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"A Invenção de Hugo Cabret" e a contribuição cinematográfica de Martin


Scorsese para a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia

Conference Paper · July 2015

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3 authors, including:

Thais Saraiva Ramos Claudio Yutaka


Universidade Anhembi Morumbi São Paulo State University
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Audiovisual Design: the convergence between HCI and audience studies View project

Guy Ritchie: Audiovisual language and his marks as an author View project

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AVANCA | CINEMA 2015

"A Invenção de Hugo Cabret" e a contribuição cinematográfica de Martin Scorsese para


a linguagem audiovisual por meio da estereoscopia
Claudio Yutaka Suetu
Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Ricardo Tsutomu Matsuzawa


Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Thais Saraiva Ramos


Universidade Anhembi Morumbi, Brasil

Abstract – and how it improved – the referred movie’s language


to construct a more complex narrative, thus turning the
movie into a reference for future cinema productions.
More and more, the greatest Hollywood productions
Keywords: Hugo Cabret, 3D Cinema, George Méliès,
have been utilizing 3-D animation resources as a
Martin Scorsese, stereoscopy.
foundation to ensure bigger box offices revenues,
attracting a major audience into the theatres.
Nonetheless, in spite of the advances in the esthetical
Introdução
possibilities of such technologies, a great part of the
North American movies still uses stereoscopy in a
limited way: for example, seeking the impact of
No final do século XIX, o Cinema surge em um
“throwing things” into the spectator’s face. Only few
momento de extrema expansão tecnológica no campo
productions have perceived and used the filming
audiovisual, em uma época que seria reconhecida por
technology to explore the tri-dimensionality as texture,
Walter Benjamin como a “Era da Reprodutibilidade
giving the viewers a better immersion into the story,
Técnica” da obra de arte. Cenas do cotidiano, como a
offering greater emotional involvement and
chegada do trem à estação ou a saída de operários de
identification with the narrative. “The invention of Hugo
uma fábrica, filmadas pelos irmãos Lumière, se
Cabret” (2011), from American director Martin
transformariam em objetos de espetáculo: a realidade
Scorsese, is one of these few examples, renewing the
e a vida comum desdobravam-se diante dos olhos do
film-making language through the insertion of visual
público. Com o passar dos anos e aprimoramento da
elements and textures that have made the narrative
tecnologia, a arte da espetacularização ganha novos
more exciting and intriguing to the spectator. At the
contornos e elementos que apresentam um realismo
same time, the movie pays tribute to the Cinema and
(ainda que fantasioso) nas telas e que acaba
to one of the great inventors and pioneer in the global
influenciando a nossa própria noção de real nas
filmmaking, George Méliès. The proposed article
décadas seguintes. O lançamento de “Interpretação
investigates and analyses what stereoscopy added to
dos sonhos”, em 1900, por Sigmund Freud ajudou a

Artigo apresentado no Congresso de Avanca, Portugal e publicado em Anais do Congresso


AVANCA | CINEMA 2015
1
desenhar, um mundo que está em expansão , em que autores como Antônio Costa, David Bordwell, entre
a comunicação assume um papel importante e que outros, para embasar a análise e discussão.
começa a entender melhor o consciente individual e
coletivo da sociedade. A análise de Freud possibilita,
por exemplo, uma relação mais ampla entre o cinema Georges Méliès e seus filmes fantásticos
e a experiência onírica, tão contida nos filmes de
fantasia. Experiências tais que Georges Méliès vai
transpor ao apresentar histórias que, até então, As primeiras produções audiovisuais da História
apenas poderiam ser imaginadas (como no filme trouxeram para o público uma nova percepção do
“Viagem à Lua”). espaço urbano e, consequentemente, do mundo. O
cinema, ao transformar a vida pública em espetáculo,
Muito já foi dito e escrito sobre a importância do
agarra para si a autenticidade em reproduzir a
autor/diretor Georges Méliès para a produção
realidade e ganha um papel de promotor da releitura
audiovisual mundial. Méliès é tido por muitos como um
histórica, simulador de situações que podem ser
dos grandes pais do cinema, juntamente com os
tomadas como verdadeiras graças à confusão entre o
irmãos Lumière, não apenas pelas contribuições que
simulacro e o real. Segundo o autor Antônio Costa em
fez registrando cenas do cotidiano, mas também pelo
seu livro Compreender o cinema,
uso da câmera de cinema como uma nova forma de
construir truques de mágica. E também serviu de A ‘magia’ do cinema determinou formas de
fruição espetaculares que recobriram os
inspiração para o livro “A Invenção de Hugo Cabret” aspectos mais comuns da vida de cada dia,
fundamentando-se no fascínio pelas técnicas de
que foi adaptado para o cinema e dirigido pelo norte- reprodução e de animação das imagens.
americano Martin Scorsese. O filme é uma (COSTA, 2003, 49).

