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usos Ke abusos da HISTORIA ORAL 22 edigdo Organizadoras Marieta de Moraes Ferreira Janaina Amado Capitulo 12 Usos da biografia* } i | Capitulo 12 Usos da biografia* Giovanni Levi R sons Queneau diz que “houve épocas em que se podia narrar a vida de um homem abstraindo-se de qualquer fato histérico”.) Também poder-se-ia dizer que houve épocas — talvez mais préximas em que era possfvel relatar um fato histérico abstraindo-se de qualquer destino individual. Vivemos hoje uma fase intermediéria: mais do que nunca a’ biografia esté no centro das preocupacées dos historiadores, mas denuncia claramente suas ambigitidades. Em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos individuos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideragéo a experiéncia vi vida; jd em outros, ela é vista como o: terreno ideal para provar a vali dade de hipéteses cientificas concernentes as prdticas e ao funcionamento efetivo das leis ¢ das regras sociais. Arnaldo Momigliano assinalou ao mesmo tempo a ambigiiidade e a fecundidade da biografia: por um lado, “néo admira que a biografia esteja se instalando no centro da pesquisa histérica. Enquanto os primérdios do historicismo tornam mais complexas quase todas as formas de histéria politica e social, a biografia permanece algo relativamente simples. Um individuo tem limites claros, um numero restrito-de relagdes significativas... A biografia se abre a todo tipo de pro- * Le » Giovanni. Les usages de la biographie. Annales. Paris (6):1.325-36, nov/dée. 1989. * Queneau, Raymond. L’histoire dans le roman. Front National, 4(8), 1945. 168 USOS & ASUSOS DA HISTORIA OnAt blemas dentro de fronteiras bem definidas”.? Por outro lado, no entanto, “os historiadores seréo um dia capazes de enumerar os incontdveis as- pectos da vida? Doravante a biografia assume um pape! ambiguo em his- téria: pode ser um instrumento da pesquisa social ou, ao contrério, propor uma forma de evité-la”.> . Nao pretendo retomar um debate que sempre foi inerente As ciéncias sociais e historiografia e que Pierre Bourdieu qualificou, com sua salutar ferocidade, de absurdo cientifico.* Mas creio que, num perfodo de crise dos paradigmas e de questionamento construtivo dos modelos in- terpretativos aplicados ao mundo social, 0 recente entusiasmo dos histo- riadores pela biografia e a autobiografia merece algumas observacdes que podem contribuir para a reflexdo reclamada pelo editorial dos Annales (n. 2, 1988). A meu ver a maioria das questées metodolégicas da_historio- grafia contemporanea diz respeito & biografia, sobretudo as relagdes com as ciéncias sociais, os problemas das escalas de andlise e das relacdes en- tre regras e praticas, bem como aqueles, mais complexos, referentes aos limites da liberdade e da racionalidade humanas. Um primeiro aspecto significativo refere-se. as relagdes entre his- téria e narrativa. A biografia constitui na verdade o canal privilegiado através do qual os questionamentos e as técnicas peculiares da literatura se transmitem a historiografia. Muito j4 se debateu esse tema, que con- cerne sobretudo as técnicas argumentativas utilizadas pelos historiadores. Livre dos entraves documentais, a literatura comporta uma infinidade de modelos e esquemas biograficos que influenciaram amplamente os histo- riadores. Essa influéncia, em geral mais indireta do que direta, suscitou problemas, questées e esquemas psicolégicos e comportamentais que pu- seram o historiador diante de obstdculos documentais muitas vezes in- 2 Momigliano, Arnaldo, Storicismo rivisitato. In: Foridamenti della storia antica. Torino, 1984. p. 464, 3 Momigliano, Amaldo. Lo sviluppo della biografia greca. Torino, 1974. p. 8. * CA oposi¢ao cientificamente absurda entre individuo e sociedade.”) Bourdieu, Pierre. Fieldwork in philosophy. In: Choses dices. Paris, 1987. p. 43. UsOs ba BloGRAriA 169 transponiveis: a propdsito, por exemplo, dos atos e dos pensamentos da vida cotidiana, das dividas e das incertezas, do cardter fragmentario e di- namico da identidade e dos momentos. contraditérios de sua constituigao. Obviamente as exigéncias de historiadores e romancistas nao sao as mesmas, embora estejam aos poucos se tornando mais parecidas. Nosso fascinio de arquivistas pelas descrigées impossiveis de corroborar por falta de documentos alimenta nao sé a renovacao da histéria narrativa, como também 0 interesse por novos tipos de fontes, nas quais se poderiam des- cobrir indicios esparsos dos atos e das palavras do cotidiano. Além disso, reacendeu o debate sobre as técnicas argumentativas e sobre 0 modo pelo gual a pesquisa se transforma em ato de comunicacéo por intermédio de um texto escrito. Pode-se escrever a vida de um individuo? Essa questao, que