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[ave tras esecainte como contnonn, - ae fouys-299| ANTONIO CANDIDO Notas de Critica Litera Didi de S. Poul, 10 de janciro de 1946 Se tentarmos localizar tragos comuns nos mals caractetsticos dentre (05 poctas mals jovens, talvez possamos acentuar um deles, em muitos ‘casos fundamento dos demais. Nao sabendo como nomeé-lo exata- mente, prefico dizer que consiste em certo desejo profunda de dar & poesia um aspecto de portentoso mistério. E um quid impondersvel, ‘caja propriedade é comunicar ao mais banal dos gestos, & coisa mais prosaica, um halo de nebulosa grandeza, siwando-a além das contin: géncias de tempo e espaco, O leitor que o rotule a seu gosto: roultidimensionalismo, anticontingencialismo ou qualquer outta eti- -queta rebarbativa, Pondo desde ja as cartas na mesa, deixem-me declarar que pre- tendo constituir-ae em advogado do dlabo em relagdo a esta tendén- cia. Nao desconheco a sua legitimidade, e sei que, frequentemente, ela <€ contigao de poesia; 0 poeta, como todos sabem, € o homem que di transcendencis ao cotidiano € arranca das aparenclas a centelha do Snesperado e do fantistico. Creio, porém, que toda receta bem. aviada ‘precisa respeitar escrupulosamente a proporgio das doses, e na jo- ‘vem poesia brasileira vislumbro uma infiltagto excessiva de ‘ranscendéncia € mistério, Ou, melhor, um abuso das téenleas do mi \ério, abuso que conduz a0 seu desprestigio, numa verdadeira infact ‘que desmerece cada vez mais o lastro de poesia sem o qual um poerta ‘nao tem valor. Ordenando as impressoes de leitura, verificaremos a constincia ide certos processos literérios a que a jovem poesia brasileira esta dan do curso forgado. Notaremos, por exemplo, a ocorténcia das mesmas ppalavras © a exploracao das mesmas combinagdes de palavtas com o fim de sugeric os mesmos efeitos, eriar a mesma “atmosfera", como divia Greta Garbo. Falemos primeira das palavras, depots das combi- ‘nagoes e, por fim, da atmosfera, Nao ha quem desconheca 0 vocabulé- to relativamente pequeno dos nossos jovens poetas, A sua tendéncia pars focalizar, dentro do pocuus, ciiss pulavres preferencials, geral- mente animais, partes do corpo, instrumentos, plantas ete. Assim, te- ‘mos no seu estoque: cavalos, com ou sem asas, pombas, havendo acen- twada predilegto pelos cavalos, eabelos, olhos, bragos e seios; telefo- nes e todas, dtvores e folhas; nuvens, nio contando os anjos, que nio sei bem se devo por entre os instrutmentos, as bichos, as partes do corpo. Ha também, a ber-amada, sempre em evidencia, quet sob um nome romantico, quer sem maior especificacto. Estes vocibules, ou melhor, os vocabulos que designam estes setes © objetos, formam o estoque da Jovem poesia, Cada geraclo tem (seu, €nés ainda hoje vibramos com o sabla, 0 céa azul, 0 salguciro, 0 Infinit e o Poeta, de estoque romantico, De posse deste material basico, o jovem poeta passa a etapa seguinte, da conotagéo. A linguagem da poesia, como sabemos, € mais ‘conotativa que denotativa, para usar o jargio dos especialistas. A de- notagio consiste em atribuir a um vocabulo o seu significado légico € fazé-lo seguir de outros, logicamente complementares. Exemplo: “A patativa, senhores, ¢ mavioso cantor de meu torria” (Riti Barbosa). Contrariamente, a conotagio consiste em associar a um vacabutlo dado ‘outros vocdbulos que a ele se prendem por uma necessidade nio log a, mas poética. Exemplo: “O vento em re matar / Prepara o temporal 4 Desfotha as estatuas, / Parte as hélices dos anjos" (Murilo Mendes). © vento no obedece 20 pentagram, estatua nao tem folha, nem anjo hilice,€ claro. No entanto, um jogo de analogias, associagdes e rem niscéncias permite ao poeta transformé-los 4 sua vontade, substituin- do a anise logica pela sintese podtica. Observe-se que a poemas, mas ho poesia pursmente conotatva; da mesma forma, hé poemas, mas nao poesia puramente denotativa Assim, o trabalho do poeta consiste, sob certo aspecto © em certa fase, na escolha do material tazido pela inspiracao, estabele- cendo as eonotacées que melhor convém ao efeito procurado, Na poesia moderna, como na poesia bartoca, é frequente a conotacio ‘stranhs € aparentemente forcada. Mefisofeles ensinava ao Estudante ‘que ¢ preciso comesar por apertar o espirito nas botas da légics. Em poesia, € preciso frequentemente apertar @ imaginagéo no tornilho uma comparasao inesperada ou de associagdes aparentemente sem sentido ~ como vimos na belisima estrofe de Murilo Mendes, citada hha pouco. Os nossos jovens poetas (els o meu libelo) nem sempre. uulizam com a devida parcimdnia e indispensavel seguranga as técni- cas da conotagao. 