homenagem à figura de Méliès e à produção do Esses novos significados puderam ser


2 explorados por meio de uma lógica de máxima
chamado primeiro cinema em todas as camadas
possíveis de análise, seja na escolha do tema e extensão da magia tecnológica e os poderes da cena.
personagens, até o uso das tecnologias Mesmo que no começo a estética dos filmes se
estereoscópicas que foram aplicadas de uma forma assemelhassem às produções teatrais (a cena se
pioneira (se comparada a outras utilizações feitas até desenrola em um plano fixo, geral, que mostra todo o
então). cenário e os personagens se movimentam dentro
desse quadro), as produções do diretor francês
A proposta do artigo é analisar como
Georges Méliès já traziam um trabalho de perspectiva
determinadas tecnologias podem operar certas
que, aliado à interpretação dos atores, ajudava a
mudanças na linguagem audiovisual. Começaremos
construir um senso de espaço maior que uma peça
com um pequeno panorama acerca das produções de
teatral poderia fazer no palco.
Georges Méliès que, apesar da tecnologia limitada,
tornou possível as primeiras experiências sistemáticas Méliès fez carreira como mágico e ilusionista, foi
de manipulação da película, até a chegada do filme de proprietário do Théâtre Robert-Houdin que manteve
Scorsese que, foi muito influenciado por essa forma de aberto com suas apresentações e truques até que, em
produção. Partiremos do referencial teórico dos 1895, ficou fascinado por um outro tipo de

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apresentação: a exibição de imagens reais em (Figura 02), gerando uma outra atmosfera para a mise-
movimento. Aos 34 anos de idade adquiriu uma en-scène.
câmera de cinema e começou, como muitos outros na
mesma época, a registrar em película o que via.
Devido a um problema de funcionamento da câmera
em uma de suas produções, Méliès notou um "pulo"
em uma das imagens que havia captado e, por conta
desse erro, percebeu a vocação desse novo aparato
tecnológico para a criação de ilusão e da fantasia.
Durante 17 anos, chegou a produzir cerca de 500
filmes explorando e criando efeitos especiais à partir
3
das trucagens que fazia com a câmera, esses efeitos
equivalentes aos truques de magia que desenvolvera
anteriormente nos palcos do teatro o levaram a ser Figura 02 - Cenário do filme Viagem à Lua, em que os astrônomos
observam a cidade e suas fábricas a pleno vapor. Tanto a fumaça
conhecido como um dos maiores cineastas do mundo quanto as casas foram produzidas com cenários de madeira e
pinturas em perspectiva para criar a ilusão de profundidade.
e o pai dos efeitos especiais modernos. O filme mais
4
conhecido de sua carreira é "Viagem à Lua" , de 1902
(Figura 01). Para o teórico David Bordwell, a construção
estilística de filmagem é considerada como um dos
pontos base da mise-en-scène:

A mise-en-scène cinematográfica usa um


repertório rico de técnicas que se afinam com a
análise poética. Não se trata de elaborar um
árido tratado de poética do filme, e, sim, de
aprofundar a experiência da recepção do filme
para o cinéfilo interessado. (BORDWELL, 2008,
31)

A mise-en-scène, corresponde diretamente à


construção narrativa, mas para Bordwell, vai além dos
Figura 01 – O Homem chega a lua usando uma bala de canhão, aspectos da filmagem, ela também se relaciona com
tecnologia disponível em 1902 que foi reaproveitada por Méliès para
tornar possível essa viagem insólita. os resultados na tela, ou seja, a maneira como os
atores entram na composição do quadro e o modo
Nessa obra ele explora os sonhos e desejos da como a ação se desenrola no fluxo temporal
humanidade e o esforço em criar uma missão de (BORDWELL, 2008). Méliès se aproveita do espaço
exploração na Lua, para isso, produziu um cenário que fílmico para construir um espaço de sonhos e
rompia com as barreiras visuais da imagem 2D e, possibilidades, também nos mostra como a tecnologia,
através da posição dos objetos, pinturas e outros aliada à criatividade pode nos levar a lugares que
elementos de cena, imprimiu perspectiva e textura antes não eram possíveis ou não explorados.
dentro do filme apresentando as ações em camadas

