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Oestranho nao é, entre nés, apenas o agente imediato do capital, como 0 empresério, o gerente e o capataz, ‘mas é também o jagun¢o, o policial,o militar. E, ainda, 0 funcionério governamental, 0 agrdnomo, o missionrio, © cientista social. Embora cada um trabalhe para um projeto distinto, raros sto os que trabalham pela vtima dos processos de que sio agentes. Sao, portanto, prot sgonistas da tragédia que aniquila os frageis e que, por ‘sso, nos fragiliza a todos, nos empobrece e nos muti, pporaiue preenche com a figura da vtima o lugar do cia «dio, E nos priva, sobretudo, das possibilidades histor ccas de renovago e transformacio da vida, eriadas jus tamente pela exclusio e pelos padecimentos desneces- ‘sérios da imensa maioria. José de Souza Martins A CHEGADA DO ESTRANHO DO MESMO AUTOR, NA EDITORA HUCITRC Crt Motaraceo, 0 mpressrio ea Empresa (Etude de Socior 2osta do Desenvolvimento), 2 ed., 2° reispr nig Fob 0 Modo Copitalisia de Pensar, 4 ed nes Tepecriagdoe Violeneia (A Questa Politica ne Oamap), 2 ved, 1982; 3." od., aumentada, 1991, Migemiitde Criten & Sociologia Rural (org), 2 ., 1986 6 eas 0 Mortos na Sociedade Brasileira (orgy Yoon © Cativeiro da Terra, 4° ed. 1080 AIS faerie oe Limises da Demoeraca na “Nova Rept Caminhada no Chao da Noite, 1989 © Massacre dos In (org.), 1901 JOSE DE SOUZA MARTH ‘Universidade de So Paulo A CHEGADA DO ESTRANHO EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 1993 INDICE Introdugio n Cap. 1 Antropofagia e barroco na cultura latino-americana 15 Cap.2 ‘Tempo e linguagem nas Intas do campo a7 Cap.3 Achegada do estranho 61 Cap.4 As lutas dos trabalhadores rurais na conjuntura Cap. 5 Cap. 6 adversa 83 Os novos sujeitos das lutas sociais, dos direitos eda politica no Brasil rural 107 Mereado ¢ democracia: a relagao perversa 155 INTRODUGAO Os citorentes textos que reino nosta livro teatam de umn fenémeno que ainda nfo mereceu maior atangio dos soci6- logos: neste pais — 0 do desencontro, que se expressa na importaneia social (e sociolégica) que em nossa sociedade e em nossa cultura tem ow@gtzanio. Em principio, 0 que vem “do fora”, o que pertence a “outro mundo social”, diverso do daque- los que sofrem o seu impacto e vivem a sua presenga intrusa ¢ incomoda. Em perspectiva diversa, © oposta, uns poucos fala- ram na presenea “do indio no mundo do branco” ou “do negro no mundo do branco”, analisando com competéneia as formas de ajustamento e transformagdo, de encontro, entre personagens «de mundos étnicos distintos. 1H, porém, uma enorme riqueza socioldgica na crientagao © nna situagdo epostas — a do desencontro, da estranheza, da resistencia — na persistente e, por ora, renovada experiencia lo aparentemenis. perdedor-e derrotado. Blas nos falam de maneira densa sobre caracteristicas e processos particulares desta sociedade. Uma sociologia do estranho.e do estranhamien- to é um reclamo natural de uma sociedade de tradigao corpora tiva, careegada-de-preconceitos sociaisy que TAG passou pelos processos-revolucionirios-que,-em_outros-lugares;-levaram & disseminagio.da_igualdade, da. contratualidade nas relactes sociais-e-da.cidadania. A nossa sociabilidade dominante 6 de- marcada e bloqueada por enormes dificuldades no reconheci- ‘mento do outro, sua accitagao como outro, ist 6, diferente, & igual. Se, de um lado, as citncias sociais tm reconhecido determi- n Le INTRODUGAO Hs etnins, grupos, classes, como “estranhos” © procurado ‘sludlar © compreender as cargcteristicas da sua integragio na sociedade *branca” © dominante, na seciedade do classes, 0 mesmo no tém feito na escala desejavel com os que mandam, ‘com mais razio ainda estranhos em relagao aos dominados ~~ ‘dios, eamponeses. Mesmo porque referida intagracio nfo tem se dado agui nos mesmas termos em que acorreu nos pals moderns. Os aleangados pela expanstio eapitalista sao ie uentemente langados nas escalas inferiores da produc mer- cantil simples, como ocorre elaramente com grande parte do nosso campesinato. Quando nao #80 banidos para a miséria aquilo que enire nos se tornou uma condigao permanente de nimitos, © nao transitéria como em outras partes, que é a do fexéreito industrial de reserva, lugar em que a situagaa de exclufdo (e de estranho) ¢ alimentada por condigoes andmicas de vid. E preciso invertor a perspectiva. Bssaa populagies Som vivi- do eofrido o impacto do estrano, que nao ssinvnde teretarios toibais -torras eamponetas, confinanda on expulsando, mas também quobra linhagens de familia, destréirelagdes sciais, clandestiniza concepgoos éulburals, valores, rezras — vitals para a sobrevivencia de tribos indigenas © cofmunidardos rarais. No minimo, repositérios de coneapgies alternativas do uma: zo, que novsa sociedade, em seu eanjunto, beisnsa © volenta, vem perdendo ou j4 pordeu. Assim como a devasagio de oresta destrsi definitivamente expéciea veustais iteis, a do- vastapio ou a mutilagio de grupos sociais diforantea do nosso oI xi de viver ©de pensar, bem como destrdi suberes auer acelerada que estamos vivendo. E verdade que, sob a dovastagio humana que presenciamos, persiste uma notével capacidade de recriagio ¢ regencragto de idéins ¢ modos de vida, muitas vezes através da assimilagdo, redefinida, das concapptes do inimigo. Mas as Iutas indigenas e as utas campo. nesas nfo tm sido suficientes para sensibilizar @ modifica a3 conviegoes sociais das elites, sobretudo oa dos intelectuais, oda classe més Ivrkopugao 13 Sovidlogos o historiadores 4 destacaram a importincia rave- Nucionsiria que tiveram as eoncopsoos eos valores pré-eapitalis {us dos artosdos o eamponeses europeus na resistencia & devas. {agio social de que tem sido portadora a centralidade do lucro ¢ lo condmico na definigho das orfentagtes sociais e das institui- ‘vi da sociodade moderna. Gragas as tentativas de defesa dos rivilégios pré-capitalistas das camadas populares, fo posstval ‘nienuar og efeitos destruidores do desenvolvimento ceonOmico ‘norlorne dos paises rieos e darthe wma directo social. Ascii, {oi possivel assegurar os direitas socials, constituindo a cidada- hia © dando-the sentido. Nas sociedades pobres, e em nossa cdudo brasileira om particular, oa pobren do campo e da cidade no 26 nfo tinham privilégios @ defender como nao tiveram aliados, em suas lutas, para impor condigbes 20 desen. volvimento econémieo que a este obrigassom a algum compro. ‘misso com 8 direitos sociais v com a dignidade humana. De ‘modo que, mais do que vistos e tratados como seres de trabalho ‘fontes de luero, fossera reconhecidos como seres de direitos. “O-estranho néo 6, entre nés, apenas 0 agente imediato do capital, como 0 empresério, 0 gerente © 0 capatan mas € também o jaguneo, o poleial, o militar. B, ainda, ofanciondeio yovernamental, 0 agronomo, © missionsrio, o cientista social Bmbora cada um trabalhe paca am projeto distinto, raros ato aque trabatham pela vitima dos processos de que aio agentes, ‘Sao, portanto, tas da tragédia que aniquila os frageis ates er aaa ns epobrese eo ruta, porgue preesebe com a Bgurs da lugar do cidado: F nos