le- vanta pontos importantes para a historiografia, geralmente se esvazia em meio a certas simplificagées que tomam como pretexto a falta de fontes. Meu intento € mostrar que essa néo é a tinica e nem mesmo a principal dificuldade. Em muitos casos, as distor¢ées mais gritantes se devem ao fa- fo de que nés, como historiadores, imaginamos que cs atores histéricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrénico e limitado. Seguindo uma tradicéo biogrdfica estabelecida e a prépria retérica de nossa disci- plina, contentamo-nos com modelos que associam uma cronologia orde- nada, uma personalidade coerente e estdvel, acdes sem inércia e decisdes sem incertezas. Nesse sentido, Pierre Bourdieu falou acertadamente de “ilusao biografica”, considerando que era indispensavel Teconstruir 0 contexto, a “superficie social” em que age o individu, numa pluralidade de campos, a cada instante.> Porém a dtivida com telacéo & prépriz possibilidade da biografia ¢ um fator recorrente. A biografia publica, exemplar, moral, nao foi objeto de um questionamento Progressivo; foram antes oscilagées, sem- pre em relac&o estreita com os momentos de crise na definicéo da racio- nalidade e também com os momentos em que o confronto entre individuo * Bourdieu, Pierre. L’illusion biographique. Actes de la Recherche en Sciences Sociales (62-63). 69-72, juin 1986, 170 Usos & Asusos DA HISTORIA ORAL @ instituigdes se tornou mais agudo. Isso foi evidentemente o que sucedeu durante boa parte do século XVIII com o debate que se estabeleceu acerca da possibilidade de escrever a vida de um individuo. Partindo do romance (Sterne, Diderot), porquanto este tentava construir a imagem de um ho- mem complexo, contraditério, cujo cardter, opinides e atisudes estavam em perpétua formagao, essa crise chega A autobiografia (Rousseau) e final- mente & biografia propriamente dita. Tal perfodo apresenta muitas ana- logias com 0 noss social e a percepgdo de si adquire af particular intensidade. Os limites da biografia foram entao claramente percebidos, ao mesmo tempo que se as- a consciéncia de uma dissociacao entre o personagem sistia ao triunfo do género biografico. Marcel Mauss assim descreve a diferenga entre personagem so- cial e percepgao de si: “E evidente, sobretudo para nés, que nenhum ser humano deixou jamais de ter a percepgéo nao ‘apenas de seu corpo, mas também de sua identidade espiritual e corporal ao mesmo tempo”. To- davia essa percepcéo do eu nao corresponde ao modo pelo qual “ao lon- go dos séculos, em intimeras sociedades, se- elaborou lentaménte nao a percepcao do ‘eu’, mas a nogéo, 0 conceito”.© De fato, parece evidente que em certas épocas a nogao de si socialmente construfda foi particu- larmente restrita: em outras palavras, 0 que era tido como socialmente determinante e cominicdvel apenas encobria de maneira bastante inade- quada o que a prépria pessoa considerava essencial. Esse problema, hoje colocado as claras, é © mesmo que o século XVIII havia explicitamente formulado. Podemos entdo partir de alguns exemplos do século XVIII. Tris- tram Shandy, de Sterne, pode ser considerado o primeiro romance mo- derno precisamente por ressaltar a extrema fragmentago de uma biografia individual. Tal fragmentagdo se traduz pela constante variacao dos tempos, pelo recurso a incessantes retornos e pelo cardter contradi- tério, paradoxal, dos pensamentos e da linguagem dos protagonistas. Po- de-se acrescentar que o didlogo entre Tristram, o autor e o leitor € um dos tracos caracterfsticos do livro. Trata-se de um meio eficaz de construir 6 Mauss, Marcel. Sociologie et anthropologie. 8 ed. Paris, PUR 1983. p. 335. Usos da Blocearia, 71 uma narrativa que dé conta dos elementos contraditétios que constituem a identidade de um individu e das diferentes representacdes que dele se Possa ter conforme os pontos de vista e as épocas. Diderot era um grande admirador de Sterne e concordava com @ sua opinido de que a biografia era incapaz de captar a esséncia de um individuo. Nao que rejeitasse 0 género biogrdfico; e ndia, mais preci- samente, que a biografia, embora incapaz de ser realista, tinha uma fun. Géo pedagégica na medida em que apresentava personagens célebres revelava-lhes as virtudes publicas e os vicios privados. Ali , Muitas vézes Diderot acalentou o projeto de escrever uma autobiografia, antes de con- cluir. pela sua impossibilidade.? Mesmo assim sua obra est repleta de alu- S6es autobiogréficas, cujos exemplos mais caracteristicos se encontram em estado fragmentario em Jacques o fatalista. Aqui o probiema da individua- ldade € resolvido pelo recurso ao didlogo: o jovem Jacques e seu velho mestre tém cada qual sua propria vida e trocam seus pontos de vista nao raro seus papéis. Dessa colaboracdo dialégica e concertada nasce