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COLABORAGAO ESPECIAL O MAL-ESTAR NO PATRIMONIO: IDENTIDADE, TEMPO E DESTRUIGAO, Heritage and its discontents: identity, time and destruction JOSE REGINALDO SANTOS GONGALVES dx. do og/10.159050103-21862015000100012 Jovt Regn Santas Gongles ¢ proeso tur do Danartamente de AntopeleglaCukural ‘pesado do CNP, PPA do ICSIUFR, Texto recebid em 14 de aioe aprovao para publacio em 18 demaio de [ste et fo orgnalmente elaborad come aula inaugural do Programa de Ps-Graduacio em Bens Cuts do FOV ESTUDOS HISTORICOS Re deni oo 28 m5, 211-228, amin june 2015 au 212 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES recente litera ra sobre o tema “patriménios cultures" é notavelmente extensa «no para de expandit-se. Resenhé-la é um enorme desafio para qualquer pes- quisador’ Essa produdo repercute a crescente presenca sociale poltca dessa categoria des- de as itimas décadas do século passadoe sua relevancia nas polticas piblicas eno cotidiano de divetsos segmentos sociais. Um histoiador no ano 2115 provavelmente vai se perguntar or que as pessoas, na virada do século XX para o XXI, se mostravam tdo sensibilizadas pelas palavras “pattiménio" e “meméria” e téo obcecadas pelas agées de protecdo e preservacio de seus "bens culturais”. Que ameaca assombrava seus coragdes e mentes? € provavel que se pergunte também como esas atitudes preservaconistas podiam conviver com catéstrofes naturaise socias tao devastadoras como as que conhecemos no mundo contemporineo & que atingem precisamente esses objetos que sao alvo de incanséveis esforgos de protesao & preservagéo. Como entender albgica dessas acBes destrutivas sobre as quai, aparentemente, no se conseguia exercer um eficaz controle coletivo? Atualmente, qualquer objeto material, qualquer espaco, qualquer prética social, qualquer tipo de conhecimento pode ser identificado, celebrado ou contestado como “pa~ triménio” por um ou mais grupos socials. Assim como jé se diagnosticou um “abuso da meméria” (Todorov, 2004), 0 mesmo se pode dizer a respeito dessa palavra complementar, © “patriménio", @ seu caraterinflaconario (Heinich, 2009). De modo voraz a categoria estende-se para diversos dominios, e, para além dos classicos patriménias histéricos e cul- tras, encontram-se os etnolégicos, ecolégicos, entre outros. A categoria do “intangivel”, por sua vez, tornou possivel “patrimonializar” uma vasta gama de itens e até mesmo “pes- soas”, como evidencia 0 projeto dos “tesouros humanas vivos", programa patrocinado pela Unesco que visa a proteger e preservar individuos que controlam determinados saberes tradicionais que estariam sob o isco de serem esquecidos (http:www.unesco.orgfculture! ichves/tesoros-humanos-vivos) Quais as razées desse incontrovel processo de expansdo dos patriménios no mundo contempordneo? E, sobretudo, como entender, a0 lado dessa obsessdo preservacionista, a firia destruidora que se abate sobre diversos bens culturais? ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 QUANDO PRECISAMOS DE UMA IDENTIDADE? Aw categorias aparecem de modo recorrente nos discursos do patriménio. Elas mobilize dio direcgo aos empreendimentos de preservacio dos diferentes pati- ménios. Assim, & comum que se assuma coma um dado que os patrimnios materials ou imateriais expressam ou representam a “identidade" de grupos e segmentos sociais. Um tipo de arquitetura, assim como uma culinaria, uma atividade festiva, uma forma de artesanato (um tipo de misica, pode ser identfcado como “patriménia cultural” na medida em que € reconhecido por um grupo (e eventualmente pelo Estado) como algo que the € préprio, associado & sua histéria e, portanto, capaz de definir sua “identidade”, Defender, preserva e lutar pelo reconhecimento piblico desse patriménio significa lutar pela prépria exsténcia e permanénca social e cultural do grupo. A pattr dos anos 1980, 0 tema invadiu a agenda de diversos movimentos soca. Se até aquela década, ao menos no contexto brasileiro, as discussées sobre o patriménio restringiam-se a esfera do Estado e dos intelectuais que dirgiam as agéncias de presenvagio histérca, a partir de entéo o tema difundiu-se pela sociedade civil, sendo reinterpretado & utlizado por grupos e associagées cvis como um instrument de luta politica, A nogéo de "identidade” desempenha nesses processos um papel crucial Do ponto de vista do Estado e de suas politica, especificamente suas polticas de pa ttiméni, “dentificat” um grupo e seu patriménio equivale a exercerpositvamente sua fungio enquanto