You are on page 1of 16
Aguderas seiscentistas Joio Adolfo Hansen, USP Nas prticas de represeatacio do século XVII, que ainda vio sendo classticadas dedutiva e anacronicamente com a categoria neokentiana "barroco", de Heinrich Wlffiin (Hansen, 2001), prescrevia-se que as metiforas inventadas pela faculdade intelectual do ‘engenho deveriam ses, antes de tudo, agudar, como 0 “belo eficaz” de um feito inesperado de sentido que maravilhava. Acreditava-se catiio que o espirito ea, literalmente, quando & posto em contato dircto com a chateza da verdade mua, fouvando-se as agudezas como dice ¢ acdo préprias de diiaeios, opostos 2 mons. convencionalmente risticos ¢ scm engenho, Robert Klein demonstrou, ao estudar os livros de empresas italianas do século XVI, {que scus autores. teorizavam as imagens por meio da compatucio do intelecto humano com 0 intelecto angélico (Klein, 1998; 117-140). A comparacio € corrente também nas dovtrinas seiscentistas da metifora aguda, que a propdem para saber seo Anjo pode conceber imagens ou se pode comunici-ls a outro do mesmo modo que o homem. Afirma-se nelas, invariavelmente, que os Anjos podem, sem recorrer a nenhum mcio seasivel, produzir & imagem espicitual de seus pensimentos em outro espirito, tomandlo-se, um € outro, ofa pintor, ora pintura. B bizantino para nosso positivismo, mas 6 metafisica escolistica: o Anjo fala nao com os signos dos conceitos, mas com os prdprios conecitos, de maneira que para cle uma mesma coisa sighiticante ¢ signifieada. Como na elegia de Rilke, 0 Anjo & tertivel porque mio conhece a representacio, Segundo os preceptistas do séeulo XVI, é ela que definc a humanidade do homem, que s6 s¢ comunica por meios indiretos e, de preferéncia, agudamente indiretos. Nenkum Anjo é pocta, uma vez que é a sigaifieagio de urna coisa por outra- a metifoza- que fundamenta a poesia e a tepresentagio em gel. Por i860, os retores scisceatistas também afirmam, com Aristételes, que uma inteligéncia superior se caracteriza pela capacidade de estabelecer relagies ripidas e inesperadas entre conceitos. Além disso, sendo catdlicos contra-reformistas, lembram sempre que Deus demonstra, na Biblia, que @ rnarureza humana nio é angélica, quando inventa um Pio voador, uma Escada que sobe 20 Céu, um Livro fechado com Sere Selos e outras imagens, como maneira metafdriea ou alegérica de agir na mente extitica de seus Profetas, pois Eile sabe que € proprio do homem amar 0 que adinira, mas. 36 admirar a verdade vestida, nfo a verdade nua (Tesauro, 16705 17). Logo, o amos das imagens & causa eficiente c instrumental da agudeza. No século XVI, ela tem vatios nomes: concite, anaterea, aculecen spirit vier argicia, concia, conceito engenhnse; concspa, concpto ingnioso; wit, Witz, pointe, B, genericamente, ‘ntinema, sym rdtirca, arato dialitco, onsale dian enigmétio, Basicamente, sev pressuposto Soutrinirio € a afitmacao aristoidlcs, exposte no De anima de que qualquer diseurso € metaférico por natureza, uma vez que 0s noes, conceitos, sio imagens mentais que substituem aisbele, os objetos da pescepeio. Segundo o pressuposto, todo sigao - verbal, plistico, musical, gestual- € uma imagem exterior de imagens mentais; logo, metifora de meréfora Na Podtica, Aristételes diz que sio prdprias do orador e do pocta as. metaforas que tomam 2 fala agudamente eficaz: "Azudas, pois, s30 as expresses do peasamento que permite um aprendizado ripido” (Arist, Port,1410 b). Adistotelicamente, a agudeza € astlia, termo traduzido pelo fatim sarbanitas. Nas préticas das monarquias absolutistas catdlicas dos séculos XVI, XVIT e XVI, (5 usos da metifora adaptam essa acepedo antiga de "urbanidade” 4 centralizacio monarquica que transforma a antiga nobreza de armas, orgulhosa do sangue, da forca guerreira e da ignorincia, em uma nobreza de letras civilizada e erudita, subordinaca mais € mais a0 rei em uma corte. Nesta, a identidade & definida como representacko € pela representacio, deduzindo- se 0 poder da aparéncia © a posigio, da forma da representagio. Como modo de pensar € cnunciar assimetricamente pantlhado, a metifora aguda define a representacio decorosa do "melhor", 0 cortesio, proposta como modcio para todo 0 corpo politico do Estado, Sua douttina é formulada nas prineipais preceptivas retorico-poéticas que circularam, nesse tempo, sas cidades italianas, na Peninsula Ibérica e nas col6nias americanas de Portugel e Espanhe, como I Foati Dell Ingegno Ridoti Ad