You are on page 1of 11
———— FELIX GUATTARI/SUELY ROLNIK Micropolitica Cartografias do Desejo 4 Edigio mcte VI Amor, territérios de desejo e uma nova suavidade.. . © desejo amoroso nfo tem neda a ver com a bestialidade ou com uma problemética etolégica qualquer. Quando ele assume essa feigio es- ‘tamos diante de algo que é exatamente da natureza do tratamento do desejo na subjetividade capitelistica. Hé un certo tratamento serial e uni- versdliante do desejo que consiste precisamente em reduzir 0 sentimento amoroso a essa espécie de apropriazio do outro, apropriacio da imagem do outro, apropriagio do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do outro. E através desse mecanismo de apropriaglo se d& a constituigio de territ6tios fechados e opacos, inacess{vels exatamente aos processos de gularizagio, sejam eles da ordem da sensibilidade pessoal ou da criacio, sejam eles’ da ordem do campo social, da invengio de um outro modo de relacio social, de uma outta concepsio do trabalho social, da cultura, ete. ‘As Iutas por vezes terriveis da neurose, da conjugalidade, que fazem com que os sentimentos amoroscs mais promistores caiam, as vezes, em territ6rios de inferno — essas Intas participam do campo das revolusé moleculares. Iss0 pode parecer um tanto fantasioso se partirmos da idéia da psicandlise de que os fendmenos que ela chama de superego setiam da natureza de uma instincia intrapsiquica. Mas se considerarmos. tais fendmenos como constituindo, na verdade, uma certa micropolftica da sub- jetividade, entenderemos por que essas relagGes de tipo edipiano que men- cionei sio micropoliticas especificas e nfo a encarnacéo de modelos pre- tensamente universais, 281 ° Entrevista # Pepe Escobar, inédita, Sio Paulo, 26 de agosto de 1982: Pepe Escobar — Hoje ainda € possivel se viver a dois? Reconstruit a estrutura ou a seqiéncia de estruturas de um relacionamento? Manter ‘uma espécie de anarquismo interpessoal que se renova criativamente contra as presses? Guattari — Bu no creio que a liherdade seja a anarquia. & verdade que a vida a dois tem algo de totalmente controlado. Para um assalariado, por exemplo, é praticamente imposstvel se manter sozinho; deve ter pelo me- nos mais um saldrio — e para isso € indispensivel manter a vida @ dois. Mas 2 vida a dois nio se redu a isso. Ela ainda pode constituir uma maneira de entender 0 mundo inteiramente original. .. Pepe Escobar — © familialismo continua sendo uma droga barata? Guattati — Em muitos casos, a mulher se tora uma serva, uma espécie de assistente do setor promotional do matido, E © caso tipico dos fun- clondrios burocréticos. Mas nfo interessa avaliar moralmente esse tipo de fendmeno, Nao interessa desprezar pessoas que adotam drogas para se proteger — sejam drogas conjugais ou nio. © importante & que em toda situacio resta — metodologicamente, em principio — 2 possibilidade de tentar. . Conversa informal, Sio Paulo, 8 de setembro de 1982: Pergunta — A mancira que voce ¢ Deleuze encontraram para trabalhar juntos me lembra um pouco Montaigne ¢ La Boétie, ¢ 0 que Montaigne dizia sobre sua relagio com La Bottie: “se me perguntassem por que eu © amava, eu diria, porque era ele; porque no era eu”. A partir disso a questo que te coloco € se pare nao cait num buraco negro nto € essen- cial que haja alguém com quem se possa prosseguir no processo, Alguém que, de certa maneira, nos ajude um pouco a manter os pés no chéo de vez em quando, ¢ para quem nés também sirvamos, de vez em quando, de apoio para que ele ndo ceia em um buraco negro, Pergunto-ime se pessoas como Lenz, Artaud, Nietzsche, no terfo caido exatamente por estarem totalmente sozinhos. Guattari — Vocé mesmo j& respondeu 2 sua pergunta. Penso que, efeti- vamente, nunce se pode dissociar os processos maquinicos. das .estruturas de retertitorializagio — para adotar uma Tinguagem mais complicada, so- fistieada ou pedante, nfo sei, A questfo da montagem de expressio, da montagem maguinica — que muda os dados, que os remancja, que pro- pulsiona novas referencias, novos universos — é insepardvel da questio dos tettitérios ou dos “corpos sem Srgios” sobre os qusis se insctevem, se marcam, se encatnam os devites maquinicos, os processos incorporais 282 i aL Mas € bem af que esté toda « ambigiiidade do tertitério, da desterrito- rializago e das reterritorializagies. Um casal pode ter, cteio