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François Zourabichvili1

Deleuze, uma filosofia do acontecimento.


Introdução inédita (2004): o ontológico e o transcendental.

Esse livro, aparecido pela primeira vez há dez anos, é testemunha de uma época em que não era
comum considerar Deleuze como um pensador completo, uma figura maior do século XX
filosófico. Partimos do paradoxo de seu renome litigioso: ele não é um filósofo original visto
que comenta, ele não é um historiador visto que ele é, a cada vez, “o” Deleuze. Recusamos
distinguir entre Deleuze, Deleuze-e-Guattari, e mais uma vez, Deleuze (como há em Beckett
antes de Pim, durante Pim, após Pim — situação dispensavelmente confusa).
Não é seguro, levando em conta a fadiga do tempo, que esse duplo mal-entendido tenha se
dissipado. Candura ou não, hoje reclamam por filósofos que saibam novamente se ocupar de
um objeto: como se a “experiência” ou “a vida”, único assunto da filosofia, esta “coisa mesma”
de dimensões múltiplas e irredutivelmente imbricadas, entre as quais figura a filosofia, fosse de
saída repartida em terrenos para ocupação acadêmica, grandes temas para as conversas dos
homens de bem. Experts ou retóricos, os pretendentes não deixam de comparecer a esta nova
filosofia diversamente cognitiva. Quanto à história da filosofia, as normas universitárias
doravante em uso fazem Deleuze aparecer como um eclético suave, de uma espécie talvez
digna de memória, como toda espécie ao olhar do erudito, mas felizmente extinta.
Quanto ao outro mal-entendido (Deleuze segundo Pim), o último decênio viu multiplicarem-se
os exegetas experts em pureza deleuzologica ou, inversamente, os deleuzo-guattarologos
indiferentes à era pré-Guattari (e mesmo aos textos menores de Guattari inferior, quando Mil
Platôs brilha aos olhos deles como fonte única e absoluta). Se nosso ponto de partida era
resolutamente an-histórico, é porque queríamos fazer surgir a sistemática deleuziana evitando
as armadilhas cronológicas demasiado grosseiras (sob vários aspectos, por exemplo, a virada do
Anti-Édipo é enganosa, visto que a verdadeira renovação dos conceitos — devir-animal,
ritornelo, máquina de guerra, etc. — só tem lugar mais tarde).
Entretanto, o fato é que novas apostas surgiram. Reteremos aqui apenas duas, porque
concernem à nossa obra. De um lado, a deleuzologia, em seus momentos piores, mas também
nos melhores, fez largo uso do “nome pomposo da ontologia”, como dizia Kant, instalando um
equivoco tanto mais difícil de extirpar quanto esse mesmo nome tinha recobrado em Heidegger
uma parte de sua aura. De outro lado, certas tendências da fenomenologia, com o ardor dos
recém-conversos, pretendem o monopólio sobre a noção de acontecimento, refazendo ou
ignorando a história.
Não há “ontologia de Deleuze”. Nem no sentido vulgar de um discurso metafísico que nos diria
o que é, em última instância, a realidade (fluxos em vez de substâncias, linhas antes em vez de
pessoas...). Nem no sentido profundo de um primado do ser sobre o conhecimento (como em
Heidegger e Merleau-Ponty, onde o sujeito aparece já precedido por uma instância que abre a
possibilidade desse aparecer).
Aos defensores da primeira versão, devemos lembrar a ancoragem resolutamente “crítica”, no
sentido kantiano, do pensamento de Deleuze: a de um filósofo que, todo o tempo, teria
questionado as condições da experiência, insatisfeito com Kant e com a fenomenologia (o uso
notório que ele faz de Nietzsche e Bergson entra nesse quadro).
Aos partidários mais sutis da segunda, atestamos pela obra de Deleuze que o desbordamento
do sujeito na experiência não se inscreve em termos obrigatoriamente ontológicos; que um
outro diagnóstico apareceu, segundo o qual o ser é uma categoria que não resiste a esse
desbordamento.
É verdade que o prestígio do qual goza o nome do “ser” tende a subtraí-lo, como por distração,
ao trabalho crítico dos mais vigilantes: esse seria o correlato mais evidente do pensamento, tão