Arte, Delle acutege, che alrimenti spn, vinerze ¢ conceté sukarmente si appallano (1639), de Matteo Peregrinis Agudize y Ae de Ingenio (1644), El Disco (1646), Ordcndo Manual y Arte de Prudencia (1647), de Baltasse Gracin; Are delio Stil ase ne! cercari Idea! dell» scrivere insgnation (1647), de Sforza Pallvicino; Idsa delle perfte imprese ssaninata secondo gli prindpii ai Arittele (1629), Wl Cannocchicke Anisttelin (1654), do Conde Emanuele Tesauro; Nove Aree de Concatar (1718), de Francisco Leo Ferseire. Recielando Aristoteles em chave neo-escolistca, principalmente 0 Livro TH, da Retires, que teata dos topos ¢ figuras da clocucio, além de autores latinos, como Cicero, Horicio © Quintilian, ¢ gregos levados de Bizincio para a Itilia no sécalo XV, como Longino, Demétrio Falereo, Dionisio de Halicarnasso e, principalmente, Hermogenes, fundamental para 0 estilo sublime da poesia de Gongora e para a prosa de Cervantes, definem suas varias espécies, propondo que a principal delas & a agudera de arifcio ou anifcosa, que busca a “formosura sutil”’ Em AAgadega » Arte de Ingenio, Gracién. dé a seguinte definicio dela: Consiste, pois, este artficio conceituoso em uma primorosa concordincia, em uma harménica correlacio entre dois ou trés cognosciveis extremos, expressa por um ato do entendimento (Graciin, 1960; 239). Conforme Graciin, hi trés espécies de agudezas attificiosas: 1. agudeza de “conceit”, que supde a “sutleza do pensar”, ou, especificamente, o ato do entendimento que deseobre correspondéncias inesperadas entre coisas; 2. agudera de “palavra” ou “verbal”, que cconsiste nas cotrespondéncias inesperadas estabelecidas entee as representagées grificas , sonoras ¢ conceitusis; 3. agudeza de “aco”, relativa a sentidos agudos produzidos por gestos ‘engenhosos, Como exemplo da primeira espécie, pode-se lembrar © que € contado por Baldassare Castighione em Ii Corfegiano (1528). Um fidalgo vé entrar um easal nobre na sala do tcono da tainha Isabel, a Catéliea, ele feissimo, ela belissima, ambos vestidos de damasea. O fidalgo diz a rainha "Lista & a dama, aquele o asco”, decompondo o nome do tecido par quase que simultaneamente sintetizé-lo' em duas metiforas adequadas & citcunstincia. Como exemplo de agudeza verbal, veja-se um exemplo de Gracin: juntou (..) Ovidio, em uma pedra chamada énix em latim, € n0 nosso castelhano cornarina, este mote: Flawna mea, ¢ a enviow assim sobrescrita, quetendo dizet: 0, néx, flomma mea!, que aiada em romance di agudeza: Ob, ns, ebama mivba (Gracién, 1960, TD, Ovidio € agudo porque, decompondo © nome da pedra, onix, como vocativo “O, nix", com que se dirige a amante, Nox, /neve/, ¢ eserevendo, na mesma peda, “lama”, "chama”, termo associado as nogdes de /Fogo/ ¢ fealor/ , em oposigio a nix, termo associado as nogdes de /brancura/ ¢ /ftio/, compde uma harmonis de dissonancias ~ Aquente/{tio/, /negro/brenco/ - adequada a Eros. Como exemplo de agudcza de acio, veja- se 0 do misico de Bolonha que, tendo ido assist 4 aprosentacio de outro, estrangeiro, que passava por um nove Orfex ousin, depois de longa espers, uma voz fraca ¢ desafinada. Inediatamente, pos ume eapa de chuva no ombro e sana da teatro, o que significou para todos fs assistentes "O tempo € de chava porque a r& coaxs", caso em que 4 capa, como uma metéfora, também é um entimera satiieo (Tesauro, 1670, 1), Dizis-se, no século XVII, que as palavras sio gestos sem movimento e que os gestos slo palavras scm rmor: todo 0 corpo é uma pagina eserita com gestos prescritos segundo éneros (Tesauto, 1670; 24), como se pode ver na escuitura religiosa de entio, em que as vitias posigSes do corpo figuram paisdes da cosfrmatin, o momento do contato extitico do corpo do santo com o corpo mistico de Cristo. Em 1641, o oratoriano Sénaule dedieon a Richelieu um tratado, De Fssage des passions, ex que ensina 20 Cardeal uma retdica de gescos gue cfeiuam afetos politicamente adequados 4s mais variadas circunstincias hieniequicas, lembrando o dito de Tibério, citado por Tacito nos Annae Qui nesst fingers, nescit rivers (Sénault, 1987). Como na oratdria,aliis.em que as palavras sio proprias ¢ metaféricas, nawurais © vulgares, comuns © engenhosas. Quintilieno chamou de agidar as mos de Horténsio, E também era menafirico o gesto de exguer subrancelhas, afetadamente severo e orgilhoso, do dudimvito de Capua, que Cicero interpretou aguda ¢ ironicamente como modo de fazer cree {que susteatava a Republica com a