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O ENSAIO DE LUIS DA CAMARA CASCUDO NA INTERPRETAGAO DA CULTURA BRASILEIRA Gilberto Felisberto Vasconcellos - Universidade Federal de Juiz de Fora/MG RESUMO Estudo das fontes da cultura popular, atra- vés de ensaios, como forma literdria, do escritor e pesquisador Camara Cascudo. Andlise de suas in- vestigacdes etnoldgicas, folcloricas e histéricas, ca- racterizando a nossa cultura, bem como a funcio do folclore na sociedade. Registra ainda as permu- tas culturais de cada etnia formadora da civiliza- Gao brasileira ou seja identificadas nas tradicoes portuguesas, indigenas e africanas. ABSTRACT The study surveys the sources of popular culture based on essays — as a literary form — written by researcher and writer Camara Cascu- do. It is an analysis of his ethnological, folkloric and historical investigations that characterize our culture and the role of folklore in society, as well. Furthermore, it records the cultural exchange of the ethnic groups that gave rise to the development of the Brazilian civilization, that is, rooted in Por- tuguese, indigenous and African traditions. GET oem gue Lut € Eu, Gente viva, Preltidio e Fuga do Real, Ontem, Amigo Thaville, Canto de Muro, O Livro das Velhas Figuras, Viajando o Sertdo, Em Sergipe D°El Rey, convém, no entanto, alargar o critéri igh do ensaio, para nele inclu tais como O Marqués de Olinda e Seu Tempo, Meleagro, Anubis e Outros Ensaios, Janga- da, Geografia dos Mitos Brasileiros, A Religido no Povo, Superstigdo e Costumes do Brasil, Tradicao, Giéncia do Povo, Rede de Dormir, Histéria da Ali- mentagdo no Brasil, Ensaios de Etnografia Brasilei- ra, Sociologia do Agticar, Made in Africa, Historia dos Nossos Gestos, Conde D*Eu. Intimeros os temas, os problemas, as questdes abordadas por esses livros, apresentan- do inegavel interesse universal, todavia 0 que pretendemos aqui delimitar é 0 modo como 0 eminente escritor do Rio Grande do Norte inter- pretou a cultura rovelraesemesabseseh GB, através daquilo ee da Camara Cascudo materializou seu excepcio em sua Historia da Lite- talento de pesquisador e escritor, evidenciando em -ratura Brasileir: varios livros a predilecio pelo @SSRHGRIMOREIg® GBD francés que leva a fama justa de ter inaugu- rad ou leterminar- mos problemas. Se através desse critério podemos situar alguns trabalhos 4<{@GH@ SiS ECE (moraistico de Luis da Camara Cascudo, 0 orpe = = inhar o lugar proeminente do en- saio de Luis da Camara Cascudo, como reflexio eivada do inevitavel lastro subjetivo e com estilo original de escrever, nao intencionamos classifi- c4-lo como homo literatus, no qual a imaginagéo algaria vo alheia & circunstancia empirica. Aten- to a esse perigo, ele fez questio, em varios livros, Cronos, Natal-RN, v.1, 1.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 28 de avisar ao leitor que no permitiu “a imagina- cao suprir 0 documento” (Diciondrio do Folclore Brasileiro, quarta edic¢ao, 1970), assim como no prefacio da primeira edicdo de Locugées Tradicio- nais no Brasil (Fundacdo José Augusto, 1970), as- sinala que “reler e lembrar foram os fundamentos. A feiticeira imaginagao ndo colaborou. Nem a remi- niscéncia erudita alistou-me, de caldeira e pendao no doctus cum libro”. Prefaciando em 1948 seu amigo potiguar Verissimo de Melo, Advinhas (incluido em Folclore Infantil, Itatiaia, Belo Horizonte, 1985), ele deixa claro que é preciso afastar a dogmatica para ser folclorista: nenhuma classificaco deve constituir tabu. “Tudo no folclore existe, in actio e ndo in po- tentia”. No intrdito, escrito em 1972, a Religiao do Povo (in Supersticdo no Brasil, Itatiaia, Belo Hori- zonte, 1985), retoma o mesmo mote: “Em verdade vos digo que a imaginagao ndo participa da minha narrativa”. O Brasil “ignoto Deo”, etnologicamente fz ando, tal qual a ele se referiu em Cultura e Civil zagdo, ganharé uma abordagem empenhada e1 inexcediveis — ‘apenas de por em relevo as permutas culturais entre o Brasil e o mundo (o cuscuz é arabe, o fran go veio da Europa, o quiabo da Africa, o beijo nas- ceu na Asia, a roda é européia, a mandioca ame- Anio Peixoto o chamou de “provinciano incuravel” (Gente Viva). O folclorista aceitou o epi- teto como verdadeiro, dedicando o livro Civiliza- gio e Cultura aos “professores provincianos do Bra- sil universitério”. nca perderd de vista 0 Luis im aa recorrente na aaa cascudia- , traditio, traden, ‘A co- eg tages fa Divina Comédia, Dante