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WEMISPHERE ORIENTAL | CARTOGRAFIA HISPANICA IMAGEN DE UN MUNDO EN CRECIMIENTO 1503-1810 Mariano Cuesta DOMINGO ALFREDO SURROCA CARRASCOSA, Wireccién y coordinacin) CARTOGRAFIA HISPANICA Imagen de un Mundo en Crecimiento 1503-1810 REAL SOCIEDAD GEOGRAFICA REAL LIGA NavAL EspAXOLa GrupO INVESTIGACION COMPLUTENSE «EXPANSION EUROPEA» MINISTERIO DE DEFENSA Madrid 2010 Capfruto X CARTOGRAFIA PORTUGUESA. DOS PRIMORDIOS A REPRESENTACAO DO INDICO FRANcIsco ContenTe DomINGUES' Cartografia, uma disciplina em mutacio A origem da palavra «cartografia» foi creditada por Armando Cortesiio a Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitio e Carvalhosa (1791-1856), 2° visconde de Santarém, que a 8 de Dezembro de 1839 escre- veu a Francisco Adolfo Varnhagen - ent’o em Lisboa - uma carta onde se lia a frase: «Do mesmo modo a questdo concernente 4 cartographia (invento esta palavra jd que ahi se tem inventado tantas) a cartographia mesmo do seculo xvi he muito importante e muito dificil»*. Esta atribuicdo da palavra para designar o estudo de mapas antigos foi aceite por J. B. Harley no primeiro capitulo da obra de referéncia da especialidade', e tem seguido 0 seu curso até aos trabalhos mais recentes‘, mas na verdade ela aparece cerca de dez anos antes, tanto em francés (cartographie, cartographique) como em alemao (Kartograph, kartographisch), e s6 depois de Santarém em outras linguas, como o inglés (1840)°. Seja como for, deve continuar a credi- Departamento ¢ Cento de Histéria da Universidade de Lisboa, Vicepresidente de la Academia Je Marina de Portugal; Presidente dela Interational Committee for the History of Nautical Sciences. Contest: Hitria da Cartografia Portuguesa. yp. 5. > HARLEY: The Map and the Development ofthe History of Cartography p. 12. < Cartaneo: L’Allas del Visconte de Santa in 02" Visconde de Santarém e a Hlstria da Cartografia. Para aim ginas deca este autor por Armano ConTesko, na obra citada cio, v. anda, nesta kia, GaRets, «Mapas Visconde de Samarém, para o contexto da elaborao da obra de Saran, * A polar fo usa por Car iter numa cata eserita a3 de Setembro de 1831, depois publica («mit ander Spite nicht nur der Kartographen Deutschlands, sondern», Annaten der Erd-, Vtker- und Staatenkunde, Band 4 . 509), ¢ numa conferénca profr a 18 de Dezemind do mesma ano, cujo texto fi impesso em 183: arch de piste Sorpial, Genaisket wd unermidete Ausdaner des powssenhafiesten Katographen Hem Grimm, cornu und gezeichnets (Elst, Philofog. Aha, 1852, pp. 101-102). Em franc «expresso ls tava eatographiques» ocore em 1829 (Bulletin ste Soci de Géographie 1. 12,n° BO, 1829p. 306), Ets dds contam de uma mensagem paraa Maps, ia de dicus- ‘lode Hist da Canograti hav. maphist), da aora de Peter van der Krogt, profesor de Histra da Cartografia da Universidade de Unegue, dtu de 3 de Maio ce 2006, Este eminenteespecialista da matéa procravaento ocoréncias da alata anteriores 1840 mas tanto quanto ma dado sabe nao pubicon anda os events resultados dessa pesquis. 27 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES tar-se ao autor portugués a criagfo de uma disciplina cientifica, que assim se tornou em resultado da publicacio do seu influente atlas histérico de 1841, primeira obra do género. Conhecem-se as circunsténcias que levaram o visconde de Santarém a elaborar a sua obra por conta do governo portugués, interessado em coligir elementos que fundamentassem a afirmagio do descobrimento da costa ocidental africana, no quadro do processo de ocupaciio dos tertitérios africa nos que envolveu varios paises europeus, com especial Enfase na segunda metade de Oitocentos, ¢ que haveria de levar 4 conferéncia de Berlim. O titulo do atlas do visconde no escamoteia a sua intengiio: Atlas Composé de Mappemondes et des Cartes Hydrographiques et Historiques Depuis de Xie Jusqu’au xvue Siecle Pour la Plupart Inédits et Tirées de Plusiers Bibliothé- ques de l'Europe Devant Servir de Preuves a L'Ouvrage sur la Priorité de la Décowverte de la Cote Occidentale D’Afrique au dela du Cap Bojador Par les Portugais et a U'Histoire de la Géographie du Moyen Age’. Este caracter funcional da investigactio histérica nfo Ihe retira porém 0 mérito de ter aberto o campo a uma nova forma de a fazer, utilizando 0 mapa como um instrumento mais na urdidura das teias explicativas do passado - e nisso reside 0 mérito, notdvel, do 2° visconde de Santarém. Podia portanto passar-se a usar os mapas de outra forma, Mas 0 que um mapa? A pergunta é simples, ¢ a resposta parece s¢-lo também, desde a definigao dada pelo Dr. Johnson em 1755 («a geographical picture on which lands and seas are delineated according to the longitude and the lati- tude»’), até 4 de um dos mais consagrados autores contemporaneos: «a map is a graphic document in which location, extent and direction can be more precisely defined than the written word; and its construction is a mathema- tical process stricly controlled by measurement and calculation»*. Mas mapas e cartas siio coisas diferentes, e a distingao torna-se importante para quantos os empregam para o estudo das viagens ou exploragdes maritimas subsequentes ao periodo a partir do qual, com 0 aparecimento dos primei- ros portulanos, passaram a reflectir 0 que se poderia de alguma forma