um Personagem (em boa parte autobiogrifico) que parece ao mesmo tempo Jovem e velho. Verdade e ilusao literéria, autobiografia e multiplicacéo dos Personagens tém lugar nessa oscilagéo; cada momento particular, tomado isoladamente, sé pode ser uma deformacio em relagéo & construcio de Personagens que nao obedecem a um desenvolvimento linear e que nao seguem um itinerério coerente e determinado, Passemos agora a um exemplo classico de autobiografia: as Con- fiss6es de Rousseau. A primeira vista, esse exemplo parece contradizer a impressdo de que na segunda metade do século XVIII chegou-se a duvidar da possibilidade de fazer uma autobiografia. Rousseau no sd acreditava Ser possivel (talvez somente para ele) narrar a vida de um homem, como também entendia que essa narrativa podia ser totalmente veridica: “Bis o “nico retrato de homem, pintado exatamente ao natural e em toda a sua verdade, que existe e que provavelmente jamais existir: Logo de saida, mal comega a escrever, o autor se vé diante de um projeto que talvez seja Possivel, mas que em todo caso serd tinico: “Tenho em mente um projeto do qual jamais houve exemplo e cuja execugao nao téré nenhum imita- dor”. De certo modo, o futuro mostraria que ele estava errado. E bem co- 7 Quanto as opiniées de Diderot e de Rousseau sobre a Diografia e a autobiografia, ver Bon- net, Jean-Claude. Le fantasme de l'écrivain. Poétique, 63:259-78, sept. 1985 ° 172 USOS & ABUSOS DA HISTORIA ORAt nhecida a acolhida que tiveram as Confissdes: quando Rousseau submeteu seu manuscrito leitura, ele foi, segundo suas palavras, malcompreendido autobiografia era possivel, mas néo se podia comu- e mal-interpretado, nicar sua verdade. Ante essa impossibilidade; nado de evocar sua propria vida, mas de conté-la sem que fosse deformada ou alterada, Rousseau pre- feriu desistir. Também ele pensava que sé existia uma solugdo narrativa, a do didlogo, e nos anos que se seguiram & redacio das Confissées ele re- tomou seu teor sob a forma dialogal em Jean-Jacques julga Rousseau, pro- cedendo assim a um desdobramento de seu personagem. Para Rousseau, assim como para Diderot ou Sterne (e anteriormente Shaftesbury, que foi talvez o inspirador dessa solugdo), 0 didlogo nao era apenas o meio de criar uma comunicagéo menos equivoca; era também uma forma de res- tituir ao sujeito sua individualidade complexa, livrando-o das distorcées da biografia tradicional que pretendia, como numa pesquisa entomoldgica, observa-lo e dissecd-lo objetivamente. Essa crise, que merecia ser analisada mais detidamente, comegou no romance e estendeu-se & autobiografia. Mas sé teve repercussao limi- tada na biografia histérica (ainda que fosse conveniente deter-se mais na vida de Johnson escrita por Boswell e em particular no papel da imagi- nacéo na reconstrugao dos didlogos pelo autor. Mas também aqui 0 pro- blema- da relagdo entre autor e personagem remete as observagdes anteriores sobre 0 desdobramento dos pontos de vista).8 Chegou-se a um meio-termo na biografia moral, que na verdade renunciava & exaustivi- dade ¢ a veracidade individuais para buscar um tom mais didatico, acres- centando as vezes paixdes e emogdes ao contetido tradicional das biografias exemplares, a saber, os feitos e as atitudes do protagonista. A bem dizer, essa simplificacéio supde uma certa confianca na capacidade da biografia para descrever o que € significativo em uma vida. Tal confianga culminaria alids no positivismo e no funcionalismo, com os quais a selecdo de fatos significativos iria acentuar o carter exemplar e tipoldgico das biografias, privilegiando a dimensdo publica em vez da dimens&é privada e considerando insignificantes os desvios dos modelos propostos. Todavia a crise ressurgiu no século XX, ligada ao advento de no- vos paradigmas em todos os campos cientificos: crise da concepcio me- ® Ver Dowling, William C. Boswell and the problem of biography. In: Aaron, Daniel (ed.). Studies in biography. Cambridge, Mass., Cambridge University Press, 1978. p. 73-93. Usos 0a Bloceasia . 173 canicista na fisica, surgimento da psicandlise, novas tendéncias na literatura (basta citar os nomes de Proust, Joyce e Musil). Jé nao sao mais as propriedades e sim as probabilidades que constituem o objeto da descricao. A ciéncia mecanicista repousava na estrita delimitagao do que Podia e devia se produzir nos fendmenos naturais. Veio substitu(-la uma lei de proibictio que, ao contrétio, definia 0 que nao podia se produzir: assim, tudo’ 0 que pode suceder sem contradizé-la faz parte dos fatos. Nesse contexto, € essencial conhecer 0 ponto de vista do observador: a existéncia de uma outra pessoa em nés mesmos, sob a forma do incons- ciente, levanta o problema da relagéo entre a descricao tradicional, linear, ¢ a ilusdo de uma identidade