Alighieri e a Tradig@o Popular no Brasil (Universidade Catélica do Rio Grande do Sul, 1963, Porto Alegre), Luis da Camara Cascudo nao dispensa, no capitulo “Os Carneiros do Ban- quete”, a informacao biografica: “Tendo sido cria- do em fazenda de gado, no alto sertiio do Rio Gran- de do Norte, tantas vezes testemunhei a irresistivel obediéncia maquinal do rebanho de ovelhas”. Nomes da Terra. E notéria a preocupagao cas- cudiana com o significado cultural do Rio Grande do Norte e do Nordeste. Em seu livro Tradigdo Cién- cia do Povo (Perspectiva, Sao Paulo, 1971), alude as “enfermidades folcléricas” passadas na infancia para justific: apRRTRRTEMNNETROPAT © miso do genio ta fo na provincia, a que se refere o escritor Américo de Oliveira Costa citando Ernest Renan (Vi- agem ao Universo de Luis da Camara Cascudo, Rio de Janeiro, 1969). Luis da Camara Cascudo diplomou-se na jife university” do folclore. Em Tradigdo Ciéncia lo Povo conta: “Como fui filho tinico, doente e tris te, amamentou-me o leite de todas as crendices wilares” Ele se apaixoncs pi im 1918, porém é preciso lembrar o fato tantas vezes sublinhado por ele mesmo: 0 folclo- re é que se interessou inicialmente por Luis da raba), ED camara Cascudo. Do folclore chegou & erudi¢ao, de acor: ase lapidar de Civilizacaoe Cul ¢ nao ao inverso. A cultura popular entrou em perfeita sin- tonia com a sua vida, de modo que o folclore para ele nao é uma descoberta aprendida em biblioteca, ¢ sim convivéncia com 0 povo do Nordeste, de cuja simbiose gerou a mais rica meméria do Brasil. Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 Ao mestre Cascudo caberia todo o direito de afirmar: “o folclore c’est moi”. A sintese do eru- dito e do popular se processa menos pela bibliote- ca do que pela convivéncia com a cultura popular do Rio Grande do Norte. Recordemos a saborosa entrevista de 1964 concedida a Pedro Bloch: ‘Nunca me interessei pelo folclore. Ele é que se inte- ressou por mim. Médrio de Andrade néo podia com- preender. Pensava que eu tinha sido levado a cultu- ra popular pela erudigdo. Mentira! A cultura popular é que me levou a esta. Por esta sala jé pas- saram Juscelino e Villa Lobos. Mas aqui também vieram Jararaca e Ratinho. O elemento primordial da regio se conec- ta ao procedimento actistico-visual, de quem ou- viu e viu muitas coisas, sem que nenhuma leitu- ra Ihe sugerisse indagacao, pesquisando das Aguas aos ares, centena de volumes, duzentas plaquetas e incontaveis cartas espalhadas pelo mundo. Sua adolescéncia no sertio oeste do Rio Grande do Norte, “antes das rodovias e da luz elé- trica. As velhas estradas eram paralelas e nao perpendiculares ao litoral”, conforme escreveu em TradigGo Ciéncia do Povo. E mister deixar claro que nos ensaios de Luis da Camara Cascudo sem- pre deparamos com a idéia de que 0 folclore néo € uma manifestagao cultural confinada ao mun- do rural, expressio do analfabetismo ou fruto da miséria, nem deve ser entendido como alguma coisa pitoresca, anedética e exdtica, assim como nao é um espetéculo arcaico 4 margem da vida real. Equivoco supor que o desenvolvimento eco- némico eliminaria 0 folclore, como se este néo resistisse 4 introduco da maquinaria na agricul- tura; de resto, as supersticées florescem no uni- verso urbano-industrial. A supersticéo nao é indice de retardamen- to mental. Luis da Camara Cascudo cita Montaig- ne: 0 espirito humano é “un grand ouvrier de mi- racles”, alertando ao mesmo tempo que o astronauta quando pisou na lua levou uma pata de coelho. Enfim, para Luis da Camara Cascudo, a industria nao mata o folclore, assim como 0 fato folcl6rico é anterior ao conflito entre capital e trabalho. “Ciéncia da psicologia coletiva, cultura 29 do geral no homem, da tradigéo e do milénio na atualidade, do herdico no cotidiano, é uma verda- deira histéria normal do povo”, assim define a disciplina do folclore, prefacio aos Contos Tradi- cionais do Brasil (editora Itatiaia, 1986). Luis da Camara Cascudo nunca saiu para morar fora de Natal. Poderia morar em Sao Paulo, Rio de Janeiro, Luanda, Lisboa, Brasilia, Paris. Deve ter recebido convites sedutores, mas nao aceitou, preferiu viver no Nordeste, afirmando com esse exemplo a possibilidade cultural da regio, deter- minante em seu perfil literdrio, citando no mesmo plano 0 ex-escravo Fabido das Queimadas tanto quanto Goethe ou Leo Frobenius. Em varias ocasides conta que 40 por cen- to aprendeu lendo, 60 por cento aprendeu ouvin- do. Dai a frase