1
François Zourabichvili [1965-2006], Deleuze, une philosophie de l’événement. Paris: PUF, 2004
[reedição da obra publicada em 1994].
evidente que toda suspeita ao encontrá-lo seria quase má-fé... A contrapartida de um privilégio
tão exorbitante é a acolhida sem reserva de todo conteúdo possível ou, melhor ainda, de
nenhum conteúdo – a própria inconsistência. O ser, retirada toda predicação possível, e como
sua própria fonte... Podemos certamente construir um conceito do sem-conteúdo (obtido por
reabsorção ou suspensão) e nomeá-lo por exemplo o nada, o neutro, ou ainda de outro modo:
não há razão de batizá-lo ser, salvo forçar a língua até o ponto em que tudo torna-se igual, isto
é, onde não se fala mais.
Ora, se há uma orientação da filosofia de Deleuze, esta é: extinção do nome do “ser” e, por aí, da
ontologia. Aqueles para quem comentar um autor consiste em inscrevê-lo nas grades da
philosophia perennis, a ele não retornam (mas depois de tudo, como dizia Deleuze, se o eterno
retorno tem um sentido, é bem o de uma seleção). Entretanto, Deleuze disse e redisse com todas
as letras – à la lettre – seu programa: substituição do É pelo E; ou o que dá no mesmo,
substituição do ser pelo devir. A introdução de Mil Platôs termina com essas palavras:
“Instaurar uma lógica do E, reverter a ontologia”2. A filosofia contemporânea – Foucault, Derrida,
para não falar dos anglo-saxões – abandonou ou ultrapassou a ontologia; qual a satisfação,
ingênua ou pérfida, em querer com toda força reencontrá-la em Deleuze?
Entretanto, objeta-se, o próprio Deleuze não escreveu com todas as letras que “a filosofia se
confunde com a ontologia”?3 Assumamos – cabendo ao apologeta do nome “ser” explicar como, na
mesma obra, pode ser produzido um conceito de campo transcendental4. E comecemos por
restabelecer a cláusula do enunciado, voluntariamente elidida ou mal avaliada: “... mas a
ontologia se confunde com a univocidade do ser”5. Ela contém – exemplo formidável do estilo ou do
método de Deleuze – o que perverte todo o discurso ontológico.
Sejam os dois autores aos quais Deleuze atribui a afirmação da univocidade, após Duns Scot o
iniciador: Spinoza, Nietzsche6. Não é de uma meditação incessante sobre Spinoza que ele tira o
nome “plano de imanência”, destinado a suplantar o de “campo transcendental”, tornado
inadequado?7 E não é de Nietzsche que diz: ele fez o voto da verdadeira crítica, para além de
Kant?8 A questão que todo leitor de Deleuze deve enfrentar, se ele quer evitar o parti-pris (sem
abster-se de tomar posição, isto é, de assinalar a Deleuze, na filosofia, um lugar inédito que
desarruma a paisagem) é saber como esse pensador pode conjugar dois modos de abordagem a
primeira vista incompatíveis: transcendental, ontológico9
Bastaria lembrar que Husserl já tinha reintroduzido a ontologia subordinando-a à interrogação
fenomenológica? Bastaria acrescentar que as dificuldades às quais se encontrava confrontada a
fenomenologia (os limites de uma “constituição” à partir do sujeito transcendental) conduziram
inversamente um Fink ou um Heidegger a reinscrever a fenomenologia, mais para a completar
do que para trair, em uma perspectiva ontológica? Certamente não. A inspiração “ontológica”
sobrevém a Deleuze ao lado de sua démarche crítica, e como o duplo desta.
Deleuze remonta ao coração da verdadeira tradição ontológica: aquela que, tomando seu
impulso na Idade Média, bem antes da douta formação da palavra, é de início uma meditação
sobre a linguagem, contrariamente às “metafísicas” clássicas com as quais a ontologia é muitas
vezes confundida, para a elas ser historicamente anexada. Heidegger é certamente o primeiro a
ter restaurado esta dimensão lingüística, tanto quanto sondou a aventura scotista. Mas a tese da
univocidade não foi para ele fonte de inspiração, enquanto Deleuze aí vê o ato mais glorioso da

