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7 INTRODUGAO AO ESTUDO DOS COMPLEXOS DOS METAIS DE TRANSIGAO Os metais de transi¢ao tém muitos compostos que apresentam pro- priedades s6 raramente encontradas nos compostos dos clementos re- presentativos: por exemplo, cores variadas, paramagnctismo freqiiente, tamanhos andmalos dos ions, virios muimeros de oxidagdo dos metais. Essas propriedades peculiares dos metais de transigao decorrem da exis- téncia de um subnivel d parcialmente preenchido na camada de valéncia desses elementos. Talvez mais de dois tergos dos artigos cientificos atualmente publi- cados, na area de Quimica Inorganica, tratem de complexos dos metais de transicao. Além da curiosidade natural que esses compostos hd muito despertam, haveria outras razbes que justificassem 0 tempo ¢ esforgo cnormes que os quimicos thes dedicam? Sim, sem diivida! Os complexos dos metais de transigo so de muita importincia em todas as areas da quimica e desempenham papéis de extrema relevincia em campos que vio desde a biologia ¢ a medicina até a agricultura ¢ a metalurgia. Por cxemplo, esses compostos cstéo en- volvidos no transporte de oxigénio pelo sangue, na fotossintese, em catilise biolégica e industrial, no tratamento de varias condigdes pa toldgicas, no seqiitestro industrial de fons metélicos, em anélise quimi em inGimeras outras situagdes. Apresentaremos exemplos especificos nos pontos oportunos, mais adiante, neste Capitulo. e 7.1 O que, afinal, é um composto complexo? Nao é possivel dar uma definigio exata do que seja composto com- plexo (ou complexo de coordenagdo ou composto de coordenagao). Pode- mos, entretanto, dizer que ele apresenta uma espécie central ligada a fons ou moléculas, que sao denominados ligantes. A espécie central pode ser um cétion, um anion ou um dlomo neutro, como exemplificado na Tab. 7.1. Diversas figuras representando complexos serao encontradas nas paginas seguintes, Como 0 proprio nome deste Capitulo indica, nossa atengao estaré voltada para complexos dos metais de transicao. Ocasionalmente, porém, nos referiremos a complexos de metais tipicos e de néo-metais. Tabela 7.1. Alguns exemplos de compostes complexos. complexo espécie central ligantes [Auch] ~ Au() dois fons cloreto (BP) Bat) quatro fons fluoreto [Cr(CO)e] cr(0) seis moléculas de monéxido de carbono [¥(CO)6] ~ vw-D seis moléculas de monéxido de carbono [Co(NII5)6}°* Cott) seis moléculas de aménia [Cr(C204)s)" Cr(11) tr€s fons oxalato Exercicio 7.1 Determine 0 ntimero de oxidag’o da espécie central em cada um dos seguintes complexos: [PUNHS)sP*, [HeCh?-, [PRAT FAg(CN)a}”, [Cx(CO)s]?~, [Ce(H20)6}* © [AIOH)(H20)sP*. © estudo de estercoishmeros, cujos principios desereveremos na Seco 7.3, desempenhou um papel exiremamente importante no desenvolvimento da Quimica de Coordenacao. Foi gragas a ele que, aos 26 anos, Alfred Werner, um quimico sufco, propés conceitos entdo revoluciondrios sobre as estruturas dos compostos complexos. A proposigéo fundamental de Werner, feita em 1893 — antes, por- tanto, da descoberta do elétron — foi a de que os metais tm uma valén- cia primdria — que hoje identificamos ao seu nitmero de oxidagao — uma valéncia secunddéria — que corresponde ao nosso mimero de coorde- nagdo. Assim, no complexo [Co(NH3)sCl}°*, a valéncia primdria do co- balto é 3 (namero de oxidagdo = 3+) ¢ a secundéria é 6 (NC = 6). ‘Nao obstante essas idéias terem explicado muitos fatos expe- rimentais, elas ndo foram prontamente accitas. Eventualmente, entretan- to, se impuseram e, em 1913, Werner foi o primeiro quimico inorganico a receber o prémio Nobel. Exerci Determine a ‘valéncia primaria’ e a "valéncia secundaria’ do fon metilico mos seguintes complexos cstudados por Werner: [Pt(NHa)2Cli], [Pt(NH3)Cls]~ e [Pt(NH3)4Ch]°*. Na préxima Seco, analisaremos os ligantes sob 0 ponto de vista de sua estrutura, ou seja, de acordo com o ntimero de conexdes que cles fa- zem a espécie central. Prosseguiremos, nas Segdes seguintes, com os as- pectos mais importantes da estereoquimica dos complexos ¢, completan- do 0 Capitulo, veremos as regras para sua notacdo e nomenclatura. O Cap. 8 seré dedicado a ligagdo quimica nos compostos de coordenacio. 