inesquecivel: “Ouvir 0 povo vale uma universidade”. Andar as vozes. Fungao pre- cipua do ouvido, pois impossivel seria pesquisar © Brasil pelos escritos e letreiros semi-apagados dos monumentos. Vocacao do povo para exterio- rizar ritmos. Em Locug6es Tradicionais no Brasil recolhe 500 palavras ouvidas (e nao lidas), através de um convivio de meio século com o povo. O sertéo vi do por ele falava a lingua de Gil Vicente. O sertéo Idade Média, sem agua gelada, sem fotografia ¢ sem luz elétrica. Em Gente Viva evoca seu amigo Guimaraes Rosa, tratado por Sagarana, que nao gostava de conversar sobre Bonn, Paris, Londres, Nova York, mas sim a respeito do mutum mineiro com as repercussées lingiiisticas de Azurara, Joao de Barros, Diogo do Couto e Camées. Luis da Cémara Cascudo é filésofo da lin- guagem. Fraseologia nacional. Folclore é lingua. Estudo das frases feitas. “Cré com cré e Ié com 1é”, “Sopa no mel”. “Nao dar-se por achado”, ete. O vocabulo tradugao significa transmissio oral. Ficando surdo, ele mesmo disse que a surdez cria peliicia ao pensamento. D. Dahlia lhe protegeu das noticias ruins. Durante 40 anos professor em Natal, primeiro no Liceu, depois na Universidade do Rio Grande do Norte. Professor mesmo depois de morto. Resumiu assim sua biografia: “ensinou e escreveu. Nada mais Ihe sucedeu”. Cronos, Natal-RN, v1, n.1, p. 27-40, jan./jun, 2000 30 Viajou duas vezes a Europa e uma vez & Africa, de que resultou o livro Made in Africa, et- nologicamente idéntico as conclusdes expostas em Meleagro. Em algum livro, que nao temos agora a mio (sera Preltidio e Fuga do Real?), escreveu que “viajar é bom, mas ter viajado é melhor ainda”. O que comove Luis da Camara Cascudo ¢ o imagi nario da viagem, tanto que as vezes a impressio & de que ele estava aqui como espectador quando Cabral desembarcou em Porto Seguro. Vale recordar a mensagem fundamental contida em Histéria da Alimentagao no Brasil: a fome nao foi trazida pelos marinheiros bem nutri- dos de Cabral, assim como nao existia fome entre 0s indios. Luis da Camara Cascudo pesquisa o que havia para comer ~ o “cardépio indigena” ~ an- tes da vinda do europeu. Tenta escrever a qua- tro maos com Josué de Castro, o autor de Geo- politica da Fome. Em 1940 me apaixonei pela alimentagao. Nao estava pensando em hidratos de carbono ou pro- teinas. Queria era a histéria da comida. Tentei seduzir Josué de Castro para escrevermos juntos a histéria da comida brasileira. Mas ele estava mais preocupado com o que o homem deixa de comer, com a fome. Os povos escolhem determinados ali- ments e, mais tarde, acigneia vem provar que o povo tinha razGo, embora na hora estivesse con- trariando a ciéncia, 0 tépico da alimentacao é determinante no saber do folclore, para o qual o estémago vem antes da linguagem, o fagos precede o fonos, verdade anunciada na epigrafe bem humorada de Histéria da Alimentagéo no Brasil: “Papagaio néo comeu? Morreu”. No Brasil, onde vinga o “recentismo sem cata” (Religido no Povo), impressiona, como subli- nha Luis da Camara Cascudo, 0s old times, dos quais é testemunha e documento durante o século XX, espécie de meméria autoral do povo, nao obstante © anonimato coletivo caracteristico da tradicéo folelérica. Em Histéria da Alimentagao no Brasil, informa que “a imagem sintese da alimentagao an- tiga era a panela. Da moderna é o abridor de latas”. Um médico de Recife, Wanderley Guilherme, cha- mou-o de “alquimista do cotidiano”, definindo tao bem a ciéncia direta do folclore: crono sem clio. No dia-a-dia contemporaneo, é visivel a preocu- pac cascudiana de mencionar com freqiiéncia a Arca de Noé, ou sendo 0 exemplo da auséncia da nogao de dilivio entre os nossos aborigenes. Dar adeus ou saudar com a mao agitada, costume gestual, néo tem idade, maos e bracos falando antes da palavra (Histdria dos nossos Ges- tos). Luis da Camara Cascudo dedica um ensaio etnol6gico, de feigio metafisica, ao cotejo da maga com a banana, “Banana no paraiso”, tendo em mira a emergéncia do Brasil no mundo em 1500. Refe- tindo-se ao Génesis, anuncia a seguinte tese: “a magi ¢ pomologicamente impossivel no paraiso”. A fruta que Eva comeu nfo era a mac, e sim a ba- nana, vocdbulo africano, sindnimo de érgao viril, que est em nosso cotidiano como a fruta-enga- na-fome. “Musa paradisfaca” (Ensaios de Etnogra- fia Brasileira), a banana é a fruta mais popular no Brasil, com inequivoca conotagao superstici- osa: 0 miolo da banana apresenta a figura geo- métrica