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‘OUTRAS NATUREZAS, SuTRAS CULTURAS CCONFERENCIA PRONUNCIADA EM3 OE FEVEREIRO DE S007 Sc uIDs OF Unta SESSAODE PERGUNTASE RESPOSTAS. [A primeira vista, poderiamos pensar que no hé dificul- dade em distinguir o que diz respeito & natureza do que diz respeito & cultura, € natural tudo que se produz sem ‘2 aco humana, aquile que existiu antes do homem e que existiré depois dele, como os oceanos, as montanhas, 3 atmosfera e as florestas; é cultural tudo que é produzido pela ago humana, sejam objetos, deias ou ainda certas coisas que esto a meio caminho entre os objetos © as Ideias, aquilo que chamamos de instituigdes: um idioma, ‘2 Constituigao francesa ou o sistema escolar, por exem- plo. Se saio para passear pelo campo e stravesso um bosque, estou em meio & natureza. Mas se ougo um avido que passa sobre mim ou um trator nas proximidades, en- to esses aio objetos fabricedos © utilizades pelos ho- mens, objetoa, portanto, que pertencem & cultura. No tentanto, easa distingso nem sempre é tio simples assim, rmargeio ura cerca viva de plantas ‘selvagens, espinheiros, aveleires, amelanqueiros e rosat silvestres. Posso dizer que se trata de ume cerca natural 10 vizinho. Mas essa cerca também foi fincads, talheda, Ccuidada pelo homem e, se 14 esté, & para separer dois tor- enos conforme os limites estabelacidos pelo cadastro, dois terrenos que pertencem a propriatirios distintos. A cerca , também ela, o produto de uma atividade técnica, isto 6, de uma atividade cultural, Por ter uma funcao legal, ‘tem também uma fungo cultural, ‘A maior parte dos objetos que nos rodeiam, incluin- do nés mesmos, encontram-se nesta situacao interme- isria: so naturais © culturais a0 mesmo tempo. Estou com fome: eis uma necessidade natural que eu no pos- 50 controlar © que me levard & morte se ndo a satisfizer, Mas existem mil maneiras de satiafazer minha fome, © ‘adotar uma maneira ao invés de outra, me alimentar pro- ferencielmente de um certo tipo de refeigao, e nao de ou- tro, tudo isso faz parte de uma escolha cultural. Apesar dessas intersegaes e dessas zonas de sombra entre o que 6 natural e 0 que ¢ cultural, parece que nio hesita- mos muito quando se trata de quelificar os objetos que N08 cercam como pertencentas & natureza ou & cultura. Meu gato ou meu cachorro fazem parte da familia, como ‘se costume dizer, mas apesar disso eles no tém os mes- ‘mos direitos que os membros humanos da minha familia. Eles néo tém representantes no parlamento, no se be- noficiam de seguro de sauide e tempouco sao responsa- veis pelos seus atos. Se meu eachorro morde o vizinho, ‘serei eu ser punido pelalei, n3o.0 meu cachorro. Podem exigir que ele sejasacrificado, mas iso seria uma me- Gide do eegurance poblic, nto ume punigao dgide to cachorro,Resumindo, enre os hurenos 80889 hi- tmanoe existe uma ferengaimportantaoa humane sho tulstos que posevem dito porconta de cus condi de homene, eo panso que os nic humance 80 cbjetoe raturais ov etiiiin que no tem dietos por i mesmos. Essa forma de penser que nos ensinem na escola e que proce er navctncla doors een, tae eo, anal de Conte o modo mle cornu de ee fazea cating entre raturera cultura ontudo, a ciéncla que pratic, a antropologe, des: conte muito do bom sense, Ao contro do que dao fibeoto Descartes, o bor songo nto #2 colaa ais bar distribu do mundo. Os antopélopes concorderiom mais com um contampordnao de Descartes, grande Fldsofe « maternatico Pascal, que deo seguinte: "Ver dade deste lado dos Pireneus ero do outro lado” Em ov tres prlovras, ox hébtos quo s8o normals na France