especifica, coerente, sem contradigaio, que nao € sendo o biombo ou a méscara, ou ainda o papel oficial, de uma mirfade de fragmentos e estilhacos. A nova dimensdo que a pessoa assume com sua individualidade nao foi portanto a tinica responsdvel pelas perspectivas recentes quanto A Possibilidade ou impossibilidade da biografia. De modo sintomatico, a pré- pria complexidade da identidade, sua formaséio progressiva e ndo-linear ¢ suas contradig6es se tornaram os protagonistas dos problemas biogréficos com que se deparam os historiadores. A biografia continuou a desenvol- verse, mas de forma cada vez mais controversa e problemdtica, relegando uo segundo plano aspectos ambiguos e irresolutos que me parecem cons- Ucuir hoje um dos principais focos de confronto na paisagem historiogré- fica. Como pano’ de fundo, temos uma nova abordagem das estruturas sociais: em particular, a reconsideracao das andlises e dos conceitos rela. Uvos a estratificagéo © 8 solidariedade sociais nos induz a apresentar de modo menos esquematico os mecanismos pelos quais se constituem redes de relagdes, estratos e grupos sociais. A medida de sua solidariedade e a andlise da maneira pela qual se fazem e desfazem as configuragées sociais levantam uma questéo essencial: como os individuos se definem (conscien- temente ou nao) em relago ao grupo ou se reconhecem numa classe? De uns anos para cd, os historiadores tém pois se mostrado cada vez mais conscientes desses problemas. Todavia as fontes de que dispomos ndo nos informam acerca dos processos de tomada de decisées, mas so- mente acerca dos resultados destas, ou seja, acerca dos atos. Essa falta de neutralidade da documentacdio leva muitas vezes a explicagdes._ monocau- 174 USOS & ABUSOS DA HISTORIA ORAL sais e lineares. Fascinados com a riqueza das trajetérias individuais e ao mesmo tempo incapazes de dominar a singularidade irredutivel da vida de um individuo, os historiadores passaram recentemente a abordar o pro- blema biogréfico de maneiras bastante diversas. Proponho-me formular uma tipologia dessas abordagens, certamente parcial, mas que visa a lan- sar luz sobre a complexidade irresoluta da perspectiva biogrdfica Prosopografia e biografia modal. Nessa ética, as biografias indi- viduais sé despertam interesse quando ilustram os comportamentos ou as aparéncias ligadas as condicées sociais estatisticamente mais freqiientes. Portanto nao se trata’de biografias veridicas, porém mais precisamente de uma utilizagdo de dados biograficos para fins prosopogréficos. Os elemen- tos biogrdficos que constam das prosopografias sé sao considerados his- toricamente reveladores quando tém alcance geral. Néo é por acaso que os historiadores das mentalidades praticaram a prosopografia mostrando pouco interesse pela biografia individual. Michel Vovelle escreveu a esse respeito: ‘Adotando as abordagens da historia social quantitativa, quisemos introduzis, no proprio campo da histéria das mentalidades, a histéria das massas, dos anénimos, em suma, dos que jamais puderam dar-se ao luxo de uma confisséo, por menos que seja literdria: os exclu{dos, por defini- go, de toda biografia”.? No fundo, a relagdo entre habitus de grupo e habitus individual estabelecida por Pierre Bourdieu remete & selegdo entre o que é comum e mensurdvel, “o estilo préprio de uma época ou de uma classe”, e 0 que diz respeito @ “singularidade das trajetérias sociais": “na verdade, é uma relacéo de homologia, isto é, de diversidade na homogeneidade, que re- flete a diversidade na homogeneidade caracteristica de suas condigdes so- ciais de produgao e que une os habitus singulares dos diferentes membros de uma mesma classe. Cada sistema de disposigdes individuais 6 uma va- riante estrutural dos demais (...), 0 estilo pessoal nao é sendo um desvio em relacéo ao estilo préprio de uma época ou de uma classe”. A infini- dade de combinagdes possiveis a partir de experiéncias estatisticamente comuns as pessoas de um mesmo grupo determina assim “a infinidade de diferencas singulares” e também “a conformidade e estilo” do grupo.'® Também aqui os afastamentos e os desvios, uma vez assinalados, parece ° Vovelle, Michel. De la biographie 4 l'étude de cas. In: Problémes et méthodes de la bio- graphic. Paris, 1985. p, 191. (Atas do coléquio, maio 1985.) 