agéncia do poder Por esse Angulo, a nagio traz em si uma certa ambiguidade: se, por um lado, éa forma pela qual um grupo se afirma publicamente, por outro, & © modo pelo qual o Estado exerce seu controle sobre a sociedade, Segundo Michel Foucault, 2 identdade & uma das primers produces do poder, desse tipo de poder que corhecemas em nossa socedade, Eu acedito muito, com efito, na importinca constttva das formas ulec-poltice-plicas de nossa sociedad Sed que o sujet, idéntico a si mesmo, com sua Fistrcdade propria, sua gfnese, suas conividades, os efeitos de sua infénca prolongadas até okie cia de sua vids etc, ndo seria o produto de cet tipa de poder que se exerce sobre résnasformas|uridcas ema formas policas recente? € necssirio lembrar qu o poder néo & Lm conjunta de mecanismes de nega, de recuse, de excisto. Mas, efetivamente ele produz Possivelmente produ até os prépris indvcuas (Foucault, 2006: 84) Nesse sentido, 0s patriménios so menos expresses de identidades do que meios de produgio de determinadas formas de autoconsciéncia individual coletiva. O debate sobre 05 patriménios néo deve, portanto, do ponto de vista analtico, imitarse as tarefas de descobrr, defender e preservar “identidades” supostamente dadas. Essa nogdo deve ser ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 213 214 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES problematizada, sendo necessario também, a0 mesmo tempo, ciscutir a nogio de “patimd- nio", como ela emerge na histéria da modernidade e quais 0s perfis semanticos que ela veio a assumit. Por um lado, 0 “patriménio” é uma categoria eminentemente ocidental e que acom- panha a histéria dessa civizacio (Hartog, 2003: 163-206). Mas, para que no pensemos a sua singulatidade como um absolute, talverseja necessério reconhecer que, enquanto uma categoria ela pode ser encontrada, de formas diferenciadas, em outra sociedades ou cultures. possivel contra-argumentar e dizer que isto significa levar longe demais o reconhecimento da sua presenca, Mas, se contornamos essa discussdo, o que importa efetivamente é explora, comparativamente, as diferencas entre essas concepgoes. Desse modo, o que esté em jogo nesses contextos “no acidentals” ou “no moder- nos", quando consideramos as “concepgGes nativas” de patriménio, ndo & necessariamente @ “identidade” dos povos e grupos socaiscujos objetos e modos de vida so alvos de processos de patrimonializacéo por agéncias ocidentais. Elesnéo estéo, como os homens eas mulheres da ‘odernidade ocidental, preocupados em buscar uma “identidade” que rsiiria no fundo de su- as experiéncias indviduais e coletvas. Pelo menos, no nos termos em que o Ocidente modemo formula e busca responder a essa questéo. Tata-se, antes, da forma como esses povos e grupos se situam em suas relagées com a ordem cosmolégica, natural socal, preocupados em interagir com as diversas entidades do universo: os deuses, os mortos, os antepassados, os parentes, 05 vi- zinhos, os animais, as plantas etc. Do ponto de vista de suas cosmalogias, eles existem individual « coletivamente na medida em que fazem parte dessa extensa rede de relagées de troca, Nesse sentido, descobrire defender sua “identidade" nao & necessariamente, para eles, um problema, Esta é,na verdade, uma preocupacao presente nos discursos e politicas de patriménio que thes so impostos quando, sempre com as melhores intengSes, se busca preservar seu “pattiménio ¢ ainda classifcé-lo como "patriménio da humanidade”. Vale assinaay, no entanto, que essa consciéncia da “identidade” néo @ interamente estranha & sua experincia e pode também ser parthada por eles em diversas stuagées sociais.'80 acontece quando eles se apropriam ds modernos discurss e politicas de patriménio e se organizam em movimentos soca para defender 0 que chamam de sua “cultura”, quando se organizam para constuir museus que expressariam a sua “identidade” e sua “meméria” ‘Assim, no contexto brasileiro das recentes pollticas pattimonials para as culturas po- pulares, fo1 conduzido hé alguns anos pelo IPHAN 0 processo de registo do “ofiio” das “balanas de acerajé", o que levou 20 seu reconhecimento juridica como “patriménio ima- terial” (http:!