nto Seto ne Eapenhe,e vice-versa, ‘abe bantroplogia fazer oinventiio dea rengasetontar explcar eves res, Para fazer oInven- or Snesesséroirac encontro des pestons observer 2 difo- seus costumes, ‘suas formas de fazer, de dizer; é neces- ‘sério compartha aus Vida cotidiana durante viios anos, aprender aquilo que saber, compreender aquilo que fa- zem. Em sume, 6 preciso praticar a etnografia. Assim, 08 antropéloges so também etnégrafos au etnélogos, al- gamos. Tedo antropsiogo também é ou foi um etndgrafo, Essa é uma boa iniciacao ao problema que a antropologia sbords, isto é, 0 problema de compreender as diferen- {gas culturais. Afinal, nio importa a comunidade com que yoo escolhe conviver durante alum tempo —sej ‘em seu proprio pals ou bem lenge da sua casa —, os habi- tos dessa comunidade serdo ebrigatoriamente diferentes dos seus, mais ou menos diferentes canfarme a distancia que voc8 percorrer. A partir dai, na tentativa de se identi- ficar com os que tém um modo de exiaténcia distinto do ‘seu pare compreendé-los melhor, do interior, dividindo suas alegrias ¢ tristezas e as raz8ee que alegam para fa- zer 0 que fazem, vocé seré necessariamente levada, por contraste, a questionar a evidéncia dos hdbitos de vide de sua prépria comunidade, Vac8 se tornaré um pouco diferente e, dependendo de tempo que pasar longe de casa, poders se tornar quase astrangeiro a0 que era an- tes. Vocé questionaré certas evidéncias que pareciam inerentes a0 bom senso em sua comunidade de origem. Foi exatamente assim que eu comecei a questionar ‘que me parecia téo evidente a propésite da diferenga lentre os hurmanos e os ndo humsnos, entra os seres que, segundo nés, pertencem & natureza e os eeres que per- tencem & cultura. Isso aconteceu hé une trinta anos, na alta Amsz6nis, na fronteira de Equador com o Peru, Eu tinha ido pars Ié estudar os indios conhecidos do gran- de publica pelo nome de jivaros, mas que se autodeno- minam achuar. Achuar quer dizer "o povo da palmeira d'égua’, j4 que vive numa regido da floresta tropical selpicada de pantanos, onde a palmeira d'sgua cres fem abundancia. Sem contato regular com 0 mundo ex- terior, eles moravam nessa dense floresta tropical, no fem vilarejos, mas sim disperses, em grandes casas iso- ladas, cobertas por folhas de palmeira. Os homens ca- {gavam com zarabatanas ou fuzis, pescavam nos rios, € {as mulheres cuidavam dos jardins em clareira que rodea- ‘vam as casas, colhendo plantas cultivadas na Amazénia, ‘como a mandioea, a bstata-dece, 0 inhame, a papaia eo amendolm. Levei quase um ano para conseguir me virer na lingua deles, que é uma lingua dificil e no ensinads ha universidadle. Foi entéo preciso aprendé-Ia in loco. A medida que entendia cada vez melhor 0 que eles diziam, meu espanta diante de sua maneira de pensar s6 crescia, Especialmente quando eles falavam a respeito de seus sonhas. Os achuar se levantam muito ced, per volta das {18s ou quatro da manh8, mas vao dormir também muito ccedo, pois As sels e meiajé é noite no Equador, e as cito horas todo mundo esté dormindo. Pouco antes do em nhecer, eles se reuniam ao redor de uma fogueira para decidir 0 que fariam durante o dia em fungio daquilo que haviam sonhado & noite. Na maior parte das vezes, inter pretavam o8 sonhos segundo regras simples, baseades eralmente na invarsio entre a imagem sonhads e a in- dicago que podiam extrair dessa imagem. Por exemplo, sonhar que pescavar um peixe era um bom sins! parair ’3caga e, ao contrério, sonhar que matavam um caititu ers ‘um bom sinal para ir pesca, Mas outros sonhos eram interpretados de maneira bem mais estranhe. Certa