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Alguns anos mais tarde, com a evolução das contadas e mudanças dos sistemas de produção,
tecnologias de efeitos especiais foi possível retomar os pouco antes do "boom" da ascensão dos blockbusters.
efeitos mecânicos que Méliès havia iniciado, um dos Mas em termos de transformação de linguagem
diretores que vai aproveitar a tecnologia 3D, aliada à referente à evolução tecnológica em sua carreira, um
estereoscopia, para emular as camadas que Méliès aspecto relevante seria a transição do sistema
produziu em alguns de seus curtas é o diretor analógico para o digital, em que destaca uma evolução
americano Martin Scorsese. no efeitos especiais (permitindo um mundo mais
onírico e fantasioso em detrimento do realismo), o que
possibilita uma melhora técnica e a popularização da
Martin Scorsese estereoscopia. Segundo uma entrevista do cineasta
para o pesquisador Tirard, "os cineastas sentem que é
preciso renovar e fazer o que podem para descobrir
O diretor Martin Scorsese nasceu em Nova York uma nova linguagem a partir desta gramática (o
(1948), descendente de italianos, pensava em ser cinema)” (TIRARD, 2006, 22).
padre mas escolheu estudar cinema na New York
O filme "A invenção de Hugo Cabret" é a sua
University Film School. Traços que definem o seu
primeira experiência com a técnica da estereoscopia,
estilo: uma perspectiva católica em sua obra e um
ou mercadologicamente classificado como "filme 3D",
conhecimento enciclopédico sobre o cinema. Na
em entrevista ao jornalista Pedro Caiado o diretor
universidade estudou a estética, a história e os
afirma gostar muito da técnica e sua vontade de
processos de produção cinematográficos e antes de
experimentar as possibilidades formais desta
se estabelecer como um diretor dos mais importantes
ferramenta:
de sua geração, trilhou uma carreira de formação em
diversos funções da confecção de um filme. Possui Eu adoro o 3D. Fiquei muito animado, porque
gosto de trabalhar com profundidade. A minha
uma filmografia consistente que transitou por diversos maior preocupação neste caso foi como usar o
gêneros: documentário, musical, comédia e filmes 3D na narrativa do filme. Como você utiliza a
profundidade? Conheço pessoas que não
sobre a máfia. Começa sua carreira nos anos de 1960, conseguem ver profundidade, mas eu consigo, e
sempre gostei. Enquanto converso com você
participando do considerado American Art Film, agora, vejo outro prédio, algumas árvores e
momento em que os cineastas se distanciavam do consigo perceber tudo isso em profundidade.
Também gosto de movimento em profundidade.
classicismo/mainstream para dialogar com o É a minha energia- e o que eu sinto. (CAIADO,
2012)
modernismo europeu. “Do mesmo modo que os
cineastas da Nouvelle Vague, esses diretores cinéfilos
Embora a técnica estereoscópica seja
produzem filmes pessoais e altamente
bastante antiga, somente a partir da tecnologia digital
autoconscientes” (BORDWELL, THOMPSON, 2013,
é que ela se estabelece na produção cinematográfica.
723).
Scorsese tem um novo momento em sua carreira que
Scorsese surge como realizador em um o aproxima de Méliès, no desafio de criar uma nova
momento único de transição do cinema americano em possibilidade formal, fugindo da espetacularização do
seu modo de concepção nas histórias a serem

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efeito para redefinir e construir possibilidades de


linguagem com a incorporação da técnica.

A estereoscopia e o Cinema

A origem semântica da palavra “estereoscopia”


vem da justaposição de duas raízes gregas: a palavra Figura 03: Giovanni Brunneleschi conferindo a correspondência
exata de sua pintura e a imagem real, por meio de um furo no centro
“stereos” que significa “firme”, ou “sólido” e o termo da imagem.