priva, sobretudo, das possibilidades historicas de Fenovagio e transformacio da vida, criadas justamente pe Ja exelusdo e pelos padecimentos desnecessarios da imensa salon. ‘Sto Paulo, 1 de maio de 1991. Capstulo 1 ANTROPOFAGIA E BARROCO NA CULTURA LATINO-AMERICANA* O auc seria interessante tratar em um encontro de ssoas comprometidas com programas de solidaredade a ou- {ros patses outros povos, em particular com a Amériea Latina? F que se propem a fazer uma eslebragio critica do V Centens- rio do inieio da Conquista? £ estranbo, mas li, no eartaz que a nuneia, ‘a conquista continua”, em portugués, porque ha um ‘iuplo sentido para essa expresso. “A continua conguista’, esse sentido i, porque a Conquista de fato nao terminow. O Doqueia sobre Cuba nio é um ato de conguista, dominagao, ‘prossto e colonialismo? As mutilagdes da Conquista consti ‘nom a vossa proposta de um debate, Porque a Conquista se {ornou um sistema, a conquista é um modo de vida até agora. A Conquista 6 como um virus que nos contamina e nos destri. A Conquista se jornou aimpossbildade de mudar a situagio dos ates Intinosmericanos, Padiram-me para falar também sobre a veléneia, Qual vio- loncia? A voléneiainstitucionalizada que levavam os mission‘- ios ¢ que muitos doles ainda lovam As soeiedades latine-ameri- ‘anas? A violéneia da divida externa? A violéncia de uina con- cepgio de democracia que € apenas uma fachada da histéria * Exposigio feita durante o 12.* Convegno Nozionale della Rete Raclé Resch di Soidarieta Internazionale, em Rimini alia), queteve ‘amo tema “1492-1992, A Conquista Continua’. Publicado orginal ‘monts como titulo de"l.avioloza dellAmeriea Latina e sullAmeriea Latina’, in Notciario della Rete Redié Resch, numero quindici, Anno X, Lugo 1982, p. 26-28. 16 ANTHOPOFAGIA H BAREOCO Jatino-americana? A violbncia ila ditadhras? A violéneia de wm capitalismo que nao tem nenhumna relagsa com a dignklade humana? De qual vieleneia se pode filler? Paroce-ane que It ‘também upra violoneia nesta coneepeao triste da Amérien Late nna, A nosea. América Latina 6 triygea, inas 6, ao mesmo tempo, divertida. F precian sompreender esta nossa contradigao, Sem compreandé-la nio so compreenda nada, pois na ae pode ehorar toda o tempo. As vezes ¢ preciso rir. E precisa cir de inimigo odo que dele feou dentya de nos. Par isso, ¢ preciso rir tambom de nossas proprias debifidactes, dos nossos enganoa, das noses vilérius quase nunca dafinitivas. B procivo rir 0 rico eritieo que denuncia a eornicidads des pravagonistas, eanquista: doves e conquistadoe, na va tencativa do vestir, e de impr, a apertada roapa eulsal de quom manda ow pensa mandar. Nao chorem por nds, porate @ Amérien Latina nfo € urn faneral, A Ameérien Latina é una festa, mesmo quando estamos scylean. do os nosso movins. Porque no silencio das dumeraia das vitimas los que nos oprimem ha também 0 cAntisa interior de nassas aperancas, aninele # prefigaragse da nossa festa eoletiva @ permanente, Destaco alguns pontos para wna zuflexio sobre este tema, para quo ee eompreenda « senticio daa nesaoe problemas. Antes do tudo, o que veiw a ver a América Latina Io ora antes da Conguista o tornow-sn main antrepotigies hinds depois da Conquista, As eartns jesuiti- eas do século XV nos falam abundantemonte do uma intensa pedasogia ovientada contra a poligamis © 9 canibalismne, Du: Fapte quase com anos, n eueiedads brasileiva nascente foi submetida a ume agto podagdgica cotidiana no sentido de ‘trunsformar 02 valoraa de canibaliamo rital ex valoves nega: tives da sociabilidads do