7.2 Ligantes: classificagao estrutural Se bem que haja diversas formas para classificar os ligantes, a que nos interessa no momento é a classificagdo estrutural, em que o critério 6 omtimero de ligagdes & espécie central, Essas ligagdes podem scr feitas por um ou mais dtomos. Sea ligacdo for feita através de apenas um tomo, o ligante é deno- minado monodentado. Se for por dois 4tomos, o ligante € bidentado e as- sim sucessivamente, © dtomo através do qual uma ligagio se faz € 0 Gtomo doador. A Tab, 7.2 apresenta alguns ligantes comuns. As regras para a no- menclatura de ligantes e compostos de coordenagio sero vistas na Seco 7.4. A formagdo de um complexo pode ser vista, em muitos casos, como uma reagao dcido/base de Lewis, em que os ligantes sao doadores de pa- res de elétrons ¢ a espécie central € a receptora, Nessa perspectiva, 0s li- gantes sao bases de Lewis e a espécie central 6 um dcido de Lewis. Assim, na reagdo 305 Crt + 6 H20— [Cr(H20)6P*, cada molécula de 4gua — a base — doa um par de elétrons para o ion Cr* — odcido de Lewis. O nimero total de dtomos doadores ligados a espécie central € 0 seu niimero de coordenagdo (NC). Nos complexos da Tab. 7.1, 0 NC do ouro é 2, o do boro € 4¢ os nimeros de coordenagao do cromo, vanadio e cobalto sao todos iguais a 6. Na chamada quimica de coordenagao clas- sica, cada 4tomo doador é capaz de doar um par de elétrons, resultando que o NC € também igual ao ntimero de pares de elétrons doados. Exercicio 7.3 Determine 0 niimero de oxidagao e o NC da espécie metélica nos seguintes complexos: [PC], [AU(CN)2]~, [Cr(ox)s}°~, [AI(OH)s]~, [CoBr(P@s)3] e [Co(dipy)2Cl2]. Exercicio 7.4 + Utilize as informacGes dadas abaixo para escrever as formulas das espécies complexas. Nao se esquega das cargas! espécie metilica Nc Tigantes Cr(HM) 6 4H20, x CI~ v(-D) 6 xCO Za(il) 4 x NH3 Os(lv) 8 4ci7, xCN7 Colt) 6 2Cl7, xen Fe(0) 5 x CO Co(II) 6 acac,2 py, xCI™ cu) Zz xcl- ‘Tabela 7.2. Alguns ligantes comuns. nome da espécie femla itomo(s) sbreviagie elassitieaso doador(es) figua #20 0 = monodentado amonia NH3 N - monodentado fon cloreto a a 3 monodentado mondxido de co c = monodentado carbone fon cianeto cN7 cc) = monodentado trifenilfosfina P(CéHs5)3 P P(3 ou PPh3 monodentado piridina oO N Py monodentado N fon carbonato cose O(2 4tomos) bidentado fon oxalato C203 O(2 dtomos) ox bidentado etilenodiamina HyN— CH2CH2— NH2 N(2 dtomos) en bidentado fon acetilace- oo tonato CHCCH,CCH; 0 (24tomos) —acac bidentado 2-2/-dipiridina oO oO} NQdtomos) — dipy bidentado N N dietileno- NH(CH2CH2NF2)2 NG étomos) — dien tridentado triamina fenoe O8CHE (SH.cor fon etileno- < diamino= _ NCHCH.N _N(2atomos) —_edta*~ hexadentado tetraacetato ~O20CHe CHCOZ O(4 étomos) (*) Como veremos mais adiante, pode também haver doagio através do N fons metélivos. 7.3. Estereoquimica dos complexos dos metais de transigao ‘A cstereoquimica dos complexos dos metais de transigao é bastante rica, Considerando, entretanto, 0 cardter introdut6rio de nosso estudo, apresentaremos aqui apenas alguns aspectos fundamentais. quando 0 fon cianeto estd em ponte entre a) Nameros de coordenagio e geometrias mais comuns Se bem que haja complexos tipicos com niimeros de coordenagao que variam de 2 a 12, os mimeros de coordenagao 4, 5 ¢ 6 so os mais co- muns, Comegaremos, entretanto, com os compostos de NC = 2. Miimero de coordenagao 2 Os complexos com NC = 2 sio dineares e praticamente se restringem aos cations Cu*, Ag*, Au* ¢ Hg’*, todos de configuracao d'°, Alguns exemplos sao [CuCl] ~, [Ag(NH3)2]*, [AuCh]~ e HgCh. Niimero de coordenagdo 4 Os complexos com NC =4 podem ser tetraédricos ou quadraticos. Os primeiros geralmente ocorrem com os metais representatives ¢ com metais de transicéo que ndo possuam as configuracées d® ou std’. Por exemplo, {BFa]~, [AICL}~, [Li(H20)4]*,[Ni(CO)s] e | [Zn(NH3)s]°™ (fig. 7.1). NH3 2+ Fig. 7.1. Coordenagao tetraédrica: [2n(NHs).]