“skopeō”, relativo à visão, ao olhar. Desse modo,


estereoscopia é a forma de olhar aquilo que é sólido,
Após a popularização do uso da perspectiva
tridimensional, tal como é no mundo real. Nosso
entre os pintores renascentistas, havia ainda o desejo
sistema visual trabalha de forma estereoscópica, na
de tornar as imagens ainda mais realistas. Muitas
medida em que aquilo que o cérebro capta é, na
pinturas pareciam “saltar da tela”, porém foi apenas
verdade, a junção de duas imagens, obtidas por cada
em 1832 que Sir Charles Wheatstone descreveu um
um dos olhos. O efeito disso, somado à percepção em
processo chamado stereopsis, que tratava da ilusão
movimento, é a noção mais clara da profundidade.
de tridimensionalidade obtida por meio de imagens
Desde a Antiguidade houve certo interesse em captadas paralelamente e exibidas separadamente
representar o mundo de forma cada vez mais fiel, para cada um dos olhos. Em 1840, Sir. David Brewster
quando os gregos se aventuraram nos primeiros criou o estereoscópio, aparelho que permitia ver
estudos da perspectiva linear. Mas somente no imagens como objetos sólidos (Figuras 04 e 05). Para
Renascimento, o escultor Filippo Brunelleschi define o isso, o inventor usou duas imagens captadas por
conceito de ponto de fuga, técnica fundamental para o câmeras paralelas e próximas. Ao olhar pelo aparelho
surgimento das primeiras pinturas em perspectiva era possível enxergar com cada olho uma imagem
durante a Renascença. O primeiro experimento ligeiramente diferente da outra, criando o efeito de
usando essa técnica foi uma reprodução da fachada profundidade similar àquele que temos no mundo real.
da igreja San Giovanni di Firenze (Batistério de
Florença), em 1415. Para realizar essa tarefa,
Brunelleschi pintou a fachada do batistério em um
espelho, sobre a imagem refletida. Para conferir o
resultado, ele fez um pequeno furo no centro desse
espelho e colocou um segundo espelho na frente, para
ver a própria obra. Assim, teve a oportunidade de
comparar o resultado da pintura com a imagem real
(Figura 03).

Figura 04: Modelo de estereoscópio criado por Sir David Brewster


para a visualização em três dimensões.

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As incursões em 3D já possuíam elementos


típicos do cinema, apesar de integrarem
espetáculos com atrações diversas, como ocorria
no período anterior. Exemplo disso foi o
Teleview, nome dado ao programa de cerca de
85 minutos criado em janeiro de 1921 e
composto por imagens estereoscópicas, um
pequeno documentário e o filme M.A.R.S., que
utilizava um processo também intitulado de
Teleview para simular a terceira dimensão
(PIOVEZAN, 2012).

Outras tecnologias continuaram a ser


exploradas dos anos de 1920 a 1940, mas é somente
Figura 05: Exemplo de imagem estereoscópica do século XIX. na década seguinte que o cinema estereoscópico
alcança um grau elevado de popularidade no Reino
Unido, com o Telekinema (Figura 06) e nos Estados
A novidade virou uma febre, mas não durou
Unidos, com o filme “Bwana Devil”, de 1952. Alguns
muito tempo. Há várias teorias que tentam explicar o
filmes foram produzidos, inspirados por esses
declínio da estereoscopia ainda no século XIX, como a
sucessos, mas essa fase dourada durou pouco. Os
associação dela à pornografia, que causava cada vez
altos custos envolvidos na produção e projeção de
mais constrangimento para quem possuísse um
filmes estereoscópicos, somados às diversas
desses aparelhos. De acordo com Victa de Carvalho:
mudanças no cinema norte-americano, como o
Ainda no século XIX, o estereoscópio conhece surgimento da TV e a crescente rejeição do cinema
grande popularidade a partir da intensa
disseminação de pornografia. A ilusão dos por parte da geração dos babies boomers acabou
volumes e a sensação de presença provocada
pela experiência estereoscópica teriam aberto inviabilizando investimentos nessa área nos anos
caminho para um mercado clandestino de seguintes.
estereoscopias pornográficas. É preciso aqui
enfatizar o caráter ilusionístico da técnica, já que
em nenhum momento o observador poderia
confundir a imagem com a realidade. Alguns
autores especularam que a associação da
estereoscopia à pornografia teria sido uma das
principais causas de sua degeneração como
prática de consumo (CARVALHO, 2006, p.10).