da cruz. E por isso que o homem do povo nao a corta nunca de modo transversal. No Di- ciondrio do Folelore Brasileiro, verbete “Bananei- ra”, assinala que, “quando vai dar cacho, a mu- sdcea geme como uma mulher em dores de parto”. Para corroborar a idéia de que o alimento, além de sua funcao nutricionista, torna-se espirito e matéria de supersticao, ele cita 0 pernambuca- no Pereira da Costa no Diciondrio do Folclore Brasileiro: A bela musdcea, conhecida pelo nome vulgar de bananeira, tao comum entre nds, em suas varia- das espécies, é um vegetal que remonta 4s origens da criagdo do mundo - porque Addo e Eva come- ram dos seus frutos no paraiso terreal; e, efetiva- mente, a sua origem asidtica, magistralmente dis- cutida e comparada por Alph De Candolle ea sua classificagdo botanica de musa paradistaca, im- posta pelo sdbio Lineu, autorizam, ndo hd dtivida, a popular legenda. Trabalhando sozinho, nenhuma secretéria, batendo direto na maquina de escrever, Luis da Ca- mara Cascudo demora 40 ou 50 anos no preparo de alguns livros, Histéria dos Nossos Gestos, Hist6- Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 ria da Alimentagéio no Brasil, Religido no Povo. Foi menino rico, adolescente também rico, mas na mocidade ~ estudando em Salvador, no Rio de Ja- neiro e no Recife - fica pobre. Seu pai perde o que tinha. Volta para Natal. Aposenta-se como profes- sor universitario. Ele adorava citar o velho Timbira do Juca Pirama: _ “meninos, eu vi!” Morando em Natal, ndo quis deixar o encontro das éguas entre o Potengi e 0 Atlintico. De propésito, colocamos re- paro no recurso aqudtico, pois a Agua é quase oni- presente no estilo do autor de A Jangada, as “trés traves atadas entre si”, como ele a definiu. Muitas vezes para compreender a unidade aglutinadora do folclore como resultado da triade étnica, langa mao de metéforas fluviais, leito dos rios, onde cada aflu- ente é soberano, sendo impossivel identificar na foz as Aguas dos rios confluentes. Num estudo intitulado “Folclore do Mar” (Ensaios de Etnografia Brasileira, Instituto Nacio- nal do Livro, Rio de Janeiro, 1970), assinala a maior importancia do rio que do mar. ‘No Brasil do século XVI, 0 mar ndo determinara nenhuma lenda impressionante e no fabuldrio ameraba ndo havia seres fantdsticos, morando nas dguas salgadas. Todas as superstiges mais podero- sas eram fluviais e lacustres. Resulta daf a onipresenga das dguas dos rios conformando seu estilo de escrever. Embora des- conectados uns dos outros, os rios se encontram no imaginario, servindo nao raro de correio para os estudiosos do folclore, assim as aguas do rio Lima em Portugal desembocam no Capibaripe de Pernambuco, o rio Potengi se desloca até o rio Pia- banha de Petrépolis, de acordo com 0 estudo do folclorista Francisco de Vasconcellos, (Do Potengi ao Piabanha), que manteve correspondéncia com Luis da Camara Cascudo a partir de meados dos anos 60. A énfase aqui dada a importancia da regio tem por objetivo mostrar que Luis da Camara Cascudo regionaliza o universal - ¢ vice-versa, tendo como mediagao o impres- cindivel copyright by nacional, expressao usa- da por ele em “Da Poesia Narrativa no Brasil”(Ensaios de Etnografia Brasileira). 31 Acrescente-se que, paralelamente ao registro e interpretacdo dessas transmigragées cultu- rais, vai se configurando ao longo do tempo, sobretudo a partir de 1939, com a publicacao de Vaqueiros e Cantadores, um inventédrio ana- Iitico sobre a magnitude de cada contribui- cdo étnica, tendo como ponto inicial 0 desa- fio repentista popular, momento decisivo em que avulta, na ensaistica de Lufs da Camara Cascudo, a preocupagiio em conceituar a na- tureza da miscigenacao cultural, porque es- tudaré o Brasil popular de ponta a ponta, sa- bendo qual o lugar e a funco do folclore na sociedade, depois de escrever, em 1940, Geo- grafia dos Mitos Brasileiros, reafirmando que antes havia publicado em 1939 sobre os “ae- dos de chapéu de couro” em Vaqueiros e Can- tadores, livro que impressionou os mais inteli- gentes ¢ rigorosos pesquisadores contemporaneos de cultura popular, a exemplo de um Roger Bastide ou de um Mario de Andrade. Vaqueiros e Cantadores. A critica musical cascudiana inquietou o paulista Mario de Andra- de, que reagiu através da sociologia de Roger Bas- tide, afirmando que o desafio repentista brasilei- ro era de origem africana. O folclorista do Rio Grande do Norte teria se equivocado ao defender a tese de que o desafio nordestino