vez, por exemplo, um achuar me contou que havia visto em sonho um homem recentemente morto, todo ensanguentado. O homem o criticava porter atirado ‘muito embora isso nao tivesse acontecido. Na vés- pera, no entanto, 0 achuar havia ferido um pequenocervo durante a caga. Na comunidade dos achuar, acredita-se ue a alma dos mortos se incorpora em diferentes ani- mais, entre o8 quais os cervos, razio pela qual sua caga é proibidla. © hamem havia infringido ess interdicao. [Em outra ocasiéo, foi um rapez que se apresentou ‘20 sonhador come sendo seu cunhado, dizendo a ele que ‘no dia seguinteiria dangar com suas iemas & beira de um lago. De fato, segundo a interpretagio que me foi dada, tratava-se de urn macaco-prego que, sob forma humana, dava indicagses de caga, que os achuar cagam maca- cos. Alimentam-se de caittus, macacos, tucanos... é um pouce triste para quem gosta de macacos e de tucanos, mas nessa regio S80 esses os animais de caca que os indios conzomer, como é 0 caso, aliée, em todo 0 res- toda Amazénia. © macaco-prego indicava 20 sonhador, portanto, o lugar onde ele poderia ser cagado. Iss0 6 mui- Coutra vez, uma mulher me contou que havi visto ‘em sonho garotinhas reclamando que estavam tentando Gnvenené-las. Ela interpretou esse sonho dizendo que Sarpée de amendoim haviam tomado aparéncia humans para ge quelxar de terem sido plantados perto demais de Pima moita de barbasco. Em toda a regigo, berbasco é0 ome espanhol que se dé a um veneno vegetal empregs- do na pesca para asfixiar os peixes. ‘Sempre que eu perguntava aos achuar por que oS ‘corvos, 0 macaco-prago e as plantas de amendoim apare- Ciam sob forma humana nos seus sonhos, eles me respon iam, surpresos com a ingenuldade de minha pergunta, {que a maior parte das plantas e dos animais s8o pessoes ‘Como nés. Nos sonhos, podemos vé-los sem suas fan- tasias animais ou vegetais, ou seja, como humanos. Os tschuar dizer, de fato, que a grande msioria dos seres de hatureza possuem uma alme anéloga & dos humanos, que thes permite pensar, raciocinar, ter sentimentos, comu- ricar-se & maneira dos humanos e, sobretudo, fazer que Vojam a si mesmos como humanos, apesar da aparéncia Sima ou vegetal. E por isso que os achuar dizem que as plantas ¢ 08 animais, em grande parte, s80 pessoas: sua fumanidade é moral, eepouse sobre a ideia que fazom de ti préprios; no é uma humanidade fisica que repousaria sobre @ aparéncia que tém aos olhos do outro, Ha pouco, quando falei sobre as plantas © 08 ani mais, empreguel 6 expressao “seres da natureza". Mas 588 expressio no faz 0 menor sentido para os achuar. (Os seres que 280 concebidos « tratados como pessoas, que tém pensamentos, sentimantos, desejos ¢ institul- ‘Ges em tudo parecidos com os humanos, nao so mais, seres naturais. Os achuar desconhecem esas distin- {g8es, que me pareciam tdo evidentes, entre as hurna- nose os ndo humanos, entre o que pertence a natureza © 0 que pertence a cultura, Em outras palavras, meu senso comum nio tinha nada a ver com o deles. Quan- do observévamos as plantas e os animais, nao viamos Desse ponto de vista, 08 achuar no tém nada de excepcional. claro que oles me ensinaram muito ¢ revo- lucionaram meu modo de ver as coisas, mas saciedades como as deles jé foram descritas em outros lugares, es- Pecialmente em outras partes da Amaz6nia, Para as cen- tenas de tribos amazénicas, que falam linguas diferentes, (8 no humanos também sfo pessoas que participam da Vida social, pessoas com quem podemos estabelecer re- lagdes de alianca ou, 20 contrétio, ralagdes de hostili de e de competigao. Essa forma de ver o que