2
MP, 37; Sobre a substituição do É pelo E, cf. Dialogues, 70-73; MP, 36, 124; IT, 235. Sobre a
substituição do ser pelo devir, cf. MP, 291 (donde a promoção do conceito de linhas).
3
LS, 210.
4
LS, séries 14 a 16.
5
Univocidade do ser significa: o ser se diz em um só e mesmo sentido de tudo o que ele se diz.
6
DR, 57-61.
7
MP, 311 e 326: onde se fala, a partir de Spinoza, de um “plano de imanência ou de univocidade” [cf.
também SPP, “Spinoza e nós”, de 1978].
8
NF, 99 e ss.
9
Um exemplo: o mesmo conceito de “singularidades pré-individuais” é introduzido duas vezes na
Lógica do Sentido, como componente do novo conceito de campo transcendental (15ª série), depois
como categoria ontológica em um texto sobre Klossowski (LS, Apêndice III)
ontologia — aquele que conduz direto à sua auto-abolição como doutrina do ser10. Não é a
ontologia nela mesma que interessa Deleuze; é — como diz a cláusula citada acima — o
momento de sua história em que surge a tese da univocidade, e sua posteridade clandestina,
bem além da Idade Média.
O golpe de força é, portanto, identificar a ontologia a uma de suas teses: Deleuze se crê
autorizado pela afirmação da univocidade ser levada pela pesquisa de uma pura lógica do
sentido (conforme a definição deleuziana do humor como arte das conseqüências — esta lógica
desemboca em um anarquismo político especial, de perversão e não de destruição, que funda
sobre a idéia de irredutibilidade do pequeno ao grande um conceito de resistência original e
muito pouco piedoso, que resume bastante bem o “pessimismo alegre” de nosso filósofo)11. No
mesmo golpe, é no seu mais alto ponto de realização que a ontologia se descobre voltada, não a
rasurar a noção de onde tira seu nome (rasurar não é um modo de Deleuze), mas a apagá-la à
força da sobriedade. E se é para marcar o estilo de Deleuze com um símbolo, sem nisso insistir
mais do que fez um pensador que sempre se manteve à distância das astúcias da linguagem,
sublinhamos de novo esta amputação silenciosa de uma letra que o francês permite: E(S)T.
De uma lógica do ser e do saber, a filosofia bascula em direção a uma lógica da relação e da
crença. Que o “ingênuo” Hume ressurgisse após Heidegger, não sob a forma de um retorno-à,
mas sob a injunção desterritorializante do questionamento mais contemporâneo, é certamente
uma das surpresas que nos reserva esta sobriedade sem a qual, para Deleuze, não há filosofia
em devir12.
Se procurarmos onde Deleuze crê poder atar os dois fios de seu discurso, transcendental e
ontológico, invocaremos a categoria de “imanência” e o tratamento estranho que ele a faz
sofrer13. Mas se perguntarmos: em qual momento, precisamente, essa categoria é instalada? É
preciso responder: quando a afirmação da univocidade do ser, desdobrada em todas as suas
conseqüências, atinge o conceito de afeto e se converte em um pensamento da experiência. Aqui
o esquema da demonstração: se a univocidade do ser implica que os seres só se distinguem por
seu grau de potência, e se esse grau de potência, antes de comparar-se a outros, é de inicio pode
ser julgada por uma prova [épreuve] intrínseca onde ele só mede a si próprio (ir até o fim do que
se pode — a opressão consiste menos em sofrer o jugo do mais potente do que estar “separado
do que se pode”, inapto desde então a toda espécie de resistência), então um ser só se deixa
definir na declinação singular de seus afetos (antes que por gênero ou diferença específica), e
esta ontologia evanescente, que só conhece devires, acoplamentos transversais ou desvios
mútuos, coincide com a descrição de um campo de experiência liberado da tutela de um sujeito
(pois “o que pode um corpo” ninguém sabe antecipadamente). Aí se efetua também a passagem
de um regime do sentido próprio e da metáfora regulada a um regime da “literalidade”
anárquica, onde tudo comunica de direito com tudo14.
Imanência: tal é o momento, não em que a experiência ordinária remontaria a suas próprias
condições para dela fazer a experiência de algum modo transcendental, deixando de reconhecer
que a condição última não é o ego mas o Ser ou o Acontecimento (estilo fenomenológico-
heideggeriano), mas em que a própria retomada transcendental averigua que é dependente da
tomada de consistência de uma experiência “real” — em outros termos, da alteração das
condições sob as quais alguma coisa é reconhecida como possível (estilo deleuziano). Este
acontecimento é atestado pela produção de categorias singulares e pela emergência de uma
