You are on page 1of 159
Aristételes POETICA Tracugao, Prefacio, introcugao, Comentario e Apénaices de EUDORO DE SOUSA te ast Olsen ONO LaDy Estudos Gerais Série Universitaria + Cidssicos de Filosofia Aristoteles POETICA Tradu¢ao, Prefacio, Introdu¢do, Comentario e Apéndices de EUDORO DE SOUSA 4° edicao ra) foje i = j k ala } So Gi / ‘ Pele ft IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA Estudos Gerals Sérle Universitaria + Cldssicos de Filosofia DO PREFACIO A PRIMEIRA EDICAO o original grego da Poética—eis a obra que quiséramos realizar. A obscuridade da verséo mais préxima do texto auténtico e a distancia deste a versd@o mais clara hdo-de assinalar por vezes a deficiéncia do trabalho e a faléncia do esforgo. Mas, quem se proponha vencer esta disténcia e dissipar aquela obscuridade, bem avaliardé a grandeza dos obstdculos que se nos depararam num caminho™ tanto tempo percorrido, embora t@o curto fosse. Vertido o tratado de Aristételes no idioma pdtrio, dir-se-ia, pois, que cumprida estava a tarefa de reatar, pelo menos neste ponto, o fio da tradigdéo cldssica, em Portugal entrecortado pelas inumerdveis insténcias de uma cultura demasiadamente pragmatista. E, na realidade, bom ou mau que seja o resultado obtido, a segunda inten¢éo que nos moveu foi esta: que a Arte Poética, outrora lida e relida entre nds, no texto grego original e nas famosas pardfrases latinas e italianas do Renascimento, como cédice da mais perfeita técnica da epopeia e da tragédia, voltasse agora a ser lida e relida, em texto portugués, como a grande obra de ciéncia e de erudi- ¢do que na verdade é. Que a grandeza da Poética deixou de medir-se pela vali- dez e rigor dos canones que impusera a dramaturgia humanista—eis 0 que ficou demonstrado pela “hambur- guesa dramaturgia" de Lessing e pela actividade poética de a todas as escolas romanticas. Mostrar, porém, que nas pou- cas pdginas deste livro temos de fundamentar o enunciado, e das mesmas pdginas teremos de extrair a solugaéo de alguns dos mais importantes problemas da poesia antiga — tal foi o inestimdvel contributo da filologia novecentista para a definitiva reabilitag@o de Aristételes como “fonte” da histéria da literatura grega. Pelas precedentes consideragdes se explica, de certo modo, a paradoxal estrutura deste volume. Dizemos “para- doxal”, pois que o leitor menos familiarizado com a imensa bibliografia da especialidade talvez encontre bem com- preensivel motivo de estranheza, no facto de a prdpria ver- sdo ndo ocupar metade sequer das pdginas que 4 “Introdu- ¢Go” e aos “Indices” foram destinadas; enquanto, pelo contrdrio, talvez se dé o caso de que algum mestre de filo- logia cldssica logo de inicio se detenha perplexo ante a auséncia de minucioso comentario apenso ao texto vertido. Como prévia adverténcia acerca da estrutura deste livro, a uns e outros nos permitimos dizer que, embora a leitura da Poética exija um minimo de anotagdes que esclaregam os lugares obscuros e completem as ligdes truncadas, nem todos os leitores carecem dos mesmos esclarecimentos e dos mesmos complementos. Preferimos, por conseguinte, usar de indices, a que algum leitor recorrerd, chegado ao limite da sua capacidade de esclarecer ou de completar, mediante o prdprio esforgo e os préprios conhecimentos, o sentido da ligéo aristotélica, ao emprego de “notas”, decerto utilis- simas, mas que desviam a atengdo e incitam @ divagagdo para dominios estranhos aquele em que se desenvolve o pensamento do Estagirita. Alids, a inteligencia daquela parte, por assim dizer, nuclear, e que consiste na exposigao de uma teoria de efa- bulagdo trdgica (cf. Introdugao, caps. 1 e UL), resulta sem grande dificuldade da simples leitura, atenta e meditada. Trata-se, designadamente, dos capitulos em que o Fildsofo estabelece as regras a que deverd obedecer a composicdo dos argumentos, “se quisermos que a poesia resulte per- feita”. Essas regras, se hem que jd ndo exercam a “perene ¢ 8 universal” fungdo normativa, que o Humanismo renascente Jhes atribuiu, mantém ainda, e apesar de toda a insatisfa- do e insubordinagdo das escolas romanticas e subsequen- tes, o alto valor indicativo das caracteristicas de uma época, na historia da poesia, e das determinagées do res- pectivo conceito, no sistema de Aristdteles. Através dessas regras, podemos e devemos procurar, ainda e sempre, res- Ponder as seguintes interrogagées: “Que era a tragédia no tempo de Aristdteles?” e “como via Aristételes a tragédia, no seu tempo?”