chamamos, ratureza como algo idéntico & sociedade dos homens também nao é uma caracteristica exclusiva da Amazénia, O etnélogo inglés Adrian Tanner, qua viveu entre os Indios eri no norte do Quebec, relatou o que abservou em ‘um vilarejoindigens hé uns trinta anos. Um anci8o muito respeitado havia morrido pouco tempo antes, € muitos parentes vieram pare o funeral. Alguns dsles, bem jovens, ‘20 verem um ganso selvagem voar em torne do vilarejo e pousar diversas vezes préximo & casa do defunto, foram ‘buscar um fu2il para tentar maté-lo. Bem na hora em que Jam atirar, um homem maduro 08 impediu, dizendo-Ihes {que 0 ganso era, na realidade, um amigo do morto, e que tle também estava chorando a morte do amigo. De fato, com o passar do tempo, certos cagadores cri desenvolvem ume relaglo privilegiads com um animal de uma certa espécie, @ esse animal é como um amigo. Ele é também um embsixador junto aos outros membros de sua espécie, persuadindo-as a se aproximar de seu amigo cagader pera que este possa stirar com mais fa- cidade. Com a morte de cacador, seu amigo animal fica de luto, ¢ é importante nfo deixar que ele se v8, pais le- varia consigo todos 08 outros membros de sua espéci €, entéo, no sobraria mais nada para cacar nas proximi- dades do vilarejo. Do mesmo jeito que os indios da Ama 28ni9, 08 Indios do Grande Norte canadense consideram ‘2 msioria dos animais como pessoas que possuem uma ‘alma e, portanto, dotadas de diversas qualidades hurna- nas, em particular 0 senso de solidariedade, de amizede dlferenca en- ‘tre.0s animais e os homens é mera questo de aparéncia, uma ilusso dos sentidos baseada no fata de que © corpo dos animais é um tipo de fantasia que vestem quando (0s humanos estdo por perto, a fim de engané-los sobre ede respeito aos mais velhos. Para os cri sua verdadeira natureza. Em compensaco, quando os animais visitom os indios nos sonhos —e issa também acontece entre.os achusr-—eles se revelam tal como 280 de verdade, isto 6, na sua forma humana, ‘Quanto a0 fato de o amigo animal atrair os membros de sua prépria espécie para que os cagadores possam maté-los mais facilmente, bem, isso nao tem nenhuma cconsequéncia, uma vez queas vitimas dos cagadores logo reencarnam em um animal da mesma espécie. Nisso, 08 cri seguem um principio multe propagade entre os Indias do Grande Norte: 08 animais sio tomados de compai pelo cagador, tém dé dele. Nao podemos nos esquecer ‘que até muito recentemente, antes de o sistema de pro- tego social canadense permitir que os indios do Grande Norte recebessem subsidios, os animais de caga eram ‘sua principal fonte de alimentagéo. € entlo por um ato de generosidade que 08 animais oferecem seu corpo 20s ho- ‘mens, para que estes possam se alimentar. Ease maneira de tratar plantas e animais como pessoas ou sujeitos a0 invée de objetas no é uma clusividade dos indios da América, E o que mostra uma outa istorieta, dessa vez contada por um missionsrio, © padre Kemlin, que viveu junto aos reungao, nos planal- 108 do Vietnd central. O caso relatado por ele aconteceu no inicio do século xx e diz respeito a uma mulher reun- 1980 chamada Oi. Imagine uma casa tradicional, com ‘eto de palha e uma sacada debrugada sobre a floresta — 20 reder. Certa noite, na entrada da casa, ela batia arroz no pile quando um tigre comecou a se debater ali por perto, engasgedo com um resto de osso preso na gar- ganta, Num dos pulos prodigiosos que o tigre dava para tentar 2e livrar do osea entalado, ele acabou alcangan- do @ entrada de casa. € claro que, apavorada, a mulher que batia arroz largou © pildo, que caiu bem na cabeca, do