poder-se-ia até dizer que a esta cexigencia, inclusive, talvez se deve a presteza com que Ode dominar estilisticamente a escritura portuguesa. E claro que a outra componente deste fato reside na inegs- vel sensibilidade literéria ¢ capacidade intelectual do es- itor. De qualquer modo, os estudos de teatro aqui inclut- dos oferecem duplo interesse ao leitor de hoje. De um ado, no seu aspecto t6pico, que é sempre abordado com ampla erudigéo aguda percepcéo critica, constituindo, por si, aportes a literatura especializada. De outro, per- ‘item acompanhar, como por uma sucesso de passos, 0 caminho que levou o Autor a algumas das idéias centrais de scu pensamento sobre o texto e 0 paleo. ‘Um outro angulo ¢ constitufdo por um conjunto de cxtticas de espetaculos que Anatol H. Rosenfeld publicou na imprensa de 1964 a 1973. O material af englobado, além de permitir um confronto entre as concepgGes te6- ricas expostas na parte anterior e a aplicagdo de seu pen- samento a prética teatral, constitui um testemunho im- portante sobre um momento rico e inquietante do teatro nacional, podendo servir de valioso ponto de referéncia para um estudo do movimento cénico da época e de seu ulterior desenvolvimento, ‘Ambos os segmentos que formam este volume con- formam, pois, a presenca viva de um mestre em estética « critica teatral, cujo espirito dialético soube, como pou- cos, acompanhar € ajuizar 0 processo das idéias, das obras ¢ das tendéncias no palco brasileiro, J. Guinsburg Abilio Tavares 16 SOBRE TEATRO... 1. A Esséncia do Teatro. 2. Da Criagéo do Ator. 3. A Poca como Expressio Estética... 4, Tragédia . : 5. Que 6 Mise-en-Scéne?........ 6. Aspectos do Teatro Moderno 7. Stanislavski sem Método . 8, O Teatro Documentétio. 9. Cabaret oe... ee SOBRE ESPETACULOS (1964-1973) . . . 1, Andorra no Teatro Oficina. . 2. Navalha na Nossa Carne... 3. O Teatro Brasileiro Atual... . 4. O Balcao, de Garcia. 5. O Ano Teatral de 1970... 6. Osman Lins ¢ 0 Teatro Atual . 7. Aspectos do Teatro Contempordneo. 8, Irracionalismo Epidémico........ 9. Individualismo ¢ Coletivismo...... 10. Living Theatre ¢ 0 Grupo Lobo. 11. Os Deménios do TUCA.. 12. O Rito do Amor Selvagem 13. “Mais Respeito ao Texto”... 14, Teatro em Crise... 8 103 19 173 179 139 199 207 213 219 21 237 243 SOBRE TEATRO 1. AESSENCIA DO TEATRO © teatro, longe de ser apenas vefculo da pega, ins- trumento a servigo do autor e da literatura, 6 uma arte de préprio dircito, em fungo da qual € escrita a peca. Esta, em vez de servir-se do teatro, 6 a0 contrério mate- rial dele. O teatro a incorpora como um dos seus ele- mentos. O teatro, portanto, néo ¢ literatura, nem vefculo, dela. E uma arte diversa da literatura. O texto, a peca, li- teratura enquanto meramente declamados, tornam-se teatro no momento em que so representados, no mo- mento, portanto, em que os declamadores, através da ‘metamorfose, se transformam em personagens. A base do teatro ¢ a fuséo do ator com a personagem, a identifi- cagio de um eu com outro eu ~ fato que marca a passa- gem de uma arte puramente temporal e auditiva (litera- tura) a0 dominio de uma arte espaco-temporal ou audio- visual. O stanus da palavra modifica-ss radicalmente, Na 21 a literatura so as palavras que medeiam o mundo ima- gindrio, No teatro séo os atores/personagens (seres ima- gindrios) que medeiam a palavra, Na literatura a palavra € a fonte do homem (das personagens). No teatro 0 ho- mem a fonte da palavra. A esséncia do teatro é, portanto, o ator transforma- do em personagem. O texto um bloco de pedra que seré enformado pelo ator (dirctor). O texto contém ape- nas virtualmente o que precisa ser atualizado e