eu (estou convencido disso), uma produtividade extraordinéria num certo tipo de agenciamento © pode, igualmente, desembocar num inferno “entre quatro paredes” (pata tetomar a exptessio de Sartre), desembocar numa impo- tencializacio sistemética, ° Conversa informal em Salvador, 13 de setembro de 1982: Mauricio Lissoveki —- E essa misteriosa “nova suavidade” de que voce fala em um dos textos inclufdos na Revolugéo Molecular? Guattari — A * dade” faz parte desse tema que estamos dis- cutindo © tempo tod6, ie é 0 da invencéo de uma outra relagio — com © corpo, por exemplo —, relacio esta presente nos devires animais. ‘Sair de “todos esses todos de subjetivagio do corpo nu, do territ6tio conju- ‘gal, da vontade de poder sobre 0 corpo do outro, da posse de uma fica etétia por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade é 0 fato de ue, efetivamente, um devir mulher, um’devir planta, um devir- animal, ‘um devir cosmos podem inserirse nos rizomas de modos de semictizacio, sem por isso comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desen- volvimento das forgas produtivas ¢ coisas assim. Quero dizer que, antes, as méquinas de guerra, as méquinas militares, as grandes méquinas in- dusttiais eram a tnica’ condi¢io para o desenvolvimento das sociedades. Era a forca fisica, a forca militar, a afirmacio dos valores viris que fun- cionavam como garantia da consisténcia de uma sociedade, Sem elas, a devastagio era total. Isso existe ainda na Rissia, em todos os paises fascistas, nos EUA, etc. Mas hoje em dia as margens (os marginatti), as novas formas de subjetividade, também podem se afirmat em sua vor ‘gerir’a sociedade, de inventar uma nova ordem social, sem que, para isso, tenham de nortear-se por esses valores falocréticos, compe ‘vos, brutais, etc. Elas podem se expressar por seus devires “de desejo. . Carta de Guattari a S, Rolnik, setembro de 1983: As semisticas sexuais do dominio da “natureza”, da etologia animal sio duras, cruéis. Os territérios que af se constituem, os grasping ® sio delimitados. A nova suavidade corresponde, a0 contrério, a novos coefi- cientes de transversilidtde, & invengio de aqyas_constelagées. de. Universo (devir_ mulher, devir musica, ctc,). Tive a impressio de que hé algo assim no Brasil. Pode ser que eu me engane, ¢ que os brasileiros sejam uns machées tettivels! Hf, no entanto, uma certa suavidade das entona- Ses... a misica ... De qualquer maneira, trata-se de um objetivo micropolitico ¢ nao de um dado objetivo. is De farts role dace gate te Rely Molen — Plater Pair do Dei gs pe Pa aly pc Ya 283 ° Amor: 0 impossivel ... € wma nova suavidade © amor anda impossivel? Que a familia implodiu, jé sebemos. Isso nfo € de hoje, Dela res- tou uma eee de homem, uma determinada figura de mulher. Figura de uma célula conjugal. Mas esta vem se “dester- ritorializando” a passos de gigante. O capital inflacionou nosso jeito de amar: estamos inteiramente desfocedos. Muitos sf0 0s caminhos que se esbogam a partir dai: do apego obsessivo as fotmas que. capital esvazion (tettitérios artificialmente restaurados) a criagio de toe tortie de deseo, topamos com indmerospergot, por ‘vets fats. Em um dos extremos, € ao medo da, destertitorializago. que su- cutmbimos: nos enclausuramos na simbiose, nos intoxicamos de familia- lismo, nos anestesiamos a toda sensagio de mundo — endurecemos. No outro’ extremo — quando jé conseguimos no resistir & destetritoria- Tizagao e, mergulhados em seu movimento, tornamo-nos pura intensi- dade, pura emogio de mundo —, um outro perigo nos espreita. Fatal agora pode ser o fascinio que a desterritorializagdo exerce.sobre nds: £0 invés de vivé-la como uma dimensio — imprescindivel — da criagio de tertitétios, nés a tomamos como uma finslidade em si mesma. E, inteiramente desprovidos de tervitérios, nos fragilizamos até desman. char irremediavelmente, Entre esses dois extremos, ou essas diferentes maneitas de morrer, ensaiamse, desajeitadamente, outros jeitos de viver. E todos esses vetores da expetimentagio coexistem, muitas vezes na vida de uma mesma pessoa. No primeiro caso, Penélopes e Ulises — sobreviventes do nau- frigio da familia — encaram em todos nés, nos arrastando para cst maldita simbiose que nos persegue, homens ¢ mulheres, 36. vi- tiando seu estilo, Essa maldita vontade de espelho. Essa sede insa-

You might also like