1 Bourdien, Pierre. Esquisse dune théorie de la pratique. Genéve-Paris, 1972. p. 186-9. USOS 04 BlogeaFiA 175 emeterse a0 que & estrutural e estatisticamente préprio do grupo esti dado. Tal abordagem comporta certos elementos funcionalistas na identi- ficacdo das normas e dos estilos comuns aos membros do grupo e na re. Jeisdo dos afastamentos e dos desvios tidos como nao significativos Pierre Bourdieu levanta tanto a questéio do determinismo quanto a da escolha © @ Enfase parece recair mais nos aspectos deterministas ¢ inconscientes, nas “estratégias” que n&o sao fruto “de uma verdadeira inteng&o estraté- gica”. Esse tipo de biografia, que poderfamos chamar de modal por- Guanto as biografias individuais 56 servem para ilustrar formas upicas de Comportamento ou status, apresenta muitas analogias com a prosopogra- fia: na verdade, a biografia nao &, nesse caso, a de uma pessoa singular © sim a de um individuo que concentra todas as caracteristicas de um Brupo. Alids, € prética corrente enunciar primeiro as normas eas regras cstruturais (estruturas familiais, mecanismos de tansmisséo de bens ede autoridade, formas de estratificagdo ou de mobilidade sociais etc.) antes de apresentar os exemplos modais que intervém na demonstragao a titulo de provas empiricas. Biografia e contexto. Nesse segundo tipo de utilizago, a biografia conserva sua especificidade. Todavia a época, 0 meio e a ambiéncia também S80 muito valorizados como fatores capazes de caracterizar uma atmosfera gue explicaria a singularidade das trajetdtias. Mas 0 contexto remete, na verdade, a duas perspectivas diferentes, Por um lado, a reconstituicéo do contexto hist6rico e social em que se desenrolam os acontecimentos permite compreender 0 que a primeira vista parece inexplicdvel © desconcertante. £ © que Natalie Zemon Davis define, aludindo a seu trabalho sobre Martin Guerre, como “reintroduzir uma prética cultural ou uma forma de compor- famento no quadro das praticas culturais da vida no século XVP’.11 Do mes- ino modo, a interpretagdo proposta por Daniel Roche para compreender seu herdi, © oficial de vidraria Ménéwa, tende a normalizar comportamentos gue perdem seu caréter de destino individual na medida em que sio tipicos de um meio social (no caso, 0 do compagnonnage ¢ dos artesdos franceses do final do século XVII) e que afinal contribuem Para o retrato de uma N Davis, Natalie Zemon. AHR Forum: the return of Maria Guerre. On the lame. American Historical Review, 93:590, 1988, 176 Usos 4 Asusos 4 Histoaia OFat época ou de um grupo.!? Portanto nao se trata de reduzir as condutas a comportamentos-tipos, mas de interpretar as vicissitudes biogréficas & luz de um contexto que as tome possiveis e, logo, normais. Por outro lado, 0 contexto serve para preencher as lacunas do- cumentais por meio de comparagdes com outras pessoas cuja vida apre- senta alguma analogia, por esse ou aquele motivo, com a do personagem estudado. Vale lembrar que Franco Venturi, em sua Juventude de Diderot, reconstituiu os primeiros anos da vida de seu personagem praticamente sem documentagao direta. “De modo geral, porém, os poucos fragmentos que nos restam sobre a primeira parte de sua vida ou tém um valor pu- ramente anedético ou pouco se distinguem das caracteristicas gerais da época da juventude de Diderot. Para tornar interessante uma tentativa de reconstituicéo da biografia de seus primeiros anos, é indispensdvel ampliar tanto quanto possfvel em toro dele o ntimero de pessoas e de movimen- tos com os quais ele entrou entAo em contato, reconstituir em torno dele © seu meio, multiplicar os exemplos de outras vidas que tenham algum pa- ralelo com a sua, fazer reviver em torno dele outras pessoas jovens.”)3 Essa utilizacio da biografia repousa sobre uma hipétese implicita que pode ser assim formulada: qualquer que seja a sua originalidade apa- rente, uma vida nao pode ser compreendida unicamente através de seus desvios ou singularidades, mas, ao contrério, mostrando-se que cada des- vio aparente em rela¢do as normas ocorre em um contexto histérico que © justifica. Essa perspectiva deu dtimos resultados, tendo-se em geral con- seguido manter o equilfbrio entre a especificidade da trajetéria individual 0 sistema social como um todo. Pode-se alegar, no entanto, que 0 con- texto é freqiientemente apresentado como algo rfgido, coerente, e que ele serve de pano de fundo imével para explicar a biografia. As trajetérias in- dividuais estao arraigadas em um contexto, mas nao agem sobre ele, nao o modificam. A biografia e os casos extremos. As vezes, porém, as biografias s&o usadas especificamente para esclarecer 0 contexto. Nesse caso, 0 con- texto nfio é percebido em sua integridade e exaustividade estdticas, mas por meio de suas margens, Descrevendo os casos extremos, lanca-se luz precisamente sobre as margens do campo social dentro do qual s&o pos- 12 Roche, Daniel (éd.). Journal de ma vie, Jacques-Louis Ménéera, compagnon vitrier au 182 siécle, Paris, 1982. p. 9-26 © 287-429. Venturi, Franco. Jeunesse de Diderot (de 1713 4 1753). Paris, 1939. p. 16. Us05 0A Blogente 7 siveis esses casos. Podemos citar aqui novamente o artigo de Michel Vo- velle sobre a biografia: “O estudo de caso representa o retorno necessdrio a experiéncia