A QUESTAO PERCEPTUAL DO NOVO EM
LITERATURA
Carlos Roberto Lacerda Mendonga”
O pé com que entrarei na sala jé se teré transformado antes
gue eu levante 0 outro.
KAFKA
Literatura é novidade que PERMANECE novidade.
Pounp
RESUMO
Este trabalho pretende reintroduzir no émbito da teoria e da critica literérias uma
discusso que ha muito tempo foi expulsa, pela porta dos fundos, do vade mecum
académico, Trata-se da questio que envolve 0 aspecto da originalidade em literatura,
aqui defendido a partir de perspectivas filoséficas e psicoldgicas, de acordo com as quais
deveré ocupar, em pé de igualdade com as teses que tentaram desqualificé-lo, o lugar que
Ihe cabe na construgdo do conceito de criagdo literdria, como um dos mais importantes
atributos desta,
Borges teria dito, segundo um articulista da Revista de Poesia e
Critica,' que um escritor atua sobre seus precursores tanto quanto estes
atuaram sobre ele. Em outro contexto, o verbo usado pelo escritor argen-
tino sera o verbo criar — “cada escritor cria seus precursores” — em vez
de atuar, 0 que reforga ainda mais as idéias de influéncia, repetigao,
auséncia de ‘paternidade’ autoral, intertextualizagao e congéneres. Con-
ceitos jd entio familiares ao jovem Borges e muito comuns hoje em dia.
Poderia resumir-se ai, nesse argumento borgesiano, numa sintese
arriscada mas insuficiente, é claro, o tema desenvolvido por T. S. Eliot,
em “A tradigao e o talento individual”, e Harold Bloom, em A angistia
* Mestrando em Letras ¢ Lingiiistica, érea de Literatura Brasileira, na Universidade Federal de
Goiis.
Signética, 6:1-15, jan /dez. 1994da influéncia,* precedidos no tempo e no espago pelo texto de Sigmund
Freud, “Recordar, repetir, elaborar”.5(O texto de Freud, um estudo pro-
fundo das condigdes de “recordagiio, repeti¢ao e elaboragdo”, no Ambito
de sintomas psicopatolégicos, ndo parece ter exercido qualquer influén-
cia sobre o ensaio de T. S. Eliot, mas sim sobre a poética de Bloom cujas
bases sao freudianas.)
Mas Borges vai além em suas reflexes nessa direg’io. Nao se
contentando, em outra parte, com negar o tempo e€ 0 espaco, “dissolve
até o nada o mundo exterior, anula a identidade individual”, chegando
a afirmar que “ninguém € alguém” * Tais conceitos, como nao poderia
deixar de ser, iriam desembocar fatalmente no estudrio onde é comum
aidéia de que a linguagem nao tem dono, pertencendo, portanto, a todos
nés. Quem percorreu o caminho até aqui poderd afirmar ‘coerentemen-
te’, ao lado do autor de Ficedes, que a literatura, sendo propriedade de
todos, é terra de ninguém, onde qualquer um podera incursionar 4 vonta-
de. E colher os frutos advindos da ‘auséncia de paternidade’ autoral.
O perigo dessa visio (origindria, em grande parte, do pensamento
oriental), quando nao experienciada diretamente, mas apenas sonhada
e teorizada a partir de uma biblioteca em Buenos Aires, esta no fato de
que materializa uma divida (que, as vezes, pode ser muito cémoda e
conveniente) e nao resolve um problema: poderiamos nao saber jamais
quando uma obra é original e quando é copiada. Diivida que, certamente,
permanece com Borges, além-tamulo, e que deve ter corroido sua mente
enquanto viveu.
Mas, se é verdade (e parece no haver dividas quanto a isso, pelo
menos até certo ponto, a ndo ser por motivos mais radicais, expostos
adiante, neste ensaio) 0 que Borges disse no inicio, os trabalhos citados,
de Eliot e de Bloom, mereceriam, por si sds, alguns estudos comparati-
vos, a exemplo do texto Iticido de Luiz Alberto de Miranda, “Reideolo-
gizando a comparacao”.’ Por se iluminarem mutuamente e, também, por
pretenderem que a iluminago reciproca e generalizada, procedente das
obras literérias como um todo, e da poesia em particular, seja a base
mesma de seu trabalho, ensejariam miltiplas comparagdes nao fosse o
fato de evidenciarem mais uma complementaridade teorica, em razio de
suas semelhangas, do que uma disparidade de pontos de vista, em virtu-
de de suas diferengas.
2 MENDONCA, Carlos Roberto Lacerda. A questo perceptual do novo em LiteraturaEm vez de intentar um estudo comparativo entre Bloom e Eliot,
o presente trabalho pretende circunscrever-se ao exame de algumas
diferengas (em que pese a unidade territorial tematica comum a ambos)
notiveis e reveladoras, que privilegiam o texto de Bloom, mais adequa-
do aos fins deste ensaio.
