ARTIGOS
‘Matemética Universitdria, N° 5, Junho de 1987, 9-23.
A Equacao do Terceiro Grau
Elon Lages Lima
A crénica da equagéo do tercetro grau, apresentada o seguir, poderia talvez
conter elgumes palavras a mais sobre Ludovico Ferrari (1522 + 48 = 1585), que
nasceu e morren em Bolonha mas foi para Miléo aos 14 anos a fim de trabalhar na
casa de Cardano. Este, reconhecendo a excepcional inteligéncia do jovem, e
-lhe Latim e Matemdtica, promovendo-o a seu secretdrio. Aos dezoito anos, Ferrari
tornou-se professor da Universidade de Mildo ¢ tinha apenas vinte ¢ cinco anos
quando de sua disputa com Tartaglia, depois da qual recebeu ofertas de emprego de
pessoas importantes, como o imperador Carlos Ve 0 cardeal Gonzaga, de Mantua,
a quem serviu durante oito anos. Razées de satide o levaram de volta a Bolonka,
onde morou com sua irméd, foi professor na universidade e morreu aos 43 anos.
Sua participagdo na histéria que contamos agui é importante, néo apenas por sua
colaboracao decisive para o livro “Ars Magna” de Cardano, mas principalmente por
ter sido o homem que, ao deduzir a formula de resolugdo por radicais da equaséo
do quarto grau, atingiu o limite do possivel.
Com efeito, dois séculos e meio depors, Paolo Ruffini (1765 + 57 = 1822)
publicou em Bolonka (1799) um tivro no qual demonstrou que a equagdo geral de
grau superior ao quarto néo pode ser resoluida por meio de radicais. Independente-
menie disto, 0 jovem matemdtico noruegués Niels Henrik Abel (1802 + 27 = 1829)
pensou ter descoberto, em 1821, uma férmula que expressava as raizes de uma
equagdo do quinto grau por meio de radicais. Verificou porém que havia um erro
em sua demonstragdo e, retornando ao problema trés anos depois, (1824), provow
que as equagées de grau superior ao quarto néo possuem férmula geral de resolugéo
por radicats. A demonstragéo de Abel ¢ considerada satisfatéria enquanto que na
now
de Ruffini tém sido observades lacunas. O problema geral de determinar quais
equagées de graun tém suas ratzes expressas sob forma de sadicais em fungdo dos
coeficientes 36 veio ter uma solugéo definitiva com o trabalho do genial matemdtico
francés Evariste Galois (1811 + 21 = 1882). Este obteve uma condi¢do necessdria ¢
suficiente, a saber, que o “grupo de Galois” da equagéo seja um grupo soltivel. Para
entender o que significa isto, veja, por exemplo, o livro “Introdugéo a Albegra”, por
Adilson Goncalves. (Projeto Buclides, IMPA, 1987, segunda edi¢ao.)
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Introducgao
A histéria da solugao da equagao do terceiro grau tem varios aspectos in-
teressantes, em virtude dos quais ela se constitui num tépico atraente para
estudo e discussao entre professores e alunos de Matematica.
Um desses aspectos é 0 enigma histérico. Se os babilénios j4 sabiam re-
solver a equacio do segundo grau mil e setecentos anos antes da era cristd,
por que se teve de esperar mais de trés mil anos até que Scipione Ferro
resolvesse a equagao do terceiro grau e Ludovico Ferrari, logo em seguida,
a do quarto grau? Ha também o lado humano, as figuras pitorescas e fasci-
nantes dos homens envolvidos nas descobertas e nas disputas dai decorrentes.
Além disso, tem-se ainda o aspecto cientifico, os progressos matematicos que
advieram da solugdo e o grande problema geral da resolugao por radicais,
somente elucidado trezentos anos depois, por Ruffini, Abel e Galois. Tudo
isto sem falar no cenério, aquela notdvel atmosfera de elevada excitagao
intelectual existente na Italia da época renascentista.
A fim de dar ao leitor uma idéia do ambiente em que se desenrolou a
saga que vamos relatar, achamos oportuno encerrar esta introdug&o com dois
trechos retirados do livro “Histoire des Sciences Mathématiques en Italie”,
de G. Libri, Paris, 1840 (pags. 6 e 152 do vol. III).
“Fm nossa opini&o, como ja repetimos tantas vezes, é 0 carater, é a ener-
gia que fax os grandes homens, ¢ o talento nunca faltou aos povos que sentem
e que desejam com todo ardor. Entretanto, uma reunido de homens como
Leonardo da Vinci, Machiavel, Colombo, Raphael, Michelangelo, Ariosto,
que congregaram pléiades de discfpulos ilustres e de rivais, é um fato que
nunhuma pesquisa histérica parece poder explicar”.
“Os quesiti sio uma colegdo, em nove livros, de respostas dadas por
Tartaglia a questdes que }he eram enderegadas por principes, monges, dou-
tores, embaixadores, professores, arquitetos, etc. Freqiientemente, essas
questées continham problemas do terceiro grau. Ao ver todos esses proble-
mas propostos no comeco do século XVI, compreende-se @ importancia que
se atribuia naquela época as descobertasalgébricas. Seria dificil achar na
histéria das ciéncias exemplo de fato semelhante. As apostas, as disputas
publicas, os panfletos se sucediam sem interrupgo: todas as classes da so-
ciedade se interessavam por essas lutas cientificas, do mesmo modo como
na.antigitidade se interessavam pelos desafios dos poetas e pelos jogos dos
atletas. Parecia que se pressentia a descoberta, e a descoberta nido se fez
esperar”.