tigre, Com 0 sobresealto, ele se livrou do osso que o estrangulava. Foi-se embora todo contente, conta-nos 0 rmissionério. Na noite seguinte, a mulherreviu o tigre em sonho, que disse a ela: ‘Nés teremos uma amizade de psi para filha", A mulher respondeu: “Eu no ousaria! Quem seria assim to audacioso a ponto de propor tal coisa, senhor tigre?" "Muito pelo contrério", respondeu o tigre, “sou eu que tenho raceio de receber um na de sua part (0s dois rivalizavam em cortesias. No dia seguinte, quan- do estava na floresta, a mulher encontrou nevamente tigre em carne e oss0, carregando um javali nas costas. Na mesma hora em que aviu, ele largou 8 presa, divi ‘em dois, langou-Ihe uma metade e seguiu seu caminho, levando a outra metade. O missionério acrescenta: foi a nica ver que essa mulher gozou de tais benaficios, pois @ partir daquele dia bastava que fosse a floresta pars ‘encontrar restos de cervos ou de veados deixados pelo ‘364 pai adotivo”, O missionério nos diz que o pacto trava- do entre Oih © © tigre é um tipo de contrato bem espec fico—krao con bi na lingus reungao—, uma das muitas formas de alianga que os reungso podem estabelecer com humanos ou com no humanas. E come se fechéssemos um contrato de locago ou de venda com o nosso gato ou nosso cacharro, Esses contratos comportam obrigagées para ambes as pat ‘tes, Em outras palavras, temos aqui mais um exemplo de pessoas que acham absolutamente normal travar com animais certas relagdes que, para nés, s8o reservadas apenas aos humanos. sso nos faz questionar nossa maneira de cone: ber a relagio dos humenos com o8 animais e as plantas. ‘Somos tentados a achar que essa mansira de pensar é universal, mas, evidentemente, ela no é. Isso no quer dizer que, fora do Ocidente—da Europe a partic do é- ‘culo xvi e, em seguida, de Américs do Norte—, 08 no |humanos foram sempre tratados como pessoas, Outras ‘casos mostram que existem relagdes muito peculiares ‘com os no humanos, totalmente diferentes daquelas ‘que acabemos de ver. \Vejamos, por exemplo, o caso dos aber tralianos. Embora estejam divididas em centenas de tribos que falam linguas diferentes, todos o8 aborigines australianos t8m em comum o fato de ee organizar se- ‘gundo um mesmo sistema de grupos tatémicos, cujas regras de composicao S80 idénticas em toda parte. Um ‘grupo totémico é um conjunto de homens, mulheres, plantas e animais que, como dizem na Austrélia, perten- cem @ uma mesma espécie, o que nos parece estranho, ja que seus corpos s80 muito diferentes entre si. Apesar da diversidade de aparéncia, so considerados mem- bbros de uma mesma espécie por possuirem, todos, as mesmas qualidades morais e fisicas. Essas qualidades ‘sho definidas de maneira abstrata o bastante para que possam se aplicar & totalidade dos membros da classe tot8mica, sejam eles humanos ou no humanos. Elas ca~ racterizam, por exemplo, 0 comportamento: 0s membros de uma certa espécie so mais lentos que ativos, mais, lempreendedores que indolentes. Ceracterizam também ‘0 temperamento— mais colérico que calmo, mais alegre que melancélico—, além de forma—grande ou pequens, ‘da con macigs ou esguia, arredondade ou engulo: sisténcia—mole ou rigide, flexivel ou dura—e, por fim, dda cor—mais clara ou mais escure. Com esse sistema, pode-se dizer que certos homens, mulheres, insetos, passaros, répteis, marsupials, arbustos e peixes fazem parte de uma mesma espécie totémica, 8 que todos so vivazes, grandes, esguios, angulosos, de cor escura e mais para rigidos e agressivos. A despeito da diferenca de forms, eles possuem as mesmas caracteristicas que deriveriam do totem —habitualmente representado por lum animal que dé nome 20 grupo tetmico. Mes o totem de fato um ancestral, ele é antes um protétipo. ‘ser um protétipo? um ticas, 66 que, nes- Mas, afinsl, o que vem molde que serve para fazer cépias i 26 caso, no se trata de um molde que reproduz formas ‘exatas come faria uma férma de bolo, mas sim um molde que reproduz qualidades, um pouce & mansira do eédi- 190 genético que transmite caracterieticasfisicas de pais para filhos. Como isso funciona? Antigamente, dizia-2e ‘que 0s totens tinham saido das entranhas da terra e que haviam passado por todo tipo de aventuras com outros totens antes de retornar para o interior da terra. Porém, na hora da partida, acabaram deixando aqui modelos de si mesmos sob a forma de pequenos espiritos, em geral invisiveis, que desde entéo habitam os lugares onde os totens os depositaram, em montes rochosas, charcos, cavernas ou mesmo em lugares famosos como o Uluru. Uluru é 0 nome que se dé na Austrdlia ou, mais precisa. mente, nome dado pela ribo anangu ae lugar que talvez voots conhegam pelo nome de Ayer's Rock. E um gran- de monélito de arenito vermetho, ¢ um importante sitio totémico para os snangu. Para que um nove membro da classe totémica possa comegar a existr, um desses pequenos espiritos deve encarnar no ventre da mie, se ‘or um mamifero, ou ne evo, no caso de um péssaro, um réptil ou um peixe, ou ainda na semente, se for uma plan- ta, Assim, cads exemplar da classe totémice, seja qual for sua forma particular, é uma eépia das qualidades do olde totémico. Isso explica por que, 20 contrério do que ‘sed com os indios da Amaz8nia, de norte do Canadé ou das tribos das montanhes do Vietns, os aborigines no tratam os no humanos como pessoas. Para um cagador australiano do totem canguru, um canguru no é um par- le seria para um Indio da Amaz6nia, ‘com quem pode até fechar um contrato, O eangury é an- tes uma espécie de réplica do préprio cagador, mas sob outra aparéncia, Matar e comer um canguru no caus. rnenhum prejuizo a qualidade canguru, que define tanto ‘o cagador que pertence a esse totem como o canguru {queele cago. Cada uma sus maneirs, ocacador do totem ‘canguru € 0 canguru nao passam de encarnagées pro- vis6rias das qualidades provenientes do molde canguru. Como no temos o hébito de raciocinar dessa maneira, temos muita dificuldade de entender tudo isso. No entanto, uma eventual destruigso do sitio cangu- ru onde os pequencs espitites ee encarnam para fabricar hhumanos pertencentes ao totem canguru—os préprios ‘cangurus ou ainda todos os outros seres que também dependem do mesmo totem —impediria que eles se per- petuassem, condenando assim & extinggo humanos e humanos. 1880 explica por que os aborigines tentam proteger seus direitos sobre esses sitios nos tribunals dda Austrélia, buscando assim evitar sua possivel destrui- ‘¢B0, E porisso que no temos 0 direito de visitar Ayer's Rock, por exemple. Antes era permitido, mas hoje & proi- bido, Nao se trata pars eles de proteger lugares sagra~ dos, como seriam para nés a basilica de Saint-Denis ou ‘9 monte Saint-Michel, lugares que encarnam ums parte da histéria da Franga e de sua identidade coletiva. Tam= bém no se trata de proteger lugares tipicos contra a ut~ bbenizagio que ameaga desfiguré-los, como também se faz na Franga: proibe-se, por exempla, a construgao em Cidades, bairros ou paisagens tombadas pelo patriménio histérico. Para os aborigines australianos, trata-se, on- tes de mais nada, de proteger a propria fonte de sua vida ede sua descendéncie. Esses sitios so lugares onde esto plantadas as sementes perfeitamente