Uma das diferengas esté em que, para Eliot, “o didlogo intertextu-
al no resultava de qualquer ‘ansiedade’, nem provinha dos intersticios
do psiquismo, ou do desejo de um filho de individualizar sua propria voz
distorcendo, neutralizando ou minimizando a voz do pai”.* Precisamente
o contrério daquilo que, para Bloom, representa esse didlogo, ou seja,
o lugar (gerador de angistia) da luta entre o poeta “efebo” (0 filho) eo
poeta precursor (o pai).
Outra das diferengas, também esta tendendo a privilegiar 0 posi-
cionamento tedrico de Bloom, para os efeitos deste texto, é a que se
insere naquela frase inicial de Borges invertendo-a e dando prioridade
& atuacdo dos precursores em relacdo ao seguidor ou retardatario, intro-
duzindo naquele conceito a nogiio de impulso a “repetig&o diferencia-
dora” e de angiistia, derivadas da “cena originaria”.
A posigao de Eliot, em “A tradigdo e o talento individual”,
contrai-se para uma visdo menos abrangente em relacao a perspectiva
adotada por Harold Bloom, por faltar ao primeiro 0 substrato da ciéncia
do sujeito, ou seja, da psicanilise, deixando entrever-se, apesar disso, ou
por isso mesmo, na base dos dois discursos, a confluéncia de pontos de
vista, com a vantagem, para os designios deste estudo, das idéias do
autor de A anguistia da influéncia, em razio do excesso daquilo que nele
transborda: a tautologia resultante de uma falta epistemolégica no enca-
deamento de seu raciocinio.
Por isto, apesar das verdades contidas nas trés posigées, tanto na
de Freud como na de Eliot ¢ na de Bloom, é necessario examinar mais
detidamente a falta epistemolégica ‘esquecida’ (ou intentada) pelo ulti-
mo, ao decidir, fout court, que tudo ou quase tudo no terreno da produ-
ao poética, o préprio poema, melhor dizendo, se resume em influénci-
as, seguidas de ansiedade em maior ou menor grau, em razo da tentati-
va de desqualificagao perpetrada e perpetuada pelo poeta “efebo” em
relagdo ao precursor.
Signética, 6:1-15, jan /dez. 1994 3As raras excegdes (passiveis, contudo, de discusséo, como deixa
entrever o préprio autor) apontadas — os rarissimos casos de poetas nao
influenciados — sao insuficientes para elidir a regra. Ao contrario, ten-
dem, no ensaio de Bloom, a confirmé-la, ensejando a outros a oportuni-
dade de ‘furar’ o seu texto, a fim de, muito justamente, diminuir 0 seu
impacto. Explicando melhor: se as excegdes entrevistas em A angustia
da influéncia sao insuficientes para propiciar a construg’io de um mode-
lo que dé oportunidade precisamente a contestagao da abrangéncia da
teoria bloomiana, entio justifica-se a tentativa de nega-la por outros
meios. E o que pretendemos neste ensaio.
As seis raz6es revisionarias de Harold Bloom — clinamen, tessera,
kenosis, demonizaco, askesis ¢ apophrades —, com as quais se pretende
defender a idéia de que o que define a obra de um escritor é sua reagdo
as influéncias que recebe, acabam por se exercitar totalitariamente em
trés direcdes. Interpenetrantes e complementares, as razGes revisionarias
exercem-se abarcando passado, presente e futuro, num rescaldo infinito,
abrangendo todas as latitudes do fazer poético, de modo a nio excluir
qualquer poeta, vivo ou morto.
A angistia da influéncia que, segundo 0 autor, “nao é uma nova
poética, mas sim uma forma inteiramente diversa e pragmatica de ci
ca”, embora o subtitulo da obra indique “uma teoria da poesia”, deixa 0
terreno livre 4 incurso de reflexdes alheias ao abrir uma brecha no
interior de seu proprio discurso, quando afirma, contraditoriamente, em
outro texto, que a “critica literaria freudiana” nao ¢ “nem freudiana, nem
literaria, nem critica”,? mesmo se todos sabem que o seu (de Bloom)
trabalho tedrico, reiterativo, em outros termos, das condigdes de “repe-
tig&o, recordagio e elabora¢o”, supostamente existentes no recesso da
producao poética “angustiada”, baseia-se nas reflexdes de Freud a
respeito dessa triade ¢ a respeito da “revivescéncia” da “cena origina-
ria”. Ainda que a anedota exclua a pratica textual do proprio Bloom, a
ironia acaba respingando em grande parte de sua obra.
As “razées revisionérias” mencionadas, que poderiam ser traduzi-
das em “imagens de forga”, como o faz John Hollander, citado por
Arthur Nestrovski na apresentagao do livro de Bloom, teriam as seguin-
tes denominagées correspondentes: busca, queda, giro, progressio,
mascaramento ¢ combate. ‘Estagios’ de nomes bem mais sugestivos que
aqueles usados por Bloom, representativos da inexorabilidade dessas
4 MENDONCA, Carlos Roberto Lacerda. A questo perceptual do novo em Literatura