individual, no que ela tem de significative, mesmo que pos- O retorno ao qualitativo por meio do estudo de sa parecer atipica (.. caso responde a um movimento dialético no campo da histéria das men talidades. A meu ver, em vez de negar as abordagens seriais quantificadas, ele as complementa, permitindo uma andlise em profundidade que prefere aos herdis de primeiro plano da histéria tradicional os depoimentos da normalidade (...) ou os aportes mais amb{guos, porém talvez ainda mais icos, do depoimento extremo de um personagem em situacéio de ruptura” (Wovelle alude aqui a seus estudos sobre Joseph Sec e Théodore Desor- gues).!4 De modo ainda mais claro, em sua biografia de Menocchio, Carlo Ginzburg analisa a cultura popular através de um caso extremo, ¢ nao de um caso modal: “Em suma, mesmo um caso extremo (...) pode revelar- Se representativo. Seja negativamente — pois ajuda a precisar o que se deve entender, numa dada situacdo, por ‘estatisticamente mais freqiiente’, Seja positivamente — pois permite identificar as possibilidades latentes de algo (a cultura popular) que s6 conhecemos através de uma documenta. 80 fragmentdria e deformada”.!5 Também aqui o paralelo com a literatura é surpreendente. O per- sonagem naturalista tradicional é gradativamente relegado ao segundo pla- no, enquanto a narrativa do absurdo — como em Beckett, por exemplo — garante a soluco dos casos extremos, “O maior trunfo do personagem tradicional do romance era sua possibilidade ou sua liberdade de travar um combate, vitorioso ou nao, contra a ameaca das situacdes extremas. Nisso residia sua forca dramdtica. Hoje, € como se os partiddrios do “per- Sonagem-homem” nao tivessem outro recurso sendo substituir as situagdes extremas por situagdes dramaticas. Seus destinos de aventureiros, _vaga- bundos, excéntricos ¢ coléricos parecem sair de um moinho mecanico que Procura gerar movimento na fixidez atfpica e situagdes extremas sem saf- da”.1° Mas também nessa ética 0 contexto social é retratado de modo de- ** Vovelle, Michel 1985:197. Referencias a L'irrésstible ascension de Joseph See, bourgeois dAix, suivi de quelques clés pour la lecture de naifs. Aix-en-Provence, 1957 ¢ Théodore Desorgues ou la désorganisation. Paris, 1985. °° Ginaburg, Carlo. Le fromage et le vers: Univers dun meunier due XVie siécle. Paris, Flam: marion, 1988. p. 220, ‘6 Debenedetti, Giacomo. Il personagio uomo. Milano, 178 UsOS 4 AtusoS 04 HisTORIA Onat masiado rigid: wagando-he as margens, os casos extremos aumentam a liberdade de movimento de que podem dispor os atores, mas estes per- dem quase toda. ligacéio com a sociedade normal (nesse sentido, 0 caso de Pierre Riviére é exemplar). Biografia e hermenéutica. A antropologia interpretativa certamen- te salientou o ato dialégico, essa troca e essa alternfncia continuas de perguntas € respostas no seio de uma comunidade de comunicacdo. Nessa perspectiva, o material biogréfico torna-se intrinsecamente discursivo, mas nao se consegue traduzir-Ihe a natureza real, a totalidade de significados que pode assumir: somente pode ser interpretado, de um modo ou de ou- tro. O que se torna significativo é © prdprio ato interpretativo, isto é, 0 processo de transformagao do texto, de atribuico de um significado a um ato biogrdfico que pode adquirir uma infinidade de outros significados. Assim, o debate sobre o papel da biografia na antropologia tomou um ru- mo promissor porém perigosamente relativista.!7 Mas a histéria que se ba- seia em arquivos orais ou que procura introduzir a psicandlise na pesquisa historico-biografica s6 se deixou infiuenciar de modo intermitente e frégil Aqui, como no século XVII, 0 didlogo est4 na base do processo cognitivo: © conhecimento nao € resultado de uma simples descricao objetiva, mas de u processo de comunicagao entre dois personagens ou duas culturas. No fundo, essa abordagem hermenéutica parece redundar na im- possibilidade de escrever uma biografia. Mesmo assim, ao sugerit que é preciso abordar o material biogrdfico de maneira mais problemitica, re- jeitando a interpretago univoca das trajetérias individuais, ela estimulou a reflexdo entre os historiadores, levando-os a utilizar as formas narrativas de modo mais disciplinado e a buscar técnicas de comunicacéio mais sen- siveis 20 cardter aberto e dindmico das escolhas e das acdes Essa tipologia das utilizagdes ¢ das indagacées que se fazem hoje a respeito da biografia ndo pretende esgotar todas as possibilidades ou prdticas: poderfamos mencionar outros tipos, como por exemplo a psi- 17 Ver, por exemplo, Rabinow, Paul. Reflections on fieldwork in Morocco. Berkeley-Los An- geles, 1977, ou ainda Crapanzano, Vincent. Tuhami. Porerait of a Moroccan. Chicago-London, 1980. i Us05 ba Blogearia 179 cobiografia, mas esta