concreti- zado pela idéia ¢ forma teatrais. A atualizacio é a encar- nagio, a passagem de palavras abstratas ¢ descontinuas para a continuidade sensivel, existencial, da presenca humana, Ao encammar o mundo apenas sugerido pelas palavras, ao preencher as lacunas deixadas pelos vocébu- los, 0 ator (diretor) tem de fazer uma escolha radical en- tre mil possibilidades diversas. Nessa definigao, indivi- dualizagio e concretizacao de conceitos universais, cola- boram o diretor, 0 cendgrafo, 0 ator ¢ o proprio piblico. £ nesse trabalho que reside a responsabilidade criativa dos representantes do teatro: o texto apresenta apenas, um sistema de coordenadas que deve ser preenchido pela misica dos movimentos, pelas inflexdes da voz, pelas mil ‘nuangas indefiniveis da mfmica ¢ do gesto. Isso explica 0 fato de haver s6 um texto de Hamlet e centenas de Ham- lets diversos. O texto deixa indeterminada uma infinida- de de momentos. A grande flexibilidade do teatro vivo permite preencher os vios ¢ vacuos de mil maneiras, conformé a época, a nagdo, a concepgao ¢ 0 gesto. A metamorfose, fato fundamental do teatro, € sim- bolizada pela mascara. A méscara 6 0 s{mbalo do disfar- ce. O deus grego da méscara € Dioniso, a cujo culto se atribui a origem do teatro grego. Um coro ritual entoava cantos ditirdmbicos ¢ executava danga em homenagem a0 deus da fertiidade, do vinho, da embriaguoz ¢ do en- tusiasmo, E no estado da exaltacdo, fustio e unido misti- ‘ca, do entusiasmo, isto 6, do “estar-em-deus” ou do “deus-estar-em-mim” - € neste estado de éxtase (do ! 2 rr “estar-fora-de-si”) que o crente se transforma em outro ser, se funde ndo s6 com os companheiros mas com 0 préprio deus chamado & presenca pelo ritual. Esse éxtase ainda ocorre quando Joio da Silva ou Maria das Dores péem a méscara, se disfarcam ¢ se transformam em ‘Macbeth ou em Antigona, Mas esse disfarce & a0 mesmo tempo uma revelacio. Joao da Silva precisa encobrir, disfarcar a sua particula- ridade, seu papel civil ou social de cidadao brasileiro, pa- ra assumir o papel do her6i, mercé do qual representa ‘exemplarmente a condigéo humana, as vicissitudes trégi- eas ou cOmicas da existéncia humana. O disfarce 6 uma rovelacdo; € preciso encobrir Joao da Silva para que ele se identifique com Macbeth decifrando o mistério huma- no, Ao apagar-se 0 cidadio real, pela mascara, transpa- rece a verdade mais profunda da ficedo que se adensa em Edipo ou Fedra. ~Todavia, nfo s6 0 ator se ideatifica com Edipo. Também o piblico se funde com ele. Todos participa da metamorfose. Todos vivem intensamente a condi¢io ‘humana, nos seus aspectos trégicos ou cémicos. O gran- de espeticulo é, ainda hoje, uma celebragio festiva, Es- ‘quecemos a nossa particularidade de comerciantes, pais, filhos; esquecemos a cotagio do délar ea maldade dos, concorrentes. Libertamo-nos da nossa condicio particu- Jar para participar do destino exemplar dos herGis ¢ para, transformados no outro, vivermos a essncia da nossa condi Evidentemente, a metamorfose nio ¢ real. B apenas simbélica. O processo € imaginério. Nenhum ator sente realmente as dores do martirio no palco. Se de fato as sentisse, estarfamos diante da realidede © no poderia- ‘mos permanecer calmamente nas poltronas. Tanto os atores como 0 ptblico, no mais intenso éxtase do auto- esquecimento, mantém aberto um pequeno olbo te, reservando-se uma margem de lucdez e de distancia, Se Dioniso é 0 deus da fusio e do abraco ébrio, Apolo é 23 i o deus da distancia e da lucidez. O teatro grego, ao unir © canto ¢ a danca, do coro ao dislogo dos atores, uniu 0 ‘mundo telGrico-demonfaco de Dioniso ao mundo olimpi- co de Apolo. Nesse