grego. Mario de Andrade, escrevendo em 1944 sobre 0 jeito nasal de cantar, ndo concorda com Luis da Ca- mara Cascudo por ter passado “uma enorme des- compostura na voz e na maneira de cantar dos can- tadores nordestinos”. sso porque Lufs da Camara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores, escrevera dos cantadores: “voz dura, hirta, sem maleabilidade, sem floreios, sem suavidade”. Para Mério de Andrade, o mestre potiguar estaria fazendo critica preconceituosa ao avaliar © cantador nordestino sob o prisma do belo canto de escola. Dispensdvel reiterar que Luis da Cama- ra Cascudo estava coberto de razéo em seu enfo- que sobre o desafio dos vaqueiros nordestinos. Mas Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 32 aqui no é 0 momento adequado para tecer consi- deragdes acerca dos citimes de Mario de Andrade em relacao ao camoniano “saber de experiéncia feito” do pesquisador Luis da Camara Cascudo, que hospedara em sua casa o intelectual paulista na década de 20, antes deste escrever a rapsédia Ma- cunaima (Verissimo de Melo, Cartas de Mdrio de Andrade a Luis da Camara Cascudo, editora Vila Rica, Belo Horizonte, 1991). Luis da Camara Cascudo escreveu uma histéria de Mossoré, concordando com a for- mulacéo de Amadeu Amaral (citada por Amé- rico Pellegrini Filho, Antologia do Folclore Bra- sileiro) de que a unidade brasileira é psicolégica, nao étnica. Como a psicologia da nossa gente tem raizes regionais, nao se pode falar do cor- po e da alma do Brasil sem aprofundar o ethos regional. Isso porque a cultura popular néo existe sem insergéo numa determinada regio. Impossivel referir-se aos mitos culturais sem a geografia e seu condicionamento regional. Por exemplo: Lobisomem no norte, saci pereré no sul. E por isso que a disciplina do folclore nao perde de vista o bindmio regiao e tradicao. Em sua viagem pelo Nordeste (1928-29), Mario de Andrade escreveu sobre 0 coqueiro po- tiguar Chico Anténio, mas pouquissima coisa so- bre Luis da Camara Cascudo que 0 hospedou em Natal, cidade em que o poeta paulista fechou o corpo num catimbé. Convém lembrar que Luis da Camara Cascudo comecou a se interessar pelo estudo da cultura popular desde muito cedo. Em 1918 apaixonei-me pela cultura popular, vivendo-a, procurando-a, amando-a; um colega de magistério pediu minha demissdo ao gover- nador Juvenal Lamartine porque era indignida de um professor do Ateneu Norte Rio-Grandense andar indagando lobisomem e estudar catimbé, enrolado com os ‘mestres’ e os juremais mirife- ros. (Tradigao Ciéncia do Povo). Em 1928 Mario de Andrade tinha 34 anos, Luis da Camara Cascudo estava com 29 anos, jo. vem escritor prefaciado por Rocha Pombo e edi- tado por Monteiro Lobato. Em 1968 Gumercindo Saraiva coletou e publicou os artigos de critica musical (Cascudo, Musicélogo Desconhecido), es- crevendo desde a década de 30 sobre Bach, Bee- thoven, Mignone e Haeckel Tavares, de modo que antes da publicagio, em 1939, de Vaqueiros e Can- tadores, Lufs da Camara Cascudo era um exce- lente critico de miisica. No livro Meleagro, temos 0 esclarecimento de sua relagao intelectual com Mario de Andrade: Creio que antes de 1928 estaria eu dando campo ao catimbé em Natal, contagiado pelas reporta- gens de Jodo do Rio as religioes suplementares na capital federal. Em 1928, dezembro, Mério de An- drade (1893-1945), meu héspede, fechou o corpo com um mestre fregiientador de nossa chécara. Pagou vinte mil réis e narrow a proeza em crénica que ndo conseguiu reconguistar O que pretendemos por em relevo que sub- jacente a questo da origem da poética dos repentis- tas nordestinos, a rigorosa pesquisa de Vaqueiros ¢ Cantadores representou um marco ou ponto de in- flexdo importante na obra cascudiana, sobretudo no que tange a interpretacio da cultura popular brasi- leira como um todo, posto que néo convém perder de mira que somente no Brasil temos o privilégio de Possuir um Diciondrio do Folclore Brasileiro, de A a Z. Ora, dicionario significa lingua, linguagem, siste- ma, enfim, a totalidade, de modo que essa totalidade sociocultural é uma realidade lingiifstica com base no folclore, portanto, a indefectivel via de acesso a0 conhecimento do povo brasileiro. Pedindo colaboracao aos amigos pesquisa- dores de todo o Brasil, Luis da Camara Cascudo redigiu em 1952 0 monumental Diciondrio do Fol- clore Brasileiro. Aos 41 anos de idade publicou, em 1939, Vaqueiros e Cantadores, investigacaio que Ihe possibilitou o entendimento