/porta.iphan. gov brimontarDetalheConteudo.do?id=177508sigla=Institucional ‘retorno=detalhelnsitucional. Em seu vo Baianas de acarajé: comida e patriménio no Rio de Janeiro (2011), Nina Pinheiro Bitar analisa esse processo de registro e explora o ponto ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 de vista das “baianas” sobre sua transformacio em “patriménio imaterial”, Um dos pontos centrais de sua andlse consiste em mostrar que, do ponto de vista dela, sua atividade no se restringe a aspectos estritamente culindrios, comerciais ou identitéris, Ou seja: nfo se trata, esttamentefalando, de um “ofcio” ou da defesa de uma “identidade”, mas de uma “obri- 42,30", no sentido magico e religioso. As baianas que aparecem nessa pesquisa entendem sua atividade como uma relagéo de dadiva e contra-dédiva com uma determinada entidade do candomblé: lansé. As atividades de preparacéo e de venda do acarajé permeiam essas re- lagées. Os pontos de venda nao sao escolhidos arbitratiamente ou por razdes comercais, mas indicados ao individuo por essa divindade. A relagéo com parte da clientela confunde-se com a atividade dessas baianas enquanto pessoas “do santo”. As relagées que, na espaco piblico da cidade, elas estabelecem com mendigos, assatantes,crangas de rua séo pensadas a partir de categoras religiosas. Ela os clasifcam como o “povo da rua" e, como tal, séo respeitados. Arua ndo & apenas o espaco da cidadania nem o espaco fisico planejado pelos urbanistas. € ‘também o universo de personagens ligados ao universo das rligides afto-brasleras. Assinale-se, no entanto, que essa concencao nao impede que elas assumam postiva- mente sua condicio de “patriménio imaterial” e usem polticamente a nocdo de “identidade” para garantir sua reprodugo no universo da rua, especialmente em oposicio aos “camelés” Eas afitmam: “agora que somos patriméni... nfo podemas ser tratadas como qualquer umn. ‘Nao somos cozinheiras e nem camel6s, somos ‘baianas de acarajé” (Bitar, 2011). ‘Como vimos ao conduzir nossa observacio para o interior desse universo sociocutu ral, constatamos que a nosao individualzada de “identidade” perde sua centralidade, sendo suibstituida por uma autopercepeao relacional definida pelas tracas com uma entidade religio sa, Nessastrocas importa no exatamente o produto acabado da atividade (0 acarajé como lum emblema da “identidade” desse grupo social ou sua atividade como um “ofiio"), mas todo 0 extenso processo social de produco e consumo envolvendo a destruigéo ou transfor: rmacéo das matérias primas necessatias aquela atvidade culinria. Nesse processo emergem as relagBes das “baianas” com os formecedores dessas matérias primas, com seus clientes e com a entidade protetora.Jé nas rlagBes com o IPHAN e com outros érgéos do Estado, nas relagies com associagées cvs, elas operam com categoria tas como “identidade”, “ofcio” e “patriménio”, usando-as como instrumentos para seu reconhecimento social e politico. O PATRIMONIO E © TEMPO Oo utra categoria que permeia os discursos do patriménio & a nogdo de “perda”. Nos dliscursos do patriménio brasileiro, ela aparece de modo recorrente. Intelectuais como ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 215 216 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969) e Aloisio Magalhaes (1927-1982), obceca- dos por uma “identidade nacional brasileira", defenderam de modo admirével © chamado patriménio histérco e cultural brasileizo (Goncalves, [1996] 2004; Fonseca, 1997 ; Rubino, 1991; Santos, 1992; Chuva, 2009). Em suas concepcSes, 0 patrimanio & percebido a partir de uma condigéo de possivel "perda", cabendo &s agencias de preservacdo resgaté-o de um suposto processo de decinio e desaparecimento (Goncalves, [1996] 2004). Nesses discursos, © patriménio aparece como um dado individualizado, um objeto que pode ser nitidamente identificado, definido juidicamente , portanto, peservado, embora sob a perene condigéo de possvel perda de sua forma original ou de sua “autenticidade”. Os que assumem esse dis- curso situam-se numa determinada concepgao de tempo histérico, um tempo progressvo, no ual o futuro & um fim absoluto, percebendo-se o presente ora como uma fonte de destruigdo do passado (dai orisco da “perda”), ora como um campo de possibilidades para construir 0 futuro, em especial o futuro nacional € dificil encontrar essa obsesséo por uma suposta “perda” nas concepgdes de patti nio que comentévamos ha pouco, entre as “baianas de acarajé”. Em suas relagées de diva « contradédiva com lans, elas buscam assegutar bons resultados, mas néo necessariamente preservar um patriménio que estaria sob o rsco de “perda”. Em outras palawas, se é verdade que toda formacio social partha alguma concep¢o de patrimanio, esta néo esti necessaria- ‘mente vinculada a uma busca de “identidade” nem associada a um sentimento de “perda” Essa obsessdo parece ser uma singularidade do Ocidente moderna