sentido, o teatro representa de um modo exemplar esse ser déplice, composto de natureza e espirito, que € 0 ser humano. A partir daf revela-se um novo aspecto da metamor- fose. Ela é, de certo modo, a origem do ser humano. O homem, de fato, s6 se toma homem gracas a sua capaci- dade de separar-se de si mesmo e identificar-se com 0 outro. Essa faculdade é um dado basico da antropologia. ator apenas executa de forma radical 0 que distingue 0 homem: desempenhar papéis no palco do mundo, na vi- da social. Como 0 hébito faz o monge, assim a mascara faz. a persona. Nao & sem razo que o termo grego para ator ~ hipocrites ~ assumiu o sentido que conhecemos. Para fundir-me com outro, preciso sair de mim, ex- pandir-me além dos limites do pr6prio eu. S6 assim, se- parado de'‘mim mesmo, tornando-me objeto de mim, consigo definir-me como Ego e conquistar a autocons- ciéncia. $6 a0 identificar-me com outrem, conquisto a minha prOpria identidade. O animal € macigamente idén- tico a si mesmo, ndo tem a capacidade do hipocrtes de desempenhar papéis, de libertar-se da sua unidade natu- ral, projetar-se além de si mesmo, B preciso desdo- brar-se para conquistar um mundo imaginério, projetar- se além, tomar posse do reino espiritual. Essa duplicidade eleva o homem além da sua con- digdo natural, através do espftito, da capacidade de ex- pansio ilimitada. Mas, nem por isso, continua um ser na- tural, finito, limitado. Essa contradicao entre a finitude da sua natureza ¢ a expansividade infinita do espirito é a raiz tanto da tragédia como da comédia, Na tragédia par- ticipamos do nautrdgio do her6i, que, embora sendo fini- to, aspira ao infinito. Mas mesmo no fracasso revela-se a dignidade espiritual do homem. Sentimos exaltada a nos- sa condigdo humana na grandeza do heréi, na sua liber- dade, na sua vontade inquebrantével. ora ‘Jana comédia ressalta a fragilidade humana. A dig- nidade € desmascarada. E revelada sua condigéo precé- ria. Enguanto ser espiritual, o homem traga planos gran- diosos; mas por isso mesmo ndo vé a realidade préxima e cai sobre uma casca de banana. A duplicidade humana € a0 mesmo tempo trégica e cOmica, Nela residem a gran- doza c a fraqueza do homem. ‘Vemos, pois, que o teatro é uma imagem do homem, nao s6 a0 apresenté-la através de figuras particulares como Fedra, Otelo ou Woyzeck, mas também pela sua prOpria esséncia, A metamorfose, excmplarmente execu- tada pelo ator, define o homem. Este texto 6 a condensagio de uma palestra que fiz na Hebraica*, em 3 de setembro de 1966, Proferi esta palestra para inaugurar uma série de cursos dos quais a parte dedicada a extenso cultural, 20 que tudo indica, no vingou. Parece-me necesséria a anélise deste fracas- so parcial, que julgo lamentével, pelo departamento cul- tural do clube. Tenho a convicedo de que a atividade tea- tral amadora de um grande clube como a Hebraica so- mente tem sentido se & ocupacSo eénica propriamente dita sc ligam atividades culturais mais amplas. O traba- Iho e&nico, como tal nao ultrapassaré o mero divertimen- to inconsegiiente, a servigo de vaidades individuais ¢ en- contros galantes, se nfo se inserir em propésitos mais sé- rios e amplos, propésitos que de modo algum excluem 0 divertimento mencionado, O puro prazer no jogo teatral deve permanecer intacto. O teatro, porém, é uma arte dificil. Néo se exige de um teatro amador perfeicio, Contudo, na medida em que tena a veleidade de se dirigir a um piblico maior = que ultrapasse 0 circulo dos parentes ¢ amigos -, impée-se uma dedicacéo mais séria. Sem trabalho inten- so, também devotado & ampliagéo cultural, mesmo se * Associagio Brasileira A Hebraica de Sto Paulo. 