da base ibérica das manifestacdes culturais populares, remando pois contra a tendéncia interpretativa reinante no pais junto aos socidlogos, antropélogos e estudiosos do folclore, divididos em geral entre africanistas e in- dianistas. No é por acaso que, sem intencéo po- lemistica, mas dando seu recado, escreve j4 em 1940 o prefacio de Geografia dos Mitos Brasileiros (prémio Joao Ribeiro, 1948, Academia Brasileira —. Ss Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun, 2000 de Letras), em que reforga a descoberta anterior sobre o primado euro-ibérico em Vaqueiros e Can- tadores, reforcando-a quanto a contribuicao étni- ca e conformacio dos mitos pelo Brasil inteiro: Jurupari, Curupira, Anhangé, Boitatd, Tupa, Ipu- piaras, Lobisomem, Mula-sem-cabeca e Maes- d'dgua. Referindo-se a estes mitos, informa Luis da Camara Cascudo: Nao hd nenhum que se arrogue a ter imunidade. Mito negro apenas atino com o Quibungo. Euro- peu puro, ndo avistei. Indfgena 100%, idem. No mdximo, ou no minimo, sdo continentais. Focalizando os mitos da Bahia, Geografia dos Mitos Brasileiros, explicita quase em tom con- fessional o cerne de sua interpretacao cultural, di- ferenciando-se das muitas abordagens africanis- tas que medram no Brasil pés-1930. “Meio saturado das leituras que ao negro entregam o dominio men- tal popular, dificilmente me fui desenganando entre as positivas demonstragdes contrdrias”. Refere-se a um trabalho seu de 1937 sobre catimbé, macum- ba e feiticeiros (“Novos Estudos Afro-Brasileiros”), publicado no Rio de Janeiro. Décadas depois te- mos a publicagio de Meleagro (Agir, 1978, Rio de Janeiro, 2* edicao), subintitulado “Pesquisa do Ca- timbé e Notas da Magia Branca no Brasil”, em que observamos idéntica preocupacao presente em Geografia dos Mitos Brasileiros, estabelecendo a origem do processo de encantamento na cultura popular: “Feitigo da Grécia em maos africanas”. A propésito, que retenhamos a frase lapi- dar e esclarecedora: “Feito pelo negro nao se de- duza negro o feitico”. Nao ha diivida quanto & base portuguesa nos despachos, ebés, canjerés: Ocolono portugués trouxera suas supersti¢es e as semeara no Brasil inteiro. Essas superstigées fazer co lastro essencial ds nossas crendices e constituem a percentagem decisiva. Ao contrério do que muitos africanistas defendem, Lufs da Cémara Cascudo assegura em Meleagro: Os processos da feiticaria, catimbé, bruxaria, no Brasil, so mais de oitenta por cento de origem ‘européia, Sao os processos das bruxas e bruxos que a Santa Inquisigdo perseguia e queimou. 33 A continuidade estabelecida da Grécia e Roma nos catimbds e feiticarias tem por objeti- vo fixar 0 milénio na atualidade, ou a contem- poraneidade do milénio, que é uma das caracte- risticas do folclore, tantas vezes sublinhada por Luis da Camara Cascudo em varios livros. Foi no decurso das pesquisas de fundamen- to empirico que o folclorista do Rio Grande do Norte chegou & conclusdo de que o negro nao é 0 elemen- to essencial das manifestacées culturais populares, corrigindo em Geografia dos Mitos Brasileiros “o exa- gero dos africanistas”, exagero que talvez seja fru- to da mé-consciéncia de alguns estudiosos, por cau- sa da presenca durante séculos da escravidao e da exploragdo da mao-de-obra africana. Nesse sentido, 0 ensaio Geografia dos Mi. tos Brasileiros € 0 divisor de Aguas, porque nele é visivel 0 propésito de demonstrar que, mesmo na Bahia, objeto de estudo de Nina Rodrigues, Artur Ramos, Manuel Querino e Edison Carneiro, o “mito, na relagdo de seu processo de presenca e fina- lidade, deve, rara, fortuita, parcamente ao negro Resulta daf a limpida conclusao: ‘Na Bahia, os mitos de maior divulgacao perten. cem aos europeus e indigenas. Sao o lobisomem, a mula-sem-cabega, o batatdo, batatd ou biata- td, as mées d’dgua, confundidas com os cultos iorubas, o Zumbi, que é uma espécie de curupira ou de feiticeiro, etc. Destarte, em todas as regides, o material etnolégico apresenta contingéncia maior de mi- tos euro-ibéricos, seguidos dos indigenas e depois dos negros. Em capitulo que recebe significativa- mente a denominagao “A Relagdo Etnica nos Mi- tos Brasileiros”, Luis da Camara Cascudo, Geogra- fia dos Mitos Brasileiros, oferece-nos uma reflexao primorosa e sistemdtica sobre nossa formagao so- brenatural. “Os mitos brasileiros — escreve ~ vém de trés fontes essenciais: - Portugal, Indigena e Africa. A colocagao € proposital e na ordem da influéncia”. Neste mapa mitico