Evidentemente, nas limitadas dimensdes deste artigo n&o seria possivelssh
tratar exaustivamente todos os angulos acima aludidos do epsédio que vamos
narrar. Pocuraremos, entretanto, fazer uma exposigéo coerente e inteligivel,
a qual seré dividida em trés partes: Historia, Algebra e Calculo.
Histéria
Lendo o primeiro capitulo do livro de A. Aaboe “Episédios da Histéria
Antiga da Matematica”, publicado pela SBM, aprendemos que os mate-
maticos babilénicos, por volta do ano 1700 AC., j4 conheciam regras para
resolver equagées do segundo grau, sob forma de problemas, como o de achar
dois ntmeros conhecendo sua soma s e seu produto p. (Esses niimeros so
as raizes da equacio 2? — sx + p = 0 e, na realidade, achar as raizes de
qualquer equagéo do segundo grau equivale a resolver um problema desse
tipo.) No capitulo 2 daquele livro, aprendemos que os gregos aperfeicoaram
esse conhecimento demonstrando tais regras e conseguindo, pela utilizagéo
de processos geométricos, obter raizes irracionais {representadas por certos
segmentos de retas) mesmo numa época em que os niimeros irracionais nao
eram ainda conhecidos.
Na “Histéria da Matematica” de C. Boyer é contada com maiores de-,
talhes a evolugdo da disciplina conhecida pelo nome de Algebra, palavra
arabe que constava do titulo do livro de Mohamed Ibn Musa al Khowarism,
livro que teve grande influéncia na preservacio do conhecimento mateméatico
durante a Idade Média.
Ainda no livro de Boyer, lemos sobre as contribuigdes do extraordinario
mateméatico Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, que viveu no
comeco do século XIII, foi autor de livros notaveis, continuando a obra de
Diofanto de Alexandria sobre solugdes inteiras de equagées indeterminadas
e teve seu nome imortalizado na “seqiiéncia de Fibonacci” 1, 1, 2, 3, 5, 8,
18 etc., onde cada termo é a soma dos dois que o precedem imediatamente.
Esta seqiiéncia originov-se num problema sobre reprodugao de coelhos mas
tem aplicagées surpreendentes e variadas. (V. pag. 186 do livro de Boyer
€ 0 artigo de G. Avila na RPM 6, pag. 12.) Os livros de Fibonacci, em-
bora de alto valor cientifico, nado tiveram aceitagao e influéncia educacional
comparéveis, por exemplo, as de al Khowarism, um compilador muito bem
sucedido.
No meio do século XV teve inicio o fenémeno sécio-cultural conhecido
como a Renascenga, caracterizado por uma renovagio do interesse pelas
coisas do espirito em seus mais altos n{yeis, por uma efervescéncia cria-12
tiva e uma extraordindria explosao produtiva nas.artes plasticas, literatura,
arquitetura e ciéncias. Seu epicentro se localizou na Itdlia, onde surgiram
génios do porte daqueles j4 mencionados por G. Libri, aos quais acrescentare-
mos Scipione Ferro, Girolamo Cardano, Niccolé Tartaglia, Loudovico Ferrari
e Galilen Galilei, que nasceu no dia em que morreu Michelangelo e viria a
morrer no ano do nascimento de Isaac Newton, fazendo lembrar uma corrida
de revezamento olimpica.
Em 1494, Frei Luca Pacioli, amigo de Leonardo da Vinci, renomado pro-
fessor de Matematica, tendo ensinado em diversas Universidades da Italia,
escreveu o livro “Summa de Aritmética e Geometria”, um bom compéndio
de Matematica, contendo nogées de cdlculo aritmético, radicais, problemas
envolvendo equacées do primeiro e segundo grau, geometria e contabilidade.
Até o aparecimento da Algebra de Raphael Bombelli, em 1572, o livro de
Luca Pacioli (que tinha, além de suas qualidades intrinsecas, a vantagem
sobre seus predecessores trazida pela invencio de Guttemberg) teve grande
divulgagio e prestigio, Como era costume, a incégnita, que hoje chamamos
z, era nele denominada “a coisa”, enquanto 2” era “censo”, 2° era “cubo”,
x* = censocenso, etc. A Algebra era na época chamada “a arte da coisa” ou
“arte maior”. Depois de ensinar, sob forma de versos, a regra para resolver
a equacio do segundo grau, Pacioli afirmava que nao podia haver regra geral
para a solucao de problemas do tipo.“cubo e coisas igual a niimero” , ow seja,
a+ pr=q.
Muitos mateméticos, entre os quais Girolamo Cardano, de quem falare-
mos a séguir, acreditaram nessa afirmacio peremptéria de Pacioli. Mas um,
pelo menos, nao acreditou e fez muito bem em ser cético.
Coube a Scipione Ferro (1465 + 61 = 1526), professor da Universidade
de Bolonha, personagem sobre cuja vida muito pouco se conhece, a gléria
de resolver esse problema de 3 mil anos. Ao que se saiba, ninguém jamais
superou seu récorde, resolvendo um problema que tenha desafiado a argicia
dos matematicos por mais tempo. O curioso é que Ferro nunca publicou sua
solucao. Na realidade, nunca publicou nada. Sabemos que a duas pessoas ele
comunicou o segredo da solug&e dos problemas do tipo “cubo e coisas igual
a ntimero” (2° + pa = q) e “cubo igual a coisas e mimero” (2° = pz + q):
seus discipulos Annibale Della Nave (mais tarde seu genro e sucessor na
cadeira de Matematica em Bolonha) e Antonio Maria Fiore. A este ultimo,
deu a regra mas n4o a prova. A descoberta ocorreu provavelmente em torno
de-1515. Em 1535 Fiore teve a infeliz idéia de desafiar Tartaglia para uma
disputa matematica.
Como vimos acima, esses duelos intelectuais.n&o eram infreqiientes. Eram
a