25 —————— ete TE ee fosse apenas por razGes de disciplina, sem esse empenho © espetéculo amador, destinado a apresentar pecas de qualidade, geralmente colher4 6 0 aplauso dos parentes f € amigos ¢ o siléncio cortés daqueles que amam o teatro. Na minha palestra procurei comunicar algo do gran- de significado do teatro, A festa, o divertimento, fazem parte dele, Entretanto, precisamente 0 teatro amador, desligado de interesses comerciais, deve impregnar-se daquele sentido mais profundo de celebracio de que ten- tei dar uma idéia na aula inaugural. 2. DA CRIACAO DO ATOR* E evidente — embora pareca suscitar por vezes di- vidas - que o teatro, mesmo quando recorre & literatura dramética como seu substrato fundamental, ndo pode ser | reduzido a literatura, visto ser uma a:te de expresso pe- culiar. No espetéculo j4 ndo € a palavra que constitui e medeia 0 mundo imagindrio. E agora, em esséacia, 0 ator que, como condiggo real da personagem fictiia, constitui através dela o mundo imagindrio e, como parte . deste mundo, a palavra. Contudo, nao se trata apenas de ‘uma inversdo ontol6gica. Concomitantemente, 0 espeté- . ‘culo, como obra especifica, por mais que se ressalte a jimportancia da literatura no teatro literério, passa a ter valor cénico-estético somente quando a palavra funciona * Ano pubeado oo Suplemeno Lieto, 0 Esado de $ | Paulo de mao de 962 26 27 no espago, visualmente, através do jogo dos atores, E ca- acterfstico, tanto no sentido ontol6gico como estético, que os gestos geralmente precedem as palavras corres. pondentes (ainda que se trate apenas de uma fracio de segundos), E a presenca sensivel daquele que owve 0 ov- tro, sem falar, 6 de grande importincia, j& que a reacéo do interlocutor mudo, no palco, se transmite de certo modo a platéia. © ator, em cuja criagéo para maior simplicidade se considera incluido o trabalho miltiplo do diretor, “pre- enche” com dados sensfvcis, audiovisuais, 0 que 0 con- texto verbal da pega dramética necessariamente deixa na relativa abstracéo das universalias conceituais. Esse pre- enchimento é um trabalho eminentemente inventivo, vis- to os dois textos da peca ~ didlogos e rubricas - deixa- rem om cada instante larga margem a escolha dos dados sensfveis. A palavra pode celebrar, nunca concretizar © ser individual e singular, somente dado a atos que in- cluem a percepsio imediata. Cada oragdo abre assim um extenso campo de possibilidades para a plena concreti- zagio ¢ atualizagio audiovisuais do texto. Com efeito, a personagem nele dada ndo € um ser humano integral, nio o € no pleno sentido sensfvel;é, no melhor dos casos, apenas o complexo do que ¢ literariamente aprecnsfvel. ( jogo fisionmico, a melodia sonora, o timbre da voz, 0 crescendo e diminuendo, accelerando ¢ ritardando da fala © dos gestos, a vitalidade e tensZo, os siléncios - tudo quanto distingue a pessoa cxistente nao pode ser definido pela palavra. O texto dramético somente projeta, através da seqliéncia unidimensional dos significados, o sistema de coordenadas psicofisico, cuja conversio para a tridi- mensionalidade cabe a cena € ao ator. Parece que foi Coquelin quem disse que uma s6 palavra deve ser capaz de provocar légrimas ¢ risos pela mera inflexio da voz. do autor. Assim, a encarnagéo da palavra pelo ator ¢ pela cena Parete ser a “realizagio” do mundo imaginério projeta- 28 do pelo texto c, com isso, de certo modo, uma “traigéo” do jogo imaginative. No entanto, € dbvio que apenas aos atores e & cena (como mera materialidade) cabe ser real. ‘As personagens ¢ 0 mundo em que se situam so irreais, imagindrios; so “seres puramente intencionais”, como corre