concretas que permite que os seres vivos de diferentes espécies ossam se reproduzir tal como sio, Desse ponto de vista, 08 sitios totémicos no séo lugares sagrados no sentido tradicional do termo; 6 preferivel entendé-los como um. tipo de incubadora onde darmem as geragSes futuras de homens, plantas e snimais, © néo como lugares marca- dos pelo respeito religioso, como 6 0 caso da gruta de Lourdes ou de Meca, Soja como for, esté claro que a distinggo entre o que seria natural e 0 que seria cultural no faz o menor senti- do para os aborigines australianas. Afinal de contas, no mundo deles, tudo é natural e cultural a0 mesmo tem- po. Para que se possa falar de natureza, é preciso que o homem tome distancia do meio ambiente no qual esté ‘mergulhado, 6 preciso que se sinta exterior e superior 20 mundo que o cerea. Ao se extrair do mundo por meio de lum movimento de recuo, ele poderd perceber este mun= do como um todo. Pensande bem, entender o mundo como um todo, come um conjunto coerente, diferente de nés mesmos e de nossos semelhantes, 6 uma ideia ‘muito esquisite. Como diz 0 grande posts portugués Fernando Pessoa, vemos claramente que hé montanhas, vales, planicies, lorestas, érvores, flores @ mato, vemos claramente que hé riachos e pedras, mas nao vemos que hha um todo ao qual iss0 tudo pertence, afinal s6 conhe- ‘cemos o mundo por suas partes, jamais como um todo. Mas, a partir do momento em que nos habituamos s representar a natureza como um todo, ela se torna, por assim dizer, um grande relégio, do qual podemos des- montar 0 mecaniamo e cujas pegas ¢ engrenagem pad mos aperfeigoar. Na realidade, essa imagem comeou a ganhar corpo relativamente tarde, a partir do século xv! nna Europa, Esse movimento, além de tardio na histéria da humanidade, sé se produziu uma Unica vez, Para reto- ‘mar ums férmula muito conhecida de Descartes, @ quem fiz referBncia hé pouco, © hamem se fez ent3o “mestre e senhor da natureza". Resultou dai um extraordinario d senvolvimento das ciéncias e das téenicas, mas também 2 exploracao desenfreada de uma natureza composta, a partirde enti, de abjetos sem ligagao com os humanos: plantas, animais, terras, Aguas e rochss convertidos em ‘meres recursos que podemos usar edos quals podernos tirar proveito. Naquela altura, a natureze havia perdido ‘sus alma e nada mais nos impedia de vé-la unicamente ‘come fonte de riquezs. Faz pouco tempo que comegamos a ter a medida do prego extremamente alto que seré preciso pagar pela exploragao imoderada de nosso meio ambiente, com @ poluigo crescente do solo, do ar, da Sgua e também dos ‘organismos vivos, com o desaparecimento acelerado de inimeras espécies de plantas e animais, com as conse- uéncias draméticas do aumento do efeito estufa sobre © planeta. Em outros lugares do mundo, muitas culturas sequiram 0 mesmo caminho, nfo isolaram a nature- la fosse um dominio & parte, exterior, onde tode causa pode ser estudada cientificamente © onde ‘tudo pode ser rentabilizado a servigo dos homens. Isso 1ndo significa que essas culturas tenham evitado desas- tres ecolégicos. Os indios das planicies da América do Norte, por exemplo, massacraram muitos bisées e cer- vos da Virginia na segunda metade do século XVil e nos ‘6culos Xvill e XIX. Mas esses massacres no serviem para garantir a subsisténcia des préprios indios, ¢ sim para fornecer carne aos colonos brancos, a medida que ‘2 fronteira avancava, Casos similares so encontrados em outras partes do mundo, geraimente em situagdes de contato entre civilizagées, quando uma técnica ou um novo contexto econémico ainda mal compreendido subvertia