Desde o início do cinema os pioneiros e


inventores demonstravam interesse em aplicar o
conhecimento da estereoscopia às imagens em
movimento. William Friese-Greene, os irmãos Lumière,
Thomas Edison e Edwin Porter foram alguns dos que Figura 06: Público utilizando óculos para projeção estereoscópica
em Telekinema, Londres, em 1951.
empreenderam pesquisas nessa direção. Segundo
Stefhanie Piovezan, no início dos anos de 1920:

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Apenas em 1981 a estereoscopia entra em lentes tilt-shift, que fazem imagens e objetos reais se
pauta nos cinemas, novamente. Dessa vez com o parecerem com brinquedos (Figuras 07 e 08).
filme “Comin’at Ya!”, de Ferdinando Baldi, seguido de
“Sexta-Feira 13 – Parte III” (1982) e “Tubarão 3D”
(1983). Com a consolidação do IMAX, após os anos
de1970, surge a junção da estereoscopia e do cinema
imersivo, com uma tela mais ampla, permitindo novos
efeitos de profundidade.

É interessante notar que durante muitos anos o


principal uso da estereoscopia restringia-se a lançar
objetos e personagens na direção do espectador,
como uma forma de exibir o potencial da técnica.
Apenas após os anos 2000 é que os diretores e Figura 07: imagem de Paris fotografada com uma lente tilt-shift.

demais realizadores voltam-se para o potencial da


profundidade de campo no filme estereoscópico.
Destacam-se nesse contexto, filmes e animações
como “Expresso Polar” (2005), “Coraline” (2009),
“Alice no País das Maravilhas” (2010) e a “Invenção de
Hugo Cabret” (2011), que vai explorar ainda mais
intensamente esse novo e ao mesmo tempo antigo
elemento narrativo que é a ilusão da realidade sólida
por meio da estereoscopia.
Figura 08: Quadro do filme “A Invenção de Hugo Cabret” (2011)

Análise de Hugo Cabret


Os cenários, lembram caixas de brinquedos, em
especial as ambientações dentro da estação de trem.
O efeito tridimensional dá essa impressão de “caixa”
O filme “A Invenção de Hugo Cabret” remete a
que contém as personagens e os objetos. Scorsese
fragmentos de uma história real, a vida de Georges
sabe representar muito bem a profundidade e faz uso
Mèliès, através do olhar infantil. Esse é o mesmo olhar
do potencial estereoscopia para acrescentar camadas
que o cineasta coloca sobre os cenários e a
distantes do espectador. No filme, não se vê um objeto
composição, nos aproximando desse universo de faz-
“saltar” da tela, como é usual em produções que
de-conta. O mundo do sonho e da fantasia é
utilizam essa técnica. O que notamos é o uso da
constantemente entremeado por camadas de neve,
profundidade de campo seguindo o princípio
fumaça e poeira, criando uma dispersão suave na 5
renascentista (Figuras 09 e 10).
iluminação. As imagens da cidade de Paris são como
miniaturas estilizadas, com um efeito similar ao das

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mão do maior trunfo dos filmes “3D”, que é


aproximação de um elemento da cena em direção ao
público. Sua aposta é criar um universo mais imersivo,
envolvendo o público em uma espécie de “caixa de
imagens”.

Figura 09: pintura renascentista “Escola de Athenas”, de Raphael


(1511).

Figura 11: cena do filme “Cidadão Kane”, de Orson Welles (1940)

O uso da estereoscopia em alguns momentos


se afasta de uma tentativa realista e cria a
tridimensionalidade com uma "certa artificialidade"

Figura 10: casa do professor René Tabard, em “A Invenção de Hugo que se aproxima a construção cenográfica de Méliès
Cabret”. Este quadro mostra como o diretor trabalha o conceito de
múltiplas camadas, preparadas para o universo tridimensional.
em seus filmes, mas sem deixar de causar certa
sensação de imersão ao espectador. Méliès, em suas
produções, construía o cenário em camadas pensando
Podemos também fazer uma referência à em uma forma melhor de movimentação dos atores
construção do espaço tridimensional no filme “Cidadão em cena, remetendo aos palcos do teatro e à quarta
Kane”, de Orson Welles, em 1940. Na época o Diretor parede, na qual o público fechava essa "caixa de
de Fotografia, Gregg Toland, experimentou o uso das exibição". No filme "Hugo Cabret", o diretor escolhe
lentes pancromáticas, com o intuito de aproveitar o quando resgata filmes para citar internamente na
máximo de foco possível na profundidade de campo narrativa não aplicar a estereoscopia, uma opção que
(Figura 11). Esse uso foi considerado inovador e o talvez busque conservar e manter uma reverência ao
filme é reconhecido até hoje por essa inovação no uso sagrado da obra original, apenas em trechos de filmes
de imagens em perspectiva. Do mesmo modo, cerca Méliès . Scorsese, em suas referências e
de sessenta anos depois, Scorsese recupera esse reapropriações que fazem homenagem ao autor,
trabalho experimental com a profundidade de campo, utiliza o efeito, talvez por se colocar como ele na
só que no ambiente estereoscópico. Ele arrisca abrir posição de ilusionista com as possibilidades de