em qualquer outra arte; com a diferenca de que a realidade mediadora das pessoas ficticias, em vez de con- sistir em cores, mérmores, sucessio de sons ou sinais ti pogréficos, € agora a de pessoas; daf surgir a impressio da “realizacdo” do texto. Entretanto, trata-sc apenas da atualizagao e concretizacao plenas do mundo intencional da peca, sem que em nada lhe seja diminufda sua catego- ria de imaginagao. Se nio fosse astim, o espetaculo dei- xaria de ser arte. Em toda obra artistica se associa a0 plano real, de um “ser em si”, ¢ fundado nele, outro pla- no, de ordem imaginéria, de um “ser apenas para n6s”, plano esse apreendido pelo apreciador adcquado. Assim, na miisica se funde, na mente do apreciador, com a su- cessio fisico-actistica dos sons, perfeitamente real, 0 pla- no da “duracio”, isto & de sinteses ¢ totalidades signifi cativas, cujo ser € irreal e cuja “audigdo interna’ exige ‘uma aco especifica do apreciador adequado. O que pa- rece ser um ato tinico e realmente como tal se impoe € na verdade um tecido complexo de atos que ultrapassam de longe a mera percepcio. Posto isso, € supérfluo acentuar que as personagens do espetéculo, apesar da sua concretizacéo sensivel maior do que a do texto, conservam plenamente 0 caré- ter de personagens ficticias, em comparacio as re maior coeréncia (mesmo quando incoerentes), maior ‘exemplaridade (mesmo quando banais), maior signifi- cagio e transparéncia, e maior riqueza ~ nfo por ser a ppersonagem mais rica do que a pessoa ¢ sim por causa da concentracao, selegio, densidade ¢ estilizagao do con- texto imagindrio que retine os fios dispersos e esfarrapa- dos da realidade num padrio firme ¢ consistente. Assim, o fendmeno bisico do teatro, a metamorfosc 2 ——E— do ator em personagem, nunca passa de “represen- tagio”. O gesto € a vor sio reais, séo dos atores; mas 0 que revelam ¢ irreal. O desempenho € real, a aco de- sempenhada ¢ irreal. Por mais séria que esta seja, a pré- ria seriedade € desempenhada, tendo, pois, caréter Indi- 0. Visto, porém, que os significados ~'o mundo revela- do pelo desempenho ~ sio aquilo a que se dirige prin palmente 0 raio da intengo do ptblico, ocorre normal- mente o fendmeno do aparente “desaparecimento” do ator, que — se néo for mau artista ou, por outra, ator brechtiano ~ se torna “invisivel”, “transparente” & per- sonagem. Esta, no sentido exato do termo, nio é “perce- bida” Ga que € mera ficgdo); € apreendida por atos espontineos da imaginagdo dos espectadores, que, em virtude desses mesmos atos que visam as personagens e ‘no aos atores, passam a atribuir aquelas e nio a estes 10 gestos e palavras reais. Assim, a entidade constitutiva dos gestos ¢ palavras passa a ser a personagem “funda- da” no ator. De qualquer modo, por mais intimas que sejam a fusdo ¢ identificacao entre a realidade sensivel do ator € a irrealidade imagindria da personagem, a metamorfose ‘nunca ultrapassa 0 plano simbélico. O fato de seres hu- manos (em vez de cores ou outros matcriais) encarna- rem seres humanos € um dado basico da antropologia, estudado por indmeros pensadores, desde George Mead ¢ Huizinga a Plessner ¢ Sartre. O ator apenas executa de forma exemplar e radical 0 que & caracteristica funda- mental do homem: desempenhar papéis no paleo do mundo, na vida social. Que a méscara faz a persona co- mo 0 hébito o monge é assinalado de mil maneiras pela lingua, © G. van der Leeuw afirma que “a filosofia dos trajes ¢ a filosofia do homem. No traje reside toda a an- tropologia”. Quem perde seu traje, ficando desnudo, perde sua face, seu Ego. O ator, ao disfarcar-se, revela a esséncia do homem: a distancia em face de si