chamar uma realidade dual: «a map is a graphic description of the earth’s Publié aux Frais du Gouvernement Portugais, Paris, 1842. Nio € simples o problema da enumeragio ¢ data- ‘Gio dos atlas do visconde: num exemplar da ediedo de 1842-1853 (identificada assim), pertenca da British Library com a cota Maps Ref. A6, Bernard Quaritch, livreiro que 6 vendes 2 insttuiglo, 4 conta numa nota manuserita colada ao livro de que @ edigio original foi preparada para acompanhar a publicagao das Recherches sur la priorité des découvertes., dadzs 2 estampa em Paris em 1842. O atlas & portanto composto por um conjunto de cattas ceditadus separadamente, que foram sendo agrapadas em nimero crescente. Em tltima anise, fica por se saber se as edigdes de 1841, 1842 ¢ 1849 (esta dada como inacabada) nilo so afinal reimpressies, sucessivamente actes- centadas, de uma tinica obra, lo por Haxuty e Woopwan: Prefuce, The History of Cartography, Volume One, p. X¥t. * $eELTON: Decorative Printed Maps af the 15* to the 18° centuries, p-1. 278 CARTOGRAFIA PORTUGUESA. surface based on the land; a chart is a comparable graphic description focussed on shorelines and on water, and involved in some degree with the navigation» Numa visio mais tradicional, 0 mapa (como a carta néutica) foi assumido como uma representaco grifica da realidade geogrifica, dito tudo numa frase simples. Mas 4 medida que se foram abrindo novos horizontes na Histéria da Cartografia a definigdo tomou-se mais complexa, como se ilustra com a que foi usada por Hodgkiss na abertura do seu livro sobre a «compreensdo dos mapas»: «a map is a form of graphic communication designed to convey infor- mation about the environmenb>”. Jé no um simples desenho ou «pintura» da realidade geogréfica, mas uma forma de comunicar graficamente e transmitir informacdo sobre o meio circundante A revolugao, porque de uma verdadeira revolugdo se tratou, ocorreu fundamentalmente depois dos anos 70, ou seja no termo do periodo éureo da Historia da Cartografia em Portugal, cerca de um decénio depois da publicagao de uma obra tida ainda hoje como magistral ¢ irrepetivel (os Portugaliae Monumenta Cartographica"), embora caracteristica dessa forma classica de entender a disciplina, e enquanto Armando Cortesio publicava 0 grande livro de sintese da sua carreira como um dos mais ilus- tres ¢ reconhecidos historiadores da cartogratia do seu tempo, que todavia deixou incompleto”. O marco milenar na consagracdo desta transformagio na forma de ver os mapas deu-se com a publicagiio do 1° volume da The History of Cartography, uma obra projectada por John Brian Harley e por ele editada em conjunto com David Woodward, preparada na Universidade de Wisconsin, e cujo Prefécio ¢ primeiro capitulo tragam claramente estes novos rumos da disciplina. Esta transformagdo teve profundamente a ver com a adesio entusidstica entusiasticamente assumida de J. B. Harley a pds-modernidade, corporizada nos tiltimos artigos que escreveu, com titulos como «Deconstructing the map» ou ". Palavras como «desconstrugio» e «representagdo» passam a ter um lugar central no Iéxico especifico da disciplina’’. As vezes s6 no léxico, pois nao se pode deixar de reconhecer que por vezes a modemnidade das palavras - talvez demasiadas vezes - significa ou uma aderéncia nao consistente a novas pers- pectivas tedricas e metodoldégicas, ou um simples invélucro de trabalhos conyencionais. Mas se esta visto pés-moderna introduziu na disciplina um discurso excessivamente radical, onde a realidade fisica e a sua expresso deixam de ter significado por si s6 e enquanto tal - ¢ ha uma cartografia que tem necessidade assumida de reflectir a geografia fisica tal qual ela & a * Hiaeusy: Maps and the invention of America, p.8. * owaaos: Writing, Geometry and, p. 2. 0 essencial das ideas do autor a est respeitoencontra-se também em «Study, Marketplace and Labyrinth: Geometry as Rhetoric» * HL uma vastissima literatura sobre o assunto produzida nos itimos vinte anos. A titulo de exemplo,cite-se Denis Wood, The Power of Maps, New York 1992. 0 livto foi publicado & meméria de Brian Hatley. ® oakieton: From menial matric fo mappamunal to Christan Empire, pp. 10-50. ® Huccan: Decofonizing the Map: Post-Colenialism, Post-Siructuralism and the Cartographic, 115-131 » Bhire muitos outros exemplos que se poderiam dar, digamos que o atom actual da dseiplina se espelha num ensaio bibliogrifico de um dos maior especialistas da actualdade (sem ser ele prdprio um exemplo extremado de um historiador ps-modema}, como Evelyn Edson, cajo «Bibliographic Essay: History af Cartography» & tavez 0 mais autorizado balango bibliogréfico disponivel. e por decorréncia o melhor espelho do que se faz (iup:tinyurleom/Baqavea. 