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atualizar a obra de um autor que tem como marca Scorsese também utiliza a estereoscopia como
autoral os efeitos de ilusão. Podemos perceber essa efeito tridimensional de volume, prática comum
reapropriação no momento em que Scorsese usa do utilizada pelos filmes atuais com o recurso "3D", mas
flashback para ilustrar a forma como Méliès produzia com uma apropriação mais estética e poética como
seus filmes, como é o caso da cena do filme de 1903, nos papeis que voam da caixa com desenhos e
"O Reino das Fadas" (Figura 12). croquis de Méliès. Desenhos bidimensionais flanam na
tela alguns com o efeito de movimento de um
taumatrópio. Na busca da aplicação de uma nova
forma de estereoscopia em sua obra que resgata e
apresenta uma história que tem como um dos
personagens o próprio cinema. O diretor em suas
cenas retoma técnicas do pré-cinema: flip-book, os
pequenos livros animados; um taumatrópio, o pequeno
disco de papelão preso a um filme, a lanterna mágica
e o stop-motion.
Figura 12 - Momento da gravação do filme "O Reino das Fadas"
segundo o filme "A Invenção de Hugo Cabret".

Conclusão

Se comparada a cena original da produção de


"A Invenção de Hugo Cabret" é uma obra
Méliès, podemos perceber não só a fidelidade de
metalinguística que usa o próprio cinema para
detalhes e posições, mas também a quantidade de
apresentar os primeiros filmes e a evolução da
camadas e sobreposições das informações visuais
linguagem cinematográfica. A obra se passa em 1931
(Figura 13).
e marca a evolução das estratégias narrativas
clássicas, seja nas referências mostradas durante a
6
exibição do filme, nas homenagens prestadas a
Georges Méliès e menção aos Irmãos Lumière, ou nas
ações reproduzidas no contexto do filme.

Outras relações e menções são feitas no


decorrer da obra sempre referenciando o tempo e sua
passagem. O tempo fílmico se relaciona com as
engrenagens e as máquinas - presentes nas partes do
relógio, os trens que chegam à estação, o autômato e
a câmera de cinema - isso nos leva a perceber e a
Figura 13 - Cena do filme original de 1898.
lembrar da evolução do homem e a das cidades, das
tecnologias que antes eram produzidas de forma

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artesanal e agora são recriadas por meio das CARRINGER, Robert L. 1997. Cidadão Kane. Rio de
Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
máquinas.
COSTA, Antônio. 2003. Compreender o cinema. São Paulo:
O ponto de vista de Hugo estende-se à própria Editora Globo.

linguagem do filme: uma criança que mora em uma MASCARELLO, Fernando, org. 2006. História do cinema
mundial 2006. Campinas: Editora Papirus.
estação de trem e tem como companhia as memórias
SELZNICK, Brian. 2007. A invenção de Hugo Cabret. São
com o pai, as engrenagens, relógios e seu autômato Paulo: Edições SM.
de estimação. Nesse sentido, a cidade toda é uma TIRARD, Laurent. 2006. Grandes diretores de cinema. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira.
grande máquina em perfeito movimento. A produção
da obra cinematográfica faz parte desse trabalho
maquinal, mas ao mesmo tempo não perde a sua Artigos em Revista