. O leitor dard a sua resposta, sem que para tal necessite de mais palavras que nao sejam as do mesmo Filésofo. Por outro lado, de modo mais ou menos explicito, tam- bém se encontram entretecidos nas malhas da argumenta- ¢Go estética os resultados de uma investigagao histdrica. E néio sé entretecidos; como que anotados & margem da ligdo principal da Arte Poética, a que acima nos referimos, esses resultados sGo hoje, talvez, os que mais importa con- siderar, entre todas as fugazes indicagées que a Antigui- dade nos legou, acerca da origem e desenvolvimento da tragédia grega. Téo importante e ido considerdvel é essa ligdo “marginal”, que nenhum teorizador da literatura poderd dispensar-se de regressar ao ponto em que Aristdte- les a deixou inscrita, para tentar, depois, reconstituir os diversos momentos da sua propria problemdtica. Pode-se dizer que a data da publicagdo do Héracles de Wilamowitz, sendo a da Origem da Tragédia de Nietzche, assinala o ini- cio de uma época, que ainda nao terminou, em que todos os problemas da origem e do desenvolvimento do género dramdtico foram enunciados e resolvidos, e teréo de conti- nuar a sé-lo, em rela¢éo a Aristételes, préd ou contra o enunciado e a solugéo que o Fildsofo mal deixa enirever nas paginas da sua Poética. Eis por que dedicamos a maior parte da Introdugio ao dificil mister de apontar e sublinhar as mais viventes articu- Jag6es deste didlogo da moderna filologia com a parte do ensino de Aristételes e da sua escola, que a historia da tra- édia se refere. Decida-se 0 estudioso pela credibilidade ou 9 pela incredibilidade dos resultados da investigagao histérica inaugurada no Liceu—ndo importa; importa sim, relevar aqui outro testemunho da perene actualidade de Aristételes e outro sinal da profunda originalidade da Poética, como fonte da histéria da literatura grega. * A presente versdéo baseia-se principalmente no texto grego editado por Augusto Rostagni: Aristotele Poetica, Turim (Chiantore), 2.° ed., igualmente distante da sobreva- lorizagdo do Parisinus (Bywater) e da Versio Arabe (Gudeman). Para a tradugdéo dos passos mais dificeis e interpretagGo das ligdes dibias ou truncadas, consultdmos os trabalhos de J. Hardy, A, Gudeman, I. Bywater, M. Valgimigli e F. Albeggiani. Sempre que foi possivel utili- zdmos a andnima versdo portuguesa do século XVII. 10. POETICA INTRODUCGAO CAPITULO I HISTORIA E CRITICA LITERARIA EM ARISTOTELES. A POETICA E OS ESCRITOS CONGENERES MANUSCRITOS MEDIEVAIS. PRIMEIRAS EDICGES IMPRESSAS. Pela Idade Média, mais preocupada com problemas légi- cos e metafisicos, a Poética passou quase despercebida. Num ramo greco-semitico da tradic&o, pardfrases de Avi- cenas e de Averréis compendiam uma versio drabe, con- servada na Biblioteca Nacional de Paris (cod. ar. 882a), de Abu Bishr Matta (século XI), baseada no texto siriaco do século VII, de que resta apenas um fragmento, e num ramo greco-latino, situam-se as versdes latinas de Hermann (Hermanus Alemanus) de Toledo, feita sobre uma pard- frase de tradigéo drabe, e de Guilherme de Moerbeke, sobre um apdgrafo (perdido) daquele mesmo cédice, do qual também deriva o famoso Parisinus 1741. Jorge Valla (1498) e Aldo Manuzio (1508) serviram-se de alguns manuscritos que ainda existiam nas bibliotecas € arquivos de Paris, Florenca e Roma. As sucessivas edigdes, até principios do século XIX, pouco alteraram a A/dina. Quem se proponha confrontar com as actuais esta edicao, protétipo de todas quantas se produziram nos séculos humanistas, nem precisa recorrer ao original grego; com- 13

You might also like