mesmo que Ihe permite desempenhar os papéis de outros seres hu- manos. O homem ~ disse Mead ~ tem de “sair” de si 30 = © para chegar a si mesmo, para adquirir um Eu proprio. E cle 0 faz tomando o lugar do “outro”. Segundo Nicolai Hartmann, € somente no expandir-se e autoperder-se ‘que a pessoa se encontra a si mesma, ¢ somente na iden- tificagdo consigo mesma ela é uma estrutura capaz de ‘expanséo, isto 6, um ser espiritual. A autoconsciéncia pressupée nio-identidade e identidade ao mesmo tempo; a identificacdo pressup6e a distancia. No momento em que o homem sc descobre, ele esté além de si mesmo. Conguistando esta présence a soi, a pessoa se desdobra, se reflete, se fragmenta; é livre, no coincide consigo. A capacidade de cindir-se ¢ exercida pelo homem nas suas atividades especializadas cotidianas, ao isolar de si mesmo 0 “pedago” envolvido na ocupacdo, No ator, contudo, esse fragmento abrange todo 0 corpo e toda a vida interior, que se tornam materiais da sua arte; ele se cinde, a si, em si mesmo, mas permanece, ainda as- sim, aquém da fissura. Trata-se de uma entrega contro- Jada, 0 “pequeno oho vigilante” permanece aberto ¢ fis caliza a criacdo imagindria que & identificacéo, nao-iden- tidade. A extrema complexidade dos problemas envolvidos desafia qualquer sondagem. Nem 0 equipamento concei- tual usado nos famosos escritos de Diderot ou Coquelin, nom o dos seus adversirios “emociorais”, esta a altura das dificuldades. Em termos légicos, os gestos, a mimica © © jogo vocal, através dos quais o ator exprime a cemogo, munca chegam a ser sinais de estados ou atos in- ternos reais, isto 6, “sintomas” que anunciem tais estados @ atos. Permanecem expressio das imagens desses pro- cess0s fntimos, isto 6, simbolos. Tém, portanto, cardter “semintico” e nao sintomético. E precisamente essa in- tercalacZo do mundo simbolico e imaginério que permite a0 homem distanciar-se de si mesmo, conquistar a auto- consciéncia ¢, desse modo, desempenhar papéis, dar forma & sua atuacao. Todavia, as expressées fisicas e vocais - a0 contré- 31 ii de lea rei ania rio das palavras que sfo quase sempre simbolos ~ cos- tumam ser, pelo menos na vida real, sinais imediatos da realidade (psfquica). Daf a grande forca expressiva dos gestos e inflexdes da voz. Essa forca nao se perde no de- sempenho cénico, embora o sinal passe agora a funcio- nar como simbolo, E essa intensidade expressiva retroa- ge sobre 0 proprio ator. Verifica-se uma inducio psicofi- sica, a miitua intensificagZo dos movimentos fisicos ¢ psfquicos desencadeada pela imaginagZo, a ponto de a imagem da emocSo se revestir de toda a aparéacia da emogéo real. A imagem assume formalmente os aspectos dinamicos da realidade, sem, contudo, adquirir seu “peso material”. Cabe, mesmo ao ator emocional, manter-se no limiar da “realizac4o”, sem nunca ultrapassé-lo. Se 0 ultrapassasse, 0 desempenho passaria a ser auto-ex- pressao, sintoma Uc emogdes reais. Tornar-se-ia, portan- to, mera reagio involuntéria, “instintiva”. Como tal, no possuiria espontancidade real, ativa, no pertenceria 20 reino da arte e do espirito. O desempenho como articu- lagio simbélica ou linguagem, como obra, enfim, tem es- trutura teleolégica, nexo que € alheio aos movimentos que sio sinais. Estes traem o que os simbolos comuni- cam. Enquanto estes articulam e formulam a emocdo, os sinais fazem parte dela. Mas talvez néo se deva negar 0 ‘momento excepcional em que 0 grande ator, pelo menos em determinada fase da elaboracio do papel, supera a dicotomia ¢ alcanga um ponto em que liberdade ¢ neces- sidade coincidem. ‘Seja como for, o desempenho do ator é uma criagio imagindria, espiritual, como