os anti- {908 habitos. Foi esse 0 caso entre os indios das planicies com a chegada dos fuzis. E claro que essas armas eram ‘muito mais eficazes que os arcos e flechas empregados antes, mas o sistema foi sobretudo subvertide pala intro- dugdo de um mercado de alimentos. Pois o mercado de alimentos é uma invengao relativamente recente. Duran- te grande parte da histéria da humanidade, os géneros alimenticio no eram vendides nem comprados em um ‘mercado, o que ainda hoje acontece em certas regides do mundo. As pessoas produziam elas mesmas sua alimen- tagio; apenas bens de prestigio— joins var por meio de trocas. Quando os indios das planicies ‘50 viram preses 2 esse sistema de mercado, mataram ‘muitos bisdes © cervos da Virginia para prové-lo Isso dito, aposar desses desasties ecoldgicos, é pre- ciso reconhecer que, 20 manterrelagdes de cumplicidade «ede interdependéncia com o8 habitantes no humanos do mundo, diversas civilizagdes que por muito tempo ‘chamamos de “primitivas” (0 termo nao muito correto) ‘souberam evitar essa pilhagem inconsequente do planeta ‘2 que os ocidentais se entregaram a partir do século XIX. Quem sabe essas civilizagées possam nos indicar uma saida parao impasse no qual nos encontramos agora. Elas jamais imaginaram que as fronteiras ds humanidade coin- Cidissem com os limites da espécie humana e, a exemplo hasitam em convidar a0 corago ‘mais modesta das plantas, o mais hu- Poderiamos dizer que a antropologia do tem por miso propor mados alternatives de vida, « seria um engano pensar que hoje é possivel adotar, nos paises industrializados, ume forma de viver em harmonia ‘coma natureza que se inspirasse diratamente nos indios dda Amaz6nia, Os achuar, com quem eu viv, nfo praticam _s egricultura intensiva, ngo consomem petrélea, carvio ou ‘energia nuclear. Suas necessidades s8a bastante limita das, e seus dejetos sio integralmente recicléveis, O plés- ‘ico, por exemplo, no existe entre eles. Nossos problemas 1880 380 08 mesmos que os deles, so de escala e de natu- e2a muito diferentes. Em compensacéo, o conhecimento ‘que temos de todos esses povos que, como os achuar eos, cri, nfo veer seu meio ambiente come algo exterior acles r6prios —esse conhecimento nos fornece urna meneirs de tomar distancia do presente para melhor tentar en- {rentaro futuro. Pois é muito dificil extrair-se do cotidiano, dos habitos de pensamento, das rotinas, das instituigdes {que regem nossa vida © sem as quais mal podemos nos jimaginar. Um modo de vida como 0 dos achuar @ a for- _ma como concebem as plantas ¢ os snimais parecem-nos _estranhos, afinal estamos tio profundamente submersos ‘em nossas prdprias crencas que tendemos a considerar 28 alheias com certo desdém e ironia divertida, Contudo, 2 antropologia nos mostra que o que nos parece eterno, teste presente no qual estamos agora trancafiados, 6 ape~ nas uma entre milhares de outras maneiras é descritas de se viver a condig8o humana. Assim, mesmo que a solu- .¢80 que queremos para o futuro—algum modo diferente de conviver entre humanos, bem como entre humanos e nao humanos — ainda nlo existe, resta-nos ao menos a es~ peranga de inventar maneiras originais de habitar a terra, ima vez que outras civilizagées ¢ outras sociedades jé 0 fizeram antes de nds. A antropologia nos oferece o tes- ‘temunho das mUlkiplas solugdes encontradas para 0 pro- blema da exieténcia em comum. Uma vez que todas ess: solugdes foram imaginadas por homens, no é proibido pensar quenés também podemos imaginar formas novas, ‘quem sabe até melhores, de viver juntos.

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