e, mais precisamente, de sua concepgao de "tempo histérico”, ‘Ao explorarmos 05 usos sociais dessas categorias, podemos elaborar um entendimento do "patriménio” que nos permitia transitar entre os diferentes universos socicultuas, entre 05 diferentes perf seménticas que essa categoria pode assum, seja historicamente, seja ge- ‘ograticamente, Uma hipétese para viabilizar essa traducdo consiste em pensar os patriménios como sistemas de relagSes sociaise simbélicas capazes de operar uma mediacéo sensivel entre 0 passado, 0 presente eo futuro (Goncalves, 2010). Essa hipétese encontra sustenta- fo nos estudos produzidos pelo historiador Francois Hartog, que tem se dedicade a refletir sobre os recentes processos de transformacao em nossos modos de experimentar 0 tempo e suas repercuss6es na produgéo historiogréfica e, especiicamente, nos discursos do petriménio (Hartog, 2003). Os pattiménios so percebidos como “sintomas” de nossas experiéncias do tempo: 20 descrever e analisar suas vatiagdes histércas e geogrsfcas,estariamos na verdade comparando formas diversas de se expetimentar o tempo (Hartog, 2003). Para ele, a expanséo extraordindria dos patriménios no mundo contemporéneo deve ser entendida como o sintoma cde uma crise nas formas como experimentamos as relagBes entre passado, presente e futuro. ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 ssa expansio consiste na crise de um determinado “regime de tistorcidade”, o regime “modernista" ou “futursta”, que se caracteriza pela valorizacéo positiva do “futuro”. Esse regime estaria, de certo mado, sendo substituido por um outro, no qual o “presente” é forte mente valorizado: 0 regime “presentista” (Harlog, 2003). Nesse novo regime, o passado seria bsessivamente reproduzido como objeto de fruigéo, mas no como base para uma projegéo positiva no futuro. Nessa perspectiva, aquilo que chamamos de "tempo histérico”, o tempo representado como uma lecha cuja ponta esté projetada no futuro, no seria algo natural, mas sim uma cate goria sujet, ela propria, a transformacées histércas. A modema concepgio do tempo histéico emerge a partir do século XVI ese contrapée ao “regime clissico” de representagao do tempo. Neste dkimo, se reconhecia uma continuidade entre o passado, o presente e 0 futuro, e por isso mesmo 0 passado era visto como fonte de iluminago, como um guia para a vida presente, ea histériapodia entéo ser considerada como “mestra da vida” (Hartog, 2003: 11-32). J4 o regime rmoderno de representagie do tempo histérico toma como ponto de partida uma assimetra entre 0 passado e o presente. © passado passa a ser considerado um universo obscuro do qual no emanatia nenhutna luz sobre o presente. Nao por acaso, a nocéo moderna de patriménio (juntamente com os Estados nacionais) juntamente com o sentiment coletva de que esse pa triménio estava Sob ameaca de destruigdo emergram nesse contexto de final do século XVI e final do século XIX (Fumarol, 1997: 101-116; Hanison, 2013: 42-67) © regime “presentista" representa, para Hartog, uma crise dessa valorizagéo positiva do futuro e, consequenterente, uma &nfase excessiva no presente, O futuro vem a ser inibido em favor de um passado que invade o presente na forma de “patriménios", ou na forma de Cbjetos e formas de vida que so colecionados e expostos ern museus e em espagos museal: sados das cidades, para serem apreciados e consumidos num presente que se configura como eterno (Hartog, 2003: 207-218). Essa crise em nossa experiéncia moderna do tempo jé havia sido assinalada por Lévi -Strauss, que, numa entrevista nos anos 1980, chamava a atengao para o fato de que as so ciedades ocidentas vinkam experimentando o que ele chamou de “resfriamento” do tempo. Nossa obsessao pelos patriménios estaria associada, segundo ele, a essas transformagées no modo como representamos o tempo Asmossassciedades,esponsves cu vias de taglas hore, aterarzades pels ets da eiglosio demogttica,ocesempregoe ours mals, um apego rnascente a0 patina, o conteto qu se esfrgam para retmar com suas ries. diam a so, com a outas ciiizagbs ameacadas, que eas podem —de manera totalmente simblca, ¢bvio~contrarar ‘0 curso da histéria e suspender o tempo (Lévi-Strauss, 1983: 9-10). ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 217 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES 0 florescimento extraordindrio das diversas modalidades de patriménios cutturais na atualidade, nosso curioso empenho em preservar ou reconstruir objetos, lugares, prégios e formas de vida associadas a0 passado talvez revele mais do que um esforco coletivo de buscar « expressar 0 reconhecimento de “identidades” sociais contra os supostos riscos de sua “per- da". € provavel que esteja em jogo um trabalho coletivo de mediar e equilibrar contradigoes ‘em nosso mado contempordineo de representar 0 tempo, uma concep¢io na qual 0 futuro ja nao brilha como o foca das esperanas utbpicas, e o passado é preservado ou reconstruido na va expectativa de parar o tempo, 0s patriménios podem simultaneamente servir aos propésitos da indéstria turistica em escala planetaria,&s estratégias de construcio de “identidades”, 3 formacéo de subjeti- vidades indviduais ecoletivas, as reinvindicagGes de natureza politica e econdmica por parte de grupos socials, ou ainda a politics de Estado, Mas em todos esses usos do patriménio é possvel perceber determinados modos de imaginare geriras relagées entre passado, presente e futuro, ‘Ao nos referirmos as essas formas de experiénca do tempo, vale lembrar que 0 pa~ triménio cultural brasileira, enquanto discurso e enquanto politica de Estado, emergiu, ainda nos anos 1930, sob a inspitagio de intelectuais modemistas: Mério de Andrade, Rodrigo Melo ranco de Andrade, Gilberto Freyre, entre outros. Em contraste com a vanguatda europea, 0 rmodernismo brasileiro, na perspectiva de alguns analistas,distingue-se por uma tendéncia conservadora que, ao invés de celebrar a ruptura,conclia passado, presente e futuro, Observe- Se que alguns dos intelectuais que estiveram & frente da construcdo do patriménio no Bras € ditigiram a criagdo e o funcionamento do entio SPHAN foram também responsavels pelo projeto ea construgéo de Brasilia (Chuva, 2009). Um historia, refletindo sobre a histria da arquiteture moderna no Brasil, assinala Terminou 0 século XX, ¢ Brasla(.) continua sendo sua cidade mals moderna; tio moderna {ue 0 tagado fundacional (0 chamado Plano Pilota) foi declarado “patiménio histérico da humanidade”, para que seu cardter mademo seja preservado de passagem do tempo, De fato, Brasilia nao &somentea cidade mais moderna no século XX, mas, fundamentalmente, & um mu- seu da madermidade, numa épaca em que 2 mera passagem do tempo, o atual,nio é moderna ‘© que 0 moderno deve ser preservada (Goel, 2005: 151} Mas se tempo atual ndo é mais “modemo”, que tempo é esse? Qual a forma de re- presentagdo desse tempo? Como experimentamos, na atualidade, as relagbes entre passado, presente e futuro? Que transformagées ocortem na sensibilidade coletva, especialmente nas iltimas décadas do século XX e na virada para o século XXI, que teriam alterado as atitudes as ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 € representagées em relagdo aos patriménios no Brasil? Se as atitudes e representacées mo- deristas buscavam recuperar a histéria e a meméria com a finalidade de construir um futuro, ue attudes podemos surpreender nas tltimas décadas? Os intelectuais modernistas que, no Brasil, estiveram associados ao pattiménio tinham em vista @ construgdo do futuro da nagéo e recoriam ao passado como uma fonte de ins- piragGo para o presente. Em um de seus textos sobre o patriménio e @ identidade nacional brasileira, ainda nas primeiras décadas do IPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade afirmava: “Averdade é que ndo somos ainda” (Gongalves, 2004: 115). 0 esforco coletivo de construcao do patriménio, drigido pelo Estado, estava justificado por esse projeto de construgdo de uma identidade nacional que, supostamente, ainda néo existia, Décadas depois ja nos anos 1970, Aloisio Magalhes, embora operando com uma cutra narrativa do patriménio, tinhe ainda como horizonte de expectatva o futuro de uma nacéo discursivamente construda a partir de sua "diversidade cultural” (Gongalves, 2004). Ambos operavam num regime “moderno” ou “futurista” de representagéo do tempo, para usermos aqui as categorias analiticas de Hartog (2003), Outro aspecto a se destacar no contexto brasileiro & o fato de os intelectuais que se dedicaram a0 patriménio estarem situadas no aparelho de Estado, o qual desempenhava um papel central na construcio de uma identidade brasileira. A expansao recente do patriménio estd artculada a uma série de transformagées nos dlkimos 30 anos. No plano institucional, constata-Se que o Estado nacional, que durante décadas operou com certa exclusividade na elaboracio e implementacéo das polticas de patriménio, ji ndo detém a mesma hegemonia, Organizagées no governamentais, movimentos Socais, empresas, grupos Soca eindividuos assumem iniciativas no sentido de