a de todo artista. Dentro do sistema de coordenadas esbocado pelo dramaturgo abre-se-lhe um vasto campo de elaboracio ficcional para articular ¢ compor as formas simbélicas dos gestos ¢ in- flexdes vocais, para ritmizar, selecionar, estilizar e distri- buir os tracos e acentos psicofisicos, cuja melodia inte- sgzal constituird a personagem. Nao importa se a imagem total se the compe pouco a pouco a partir de pormeno- res, estes tiltimos refundidos depois a partir dela, ou se 32 de uma intuigéo prévia da imagem decorreré desde logo ‘© conjunto de detalhes. De qualquer modo, a personagem nao “viverd” sem a sintese ativa, produto da espontancidade livre (para ci- tar a definigao cléssica da imaginacéo, ainda repetida por Sartre), porque sem ela o ator néo terd a imagem inte- ‘gral da personagem e, assim, nao poder fundir-se com esta, nem tampouco distanciar-se dela, se atuar numa pega de Brecht. © ator, portanto, no é garcom. Participa do preparo do prato. A melhor prova disso € 0 fato de que quatro grandes atores, mesmo interpretando lealmente 0 texto, riam quatro personagens profundamente diversas a0 representarem 0 mesmo Hamlet literdrio. problema que se levanta 6: de onde, afinal, tira 0 ator a imagem humana concreta de que o autor apenas Ihe pode propor o sistema de-coordenadas? E de supor- se que, guiado por cste, submerja numa realidade fun- damental, anéloga aquela que originalmente inspirou 0 autor. O texto projeta um mundo imaginério de pessoas e situagdes que sugere ao ator certa realidade humana aque lhe € acessivel mercé da sua experiéncia externa e in- terna ¢ conforme o proprio nivel e riqueza espirituais. A base disso verifica-se 0 ato criativo: « reconversio da ex- periéncia humana, de certo modo da propria realidade, fntima, em imagem, em sintese, em Gestalt que possibili- te a composicao simbélica em termos de uma arte diver- sa daquela do autor. 34 nao se trataré de encontrar as pa- Javras que constituam a imagem vislumbrada pelo poeta sim de compor com o material do pr6prio corpo a ima- gem de uma pessoa, que seja capaz de proferir essas pa- Tavras ou, melhor, de que tais palavras, em tais situagSes, defluam com necessidade. Ao fim, a imagem seré dele, ator (¢ diretor) - transfiguragéo esponténea, imagem da propria experiéncia e das prOprias virtualidades, dentro das coordenadas propostas pela peca. Nao se trataré, evidentemente, da auto-expressao biogréfica ou-psiquica 3B — do ator, como a pega ndo € a do autor. Mas seré a for- mulagdo simbélica, a transposigéo imaginéria das pr6- prias e, portanto, das potencialidades humanas, que sao de todos 6s, como seres humanos, e de que todos nés podemos participar, No fundo, o grande ator no tem modelo; o texto da peca ndo o fornece. A “pessoa” que coloca diante de nés e cujo destino podemos viver inten- samente gracas & identificagdo, mas que, ao mesmo tem- po, podemos contemplar & distancia estética, pelo fato de a identificagdo ser apenas simbélica - essa “pessoa” 0 grande ator no a encontrou em parte nenhuma, a nao ser dentro de si mesmo, Disfarcando-se, ele se revela, re- velando as virtualidades humanas, Demonstra assim que 0 ator € o homem menor capaz. de disfarcar-se, ema virtu- de da “porosidade” do seu corpo a vida intima. E, reve- lando-se, revela duplamente a humanidade: através da imagem especifica que, inspirado pelo autor, dela apre~ senta; ¢ através do mero fato de apresentar esta imagem specifica representando. Ao distanciar-se de si mesmo, celebra o ritual da identificagdo com a imagem do outro, isto 6, do seu tomar-se ser humano. Convida-nos a parti- ‘ipar dessa celebracdo; incita-nos