10
Entretanto Deleuze fica muito próximo de anexar Heidegger à sua linhagem de pensadores da
univocidade: ele só o exclui in extremis. Cf. DR, 52 e 91.
11
DR, 55. Cf. também O que é a filosofia?, 104 e ss.; Critica e clinica, 163-167. [cf. F. Zourabichvili,
Les deux pensées de Deleuze et Negri]
12
O apelo à sobriedade é um dos fios da meada de Mil Platôs: cf. 125, 342, 425. Ele é endereçado a
todos, igualmente aos deleuzianos.
13
Husserl tinha dado nova vida à noção de imanência inscrevendo-a no quadro de uma filosofia da
experiência para além de Kant. Deleuze reativa o antigo uso — metafísico — da noção para dar
consistência ao seu projeto anti-fenomenológico de radicalização do pensamento crítico. Cf. SPE,
cap. XI; MP, 310 e ss.; SPP, cap. VI.
14
DR, 55, mas também o curso esclarecedor de 14 de janeiro de 1974, disponível no webDeleuze.
crença inédita. Pois se o saber, seja lá o que se diga, permanece a disposição fundamental de um
pensamento que se endereça ao ser, só a crença responde ao acontecimento, pelo que ele
envolve de exterioridade irredutível ou de desafio lançado à razão.
“Crença” não tem mais aqui o sentido tradicional de uma atitude cuja validade se mede por
uma verdade presente ou por vir, detida aqui em baixo por um outro, o sábio, ou além, em
algum entendimento infinito. Só se conserva o sentido da convicção não razoável, mas cujo
valor negativo se inverte, desde que a necessidade à qual aspira o filósofo se revela impensável
nos limites da “razão” (isto é, de um pensamento senhor de si mesmo). “Crença” se relaciona ao
retorno incansável, no espírito, de uma relação inédita e problemática, de uma conjunção de
termos tão imprevisível como injustificável, cuja afirmação difícil assume a abertura pelo
arrombamento [efração] de um novo campo de experiência, capaz de apreender uma parte das
ocorrências caóticas da vida e transformar seus golpes em signos (exemplos célebres: o
inconsciente é15 uma usina, não mais um teatro16; o cérebro, mais erva do que árvore —
enunciados, nos diz Deleuze, a entender literalmente e não como simples metáforas, pois
nenhuma partilha de sentido, permitindo assinalar o uso próprio e o uso figurado, precede esse
solo móvel de relações transitórias). Pensar, nesse sentido, é “contrair um hábito”, devolvendo a
essa noção todo seu valor de inovação ou de criação.
Portanto, só há acontecimento no plural, o acontecimento é sempre ao menos dois. Em outros
termos, o acontecimento é menos o advir absoluto de um nascimento sobre o fundo de
negatividade (nada ou doxa) que um devir onde o antes e o depois brotam ao mesmo tempo, de
uma parte e de outra de uma cesura que o pensamento não pode reduzir (o antes não é antes de
mim ou antes do pensamento, mas eu-antes-de outro modo17 ou o que o pensamento era — “Eu
é um Outro”). Também o acontecimento, sempre plural e precedido por outros, não tem, como
nos pensamentos de proveniência fenomenológica, o caráter de um advento.
Com Deleuze, o pensamento cessou de tomar a neutralidade do acontecimento por um
acontecimento neutro, em todo lugar reiterável (embora seu estatuto anti-predicativo, em
Merleau-Ponty ou Heidegger, preserve em princípio o acontecimento da prova do mesmo e do
outro, ela própria neutralizada)18. O pensamento doravante faz o voto de Nietzsche: articular
nomes que não sejam encarnações do nome de um Deus meio morto. É por isso que a função de
crer não desaparece, mas muda de sentido; e nos enganaremos compreendendo que a variável
tomou somente um outro valor, para um função que permanece intacta. É também porque o
agenciamento deleuziano não poderia convir à filosofia em devir, ainda menos lhe bastar
eternamente. Mas ela lhe convém, no sentido forte e ativo, ou, melhor ainda: eles se convém,
enquanto ela encontra o que a desloca, a surpreende, a põe à prova sem se reconhecer. Escrever
sobre Deleuze não é comemorar uma revolução filosófica já feita. Ninguém sabe, nem pretende
dizer, o que é “a” filosofia de Deleuze; nós nos sentimos afetados por Deleuze, nós seus
exploradores, enquanto experimentamos fazer filosofia hoje; presumimos que a filosofia não
sairá incólume da aventura deleuziana, mas sabemos que cabe a nós mostra-lo e realizá-lo.

15
NT: o A. usa a fórmula E(S)T.
16
AE, passim.
17
NT: moi-avant-autrement.
18
Sobre a neutralidade do acontecimento, cf. LS 9ª e 21ª séries.

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