200-Liersune Siento ogo comenonsrva fg A associacdo postica se subordina a certa “necessdade", a uma pertinncia eséica ot psicolgics na conjungso das palavras ou ia gens, reminiscenclavivids e amadurecida,slaminagto, descaberta pa- ciente. O poeta perde o tonus e compromete a qualidade da sua poesia 0 associa [iamente ou apenas com habildade. Fro mnitos pacras de muitos dos nossos jovens poetas,julgo discernir certa tendencia para empregar como simples trique a téenicas da associagdo posti- «a, Perceberam cedo, lendo 0s maiores, que, por exemplo, um anjo olhando no binéeulo o som de um tclefone de que nascem flores & qualquer coisa de bizarto, no sentido correto © no sentido gelicists. Que, portant, o leitor se sentiré provavelmente envolvido por um sentimento de mistério e de fantasmagoria, attés do qual ele, poeta, oculta a sua preguiga mental ea sua incapacidade de pesquisa. Quantas vezes, vendo o hiertismo com que as atuadas mortas manda mensa- gens enguanto a trombeta do arcanjo celebrao fim do mundo, quantas ‘ezes nos sentimos com vontade de vir ante 9 malabarismo pueildes- ses pastches sem vida! Precisando o que ficou dito, resumo nuraa frase esta censura & rior dos nosses ovens poeas, em muitos dos quais reconhego nio dobstante a5 melhores qualidades: fata de eslorgo para renovar 0 ¥0- ‘abulitio herdado e abuso quase mecanico de urna conotacio superficial «poco pensada ‘Mas (¢ aqui chegamos ao ponto principal), com que intuito bus- ‘am eles as convengoes da conotagio moderna? Com o intuito, jas sinalado, de rar uma “atmosfera", de alargr infinitamente 0 eco © 0 significado dos versos. 4 atual poesia brasileira padece, sob certos aspecios, duma espécie de gigantismo. Os poetas no mais se confor ‘mam em Yer um sabid, como Goncalves Diss; em eada pissaro,fate- Jam, no minimo, a Pornba, o Mensageiro, 0 espitito divina da poesia, Sua namorada, telepaticamente, files comunicat com @ infcit, © 0s estos simples adquirem a solenidade imensuravel das coisas etcnss, Todo o esforco visa barar passagem 20 catidiano ~ 0 Vil reio nio haver no que digo exagero ou maldade. E fato de ob- servacio corrente essa acromegais literati, que transforma a vida do espirto numa tenstoexcepeional, continua, ea percepgto do mundo ‘num extaseinefvel. Ora, as qualdades das coisas e das ideas se def. nem em relagio a outra tantas qualdades. Num mauindo em que toda ioleta € nada menos que a consubstanciagto das esséncias, qual 0 valor poético das essencias? Para ser vidente, ambigto louvivel¢ dig. na, 0 poeta precisa, no minimo, de uma etapa anterior que sicva de contraste€ Ihe permita reconhecer a si mesmo como vidente. Parece- ime claro que a acromegalia lterieia, a inflagto do infinito, suprime os Pontos de reparo e torna inoperante a atitide transcendente. No rei ro dos anjos (sempre pense) a vantagem é nfo ter asas © nio saber tocar uombeta. Por isso, a mina terclrae ultima censura aos jovens Poctas braileitos ¢ a de estarem maltatando o mundo sensvel ¢ se Jono ewe eps 308] ‘10-0 encaminhando para uma desagradivel grandilogdéncia, que transfor: sma erm regra banal e desapaixonada as excegdes sublimes do misério do inefavel De um ponto de vista historico-Iterario, 0 fendmeno indicado parece uma espécie de reagto ao pragiaticms de que 2e revestram alguns aspectos do nosso “modernism” liteazio, Os modemistas pro- ‘curaram revigorar € revalorizar © estoque de imagens poéticas, ape- .gando-se por isso, entre outras colsas, ao registro do mundo exterior, 4 fim de dar ingresso em poesta a uma série de objetos proscritos ou nto recolhides. ‘Avista enase aa manhs bon, let isem bain epee specn ‘Ambareads pelo Sol vigor, ‘Com osngue dl taba cotendo na eas aes umagatonderalas “Torte. heirs Sarihoe “Elabices. Estes versos de Mério de Andrade sto tipleos de ums geragio ‘que procurava reconciliar-se com o mundo concreto, reorganizando a sensiblidade por meio de um novo sistema de imagens, direumente sanotadas, Sorpresa doenconto Camm ofantsme apr Camier banca, Corpodstana, Feangoes range Nobashode cot Estes versos de Joto Cabral de Melo Neto sto