comporta tantos elementos equivocos ou contestdveis que nao me parece ter hoje grande importancia. Os principais tipos de orentacao aqui enumerados sticintamente representam pois os novos ca- ‘minhos trilhados pelos que procuram utilizar a biografia como instrumen. to de conhecimento histérico e substituir a tradicional biografia linear « factual, que mesmo assim continua a existir e vai muito bem. Trata-se porém de solugées parciais, que ainda apresentam as- Pectos bastante problematicos. A biografia é pois um tema que precisamos debater, afastando-nos talvez da tradigaéo dos Annales, mas atendo-nos aos Problemas que nos parecem hoje particularmente importantes: entre normas € praticas, entre individuo e grupo, entre determinismo e li- a relagao berdade, ou ainda entre racionalidade absoluta e racionalidade limitada, Minha intencdo é téo-somente colocar em debate alguns temas e ressaltar que as quatro orientagdes mencionadas tém em comum o fato de passar em siléncio por questées fundamentais. Estas dizem respeito sobretudo ao papel das incoeréncias entre as préprias normas (e nao mais apenas as contradicoes entre a norma e seu efetivo funcionamento) no seio de cada sistema social; em segundo lugar, a0 tipo de racionalidade atribuido aos atores quando se escreve uma biografia; e, por fim, 4 relacdo entre um BTupo e os individuos que 0 compéem Trata-se principalmente de um problema de escala e de ponto de vista: se a énfase recai sobre o destino de um’ personagem — e nao sobre a totalidade de uma situacdo social —, a fim de interpretar a rede de relagdes e obrigagdes externas na qual ele se insere, é perfeitamente Possivel conceber de outro modo a questéo do funcionamento efetivo das normas sociais. De modo geral, os historiadores consideram pacifico que todo sistema normativo sofre wansformacées ao longo do tempo, mas que num dado momento ele se torna totalmente coerente, transparente e es- tavel. Parece-me, ao contrério, que deverfamos indagar mais sobre a ver. dadeira amplitude da liberdade de escolha. Decerto essa liberdade nao é absoluta: culturalmente e socialmente determinada, limitada, pacientemen- te conquistada, ela continua sendo no entanto uma liberdade consciente, que 0s intersticios inerentes aos sistemas gerais de normas deixam aos atores. Na verdade nenhum sistema normativo € suficientemente estrutu- rado para eliminar qualquer possibilidade de escolha’ consciente, de ma- 180 USOS & AbuSOS DA HISTORIA ORAL nipulacéo ou de interpretacéo das regras, de negociacio. A meu ver a biografia € por isso mesmo o campo ideal para verificar o cardter ins- tersticial — e todavia importante — da liberdade de que dispdem os agentes e para observar como funcionam concretamente os sistemas nor- mativos, que jamais estio isentos de contradigées. Obtém-se assim uma perspectiva diferente — mas nfo contraditéria — daquela adotada pelos que preferem salientar mais os elementos de determinacao, necessdrios e " inconscientes, como faz, por exemplo, Pierre Bourdieu. H4 uma relacdio permanente ¢ reciproca entre biografia e contexto: a mudanga € precisa- mente a soma infinita dessas inter-relagées. A importancia da biografia é permitir uma descricéo das normas e de seu funcionamento efetivo, sendo este considerado nao mais o resultado exclusivo de um desacordo entre regras e praticas, mas também de incoeréncias estruturais e inevitdveis en- tre as prdprias normas, incoeréncias que autorizam a multiplicagio e a di- versificagéo das praticas. Parece-me que assim evitamos abordar a ‘realidade histérica a partir de um esquema tinico de aces e reagées, mos- trando, ao contrario, que a repartigéo desigual do poder, por maior.e mais coercitiva que seja, sempre deixa alguma margem de manobra para os do- minados; estes podem ento impor aos dominantes mudancas nada des- preziveis. Talvez seja apenas uma nuanca, mas me parece que nao se pode analisar a mudanga social sem que se reconheca previamente a exis- téncia irredutivel de uma certa liberdade vis-a-vis as formas rigidas e as origens da reprodugdo das estruturas de dominagao. Tais consideracées convidam a uma reflexdo acerca do tipo de racionalidade que ¢ preciso idealizar quando se tenta descrever os atos historicos. Na verdade raramente nos afastamos dos esquemas funciona- listas ou da economia neocléssica; e estes supdem atores perfeitamente in- formados e consideram, por convengao, que todos os individuos tém as mesmas disposigdes cognitivas, obedecem aos mesrhos mecanismos de de- cisio © agem em funco de um célculo, socialmente normal e uniforme, de lucros e perdas. Tais esquemas levam pois & construcio de um homem inteiramente racional, sem dtividas, sem incertezas, sem inércia. A maioria das biografias assumiria porém outra feicdo se imagindssemos