a sair de n6s, através da identificacéo com 0 outro, para reencontrar-nos mais amplos, mais ricos © mais definidos ao voltarmos a nés mesmos. _— 3. APECA COMO EXPRESSAO ESTETICA 3.1. Literatura e Teatro A peca teatral, considerada literatura, € um dos ele- ‘mentos mais importantes do teatro; todavia, nfo 0 cons- titui, néo Ihe € condigio indispensével. O fendmeno fun- damental do teatro € a metamorfose, 0 minus, nada de literdrio, portanto, Hé formas de teatro - de grande teatro — que no se apéiam em textos fixos ¢ hé teatro que mem sequer recorre & palavra. Existem textos que, de ‘ao insignificantes, no constam da hist6ria da literatura, ‘mas, ainda assim, revelam ser boas “partituras” para a representagio teatral. E hd, de outro lado, textos dramé- ticos de altissimo nivel literdtio - os chamados dramas de Icitura — que resultam sem valor teatral. As relagdes, centre palco e literatura s40 complexas. Nao € possivel 35 reduzir o teatro A literatura, como tendem a fazer alguns autores. y Em termos ontolégicos, a diferenca 6 profunda. A ‘camada real ~ isto é, perceptivel - da literatura escrita é dada pelos sinais tipogréficos. Estes, contudo, sendo con- vencionais, geralmente no tém vida prOpria, a nao ser que sc tratc de poesia concreta em que se atribui valor estético & distribui¢do espacial dos sinais tipogréticos. O que, de fato, “funda” a literatura so as sonoridades das palavras ¢ oragdes que, quando a obra é lida, sio “co. dadas” (apreendidas com 0 “ouvido interior”), ¢ direta- mente dadas quando ela é recitada. Por isso, a literatura ‘costuma ser classificada como arte auditiva, No entanto, © que de fato “constitui” a literatura sao as unidades sig- nificativas projetadas pelas oragdes. Através delas e dos seus contextos objetuais se manifestam as camadas mais, profundas da obra - 0 mundo imagindrio de um roman- ce, poema ou pega. Esse mundo revela-nos, por sua vez, aspectos essenciais da vida humana e do universo, inter- pretacées significativas da realidade, em termos tais que ‘no apenas contemplamos ou apreendemos intelectual- mente mas sim também vivemos, com participagio emo- cional, as vidas, situag6es e realidades ficticias, Bem diversa é a estrutura ontolégica de uma repre- sentaco teatral. Enquanto na obra literéria as persona- gens (¢ o'mundo imaginério em que se encontram inse- ridas) dependem das palavras, no teatro as palavras de- pendem das personagens/JA nfo so as palavras a base das quais se constituem as personagens, mas estas que constituem aquelas. A realidade perceptivel cabe, no ¢a- 50, ndo a sinais tipogréficos/ Nem tampouco sio as oragées a camada fundante, mas sim os atores e a cena. Através dos atores e da cena transparece, de imediato, 0 mundo imaginério (¢ os planos mais profundos). O mundo imagindrio apresenta-se, portanto, na literatura de modo muito mais indireto, através da mediagdo de fonemas, oragées, unidades significativas, contextos obje- 56 _ tuais, esquemas lingiisticos preparados para suscitar 0 preenchimento por parte da imaginagio do leitor. Na re- presentagio teatral o mundo imagindrio apresenta-se quase diretamente. Convém dizer “quase”, pois o que se ppercebe no sentido exato sio os atores ¢ cenérios. No en- tanto, ha uma autotranscendéncia imediata da percepcdo para atos de apreensio do mundo imaginério, de modo que este parece ser um dado imediato. B somente no contexto desse mundo imaginério que surge a palavra, que funciona, agora, como na literatura (fonemas, oragées, unidades significativas etc.), mas de modo bem mais expressive, j& que € apoiada pela mimica ¢ pela “

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