novo mundo. A negatividade do es: nibolisme fol implantada nae proprias rales das sacieda- ides latino-americenas, sepultada reprossivamente cots a poli- amis nos torrenos profundos éo pre:bide € da geultsdo, Be- coberta pela lapide fragil dos adornes barrocns do entalicisine © dda f8. Ld no fando, permaneso a visagom desea modo wnwes- tral do ver. Na necessidade da dissimulagae, # Ameriea Tati NA CULTURA LATINO-AMERICARA " Ino te destroi a si mesma, obrigada a parecer mais do que a No infeio do séeulo XV,» primaica historiador brasileiro, ascide ns Colonia, um teaneizeano que ae chamava Prot Vi- feente do Salvador, excroven uma bistéria do Basil, cern anos ‘apo « inicio da ocupagso portuguesa do atval ternitérie bens nico. Num certo momento conta a luca dos portugueses contra fos indios Poeiguare @ com aryailho narra que 96 portgceses lunfiavum os prisionviros indigenas nos ennhaes para dispaes- ow contra 63 fndios que aindn resistisat. Era um ergulho fristto, a £8 contra a falta de fo, Frel Vicente da: Salvador morreu hit mais de trozentos anos, mas os indios Podiewora Iutam ainda na Baia da Traigno, na Paratha, B, provavelnente, ‘mais longa histéria de eonflito entim um pova éndigena da América © o8 cormquistadares. Frei Vicente do Salvador est ‘morto, mas 6s divs estae aindh sivas, entinciando, come pevo, fue née querem marrer Bret Vioonto do Salvador esqueceu-se de utsa earactoristiea muito importante da vida indigona daquele iompo-beanibalisma gum pratioa ritual da pavene renascimenta do homem no set Aomelhante. Av longo dos sceuloa, 08 conquistadores, antes Tmosmno de tocar a nova terra, ja acreditavam que os tndios fossem canibais; que comiam gents porque exam prumitivos Bra um mito, Mesmo hoje ha quem ni Paropa an nes Estados Unidos aevedite que hi ainda indies canibais. Infeliewente, nie ha. Ha cerva de dois anos um seeiqae do Xing, apossande-se esse mito braneo de canibalisme inlizenn, nmeneon, maha fentrevista na televisto, de comer os hraicas invasorcs das fterras de sus trib; mos explieava que nao deseiava faz6-l0 Porque, entre os diverson tipox da encne de aninnais, a pior ora dos braneos Os primeiros livios escritne sobre a América atlantica, fa Jam-nos de canibaliemo. Ha wn liveo, em particular, de um ‘lemao, um mereenaeio que foi para 0 Brasil no séeulo XVI se 2 Of Fra Visonto de Salvadee, Historia do Aras, 1900-1697, 74 digo, EDUSP/Buitare Tentiala Lian, Belo Hovizont, 1882, a8 ANTROPOFAGIA E BARROCO chamava Hans Staden*. Fol prisioneiro dos indios tupinambé e ‘como tal condenado a ser por eles devorado, Depois de algum tempo, pode escapar © escrever uma inemérin sobre a expe~ ianela de ser vitime, potencial e tastemunhal, da fore ritual dos indios seus captores, K muito interessante porque o livro tem varias e preciosas gravuras que nos mostram os tupinamba eaquartejando ¢ devorando prislaneivos: um come uma perna, outro uma cabera, autro as maos @ assim por diante. Neseas gravuras,feitas por um branco, € visivel a alegria com que © fariam. Porém, tratava-se de uma ceia ritual, Of bramcos, eo longo dos séculos, tem interpretade o.canibaliamo indigena-do ponto de vista da cultura da morte, de quo-eto portadares "Todorov nos fnlou da dexeaherta da Amériea como deseoberta 4a rolagdo entre o et « 9 outrof, mas pareco-me que as evidén- cing no eso adequadae porque sle utiliza sobrotudo os docu- ‘mentos dos espanhdis, dos conquistadores. E preciso fazer ima ‘tnografia das culturns indigenas para compreender & concep ‘fo que tinham e vem do outro, que era muito mals “rexpeltosa", ‘muito mis “humana”, pols nea o outro a6 tinha sentido const. ‘ido ¢ realizado no proprio corpo-€ no espirito de quem 0 dlovorava. Estudos antropologicos tem revelade euidadosamen te esse lado fiondamental da realidade indigena, que nao pode ser captado pelo olhar branco dos brancos leigos*. Os indios tinbam uma concepgao do outro, do estranko, Ainda ha’ pou = ee oder’ A cara dan aigarguiea ¢ una tare madonna, An rrr Fizem win dincnrs de enquerday no pegeado, no eoealo pad seam iraingznne atin soca moms barre tno: viver om controll, Eaagigarga stiles contre {2 pesnirerrettteereloyberouteatnireaire ar psoas, {evaldader mas, ao samo: tempo, fundam e baseinm 0-208 pollen Flags de dependeatn pessoal ue fron de serv 2x, um vlachonamentadarirada da eecravidao. Taiese tanto nu misice da Ameri Lating, na vocajBo ‘Himicn¢ musica dot laine-amerieanoe, Na verdado, © ome Tuna bervoco do neewo nada‘e da newa sujeigin, No ao tram, vine A Talia com mm represeatante 90" Movimants WA CULTURA LATINO-AMERICANA 2 jonal de Meninos de Rua do Brasil, para participar de wes com grupos intereseados no problema das eriangas ‘nfincia, ns eriangas de rua. Um dia nos levaram a um fonde havia um grande nsimero de eseolares e me parecau stranho que eriangas tao pequenas estivescem inte- ‘Fousadas em nos ouvir, Na verdade, elas nem mesmo sabiam {Wal ora a nossa ineumbéncin ali, porque, segundo dissoram, aperavam dois brasileires que tinham vindo para dangar & ‘cantar, Era, evidentemente, falso! Nao estavam ali para owvir a “Tossa palavea # a nossa razso, A mdsica na América Latina é, Mhuitas vere, e¢ fol seguramente nos primeiros tempos, a con- “irtfagso do silencio, Para oa negros e mesmo para papulagies Aniligenas que sobreviveram ao contato com os conquistado- fos, 0 masica @ a danga foram a fala dos emudecidos, dos ‘ilenciados: ‘Sempre me recordo de um acontecimonto um pouco eurioso: fstava na Amnazinia fazondo uma viagem para o sertio do “Maranhao, de dnibus. Ao meu Indo, por dois dias e duas noites, jm jovem camponés usava dculos ray-ban, como 0 general MeArthar. De ver em quando os tirava para limpar as lentes, ‘poréin com muito euidado para nfo estragar o selo dourado dat Imurca dos doulos. Ele nio sawn os Geulos para ver, mas pera hier visto, Claramente, um eamponés barroco. Ble queria ser 0 fienhor do objeto, da mereadoria, mas esta é que era a sua fonhora, © barroce est em todas ae partos, sempre, nos pro ys pequenos gestos eotidianos, até mesmo na revolucao, s30 barrecas, «.noska esquerda 6 barro- ‘sen. A Revolugaa Mexieana no sew momento mais glorioso, mais, Vinportante, quando os eamponeses chegaram a cidade do Mé- xxieo, tomou a forma de uma procisedo do aldela, Os eampo- hoses, os indios, levavam o eatandarte de Nossa Senhora de Guadalupe, batiam & porta das casas e pediam a earidade do ‘um pedago do pao © de um pouco do café. Klos oram os vence~ dores, mas nio o sabiam ou nao sabiam #6-lo! Emiliano Zapata, ‘ Pancho Villa sentaram-sé a mesa presideneial para serem fotografados. Mas Emiliano tinha pressa, devia retornar logo & ua casa na pequena aldeia de Anenecuileo em tempo para 4 ANTROPOFAGIA B BARROCO semear 0 milho. A Revolusio nao era uma semesdura, um comego. Apenas assinalava 9 fim de uma tirania, 0 “barroquismo” da cultura Intino-americana’se-apresente numa. vide-de-dissimulagio. Faz-se de dia o que se destr6i de noite. E preciso sor assim. A polieia, no Brasil, por ‘muito tompo procurou reprimir aa tradigdes negras, dos ex. escravos levados da Afriea ao pais na Colénia ¢ no