sobrancelha, como Adas sustenta 0 céu com os ombros. Conforme Tesauro, agudissimo discurso de gestos metaféricos foi 2 disputa do sébio grego ‘com o romano estipido, que & contada por Acircio, © jusista. Falando um ap outro com estos, equivocevamse; e do equivoco nascia o prazer dos obscevadores: Antes de os Gregos concederem as leis 208 Romanos, mandaram um de. seus sibios jnvestigar se os romanos exam dignos de leis. Bstes, depois de se acoaselharem, enviaram um homem estipido 20 encontro do sibio sgtego(.). O Grego comegou a disputa e exgueu um dedo para significar Deas é nm sh Eo néscio, acreditando que ele quisesse the farar um olho, exueu dois, junto com o polegar, como naturalmente ocorse, para Surat 108 dois olhos do Grego, Acrediton este que o Romano, com os trés dedos, 39 quisesse dizer Dew ¢ Trim, e mostoou a palma da mio aberaa para significar Tadb es nu ¢ aboto frente a Deus. O estulto, pensando que ele ‘qveiia dache um bofetfo, evaztou o panho para reubuir pancada com pancada. O Grogo imaginou que quisesse dizer Dens segura sudo ra mic fimirando a agudeza do engenho romano, julgou que aquela Repabica xa digna de leis (Tesauro, 1670; 25-26}. Segundo Graciin, 2 agudcza que resulta da compatagio de conccitos é a mais pericita, encontrando-se na base da fusntio retorica: cla € “raio” ¢ “luz” gerados pelo Nentendimento” do autor discreto, eujo juizo compara conceitos para decompd:los ialeticamente, no sentido dado 20 termo “dinlética no século XVII, “anatomia” ou “andlise’, «c estabelecer semelhangas ¢ diferencas entre eles. Ela é preferencialmente hermétic ¢ deve set formulada num dtimo, pois si tem efeito se a premeditacto do anificio no é evidente. O juleo € perspicaz e penetra, suill ¢ velozmente, nas mais recdnditas partes dos conccites.. Simultaneamente, a versatiidade do autor sintetiza as semelhangas e as diferengas om una forma nova e inesperada, que espanta e maravitha. A forme é uma metifora e, quando continuada, alegorie, A agudeca retulta de uma operssio dialética, como analise, ¢ de uma ‘operagao ret6rica, como topo ot Figuen, por isso 05 retores seiscentstas costumavatn chami- la de "osnato dialético", Agudamente, Tesauro « compara is csticlas, que necessitam da ceseutidio para serem vistas, afirmando que ela exige a macica noite do conecito para brilhar € ppassar sab 0 arco do triunfo do cio adiirador. Sabe-se, com a Lngifstica ¢ a psicanilise que a metifora é um significante que recalea desloca outro na cadeia do discurso © que a telagio cstabelecida entre eles no € apenas semantica, necessariamente, pois basta a diferenga, que estrutua a linguagem em todas 65 niveis, para haver a substituigio. No séeulo XVI, contudo, penseva-se em semelhancas recinditas da sigaificagio dos conceitos quando se propunha que a tapidez da formulacio metaférica é obtida pela eliminacio do conectivo da comparagio, « pritase da similivade, “como”. Suponta-se'uma comparagio algo inusitada como: “Lisse pepegaio do Brasil é verde como o més de abril da Europa”, em que se compara a ave ¢ 0 més_pot meio do concsito {vesde/, género comum a ambos. A eomparagio implica 3 termos: AC papagaio) - B( verde) ~ (abril: “Esse papagsio € verde como absil”. Sem a protase da similieade, pode-se dizer: “Fase papagaio € abril", ¢, pela equivaléncia, substituir A ¢“papagaio") por Babs’ “Esse abril © esse papayaioy”. Como “abel” condensa "papagaio", pode-se dizer: “Absil “otyanizado"( ¢ mais meréforas dessa metifora, como "ramilhete de plutnas’, "primavera com p&" etc), como acontece em "A um papapaio do Palicio que falava muito", poema da grande antologia portuguesa da poesia aguda, én Revascida (1716-1728) (Hansen, 2002): Isis parlero, Absil onganizado, Ramulhcte de plomas con sentido, Hybla con habla, ieracional sida, Primavera con pics, atin alado (.) “As metiforas agudas relacionam duas coisas semelhantes entre si, ambas fiseas, o1 ‘uma Fisica e outra moral, ambas animadas, ou uma aninnada ¢ outra inanimada etc. Para definir « operar a propria semelhanga pela qual um signo & trocado por outro, os retoresseiscentistas recorTiam is ts especies da analogia escolistica, aniicio, propare € proporionalidade, como relacio simultaneamente Logica, retérica ¢ metaisica dos conceitos. Por airing, tense a semelhanga de dois conceitos que participam em uma cinica forma, chamada "onivoca" (AIB:O} por proper, a semelhanga de dois conceitos que mio tém uma forma cornu, mas «

You might also like