2008-02-20). Ou no syllabus de um curso universcto sobre Globalzagso e Represent io (tp tinyurk. com 2va6ax. 2008-02-20), ministrado por Charles Burroughs na Universidade de Birmingham, 280 CARTOGRAFIA PORTUGUESA _ cartografia ndutica, diferentemente da politica ou religiosa -, ndio é menos verdade que obrigou a um esforco de reflexdo tedrica que tem sido funda- mental no delinear dos seus passos recentes” Como se passou entio a definir um mapa? John Andrews compilou nada menos de 321 definig6es, desde 0 século xvii até aos nossos dias”, mas a que provocaré menos reservas - serd talvez excessivo dizer a mais consen- sual - & a que ficou comsagrada por Harley e Woodward: «Maps are graphic representations that facilitate a spatial understanding of things, concepts, conditions, processes or events in the human world». Uma definigo que nao pée em causa as miiltiplas leituras dos mapas e das cartas, mas a custa de uma certa ambiguidade que nao destaca suficientemente, a meu ver, 0 cardcter especifico da cartografia. «Mapa» toma-se aqui como uma expressio grdfica da geografia fisica, que reflecte a realidade cultural de onde emana, a qual por sua vez condi- ciona a percepgao do real que pretende retratar. O universo cultural em causa é obviamente o da cultura ocidental. A Portugaliae Monumenta Cartographica (PMC) Posto isto, interessa agora tentar entender em que medida é que os novos desafios da disciplina chegaram a pratica da disciplina em Portugal. Ou seja, que cartogratia se faz hoje, e como. As linhas que se seguem nao pretendem ser mais que uma breve andlise panoramica do que se passou num campo de estudos cujos resultados nao poderiam naturalmente ser resumidos de forma tao breve. As Sandars Lectures foram instituidas na Universidade de Cambridge desde 1895, e tém continuado até hoje (apenas interrompidas durante os anos dos grandes conflitos mundiais), sempre dedicadas 4 Histéria do Livro e da Leitura®, Com uma notavel excepedo: em 2007, a historiadora britinica da Cartografia Sarah Tyacke, proferiu as suas trés Lectures dedicadas ao tema geral Conversations with maps, 0 que representou a primeira ¢ tinica até agora excep¢ao ao tema central destes ciclos de conferéncias. ® Alguns atigos de autores de referéneiasados no volume de 1996 da revista mais importante da especial- dade: Matthew H1_Edney, «Theory and the History of Cartography>, maga Mundi, Vol. 48, 1996, pp. 185-191. Christian Jacob, «Toward a Cultural History of Cartography». Lmago Mandi, Vo. 48, 1996, pp. 191-198. Caterine Delano Sinith, «Why Theory in the History of Cartography», Imago Mundi, Vol. 48, 1996, pp. 198-203. . Jacob, que nose identifica como historiador da cartografia, é 0 autor de um dos livros com mais impacto pars ‘teorizacio desta nova visio: L'empire des cartes. Approche théorique de la cartographie a travers l'histoire, Pacis, Albin Michel, 1992. "" ANoREWS: Definitions ofthe word ‘map’ hitp:tinyurl.com’3u2x Haatzy e Woopwaro: Preface, The History of Cartography. Volume One, p. XV * itp /www lib.cam.ac.uk/sandarireaders_ subjects html 281 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES Na primeira das suas Lectures, com o titulo «Then and now» — recent views of mapping in the early modern period», Sarah Tyacke langou as bases teéricas das duas intervenges seguintes, discutindo as tendéncias da cartografia enquanto disciplina cientifica no tiltimo século. Entre os proble- mas abordados chamou a atengdo para a questio do nacionalismo como factor limitativo da correcta abordagem cientifica do objecto histérico, refe- tindo-se 4 obra prima da Histéria da Cartografia Portuguesa nestes termos: «An example of the nationalistic streak is given in the origi- nal introduction to Portugaliae Monumenta Cartographica (1960, English transl. p. xxxv) where Cortesdo and da Mota described the publication, ‘as a dream come true. We have both worked on [sic] the field, in geodetic and topographical surveying, and have studied the history of cartography for many years ...’ They go on to explain that the proposal for such a publication was luckily integrated in the programme of the commemoration of the fifth centenary of the death of the infante D. Henrique - known to English speakers as Prince Henry the Navigator. Corteséo sought the co-operation of da Mota who was then involved in topographic and hydrographic surveying in Portuguese Guinea. The executive commission of the centenary celebrations gave them all the resources they could wish for and, as they said, ‘we simply record the hisiory of one of the greatest, if not the greatest of all ventures in the written history of carto- and further that it was their duty to express, ‘ in the first place our gratitude to professor Dr Antonio de Olivar Sala- zar, prime minister of Portugal whose foresight appreciated from the very first moment the national and international importance of this publication in the cultural field and gave it the full and generous support without which it could not have been possible.” They go on to thank the ministers for overseas and foreign affairs. The importance to the Portuguese nation of their carto- graphy of the sea and what they discovered remains today, and one can understand why.»™ Como se sabe, a obra teve uma segunda edigdo em 1987, embora em formato reduzido e com os mapas reproduzidos a sépia, quando na edicao original, de maior formato, muitos deles apareciam a cores. A edigao de * Tacks: Conversations with maps, p.7. 