Império. Como conseqdéneia da repreago fol inventada uma religido, @ ‘umbanda, uma religiéo permitida pela polieia, que combatia a macumba. A policia deu a sua contribuleao para inventar uma religito, um disfarce, um ocultamento da crenga verdadeira. Até & meia-noite os’ nogros das favelas do Rio de Janeiro praticavam ou praticam ainda muitas vezes o calto da umban. da. Mas, & meia noite mudam o altar para fazer a quimbanda, ara pedir a presonca de Kxu, a entidade divertida e, as vozes, me. az alguns anos os indlos xohd, do rio Sto Franciaeo, em. Sergipe, me convidaram a participar de uma missa para cele brar o aniversério de eeu retorno a sua Tha de Sto Pedro ¢ a0 seu povoado, de quo haviam sido expulsos ha um ano. Fazia dezenas de anos que aquele grupo estava sob controle ¢ tutela, de uma farnslia de latifundisrios que thes tomara a terra, como fossem eseravos. A familia, da oligarquia loeal, empenhou-se fem destruirihes a lingua, como ocorren em quase todas as artes na sociedade brasileira. Nenhum {ndio xok6 sabe hoje gual ¢ a lingua que falavam seus antepassados. Mas na mulhe- res, quando iam ao rio lavar a roupa, escondiam-se na mata para dangar o tore. ‘Nessa danga esteve 0 centro do renascimento desse pequeno ovo de umas poucas dezenas de pessoas. F preciso disaimular. Ché Guevara 0 compreendeu na guerrilha. Ein seu diério hi ‘uma passagem em quo so refere aos olhos de pedra dos cam- poneses bolivianos. Bra tarde demais. Os olhos podein revelar coisas que nao podem ser ditas s ninguém, Oscar Lewis disse CF, George Lapassade » M.A. Lu, 0Segredo da Macumba, Pax 6 ‘Terra, Rio de Tansiva, 1972, ne (CULTURA LATING AMERICANA 25 fs culturas Intino-amaricanas sao culturas da pobreza, ‘Oscar Lewis! Nao compreenden tudo-Amentturas Tatino- y mede-Os missiondrio nos trouxe- ‘Trouxeram a idéia do inferno, da condenacao ‘propria idsia da morte. As nossas culturas so cultu- fachada. Andissimulngio-6-uma-agloone= Na dissimulacio hé a revolta permanente, a srmanente. © Basa caquizofrenia Historica tem o seu motivo. O.capitalis- juxeram (pode-se falar de morcantilicmo num ‘corto momento e de capitalismo num outro momento) nao é © ‘mosimo capitalisma que se dosenvolveu na Europa ¢ muito ‘wnos nos Estados Unidos. um capitalismo. basoado na 0 latifndioy na desigualdade dos es- ampnnz naira 29 mance mds, eonpetanen: te yeapitaliamo baseado no capital, na abstragao do_ on rulacian juridioamenia ieuulifirias. O letifca- BE cat A viqonen sven connote iquann-acuma cons ponpeeert rds nigurerbamcnda ons Mpotalhore nna rgucsn hnscnda nso meager 8 explo ‘Compra-se por poueo € vende-se por Jpaseado na extoraio. Por Peru, no inicio do século. A mosma eseravidno que havia’em 1pygides do México até ha pouco. De vex em quando reaparece faqui ou ali. No caso brasileiro, é um eseandalo, porque a es- ‘eravidao renasco a cada dia. Nao se trata de eseravidio em termos simbslieos. Compra-se e vende-se escraves, traneados & ‘noite para que nfo fijam. Em Rondonia, um fazendeiro man- dou cortar o tendo de seus trabahadores para que néo fugis- ‘nom. Mata-vo a quem tenta fagir. # ainda: se vende @ se dé recibo. Orlando Fals Borda, sociélégo colombiano que tom procurado ocifrar os onigmas de nossa América, oseroveu um po: fqueno livro sobre as rovolugges inconelusas na América La- 26 ANTROPOFAGIA E BARROCO tina”, Essa é a nossa caracterfstica: as nostas revolugdes ndo terminam, nfo chegam a nada, porque no limite podem des- truir-nos. As nossas revolugSes so meias revolugses. Sob o novo — por isso so meias revolugdes — o velho