essência artesanal. O filme retrata a transição de um ADAMS, Gavin. 2003. “Um balanço bibliográfico e de fontes
da estereoscopia”. In: Anais do Museu Paulista. V. 6/7: 207-
cinema realizado pelos primeiros autores até o sistema 225
produtivo e industrial cinematográfico após o final da EDGERTON, Samuel. 2006. “O espelho de Brunelleschi, a
janela de Alberti e o ‘tubo’ de Galileu”. In: História, Ciências,
era de Méliès. Scorsese busca de forma nostálgica Saúde – Manguinhos, v. 13: 151-79.
criar uma narrativa metalinguística com um final feliz
em que o pai dos efeitos especiais, redescoberto,
Texto em Linha
recebe aplausos em seu antigo teatro.
BENJAMIN, Walter. 1955. A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. Coleção de textos:
Scorsese arrisca-se e vai na contramão daquilo http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20o
que era consagrado até então nos filmes bra%20de%20arte%20na%20era%20da%20sua%20reprodu
tibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf. Acedido em 11 de abril de
estereoscópicos mainstream. Ao investir na 2015.
profundidade, aproxima-se da pintura renascentista, CAIADO, Pedro. 2012. Martin Scorsese fala de seu filme 'A
invenção de Hugo Cabret'. Jornal Estado de São Paulo:
referenciando Orson Welles e Gregg Toland. Seu http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,martin-
Hugo Cabret emaranha-se em camadas vívidas de scorsese-fala-de-seu-filme-a-invencao-de-hugo-
cabret,835422. Acedido em 11 de abril de 2015.
cores quentes e frias, traços bem marcados de
FREUD, Sigmund. 1900. A interpretação dos sonhos.
edifícios e uma cidade que se estende para além dos Universia Literatura:
http://www3.universia.com.br/conteudo/literatura/A_interpreta
planos convencionais do cinema. A Invenção de Hugo cao_dos_sonhos_de_sigmund_freud.pdf. Acedido em 11 de
Cabret é a caixa de surpresas tridimensional de abril de 2015.

Scorsese, criada em homenagem ao velho vendedor


de brinquedos e mágico brincalhão, Georges Méliès. Tese/Dissertação
PIOVEZAN, Stefhanie. 2012. Aspectos históricos e
implicações da utilização do efeito 3D no Cinema: o caso de
A Invenção de Hugo Cabret. Dissertação de Mestrado em
Referências Comunicação, Universidade Estadual Paulista – UNESP.
Livros
BORDWELL, David. 2008. Figuras traçadas na luz - A Conferência
encenação no cinema. Campinas: Editora Papirus.
CARVALHO, Victa de. 2006. “Pontos de vista: modernidade
BORDWELL, David and THOMPSON, Kristin. 2013. A arte
e visão estereoscópica”. Comunicação apresentada no IV
do cinema - uma Introdução. Campinas: Editora Unicamp.
Encontro Nacional de História da Mídia. 30 de maio a 02 de
junho.

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Filmografia
A invenção de Hugo Cabret. 2011. De Martin Scorsese.
Estados Unidos. Paramount Pictures. DVD.
Cidadão Kane. 1941. De Orson Welles. Estados Unidos.
Warner Home Vídeo. DVD.
Sessão Méliès – Quinze filmes de Georges Mèliès. 1997. De
Georges Mèliès. França. Cult Classic. DVD.

1
Antônio Costa define os últimos anos do século XIX e os
primeiros do século XX como Belle Époque (a Bela Época
em francês), que segundo ele "foram igualmente anos de
grande progresso científico, tecnológico e social, envolvendo
inúmeras contradições que não tardaram a explodir"
(COSTA, 2003, 46).
2
Segundo o autor Antônio Costa, esse primeiro cinema pode
ser abordado do ponto de vista técnico-científico pois nos
ajuda a compreender como essas projeções foram tomando
forma e, além de mostrar a realidade da época também
passaram a fazer parte dessa realidade ao se tornarem uma
convenção social. Essas primeiras produções ainda tinham
uma linguagem muito próxima da apresentada nos teatros,
apenas com a evolução do meio uma linguagem foi
propriamente construída.
3
As trucagens foram os efeitos especiais desenvolvidos por
Georges Méliès e produzidos à partir da edição das cenas
feitas na própria câmera.
4
O filme Viagem à Lua conta a história do presidente do
Instituto de Astronomia que constrói um foguete e, junto com
alguns companheiros, viaja para a lua. Durante sua viagem
eles se deparam com os selenitas e na volta para a Terra
traz um desses seres para a Terra.
5
O Princípio Renascentista se baseia na forma de
representação da imagem através do domínio da perspectiva
no ponto central, onde cria-se a ilusão do espaço
tridimensional em uma superfície plana.
6
Durante a projeção do filme Hugo Cabret, são
apresentadas cenas de filmes clássicos hollywoodianos,
como Harold Lloyd, Chaplin, Griffith entre outros.

Artigo apresentado no Congresso de Avanca, Portugal e publicado em Anais do Congresso

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