uma forma de racionalidade seletiva que nao busca exclusivamente a maximizagao do lucro, uma forma de acdo na qual seria possivel abster-se de reduzir as Usos DA Biograria 181 individualidades a coeréncias de grupo, sem renunciar A explicagao dina- mica das condutas coletivas como sistemas de relacdc. Afora a caracteristica intersticial da liberdade individual e a questag da racjonalidade limitada, creio que resta destacar um tltimo Ponto. Roger Chartier afirmou recentemente que a oposicdo entre “andlise micro-histérica ou case studies” e histéria sécio-econémica, entre estudo. da subjetividade das representagbes e estudo da objetividade das estrucuras, pode ser superada contanto que consideremos “os esquemas geradores de sistemas de classificagdo e de percepgio como verdadeiras ‘instituigdes so- ciais’, que incorporam sob a forma de representacdes coletivas as divisées da organizacao social”.18 Tal observagdo me parece plenamente justificada (exceto, talvez, pela identificagdo da micro-histéria aos case studies e 20 estudo das representagdes subjetivas), porém insuficiente: se a énfase recai sobre o grupo, a relativa estabilidade das coeréncias e das coesdes de ‘gru- Po é tida como pacifica, assim como o fato de que elas constituem o nivel minimo no qual se pode ainda estudar com proveito as representagdes do mundo social e os conflitos que elas provocam. A meu ver, privilegiando a importancia do grupo, subestima-se 0 problema de sua constituigdo, as- sim como a apreciacdo de sua solidez, de sua durabilidade, de sua am- plitude, e conseqiientemente esvazia-se a questdo da relacdo entre indi viduo e grupo. Chartier identifica deliberada e explicitamente as repre- sentag6es individuais as representacées coletivas, como se sua génese fosse formalmente semelhante. E certo que se descarta assim a observacio de grupos sociais conceituais indeterminados (cultura popular, mentalidades, classes) para construir uma sociedade fragmentada e conflitante, na qual as represen- tag6es do mundo se tornam motivo de luta. Mas subsiste uma boa medida de indeterminacao: os agregados de grupo séo dados como certos ¢ de- finidos; estudam-se as lutas pelo poder e os conflitos sociais como se estes Ocorressem entre grupos cuja costo & pressuposta, como se a andlise das diferensas individuais — em ultima instdncia tao numerosas que se tor- 8 ‘Chartier, Roger. La storia culturale fra rappresentazioni e pratiche. Im La rappresentazione del sociale. Saggi di storia culrurale. Torino, 1989. p. 14 182 Usos & AaUSOS DA HISTORIA ORAL nam impossiveis de interpretar — nada tivesse a acrescentar Também aqui, trata-se talvez de mera questo de ponto de vista: insistindo na “gé- nese social das estruturas cognitivas” e no aspecto “de incorporagae, sob forma de disposicdes, de uma posigéo diferencial no espaco social”, deixa- se vaga a atividade dos atores, concebida unicamente como 0 resultado de “incontaveis operagées de ordenacéo pelas quais se reproduz e se trans- forma continuamente a ordem social”.19 A nogo de apropriagao sob for- ma de “uma histéria social dos habitos e das interpretacées, ligados a suas determinagées fundamentais (que sao sociais, institucionais, culturais) e inseridos nas praticas especificas que os produzem”,”” por mais impor- tante e titil que seja, também deixa em aberto a problema da relagdo en- te individuo e grupo. Nao se pode negar que ha um estilo proprio a uma época, um habitus resultante de expériéncias comuns e reiteradas, assim como ha em cada época um estilo préprio de um grupo. Mas para todo individuo existe também uma considerdvel margem de liberdade que se origina precisamente das incoeréncias dos confins socizis e que suscita a mudanga social. Portanto nfo podemos aplicar os mesmos procedimentos cognitivos aos grupos e aos individuos; e a especificidade das agdes de ca- da individuo no pode ser considerada irrelevante ou nao pertinente. Pois © risco, nao banal, é subtrair a curiosidade histérica temas que julgamos dominar plenamente, mas que ainda continuam largamente inexplorados: por exemplo, a consciéncia de classe, ou a solidariedade de grupo, ou ain- da os limites da dominacao edo poder. Os contflitos de classificacées, de distingdes, de representagdes interessam também & infl:éncia que o grupo socialmente soliddrio exerce sobre cada um dos membros que o compdem, além de revelarem as margens de liberdade e de coacdo dentro das quais se constituem e funcionam as formas de solidariedade. Creio que, nessa perspectiva, a biografia poderia permitir um exame mais aprofundado des- ses problemas. 18 Bourdieu, Pierre. La noblesse d'Etat. Grandes écoles et esprit de corps. Paris, Minuit, Le sens commum, 1989. p. 9. 2 Chartier, 1989:

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