se repete sempre. No fundo, dizem alguns especialistas, porque as re- volugdes do mundo ocidental tém sentido apenas nos paises desenvolvidos. > Eric Hobsbawm, 0 historiador inglés nembro do Partido Comunista, que procurou compreender as lutas populares da América Latina e do mundo moditerraneo, nos diz que nossas lutas sdo pré-politicas, enquanto as dos outros sio politicas. As nossas revolagées no tm sentido desse ponto de vista. Nao falo apenas da direita, das oligarquias liberais, mas também da esquerda. Nao podem compreender uma revolugdo que seja a0 mesmo tempo um carnaval. A periferia ainda no conseguiu revolucionar 0 centro. Os olhos dos camponeses so de pedra, mas também os olhos dos outros. Qual revolugéio? Uma revolu. 40 para libertar os olhos, o ouvido, a palavra que nos tomaram. E termino com uma pergunta que me parece resumir a vossa tarefa: é possivel libertar o outro sem ser libertado da cadeia da vrazao? ® Cf, Orlando Fals Borda, Las Revoluciones Inconclusas en Améri- ca Latina, 1809-1968, Siglo Veintcuno Editores, México, 1971. ® coon _ ‘TEMPO E LINGUAGEM NAS LUTAS DO CAMPO* e he quo significa o aparecimento politico deseas novas personagens Pore snwitos, ainda nfo bé clareza completa sobre 0 In historia recente do Brasil, que 8&0 os indios e os camponeses ‘Ontom, foi dito, aqui, que as mulheres ainda sao tratadas como minoria, quando na verdade silo maioria — 61% da populagto Vale a pena ter a mesma preocupagao com os indios.<.0s | Ginponeses, que sso tratados como os dltimos dos ultimes, os hejaaram no fim da Histéria e para os quais jé nfo hd lugar. lectnais de esquerda;mais sensiveis a0 “apareci- to” desses grupos; tendem a-concebé-los como uma especie ile apendice-atrasado da classe operdria. Supostemente, sem ‘Glasse operdria nao h4 compreensio de nada, Esse entendimen- ‘to simplifica a realidade e complica sua compreensao. Temos de {ofletir criticamente sobre o tema. #10 que vou tentar fazer aqui Bstamos diante de desafios tematicos, de problemas novos. Alguma coisa esta acontecendo e precisa ser explicada sociologi- faimente. Bssas populagies, que vivem no limite da agéo politica eonseqtiente, presentes nas nossas preocupagses, colocum-nos diante da necessidade de reconhecer o inevitavel, que ¢ omeua. Essa presenga do inevitavel imp fantsna medida em que nos afasta de um certo colonialismo {nelectual, tradicional em nosso pais. Durante muito tompo, 05 * Toxto transerito da gravagio de exposigto no Seminario *O retor- hho do ator — Frange/Brasil: Movimentos caciais em perspectiva’, na Puculdade de Bducacdo da Universidade de Sto Paulo, 3-6 de julho de 1989. Revisto pelo autor. ea 28 ‘TEMPO E LINGUAGEM. ossos socidlogos mais competontes resistiram com dificuldade ' essa tentagao tradicional da intelectualidade brasileira, do bacharel brasileiro, que 6a de ter a cabeca na Buropae oassento no Brasil. Ou 0 assento vai do uma vex para I4, ou a eaboga vem de uma vex para cd. Tem derivadodat uina insidiosa perspectiva folclorista, que faz dos “retardatarios” da Historia personagens ‘estranhas ao “nosso” mundo, constitwidoras de um mundo st postamente & parte, o “mundo deles’ —o mundo do “eles”. © que esta acontecende com a prasanea do sindio como toma, nos dias de hoje, no mais tema exclusive da antropologia, ¢ As vezes de um certo colonialismo nela embutido, mas tema e preocupagto de outras ciéncias sociaie, 6) 0 reconhacimento do {ndio como agente politico. A mesma coisa corre com a popula. ‘s80 camponesa, J nto é mais, apenas, o camponés folelorico, 0 camponés