de predominante co- loragao euro-ibérica, nao devemos perder de vis- ta a adverténcia: “Portugal era, geograficamente, historica e etnologicamente, um resumo da Euro- pa. Suas conquistas na Asia e : Africa trouxeram-lhe mais lendas que especiarias”, fazendo distingao Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 34 entre mitos “gerais”, “primitivos” e “secundari- 0s”, valendo-se da referéncia ao lobisomem, “que trota, cada sexta-feira, por todos os Estados do Brasil” ~ diferentemente do caipora e do saci-pe- reré, com atuacdo restrita a determinadas regi- Ges ~ para provar a origem peninsular da nossa formagiio mitica. “Os mitos portugueses ou por eles trazidos tém direito ds prerrogativas de dominio”. Em seguida, vem o percentual tupi-guarani, cuja lingua nhengatu era mais usada até 0 comeco do século XVIII. Finalmente o negro africano, que colabo- rou no “ciclo da anguistia infantil”, nao teve a mes- ma influéncia “nos espiritos maduros”, a despeito de seus ritos religiosos, da danga e de alguma mu- sica, Para o entendimento dessa relacao étnica, convém recorrer & sintese formulada por Luis da Camara Cascudo: “Como o negro é mais receptivel que o indigena, vemos que a influéncia aborigene é poderosa na Amazénia, e a influéncia negra nao é decisiva na Bahia.” Valendo a mesma coisa em re- ago a Pernambuco ¢ Minas Gerais, nao obstante a densidade populacional africana. Em suma, para que nao haja diivida quan- to a essa classificacdo cascudiana, que forneceré o substrato de sua interpretacao sobre a psiqué bra- sileira, citemos o seguinte trecho de carter conclu- sivo: “Em relagio aos mitos, como os tentei recensear, a distancia entre os trés elementos étnicos é a que me- deia entre cinco, trés e um, Portugal, indigenas e ne- gros africans”. Essa taxonomia dos mitos nao é estatica, mas sim dindmica, dando énfase ao mestico, ao mameluco, ao elemento condutor que se es- praiou por todos os quadrantes do pais, revelan- do af dois fatos essenciais: “o facies ambulaté- rio, infixo, irregular” dos mitos e os “vasos comunicantes” entre eles. Salta aos olhos a re- corréncia, em trabalhos posteriores 8 Geografia dos Mitos Brasileiros, da fixagdo do predominio euro-ibérico, a exemplo de Contos Tradicionais do Brasil (Itatiaia, Belo Horizonte, 1986), onde se lé: A proporgdio entre os elementos indigenas, africa- nos e brancos é 1:3:5. Tantos indigenas e africanos justapéem-se de maneira indecifrdvel. Ciclo do je buti, ciclo da micura ou da raposa, nos indigenas brasileiros e nos negros bantos e do Sudéo, idénti- cas. Nos dispensamos argumentar que o portugués estd na Africa, residindo, casando, brigando, mor- rendo, nascendo, comendo, contando historias, des- de quinhentos anos. A irradiagdo € continua, infil- trando-se no folclore negro. Em A Literatura Oral no Brasil (José Olym- pio, 1952), surpreendemos a mesma preocupacio em destacar a “permanéncia portuguesa” € 0 pro- cesso de troca de estérias populares, através da “te- oria de vasos comunicantes”, acrescido da referén- cia ao sincretismo e ao “cock-tail oral”, para, a partir dai, caracterizar a mentalidade coletiva. Como a unidade braiera ser mais psicoldgica que mica, num feliz reparo de Renato Almeida, a nossa literatura oral participa dessa despersonificacdo racial, recebendo com indiferenca democrética os elementos O leitor poder perceber nos ensaios de Luis da Cémara Cascudo, além da investigacao das fon- tes da cultura popular, a atencéo voltada para a unidade cultural e religiosa do povo brasileiro. Que observemos esse trecho de Literatura Oral no Brasil, depois de afirmar que todos os mitos crist’os vie- ram de Portugal: A individualizagdo da fauna demoniaca noturna coincide em Brasil-Portugal. Curioso que a influ- éncia africana toda-poderosa nos dominios do so- brenatural, ndo criado mas ampliado pelo pavor negro, nao haja dado a maior sinontmia diabéli- ca e sim o portugués, com seus centos de nomes para denominar ao anjo-mau Se, por um lado, o simbolo de feiticaria no catimbé é grego, por outro lado, todas as crencas convergiriam em Cristo, porque a mentalidade po- pular reproduz a catequese crista iniciada no sé- culo XVI - eis a mensagem fundamental contida no livro A Religido no Povo (Imprensa Université- ria da Paraiba, Joao Pessoa, 1974), reforcando a idéia defendida no século XIX por Silvio Romero (Contos Populares do Brasil, Itatiaia, Belo Horizon- te, 1985), segundo a qual incontestavelmente o portugués é 0 agente mais robusto de nossa vida espiritual. Devemos-lhe as crencas religiosas, as instituigGes civis e politicas, a lingua eo contato com a civilizasdo européia. Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000 Um aspecto que merece vir a ser realcado, quanto & convergéncia de posigo entre os ensaios Vaqueiros e Cantadores, Geografia dos Mitos Brasi- leiros, Literatura Oral no Brasil e A Religido no Povo, 6 que Luis da Camara Cascudo nao atribui a re- pressfio ou a violencia imanente ao processo colo- nizador o motivo essencial do dom{nio espiritual e religioso euro-ibérico. Em A Religio no Povo afirma que “mdes- de-terreiro, babalorixds fazem questdo de sepultura e exéquias catélicas. Céu do padre eterno e nao de Olorum”. Dirfamos que a catequese crista foi acei- ta sem contestacao: indigenas e negros nao defenderam os santos de ‘seu sangue ¢ cor. Ndo houve martires da fé, es- culpidos em bronze e ébano, Mantiveram as de- ‘esas méagicas ¢ ndo os atos programéticos do culto tribal. Isso significa que 0 predominio da liturgia crista nao resultou de uma estratégia utilizada pelos negros diante dos maus tratos dos coloniza- dores portugueses, ou seja: a estratégia de desa- fricanizar-se para subir na hierarquia social. Em Sociologia do Agticar escreve Cascudo: “sabemos todos que as altas hierarquias dos candom- blés pedem extrema-ungiio, encomendagdo e sepulta- mentos ortodoxos”. Na verdade, a adesdo ao catol cismo, segundo Luis da Camara Cascudo, nao foi fruto de alguma técnica de mobilidade social, em- bora nao deixe de assinalar o mistério que envolve © proceso de aculturacdo no Brasil, sobretudo a acentuada presenca da religido cristé no nascimen- to da mentalidade popular, isto é, “o esmalte unifi- cador do catolicismo”, Varias formulagées nesse vro sobre a religiao no povo poderiam ser citadas em colaboracio & tese da persisténcia da mentali- dade crista e euro-ibérica no Brasil. Citemos, pois, algumas delas, porque ai se encontra a chave ou 0 segredo de sua interpretacao da cultura brasileira, 1-0 portugués quinhentista foi base e ci pula dos fundamentos religiosos no Brasil”. 2—“Apesar das negativas, mais retdricas e demagégicas que realisticas, 0 portugués ndo estd apenas no sangue e na voz mas constituindo uma 35 permanente-motora no mecanismo da mentalidade popular”. 3-“A catequese infiltrou-se na mentalidade brasileira nas manhds do século XVI e segue marcha sem solugéo de continuidade. O curso complemen- tar ministrou-o, através do tempo, a cultura popu- lar, oral e anénima, modeladora do homem coleti- vo e do homem particular em sua silenciosa meditagao”. 4 -“0 portugués € que trouxe a vivéncia do morto para o Brasil”. Estas citagées bastariam para provar a im- pregnacio euro-ibérica na psiqué popular brasi leira, No entanto, é mister acrescentar a diferenga especifica entre 0 portugués colonizador, aqui no Brasil, e em outros lugares em que esteve, de acor- do com 0 cotejo estabelecido por Luis da Camara Cascudo em A Religiao no Povo. Quando, de 1583 a 1590, o jesuita Fernéo Cardim visita o Brasil amanhecendo, de Olinda a Piratinin- ga, reencontra Portugal na alimentagao, costume, e mesmo na mentalidade popular nascente. Depa- rao que ndo veria na India, os santos no povo ea fé nas almas. Esse inalterdvel matiz cristdo possuird no Brasil sua mdxima intensidade, como ndo se verificaria, ainda hoje, pelas provincias ultramari- nas, incluindo Macau e Timor. Nenhum desses po- ‘vos nascera depois da vinda do colonizador, comoo brasileiro de 1501, cujas mdes amerindias e pais Portugueses assistiram juntos 4 missa de Porto Se- ‘guro, rezada por Franciscano, antes que os filhos fossem gerados. Ai estd, em sintese, 0 que antes o mestre Luis da Camara Cascudo ja havia deixado explici- to acerca da persisténcia da religiao catdlica, sem esquecer também que nesse trecho delineia-se a interpretacao da cultura brasileira como um pro- cesso especifico comandado pelo colonizador por- tugués, resultando, entre nés, uma acomodagao feliz. no intercdmbio de elementos culturais (a in- corporaco pelo colonizador da rede de dormir, da mandioca, do milho), 0 que nao aconteceria com a “repressao lusitana” em terras da {ndia e Africa. O que temos no Brasil, segundo A Religifio no. Povo, é um tipo particular de colonialismo portugués no que tange aculturagio, em relagio a Goa e Diu. Cronos, Natal-RN, v.1, n.1, p. 27-40, jan./jun. 2000

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