reivindicar,estabelecer e contestar “patriménios culturais". ‘Sem deixar de ser uma agéncia legitimadora e apoiadora fundamental, o Estado se v8 obriga do a reconhecere a lidar com uma série de outros atores socais engajados na identificagdo e preservacio de patriménios (Goncalves, 2012). ‘Ao lado dessa mudanca na configuragéo institucional assiste-se a uma fragmentagdo na produgio dos patriménios, que repercute no plano dscursva. Se até os anos 1980 as narrativas estavam voltadas firmemente para a nacéo, ¢ todo e qualquer bem tombado 0 1a em fungao de seus vineulos com a historia € a identidade nacional, nas utimas décadas, desde entao patriménios associados a diversos grupos e movimentos sociais vém sendo re vindicados, reconhecidos ou contestados sem que os vinculos com uma “identidade nacional” sejam necessatiamente colocados em primeiro plano. Observa-se uma desestabilizagéo das concepgGes de patriménio centradas na hstéria ena identidade nacional. Até meadas da pe- niltima década do século XX, o vocabulério da historia, ¢ especialmente da histria da arte € ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 219 220 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES da arquitetura, eram centrais na construgio discursva do patriménio, Nas iitimas décadas do século XX, acompanhiando a emergéncia dos "patriménios imaterais", asisiv-se a uma in- tensificacie dos usos do vocabulério da moderna antropologia social e cultural. *concepgio antropolégica de cultura” tornou-se também, a exemple do “patriménio", um outro “grito de duerra” na luta pelo reconhecimento e pelo registro de "culturas populares (0 mercado, sea como adverstrio, sea como aliado, sempre esteve presente, de modo implicito ou explicit, nos ciscursos e politicas de patrimanio. Mas nas tltimas décadas & pos- sivel perceber uma intensificacao dessas relagdes, especialmente no que se refere ao turismo. Assim, cada lugar que vem a ser ofialmente reconhecido como “patriménio" jé é ou torna-se rapidamente uma “atracéo turistica”(Kirschenblatt-Gimblett, 1998). Observa-se a existéncia de uma extensa rede de mercado associada aos discursose polticas do patiménio: ompanhias de transporte, redes de holds e restaurants, vstacdes tursticas, festivals, comérco de souvenits (postas, reproduces, fotografia, filmes, cbjetos), edicSo e circulagdo de jomais revista, livros. Cutiosamente, nos dscursos moderistas do patriménio, o turismo sempre foi classficado como uma fonte de perigo, algo que devia ser mantido & distnca,na medida em que se pretendesse que 0 patiménio nao perdesse sua “autentcidade”. Se uma determinada concepcéo de “au- tenticad” estava associada & hegemonia e& cetralidade do Estado nacional na formulaclo e implementagao de poltcas de patriménio, essa concepgio parece atera-se em fungéo da nova configuragéo institucional que vem se desenhando a part das titimas décadas do século XX. Na atualdade, esses discursos parecer evidenciar concepges de “autentcidade” em que a énfase € colocada no mals exclusivamente numa relago orgdnica com 0 passado nacional, mas na propria possibilidade presente (ou “presentista") de reproducao social de diversos passados, 0. patriménio osca entre a histéra nacional e as memérias coletivas. 0s intelectuais que pensavam, e 05 que ainda pensar, em termos de uma "retérica da perda” postulam a existencia de um “objeto de desejo”, seja 0 “passado nacional”, seja a “cultura popular” seja 0 “folelore”,cuja busca revelria a face auténtica do Brasil. Expresso de umm “regime moderno de historicidade” (Hartog, 2003), a “tetérica perda", em seu declinio no atual contexto marcado pelo regime “presentsta”, mostra-se como uma modalidade entre outras de representacéo do patriménio, originalmente acoplada a um contexto institucional € 2 um certo regime de representacio do tempo. Desse modo, é possivel pensar o patrimé- nio néo apenas como algo situado num tempo ou num espaco cistante e inalcangével, mas também como um processo presente, incessant, confltuaso e interminavel de reconstrucgo Assnale-se que no coracdo desses discursos,juntamente com a nogéo de “perda”, insinua-se o especto da “destruigdo", contra a qual se posicionam os esforgos coletivos no sentido de proteger e preservar os bens cuturals ameacados. Essa destruigdo, no entanto, ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 projetada para fora dos limites do dscurso patrimonial,sendo percebida come algo extern, algo que ameaca de fora os bens materials e imaterais vsados por esse discus, la pode assumir formas