das festividades populares, 9 eampones que simboliza © praticn o atraso, Agora é 0 eamponta que ocupa terrae desoew. padas, que luta, que desafia.o Conselho da Seguranga Nacional, ‘que nos questiona a todos, que invade a rigida demareagho positivista dos eampos de ostudo da antrapologia e da sociologia.” Portanto, estamos diante de sujeitos histéricos que nos obrigm arepensar esquemas, 'spectiva, por exemplo, as idéias de Lanin tam uma itada, perdem sou protenso peso de teoria absolute © revelam sua dimensto ideologies, muitas vezes mais forte do que a tedrica. Come encaixar 0 Cacique Raoni e aa lutas dos ovos Kayapé nas idéias de Lénin? Coma se encaixa a Tata dos seringueiros do Acre nas idéias que Lenin tinha sobre o campe- sinato? Lenin, anticamponée, fol transfarmado num teérice do eampebinato no Brasil, pelos pesquisndares, sem que suns inter- ppretagies fossem vistas na perspectiva e nas limitagbes das particularidades do processo histérieo de que nasceram —as do desenvolvimento do eapitalismo na Riss ‘Todos sabemos que muttas interpretagoee desonvolvidas a. partir da realidade de outros pafses nao podem ser transplanta- das sem mais nom menos para outras sociedades. Como econ eeu com as idéias dos posquiaadores americanos sobro a tradi 40 60 tradicionalismo camponoses. H necessdrio tar a coragem Was LUTAS Do casPO 20 lo nooitar o desafio de produsir uma ciéncia social que corres Jn A realidade da noesa sociedade es indagacses e proble- Imus que ela suseita © propee. I esso o suntido das roflexdos que ‘You dosenvolver aqui. Blas conatituem uma tentativa de-retorno ‘cia diretria da sociologia que, em outros tempos, teve Jancia na formagso dos socislogos, inclusive aqui na Uni Yormidade de Sao Paulo —a de que a soriologia 6 uma autocons- fidneia cientifica da sociedado. Bo que diz Hans Freyer num fiaquoles antigos e bons manvais que usdvamos aqui na Escola. Nini icin continua aendo verdadeira e ganha maior riquezs {linndo proseupoe a diferonsas de sociedad. INto da para ransplantar de um lugar a outro conhecimen- Aesocio\gico, eam um crive para distiouvir a oun particularida- fie cn su posstvel universalidade, B af que se manifesta tintividade do rocislogo © a Smaginagao coclldgica. Estamos falundo do cincia, nto estarmos falando da ideclogia, Porém, © onhcimento vocioligio ¢, em parte, tarabéen, exprosaso do Mina realidad espectica, singular. Temon de inluir no nosso trubstho a ideia de singular, No nosso singular esta, elaramen- {ovo posscir, eat o indio, extd o negro e exeseravo, Estou f= Indo, portania, de um eonhecimentosocioldgico que opera num tarrtéro demarcado, situado. A socologia, por menos que se fonts, 6 um conhecironia situado, Neste sentido, a pesquian fosolopica sobre easas populagles é pesquisa quo tem como Bo nto procedemos aasim, acabamoe farende udja cléncia e2- trenyeira,no sontido de eeirenia em relagbo ao mrunde daquale ‘sta endo objeto de espide. Um sociclogo americana — Iitrold Garfinkel —trosxe muita perturbagio a socologino a08 focilogos, em malo a contribuigtea tmportantes e eristivaa, porque nfl reconhece no outro aenao a viima da ciencia, Sus ftnometodologia nem étiea leva-o a tratar pettons e grupos com {Que trabalha como vitimes de experimentagde: em tal expert. Mento c vitima reage desta mancire; em tal outro, a vitime tonite daquela mancira, E preciso superar a idéia da vitima, ‘Ainda ha muito enminko ats pedermos incorporar a erlativi- dade, a inventividade e.@ novo senso comum que vai sendo

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