282 CARTOGRAFIA PORTUGUESA 1960 colocava alguns problemas para o historiador interessado em trabalhar Tyacke referiu-se também a esta edigao, nos seguintes termos: «Did this attitude change at all during the late-twentieth century? In 1987 a reduced reissue was published with added material by Alfredo Pinheiro Marques. In the preface the claim that the volumes represent one of the greatest carto- graphic achievements to be recorded is reiterated, but instead of the glories of Portuguese exploration at the time of Prince Henry the Navigator, Marques has shifted the argument to the history of cartography itself. ‘We should not forget that it was a Portuguese who initiated the study of ancient cartography in the xIx century, who published the first atlases containing reproductions of old charts and who invented the term carto- graphy [‘cartographia’] subsequently adopted for modern usage: he was the Viscount Santarem, exiled in Paris, whose publications were pioneering in the history of cartography and of the Portuguese discoveries’. Amongst his most famous works was the Facsimile Atlas of 1849, which was composed of world maps and charts from the sixteenth and seventeenth centuries. If T have dwelt at length on this Portuguese example, it is because it demonstrates a number of aspects of the history of cartography in the mid- twentieth to late twentieth century (and this is not just a Portuguese phenomenon) which survive today: the alignment of the history of cartography with some ‘form of perceived national greatness andlor power, nowadays ‘more normally expressed, as in the later edition of PMC in cultural terms. directamente os espécimens cartograficos, dada a apesar de tudo obrigatéria redugao de escala, nao obstante a dimensio invulgar da obra, mas a de 1987 tornou-se imtitil sob este ponto de vista, tanto por causa da reducao excessiva como devido a perda da cor. Nao obstante vale pela disponibilizagao dos valiosos textos de Cortesio e Teixeira da Mota, e pela adenda de actualiza- cio de Alfredo Pinheiro Marques, com a revelagio de novos especimens. Valha a verdade que a autora fez questo de dizer logo de seguida que © Tyacke: Conversations with maps, p.17. esta perspectiva «nacionalista» ndo era exclusiva dos Portugueses, citando 0 283 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES facto de o Ministério da Cultura francés ter subsidiado a traducao para Inglés do livro de Christian Jacon, L'empire des cartes, inicialmente publicado em 1992, e um dos tour-de-force da Hist6ria da Cartografia enquanto expressiio do pés-modernismo cultural. E, certamente, no foi por acaso a segunda metade do século xx buscar exemplos anddinos, mas antes duas obras que, ida uma a sua maneira, marcaram visivelmente o seu tempo historiografico. O auditor da Sandars Lecture de 5 Margo nao deixou de notar que a mengio do nome de Anténio de Oliveira Salazar provocou um riso contido mas audivel na assistncia. Compreende-se: o elogio a um Primeiro Minis- tro no prefécio de uma obra parecia absolutamente deslocado, para mais tratando-se de uma figura que j4 em 1960 representava algum anacronismo do devir do percurso politico europeu. A mengiio em causa e a reacgdo que suscitou, totalmente compreensivel, € todavia ilustrativa de uma atitude normal no historiador contemporaneo. Normal mas nem por isso menos errénea. Refiro-me ao facto de considerar que historiador é por norma pouco sensivel & historicidade da sua propria pessoa, dos seus pares, e do seu objecto presente de estudo. Quero com isto dizer que qualquer profissional do oficio esté bem ciente de que um anélise dos autores do passado requer em absoluto a percepgdo do seu tempo histérico, dos valores culturais e mentais da época, das circunsténcias que rodearam a produgao de um determinado documento: seja ele um texto escrito, um monumento em pedra, ou um mapa. De outra forma cai irremediavelmente no anacronismo, 0 «pecado mortal» do histo- riador como Ihe chamou Lucien Febvre, e retroprojecta conceitos ¢ valores que nada tém a ver com as condigées concretas de um tempo histérico que ndo o seu, desvirtuando radicalmente a sua percepgiio do passado. O que é muito menos evidente, e é a isso que me refiro aqui, é que o mesmo tipo de princfpio se tem de aplicar por igual a qualquer historiador nosso contemporaneo. O que quero dizer é que Gomes Eanes de Zurara ou frei Bartolomeu de las Casas so «homens do seu tempo»: frase usualmente empregue mas que valha a verdade se diga € totalmente vazia de significado, porquanto nada explica, antes pelo contrario requer ser explicada. Mas Sarah Tyacke, Armando Cortesio ou Avelino Teixeira da Mota s4o-no na mesma e exacta medida, nessa medida em que é necessério compreender 0 ambiente politico e cultural em que se educaram e produziram os seus trabalhos para 0s compreender em toda a plenitude do seu alcance e limitagdes. Para um auditério composto quase exclusivamente por britanicos, em 2007, num pais com uma longa ¢ estabelecida tradig&o de governo democré- tico e com uma muito clara distingao das esferas do publico e do privado, a 284 __ CARTOGRAFIA PORTUGUESA referéncia de Cortesio ¢ Mota aos governantes do seu tempo nao podia parecer sendo profundamente deslocada e devedora de uma dependéncia do segundo em relagdo ao primeiro quase, sendo de todo incompreensivel para aquele piblico. Ficando claro assim, por outro lado, que a critica feitas aos dois autores portugueses esqueceu por completo a consideragdo das condi- Ges em que a obra foi produzida. ‘A Portugaliae Monumenta Cartographica foi uma obra de regime: sabe-se hoje que Salazar acompanhou a par e passo a sua elaboragao, inte- ressando-se pelo decurso dos trabalhos*, Mas, cumpre dizé-lo, nao foi uma obra feita para o regime. Correspondeu na verdade a um projecto delineado por Armando Cortes%o na década de 1950, quando era j4 uma das figuras de topo no mundo académico internacional da Histéria da Cartografia, O projecto encontrou respaldo financeiro por ocasiao das Comemoragées do V Centendrio da morte do Infante D. Henrique, que o regime promoveu com toda a projeccao de que foi capaz, por um motivo evidente: a figura do Infante revelava-se intrumental na afirmagdo da prioridade portuguesa nos descobrimentos maritimos do século Xv, assim legitimadora de um direito hist6rico perante uma comunidade internacional que olhava cada yez mais renitentemente a sobrevivéncia do império colonial portugués em Africa. 