** Os complexos quadrdticos so caracteristicos dos metais de tran- sigdo com configuragies d* ous'd’, como, por exemplo, [PUNH3)4]’*, [Ir(CO)CK(POs)2], [PCL]? e [AUCL]~ Exercicio 7.5 Entre as espécies relacionadas a seguir, indique quais sio quadradas e quais so tetraédricas: [Pt(P@3)s)°*, [Pd(NH3)4]°*, [FeCl]~, [HgCly}°-, [Ni(CN)s]?~, [Co(CO)4]~, MnOF, [CoCl]?~ [PtCh(NHs)3]. Miimero de coordenacao 5 O mtimero de coordenacio 5 envolve complexos cujas geometrias li- mites so a piramidal quadratica e a bipiramidal trigonal (fig. 7.2). A dife- renga de energia entre essas formas nao é grande. Uma piramide de base quadrada pode resultar da deformagao de uma bipiramide triggnal (ou vi- co-versa). Nasérie [CdCIs} ~, P(CaHls)s, Sb( CH) ¢[NI(CN)s]~ as go0- metrias variam desde a bipirémide trigonal ideal, (CACIs) ~, até a pirdmide quadratica quase perfeita, [Ni(CN)s]>— pirmide quadrada ~ — a7 = Figura 7.2. Pirdmide quadrética e bipiramide trigonal e sua interconversao. ” Nitmero de coordenagao 6 Os complexos com NC = 6 sio 0s mais numerosos entre todos. Sua geometria € octaédrica, se bem que, freqiientemente, apresenta-se distorci- da. Todos os compostos com NC = 6, a que fizemos referéncia neste Capitulo, sdo octaédricos (fig. 73). NH B+ 7 | NH: Gog: ——G HNN Nis NH Figura 7.3. Coordenagao octaédrica: [Co(NHs)«]°*. b) Complexos quelatos e com ligantes em ponte A espécie central, quando complexada a um ligante bidentado ou ai 310 polidentado, forma um anel. Em [Co(en)3]°*, fig. 7.4, ha 3 anéis de 5 dtomos cada um, Os complexos que tém esses anéis so denominados quelatos e os ligantes polidentados em geral so chamados de agentes quelantes. * Figura 7.4, Estrutura do complexo [Co(en)3}°". Note que cada molécula de etilenodiamina esté representada por dois &omos de nitrogénio ligados por uma linha, Esse tipo de representagio € geral para anéis quelatos. Os sels étomos de nitrogénio se dispdem octaedricamente em torno do cobalto. O NG do metal é, portanto, igual a €. A hemoglobina, responsvel pelo transporte de oxigénio no san- gue, é também uma espécie que contém anéis quelatos, em que o ligante volidentado é um derivado da molécula da porfina. Consideremos bre- vemente as estruturas dessa molécula ¢ da hemoglobina, { \ Figura 7.5, Estrutura da molécula da porfina. A molécula da porfina (fig. 7.5) pode apresentar-se como um ligan- te tetradentado pela perda de dois protons ligados aos alomos de ni- trogénio. As porlirinas sao derivadas da porfina pela substituigao dos hidrogénios da periferia por grupos organicos. Elas formam complexos metilieas de enorme importancia para os sercs vivos. Um deles é 0 heme, em que a espécic metilica ¢ o Fe(I1). A hemoglobin contém 4 unidades heme. A fig. 7.6 ilustra a coordenagio do ferro na oxiemoglobina, mos- trando uma das unidades heme, a molécula de oxigénio e uma proteina, que completa a coordenagao octaédrica do metal. A clorofila, esscncial no processo da fotossintese, é também um derivado de uma porfirina, em que o fon metélico é Mg(II). Exercicio 7.6 Quantos anéis quelatos ha no heme? Quantos 4tomos hé em cada anel? Qual é o NC do ferro na oxiemoglobina? Figura 7.6. Coordenagae do ferro na oxlemoglobina. Complexos quelatos so mais estaveis com relagio a dissociagio do que aqueles com ligantes monodentados semelhantes. Por exemplo, consideremos as reagGes de formagao dos complexos de Ni?