naturas(intempéries, catéstroes) ou socials e histticas (queras, atentados, © simples abandono dos bens cultures, a indferenca da populagdo ou dos governantes), mas configura-se sempre como uma espécie de inimigo externo a ser combatido. No entanto, podemos perguntar em que medida esse inimigo ndo convive internamente com as préprias praticas da preservagdo, ndo somente enquanto ameaca, mas simultaneamente como fonte de criacdo. Sendo assim, no ato mesmo da preservagao seria necessatio observar 0 que é necessariamente destruido ou esquecido, ‘A DESTRUIGAG COMO CATEGORIA POSITIVA Aw >" pode evidentemente assumir varios prfisseménticos. Hé formas de ima- ginar as relagées com os patrimanios onde ela éintegrada positivamente, como parte interna ao processo de preservagio e ndo coma algo externo e perigoso a ser evitado e com batido. € quando podemos perceber uma espécie de destruigdo domesticada, onde a nogio de "perda" nao mais assume um papel central. No noroeste da Africa, os Batamaliba sao conhecidos pela sua arquitetura singular, Suas «casas so especialmente apreciadas, no Ocidente, pela sua forma estética, Hé alguns anos, a Unesco tombou mutas dessas casas como “patriménio da humanidade” (hitptiwhc.unesco, corglen/list/1140). Ocorre no entanto que, do panto de vista natvo, as concepgées de casa e de arquitetura nde coincidem com as concepcdes ocidentas. Esse fato fica evidente em um estudo produzido pela antropéloga Suzanne Blier que explora a costnologia subjacente a essa arquitetura (ler, 1987). Primeiramente, as casas so construidas para abvigar familias extensas. Alem disso, so pensadas pelos Batamaliba como seres vivos. Els as descrevem usando como referéncia as diversas partes eo funcionamento do corpo humano: uma casa tem cabece, pernas, bragos, boca, partes sexuais etc. Ea deve ser cuidade, alimentada, protegida, como qualquer ser human. Cada uma das casas tem uma biografia que se confunde com a biografia do homem mais velho da familia, Quando este more, a casa tem necessariamente de ser demolida, Algu- mas de suas partes sao usadas para os descendentes construirem uma nova cas. Pensara casa coma uma entidade viva, semelhante a um ser humano, dotada de éraéos de uma forga vital como aguele que é encontrada nos seres humans & algo comum a muitas das chamadas sociedades primitvas e se faz presente também, embora de forma diferencia da, nas grandes cilizagées tradicionais? Em termos esquemsticas, podemos dizer que, nesses contertos, a “arauitetura” & pensada como uma atividade que pressupde conexdes vivas com ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 221 222 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES © cosmo, com a natureza, com a sociedad, com a biografia e com o corpo dos individuos, Para esses povos,aquilo que nés ocidentas chamamos de “arquitetura” nd 6 imaginado como algo que se define excusivamente pela sua forma técnica ou utiltria (um abrigo contra as internpé- vies e contra os animais), nem exclsivamente pla sua forma estética, pelo seu estilo. Tatase de uma forma total, , portant os homens e mulheres que as habitam na verdade esto habitando © cosmo, uma vex que cada casa & construida como uma espécie de microcosmo do univers. Em resumo, a casa é uma representacéo sensivel da ordem universal, como sugerem os estudos classicos de Marcel Mauss (2008) ¢ de Pietre Bourdieu (1972), respectivamente sobte os Inuit, no noroeste americano, e sobre os Kabila no norte da Argéla Diante desses fatos, cabe a pergunta: como preservar essas casas como “patriménio", nos termas em que os representantes da Unesco entendem essa categoria? Afinal, para os Ba~ tammaliba, sua concepcéo de patrimanio incl necessariamente a construgéo, a manutengo a destrucSoritual da casa, Esse processo & equivalente ao nascimento, formagéo ea morte cde um ser humano e, portanto, implica @ gerago e os cuidados com a casa enquanto ser vivo, considerandio-se, nesse processo, também a sua morte ritualmente elaborada, Muitos autores tém recentemente chamado a atengio para a “materiaidade” de obje- tos eespagos, mostrando que estes no funcionam apenas como "suportes”, mas também co- ro meios de producéo de formas de autoconscinca individual e coletiva (Appadurai, 2009; Kiichler, 2002; Miller, 2005; Tilly, Keane, Kichler, Rowlands e Spyer, 2006; Wagner, 2010; Goncalves, Guimardes e Bitar, 2013). Alguns autores tém assinalado 0 “poder de agéncia” dos objetos materais, chamando a atencao para o fato de que estes sao capazes de desenca~ dear efeitos na vida social (Gel, 