tipicos da atval geraglo, que procura evadirse do mundo concreto, infundinds nas imagens da vida uma doze maxima de absttacdo, a ponto de transfor- tar 0 cotidiano em chalariz permanente de milagres. Qual foi o destino dos "modernstas"? Comecaram por ficar em paz com o mundo; abriram os sentidos e receberam as lmpressoes, cconcretizando-as em imagens diretas e quase msteriais, reeducando & sensibilidade no primitivismo das sensagdes. Muitos la ficaram, e a ‘sua poesia nos patece hoje tao velha e sem sentido quanto a dos uli- ‘mos parnasians. Outros partiram dali, nutridos de experimentacio ‘com as coisas, para uma lenta reconquisia das harmionias petmanen- tes da poesia. Afinaram, volatilizaram ou transportaram 0 seu verso depois de Ihe haver dado musculos algo selvagens. Dat o segreda dos grandes livros da nossa poesia moderna: Estrela da manha, Sentiment do mundo, Livro azul, Poesia em panico. Os jovens, porém, se projetamn diretamente no espace procurando, de inicio, captar a harmonia das cesferas, Fazem ressoar majestosamente uma corda que vai do set [pm -temesonane occ umbigo 20 “infinito", reentronizando a velka nage roméntica do poeta-césmico, do poeta-centro-do mundo. ‘Noch morals, doves pertenc,eaclama) Eusou gio de um Devs, tr Deus me npr. Seu inrpetsou oh ter! Ouse Esses versos modernos de Goncalves de Magalhies estio na oF dem do dia. Penso que nao ha grande mal no poeta julgat-e predesti nado, mas creio também, no enlanto, que a terra 6 0 ouve depois que ele ouviu a Terra. Depois que aprendeu a identificar 0 sabia sobre a palmeira ¢ transpé-los para a poesia “enquanto” sabia e palmeira, con: fiando no magnetismo da sua sugest2o. Se, em. vez disso, monta 0 pés- saro de Goncalves Dias num telefone de Mantel Bandera e afta que © resultado € igual a transmigragao das almas (digamos), corte o isco dde nunca aprender a manejar e respeitar o que ha de maximo na arte poética, isto €, as imagens, nutridas de mensagens da terra, Do ponto de vista humano, ha perigos enormes nesse exclusivismo em cultivar apenas as “emogdes que se agrupam em tor no da palavrainfinito", como dizia Hulme. E 1 invasto do desmesura- do, que parecendo exaltar humano, nada mls faz que hipertofi-lo, isto €, desumanizd-lo. Com efeito, em muitos livros recentes, encon- tamos pouca fibra, pouca atitude realmente virl ante a criaglo. Néo censure propriamente os nossos Jovens poelas, que estio jogando uma grande cartada renovadora, ¢ que tomados isoladaimente tém, muitas ‘vezes, qualidades suficientes. Procurei apenas conceituar certas gene- ralidades que podem apresentar perigo, mas que, nem por se aplica- rem em conjunto, bastam para explicélos. font 303 | ANTONIO CANDIDO Notas de Critiea Leerérta Diéro de S. Paulo, T de marco de 1546, CConversando nao faz muito com um dos nossos mlores poctas, izia the eu entre outras coisas que a melhor critica literdtia, a mais iluminadora e duravel, nao ¢ feita pelos citicos profissionais, mas pe- los proprios artistas criadores. Concordamos, € verdade, que 0 critico ‘ocasional tem a seu favor a vantagem enorme de eserever quando qut- ser, sobre os livros que escolher, donde a preeminencta, mais aparente {que real segundo o meu delicado interlocutor. Dum jelto ou de outro, nndo vejo razbes para roudar de parecer, embors me punja a ideia desta precariedade da minha corporagio, tio contingente e fragil que no seu proprio terreiro ver baté-la a mestria dos criadores, Se, encarada no conjunto, a obra de Tristao de Ataide, de José Verissimo ¢ a ainda efervescente de Alvaro Lins apresentam mator forea e importancia na historia do género, nao ha negar que as paginas mais penetrantes, os conceitos mals brithantes, as idéias mais reveladoras sobre a nossa literatura sto encontrados sob» pena de Machado de Assis, Mitlo de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira. Se Matio de Andrade € um eritico perfeitamente caracteti- zado, como outros de igual valor que fazer no género estagées peris- dicas (Pedro Dantas, Sergio Buarque de Hollanda, Barreto Filho), 0s ddemals apenas circunstancialmente analisam umm livro. E a0 fazé-lo aqui chego 2 meu alvo) demonstram geralmente aculdade maior que a dos criticos profissionais. Assim € que uma simples frase desse Indiseiplinado e por vezes cadtico Oswald de Andrade sobre “Literatu.

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