* com NH3 e com H2N — CH2CH2~NH2: 4 Ni tig + 6NH3(0q) = INCH) SP Kegi K = 4x 108, Ni-Gaq) + Berta) [Nien)s'hgi -K = 2x 1088. A constante de equilibrio para a reacio de formagéo do complexo com a etilenodiamina é quase 10"? maior do que para 0 complexo com a Isso significa que [Ni(en)3]°* € mais estdvel com relagdo & dissociagdo. De outra forma, se considerarmos a reagio 31 312 1. Como preservatives em alimentos, agentes quclantes compleam fors metélicos capazes de catalsar reagives de oxidagho. [NiQNHS)6)’q) + 3 ema9) = = [Ni(en)3}°fq) + 6 NHa(aqy, K = 5 x 10° pode-se dizer que 0 agente quelante compete pelo ion metilico de modo mais eficiente do que o ligante monodentado. Esse fendmeno, conhecido como efeito quelato, tem aplicagdes muito importantes. Por exemplo, na medicina, o tratamento da doenca de Wilson — acémulo de cobre nos olhos e no cérebro — tem sido feito com éxito notavel através de um agente quelante, Para que se possa for- mar o quelato, mais estdvel, rompem-se as ligagdes do cobre com as pro- tefnas do organismo, o que vai permitir sua eliminago através da urina. Um outro exemplo envolve o fon ctilcnodiaminotetraacetato, edta*~ (Tab. 7.2), um ligante hexadentado que, formando complexos estdveis com a maioria dos fons metilicos (fig. 7.7), € utilizado em anéli- se quimica na titulagdo desses. Nao obstante o prego relativamente alto desse ligante, ele € também empregado como agente complexante em muitos processos industriais em que se necessite minimizar a inter- feréncia de fons metalicos, Reagées de seqiiestro de fons metalicos, utilizando nao sé 0 edta*~ quanto outros agentes quelantes, s4o comuns em muitas indistrias, entre as quais a téxtil e a de alimentos.! O efeito quelato é ainda usado no tratamento de envenenamentos por metais pesados, na metalurgia extra- tiva do cobre ¢ do boro e na separacdo muito eficiente dos terras-raras, Coledta) Figura 7.7. Estrutura do complexo [Co(edta)] > Exercicio 7.7 Polifosfatos sdo agentes quelantes razoavelmente baratos. Discuta sua utilizagéo como aditivos em sabdes e detergentes. Com relagao ao exerefcio anterior, valé a pena mencionar que os polifosfatos podem ser danosos para 0 meio-ambiente, na medida em que sfo nutrientes para as plantas. Assim, rios ¢ lagos que recebem gran- de quantidade de efluentes urbanos tendem a apresentar 0 problema de cutroficagdo, ou seja, uma fertilizacao excessiva, que leva ao desenvol- vimento anormal de algas ¢ de plantas superiores. 0 efeito macrocictico, semclhante ao efeito quelato, também envolve ligantes polidentados. Nesse caso, verifica-se que um ligante macrociclico forma complexos mais estveis do que um polidentado scmelhante de ca- deia aberta, com 0 mesmo namero de étomos doadores: N N ean - + yy | SN No OSN Reisen od A constante de equilibrio para essa reagio éK = 1,6 x 10° Os dtomos doadores nos ligantes macrociclicos formam anéis pla- nos ou aproximadamente planos. As porlirinas enquadram-se nessa ca- tegoria, do mesmo modo que os chamados éteres de coroa, poliéteres cfclicos capazes de formar complexos estaveis com os motais alcalinos. Um dos usos dessa propricdade pouco usual é na dissolugio desses me- tais em solventes pouco polares, area de muio interesse em catalise. ° o ° ° ° il \Y 4 \ a c s c—c ZN fi ® J \ a @ ° ° 0 ° M ae ae ° 0. ° ° ° I \ 4 \ 7&4 c s c—c “7™ s™ i \ ° ° ° o ° 0 M M M M m Figura 7.8, Oxodnions carbonato, sulfato @ oxalato (a) formando quelatos, (b) formando pontes. Mé uma espécie metalica. 313 2Voliaremos a esse assunto, com mais detalhes, nas Segbes 96699. 314 No complexo do ferro, ha uma ligagio metal-metal, au- sente no complexo do ouro. Oxodnions como CO4~, S037, C2037 ¢ muitos outros podem fun- cionar como ligantes monodentados ou podem formar quelatos (fig. 7.8a). Entretanto, esses mesmos anions, ainda como ligantes bidentados, podem também formar ponies entre duas outras espécies (fig. 7.8b). Mesmo ligantes monodentados podem funcionar como pontes. Na fig. 79 estao ilustrados os compostos [Au2Cks e [Fe2(CO)9}. Pode-se abser- var que tanto 0 cloreto quanto o mondxido de carbono, além de ocuparem posigdes em ponte, apresentam-se também em posigoes terminais> Oo ct cl cl & ge ¢ NO 4 NZ

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