1998), No contexto da moderidade ocidental, a destruigéo desses objetos e espagos aparece usualmente como algo extern & sua produgao. No entanto, sabemos que objetos materiais, prédios e espagos clasificados como “patriménios" poder, ‘0 mestno tempo, ser alvo de um Intenso e amoroso cuidado de preservacéo e de uma hos- tilidade avassaladora. So numerosos os casos de objetos, prédios e lugares destruidos em fungao do édio religioso e politico. Essa hostilidade & evidente no noticidrio da midia, ¢ sua presenga jéinspirou reflexées sobre o édio declarado e a atitude destrutiva frente a imagens negativamente classficadas etm termos rligiosos. Muitos estudos assinalam a ambivaléncia dessas atitudes iconaclastas, nas quais aqueles mesmos que destroem as imagens séo, antes de mais nada, os que se sentem por elas ameacados, reconhecendo-|hes assim implictamente seu poder, a despeito de negarem violentamente esse fato (Latour, 2002 e 2009; Gamboni, 1997; Nelson e Olin, 2003), Mesto os discursos articulados pela “retérica da perda”, conforme jé tive oportu dade de assinalar conviver com uma "perda” que € assumida como um dado, mas que na ESTUDOS HISTORICOS Rode fener. oo. 28 955» 211-22, emir nb 2015 verdade é uma construgao, onde se postula a existincia de uma ameaca aos bens cuturals, © que leva consequentemente a concentrar os esforgos no trabalho positive da preserva Mas, afnal, para quem a destruigéo de um prédio histérico deve aparecer como uma “per da"? Sem que isto signifique necessariamente a expresséo de um telatvismo extremado, quero acentuar que, menos que um dado natural ou socal, a chamada perda decorte de um determinado “tegime de historcidade” (Hartog, 2003), de um determinado modo de naitar construir 0 passado (Goncalves, 2004), Acrescente-se que o uso dessa categoria se faz presente também num certo modo de conceber as relagdes entre memra,identidades e objets materais. Nesta concep, a per rmanéncia desses abjetos levaria necessariamente & peimanéncia da meméria eda identidade, enquanto sua destruigdo levaria ao esquecimento. Pressupée-se uma necesséria associagéo entre memétia e seus suportes materais, os quais deveriam ser preservados para que aquela se conservasse. Alguns autores tém recentemente problematizado essa relagéo, mostrando que no necessariamente a preservacéo, mas muitas vezes a destruigéo de objetos e espa- 605 materias pode ser o elemento gerador de identidades e memérias. A arte da meméria ‘ransforma-se numa “arte do esquecimento” (Forty e Kichler, 1999; KUchler, 2002; Weinrich, 2001). Num estudo sobre abjetos rituals que, na Melanésia, demarcam o fim de um periado de luto pelos morts, Susanne Kichler mostra que, logo em sequida ao seu uso ritual, esses ‘objetos (malanggan: imagens representando individuos falecdos) so abandonadas para se- rem destruidos pelas intempéries (Kichler, 1999 e 2002). Nenfum cuidado de conservagio thes é reservado, uma vez que a meméria desses mortos néo est situada nels, mas sim nas elaboragées narativas dos indviduos sobre o cerimonial. Apenas uma imagem mental & pre- sewvada. Segundo essa autora: 0 malanggan documentam assim um determinad modo de esquecimento, um mado que & clsencadeado ao se tornarem invsveis as representagBes que operam como velculos de tans- rmisso socal, Uma vez inves e publicamente esquecidos, malanggan forma o recurso ge- ‘adore reprodator de ura economia informacional na qual os direitos de propriedade incidem ‘no sobre os abjetos, mas sobre os seus “tesqucios’ mentas (Kichler, 1999: 68). Diversamente do nosso modo de entender as relages entre memaria e objetos mate: riais, onde estes sdo vstos como garantidores da permanéncia da memoria e suas imagens, os Usuérios melanésios dos malanggan percebem essa relagdo a partir de uma separagéo entre imagem e objeto material (iichler, 2002: 191), Atamente valorizadas no mercado ocidental de “arte primitiva’, abastecendo colecionadores e museus, esses objetos esculpidas em ma deira e com vida efémera vém a assumir fungbes estéticas ede exibigdo museolégica, Mas em ESTUDOS HISTORICOS Rode fn, ok 28.955, p.211-228 emi jun 2015 223 224 J0sE REGINALDO SANTOS GoNALvES seu contesto original, onde, diferentemente dos nossos museus, eles existem precisamente pela auséncia destes, como distinguir, nas relagées que os individuos mantém com tais obje~ tos, 0 trabalho coletivo de esquecimento eo trabalho de meméria? ssa ambivalncia vem sendo explorada em contexts ocidentals através de estudos re-

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