0 projecto de reunir toda a cartografia portuguesa dos séculos XV e XVI era assim um veiculo de afirmagao dessa prioridade portuguesa nas navegagdes mas também no registo dos novos mundos ~ e, implicitamente, legitimador da continuagao da sua permanéncia. Um projecto financeiramente muito dispendioso: implicou anos de visitas a arquivos e bibliotecas europeias em busca de conhecidos e desconhecidos espécimes cartograficos portugueses, a obtengio de reprodugdes com a melhor qualidade que os recursos técnicos do tempo permitiam, por fim a producdo de uma obra com volumes de muito grande formato e com centenas de estampas de grande dimensio a cores. Um projecto financeiramente inexe- quivel, de todo em todo, sem o apoio do patrocinio estatal. Mas, repita-se, representando ¢ constituindo em si mesmo 0 exacto ponto de confluéncia de um percurso cientifico e do interesse politico. $6 assim se tornou possivel. E precisamente esta dimensao confluente ¢ a andlise das circunstancias concretas que levaram a elaboracao da obra que escaparam 2 critica do «nacionalismo» embebido nas palavras introdutérias com que a obra foi apresentada. Por evidente falta de consideragao da historicidade do préprio processo do trabalho cientifico em Histéria. * © assunto foi estudado por Carlos Valentim, a propésito da colaboracso de Teixeira da Mota nesta obra: 0 trabalho de una vida, Biobibliografa dle Avelino Teixeira da Mota (1920-1982), 285 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES O qne no deixa de ser curioso € que esta visio do mapa como um instrumento de e do poder politico tem sido uma das vertentes mais acentua- das dessa renovagao da Histéria da Cartografia a que me referi atras. Na bibliografia recente o «poder dos mapas» € um t6pico recorrente”: poder enquanto forma de expressio do mundo fisico com objectives de natureza muito diversa que transcendem em absoluto a visdo tradicional do mapa como «fotografia» de um real imutavel e independente dos olhos do obser- vador. A contribuigao de John Brian Harley para esta nova visio das coisas foi absolutamente vital; sem cair no extremo de considerar que a realidade fisica € uma construgao sdcio-cultural que depende do observador, como pretendem os pés-modernistas mais radicais, mesmo um historiador nao alinhado por esta parametrizagdo compreende (até intuitivamente) que 0 mapa representa acima de tudo e em primeiro lugar uma viséio particular das coisas, assumida ou nao, espelha directamente o universo cultural de onde emana, mas também os interesses politicos subjacentes que nalguns casos esto apenas implicitos: como por exemplo quando a cartografia chinesa representa © mundo conhecido colocando o Império do Meio no centro geografico do mapa, ou quando cartégrafos arabes e europeus medievais centram 0 seu mundo no Mediterraneo. Dir-se-4 que por desconhecimentos de outros mundos; sem divida, mas por isso mesmo uma organizagéo do espago conhecido de acordo com uma mundivisiio que se preenche em fungao da sua propria centralidade. Ou ainda quando o mapa de Juan de la Cosa pretende representar as novas descobertas de Colombo, como muitos historiadores da cartografia aceitam, ou quando os mapas portugueses dos séculos Xvi e xvitl desvirtuam deliberadamente 0 curso dos rios na América do Sul, para incorporar no espaco de Tordesilhas territérios que de facto pertenciam a Espanha®. Tudo so exemplos de um cardcter instrumental da cartografia para 0 poder, ou os poderes, se se quiser, de que os especialistas da matéria tém dado ampla conta nos tltimos decénios. Ontem como hoje: foi afinal George Adams, 0 cosmégrafo de George II] de Inglaterra, que proclamou em 1766 que a cartografia era a «ciéncia dos principes». Nesse sentido, portanto, se tm de perceber os objectivos e o significado da obra maior da Historia da Cartografia Portuguesa. Uma obra que tepre- senta 0 zénite da disciplina tanto como ela se fez em Portugal, como em grande medida no plano internacional. Sem desvalorizar 0 importantissimo contributo de Avelino Teixeira da Mota para a PMC, tanto ou mais que 0 do - Woon: The Power of Maps. * Gurneearo: Os Tratads de Deimitagao do Brasil ea Cartografa da Epoca. 286 CARTOGRAFIA PORTUGUESA proprio Armando Cortesao, importa reconhecer que é a este ultimo que se devem os livros que estribaram a projecgdo da cartografia portuguesa no plano internacional: primeiro com a sua recolha exaustiva da vida e obra dos cartégrafos portugueses publicada em 1935®, que em boa medida permitiu que mais tarde fosse possivel fazer a PMC, como pela sua monumental Historia da Cartografia Portuguesa publicada em 1969, que correu mundo na versao inglesa, incompleta embora (0 autor faleceu antes de poder concluir 0 3° ¢ iltimo volume). Ainda muito recentemente um dos grandes especialistas nossos contemporaneos, Vladimiro Valerio, se lhe referiu nestes termos: «Unfortunately I have not with me in Venice the volumes of History of Portuguese Cartography by Armando Cortesao (...) | remember that in the first one Cortesao spoke diffusely about contemporaries scholars (biographies, | mean) and activities in the history of cartography all around the world, (...) Furthermore, in spite of the narrow title (portuguese carto- graphy) those volumes are a mine of information on other countries and their cartographical output etc. That work was very much appreciated by our missing friend David Woodward.»" Cortesiio elevou ao seu méximo expoente (¢ foi reconhecido como tal) uma Histéria da Cartografia que baseou no estudo extenso na biografia e cartobibliografia dos cartégrafos portugueses, na anilise do detalhe técnico das suas obras, na apreciagao das particularidades conducentes a datagaio dos mapas, mas partindo dos pressupostos que em grande medida estiveram na base dos estudos feitos pelos especialistas da sua gera¢ao: 0 primeiro, 0 de que os mapas tinham por objectivo primeiro espelhar a realidade fisica tal como era conhecida pelo cartégrafo; em segundo lugar, que quanto mi extensa e correctamente mostravam essa realidade fisica, melhores eram enquanto espécimes cartogrdficos, e tendencialmente mais modernos. Subjaz a estes pressupostos a consideragao de que a cartografia é uma arte ou ciéncia que vai evoluindo das formas mais primitivas para representagdes cada vez mais apuradas da realidade, até chegar a representé-la «perfeita- mente». Uma perspectiva que hoje nao é evidentemente sustentavel. Se os novos caminhos da Histéria da Cartografia Ihe acrescentaram dimensées até entdo desconhecidas, importa por fim reconhecer que 0 irromper da pés-modernidade nos seus discursos mais extremados teve custos que importa contabilizar. A recorréncia a conceitos como «descontru- gio» ou «representacdo» foi fundamental neste processo; significou porém um deslocamento do centro de atengao sobre 0 mapa que nao se fez sem ser ® CoxTEsKo: Cartografa e cartégrafos portugueses dos séculos XV ¢ XVI ® Mensagem enviada para MapHlist, grupo de discussdo de Historia da Cartografia, em 2010-1-27 (httpasvww maphist.n) 287 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES A custa de uma relativa desvalorizacéo das componente mais técnica do seu estudo. Quer dizer, muitos historiadores da cartografia podem produzir extensos estudos sobre 0 que representa um mapa, mas terao dificuldades em identificar qual 0 tipo de projecgdo que o seu autor usou, e em que medida aquilo que 0 mapa representa néo é muito mais resultado das contingéncias detivadas das solugGes técnicas adoptadas que da mundivi- so, assumida ou implicita, ou da mensagem que o cartégrafo quer fazer passar, Uma outra dificuldade acrescida reside no facto de esta vertente mais técnica exigir abordagens multidisciplinares. O problema do Vinland Map discute-se hoje sobretudo em torno das anélises quimicas da tinta usada, mais capazes de permitir chegar a um veredicto sobre a sua autenticidade que as andlises histéricas. Outro exemplo é 0 célebre mapa de Waldseemiil- ler de 1507 onde aparece pela primeira vez a palavra «America». Nao hd muito discutia-se 0 que € que tinha acontecido ao milhar de cépias que teria sido produzido, a partir da indicactio de uma legenda do planisfério do mesmo autor de 1516; hoje discute-se se nao se trata de um erro de interpre- tagdo da legenda, porquanto nao parece possivel que tenham sido produzi- dos 1000 exemplares a partir dos mesmos blocos que madeira que serviram para a impressao. Acartografia portuguesa e as primeiras representacdes do Oriente A Historia da Cartografia conheceu um renovado interesse em Portugal nos tiltimos dois decénios, registando-se em boa parte dos que a cultivam a percepeio dos novos desafios epistemolégicos a que nos temos vindo a referir. Este texto ndo é uma catélogo bibliografico e qualquer pretensao nesse sentido seria inadequada, mas seria também desajustado nao deixar aos seus leitores a indicag’o dos nomes de alguns dos seus cultores: Alfredo Pinheiro Marques, André Ferrand de Almeida, Francisco Roque de Oliveira, Jodo Carlos Gracia, Joaquim Alves Gaspar, Jorge Semedo de Matos e Maria Helena Dias pontificam numa geragao mais recente mas jé consagrada, Inacio Guerreiro, Maria Fernanda Alegria, Suzanne Daveau, com curricula mais extensos, asseguraram a transigio geracional entre os tempos de Cortesao ¢ Teixeira da Mota e a actualidade. Isto sem esquecer contributos fundamentais devidos a historiadores estrangeiros com obras notaveis: em primeiro lugar e sobre todos Max Justo Guedes e W.G.L. Randles, Francesc Relafio na geracdo seguinte 288 «Arabia fet (1519) en mapa de Reinel (PMC). India e isla de Ceildn (1519) en la cata de Reine! (PMC) Océano fndico (1573) en el mapa de Domingos Texeira (PMC). pa ‘Oceano Indico en Alas Universal; LSzaro Luis, 1563 (Academia das Ciencias de Lisboa). CARTOGRAPIA PORTUGUESA Por outro lado, cumpre assinalar que o ensino da Histéria da Cartografia ea realizacdo de teses académicas est4 num plano bem inferior ao que seria de desejar. Como é sabido, o antigo Map Librarian da British Library e um dos mais reputados especialistas a nivel mundial, Tony Campbell, mantém desde hé anos uma pagina na Intemet que se tornou um guia indispensdvel de todos os estudiosos da matéria: Map History / History of Cartography: THE Gateway to the Subject''. Na listagem de cursos de Historia da Carto- grafia disponiveis nas Universidades de todo 0 Mundo, Portugal tem apenas trés referéncias: 0 curso de Histéria da Cartografia de Maria Helena Dias no Instituto de Gestio e Ordenamento do Territ6rio da Universidade de Lisboa, 0 de Nautica e Cartografia, de Francisco Contente Domingues, na Faculdade de Letras da mesma Universidade™, e os de Joao Carlos Garcia no Departa- mento de Geografia da Universidade do Porto”. Todavia regista-se com facilidade uma mudanga significativa nos seus cultores: a cartografia histérica, depois de ser um campo de trabalho por exceléncia dos historiadores, é hoje essencialmente um dom{nio de estudo dos gedgrafos, sobretudo, pelo menos no que diz respeito precisamente 2 actualizactio metodolégica e epistemolégica. Disso é um excelente exemplo © capitulo «Portuguese Cartography in the Renaissance» publicado no longamente aguardado 3° volume da The History of Cartography de Harley- Woodward, da responsabilidade de trés gedgrafos e um historiador de formagdo académica®. E para este trabalho que se tem de remeter em primeiro lugar o leitor que pretenda saber 0 que se faz em Portugal, e como, no dominio da Hist6- nia da Cartografia. Um dos seus aspectos mais notéveis é justamente 0 de chamar a atengiio para os infcios da cartografia portuguesa, geralmente confundida com 0 inicio da cartografia ndutica. Na verdade hé cartografia em Portugal desde a Idade Média®, mas € de facto duvidoso que resulte de uma «escola» cartografica ou da actividade de cartégrafos portugueses, porque na realidade € com os primérdios da cartografia ndutica que se encontram os primeiros dados estabelecidos relativos ao exercicio da arte em Portugal. Restam apenas trés cartas ndutica datadas do século Xv, e uma delas dubidativamente*, mas alguns fragmentos encontrados mais recente- * hitp:tAvwov maphistory infa/ © No Master de Histéria Maritima organizado pela Universidade de Lisboa em conjunto com Escola Naval € também levcionado um curso de Histéria da Nautica ¢ da Cartografia pelos Ctes. Jorge Semedo de Matos & Anténio Costa Canas, » hups/wwo-maphistory infovcourses html * Ausoris, Daveau, Garcia ¢ Relaio: Portuguese Cartography ir the Renaissance: * ALporis, Dayeau, Garcia e Relait: Portuguese Cartography it the Renaissance. » Amara: Pedro Reine! me Fez. A volta de wn mapa das Descobrimentos. 289 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES mente evidenciam que a cartografia portuguesa dos finais do século xv € inicios do Xv! tinha jé atingido um grau de maturidade aprecidvel”. O escasso ntimero de cartas portugueses remanescentes do século XV nao encerra qualquer mistério: eram cartas produzidas para 0 exercicio da pilota- gem no Atlantico, rapidamente desactualizadas pelos progressos das navega- Ges, € que os pilotos procuravam logo substituir por outras mais recentes. A assinalar € também 0 nosso quase radical desconhecimento dos cartégrafos em actividade: a primeira carta conhecida é anénima, a primeira datada e assi- nada, estudada por Inécio Guerreiro, ¢ da autoria de Jorge de Aguiar, de quem nada se sabe, ¢ s6 de Pedro Reinel existem mais noticias quanto & biografia e ao trabalho que desenvolveu tanto em Portugal como em Espanha, onde laborou 0 seu filho Jorge Reinel. Pelo contrério, no século xvi a producio cartogrifica portuguesa explo- diu, registando-se um nuimero de cartégrafos em actividade e de cartas produzidas que ultrapassou largamente 0 que qualquer outra regido euro- peia: Avelino Teixeira da Mota contabilizou 50 cartégrafos de cartas de marear (dos quais 19 cuja obra no se conhece), 39 atlas e 82 cartas soltas atestando a enorme importancia dos trabalhos nduticos dos portugueses: «Tal mimero, no século xvi, ndo tem equivaléncia em qualquer outro pais maritimo europeu»®. Mais importante do que o ntimero € todavia o facto de esta produgdo representar essencialmente os oceanos Atlantico e Indico, enquanto os tradicionais centros produtores de cartografia europeia centra- yam-se sobretudo no Mediterraneo, Europa e Norte de Africa: portanto nas zonas que lhes eram familiares e acessiveis, mas nao constitufam novidade do ponto de vista da representagao cartografica. Compreende-se facilmente a razo de ser desta actividade quase febril, dir-se-ia. As viagens portuguesas revelavam continuamente a existéncia de novas terras, novos povos, novas culturas, e a Europa mostrou-se dvida destas informagdes. Embora no conhegamos quase nada da producio carto- grafica quatrocentista, como disse acima, por isso mesmo que é possivel presumir que no essencial seria composta por cartas néuticas: no século XVI € pelo contrario a cartografia sumptudria que predomina, e por isso temanes- ce em grande parte fora de Portugal. Os ricos mapas profusamente decora- dos eram bens pattimoniais que as grandes casas senhoriais queriam acres- centar aos seus espélios, procurados por interesse ou pela curiosidade de conhecer esses novos mundos. A difuséio da cartografia é essencialmente 0 resultado da procura de um mercado vido de novidades, que queria aliar ALEGRIA etal: ap. cit, p. 986. Gussstmo: A Carta Nautica de Jorge de Aguiar. » Mota: Carografiae Cartégrajos,p. 502. 290 CARTOGRAFIA PORTUGUESA novos conhecimentos geogrificos e antropoldgicos ao luxo da sua represen- tagao. Os cartégrafos portugueses, que exerciam a sua actividade no exacto ponto onde chegavam as noticias das viagens, estavam em melhor condicao de ninguém para fornecer o vefculo ideal de transmissio do que ia aconte- cendo: a carta geografica. Enquanto © espago atlantico era conhecido, e sobretudo o Atlantico proximo, o indico e 0 Oriente em geral foram a grande novidade desta nova cartografia, que revelava pela primeira vez. a0 piblico culto da Europa mundos que eram até ento conhecidos muito difusamente. E esse publico acreditava que a informag&io que lhe chegava por esta via reproduzia de facto realidades cujo acesso directo lhes estava reservado. A uma civilizacao onde 0 ouvir e a visualizacio preponderam por norma na respresentacio do real, a ideia de que as cartas portuguesas reflectiam esse mundo novo tal qual tinha sido observado pelos navegadores, constitufa um apelo & aquisi- cdo e uma certificagio de valia. Os cart6grafos organizaram-se em oficinas onde os mestres elaboravam os espécimens com a ajuda dos seus aprendizes, embora nao se saiba se por encomenda, sobretudo, ou para colocagio directa no mercado, O valor de producto devia ser suficientemente alto para desencorajar altos indices de produc&o sem destinatarios garantidos a partida, nao sé pela quantidade de horas de trabalho que representava 0 fabrico de uma carta de luxo, como pelos dispendiosos materiais que nela eram utilizados. conhecemos em detalhe o modo de funcionamento destas oficinas, mas sabemos de existén- cia de contratos em outros pafses em que o cliente (0 cliente final ou um intermeditirio) determinava e pagava concordantemente 0 ntimero e tipo de elementos decorativos que pretendia: flamulas, navios, rosas de yentos ou motivos alegéricos. Nesta actividade familias houve que se transformaram em dinastias cujo labor esté registado por geragdes: os Reinel, os Homem, os Teixeira”, Seguramente outras oficinas mais existiram, de vida mais efémera, de que ndo nos chegou noticia segura. O Oriente foi naturalmente um campo privilegiado de expressio da capacidade artistica dos cartégrafos. Particularmente o Indico e a peninsula hindustinica, logo depois da viagem de Vasco da Gama. Pela novidade que tepresentava, claro, mas por um outro motivo evidente: se os cartégrafos do século Xvi conheciam pouco mais que as linhas costeiras dos continen- tes, cujo interior preenchiam com motivos decorativos de toda a natureza, isso foi ainda mais evidente na cartografia do Indico, onde esse desconheci- mento, aliado ao exotismo que a cultura ocidental projectava nas longin- “* ALEGRuA etal: Portuguese Cartography in the Renaissance, pp. 981-990. 291 FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES quas paragens orientais, motivo uma riquissima iconografia que serviu perfeitamente os propésitos dos cartégrafos que com ela preenchiam a imaginagao dos seus conterrdneos: disto mesmo é exemplo perfeito o «atlas Miller», recentemente objecto de uma edigdo quase facsimile que permite apreciar devidamente a luxuriante iconografia do que é por exceléncia um exemplo da cartografia sumptudria do século xvi". O Indico ocupou um lugar de relevo na cartografia portuguesa até 1660, como se comprova pelo néimero de cartas que Ihe foram dedicadas. No estudo publicado na The History of Cartography que temos vindo a seguir, os autores procederam a uma andlise quantitativa das informacées contidas na PMC, que permite perceber que num total de 1235 cartas, o Indico, como 385 (31.3%), sobreleva a importancia dos espagos atlantico e mediterranico, com 326 (264%), bem como do Brasil, com 315 (25.5%)”: uma diferenca significativa. Seria esta a cartografia padrao do Oriente durante grande parte do século Xvi, vindo a ser ultrapassada quando a cartografia impressa veio destronar os belos mas caros mapas ornamentados que até entao tinham reflectido a cores € com o exotismo da imaginagio dos seus autores a imagem que os homens cultos do tempo tinham do mundo. “Atlas Miller. Barcelona 2006. ALaGRIs er al :Pornuguese Cartography in the Renaissance, p. 1063, 292 Pervivencia y cambio, tradicién y progreso se simultanean y se su- ceden en la cartografia hispénica entre 1503, en que se fund6 la Casa de la Contratacién, y 1810, cuando la independencia del mundo his- panico es asunto ineludible. Los uiltimos mapas de la etapa prece- dente, el de Juan de la Cosa (1500) y el conocido como de «Cantino» (1502), apuntan con decisién a un Nuevo Mundo. Desde aquel tiempo y durante los tres siglos siguientes se verd en la cartografia el progreso desde el estilo portulano con rasgos ptolemaicos, los progresos rapi- dos de fa cartografia hidrogréfica, los més pausados de la continental, as aportaciones de hombres de frontera y los resultantes de los avan- ces de las ciencias y los progresos de las técnicas. Entre los primeros, esta imagen de la peninsula ibérica (c. 1559) de Homem (Museo Naval de Madrid). i NR DebeteNsA

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