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ORGANIZAGAO TEMPORAL DO COMPORTAMENTO Benito Pereira Damasceno Universidade Estadual de Campinas (Departamento de Neurologia) Introdu¢ao © tempo ¢ um fator cada vez mais importante na vida humana. A revolugao técnico-cientifica levou 4 aceleragio do processo de trabalho € a mudan- gas em nossas atividades produtivas e sociais, fazendo aparecer novos marcadores externos de tempo (“zeitgebers”), 0s quais impdem adaptagdes em wossos ritmos biolégicos ¢ em nossa capacidade métrica temporal. O conhecimento dos meca- nismos cerebrais ¢ cognitivos envolvidos na percepgdo do tempo torna-se, as- sim, uma tarefa prioritdaria da Neuropsicologia. ioldgicas a — Herdamos do mundo animal pelo menos dois dispositivos neurais que permitem reagdes antecipadas a even- tos futuros ¢ asseguram a sobrevivéncia num mundo temporalmente organizado: (a) a ritmicidade endégena (‘“‘relégio biolégico”), geneticamente herdada, com a qual a espécie animal “prevé” eventos ciclicos que operam em escala (quase) planetéria; ¢ (b) os reflexos condicionados, adquiridos ao longo da experiéncia individual, permitindo ao individuo ou seu grupo “prever” e preparar-se para eventos sequenciais especfficos das condigdes ecolégicas em que vivem. Ontogénese do tempo fisico e psicolégico — A percepgiio de sucessdo e duraglio aparece bem cedo na infancia, mas sua sintese operatéria, base de uma nogiio mais abstrata e légica do tempo, sé se eldbora plenamente a partir dos 7- & anos. Para compreendermos 0s processos psicolégicos envolvidos na percep- go do tempo do adulto, torna-se necessdrio conhecer sua psicogénese na crianga (de acordo com Piaget, 1946). De 0 a cerca de 4 meses de idade, a organizagaio psiquica da crianga é dominada por reflexos ¢ habitos elementares, onde as sensagdes, percepgdes e agdes do individuo constituem um todo indiferenciado. Para essas criangas, o tempo ainda nao existe objetivamente. Elas s30 capazes de coordenar seus movimentos no tem- po, executando determinados atos antes de outros, mas essa sucessio néo é perce- bida como tal pela crianga, O que existe entio é um tempo “pritico”, vivenciado subjetivamente como sentimento de expectativa, esforgo ou satisfacio. Se, nesse periodo, as agdes da crianga se limitam a movimentos simples dos Grgdos, centrados em si mesmos (p.ex., ela agarra para chupar), dos 4 aos 9 meses suas agGes estao centradas num resultado produzido no meio exterior, tendo por finalidade manter esse resultado (p.ex., espernear para balangar a boneca suspensa em seu ber¢o). Aqui, a ordenagiio temporal das ages sucessi- 362 kenya Sr vas continua sendo de natureza “prdtica”. Mais tarde, quando a crianga emprega um objeto intermedidrio (“meio”) para produzir o resultado desejado (“fim”) (p.ex., puxar 0 cordao para balangar a boneca), o esquema se complexifica. A crianga adquire a percepgio do “antes” e do “depois”, porém essa ordem tem- poral é limitada, por se referir as suas préprias ages. E 0 tempo de seu esquema corporal (sensério-motor) em ago. A crianga nao é capaz de ordenar os eventos em si préprios, isto é, como fendmenos exteriores (Piaget, 1966/1982). Dos 8 aos 12 meses, a crianga torna-se capaz de coordenar intencionalmene os diferentes esquemas adquiridos nas fases anteriores e de subordind-los mu- tyamente como meios e fins. Quando, entre a crianga e 0 objeto (brinquedo), ha um.obstéculo interposto (almofada, mao do expetimentador), permanecendo o objeto visivel para ela, a crianga tenta primeiro afastar o obstaéculo, recorrendo aos seus esquemas circulares secundérios (p.ex., “bater para fazer balangar”, dando palmadas no obsticulo). Nesta fase, a crianga comega a construgae do objeto permanente; ¢ as nogdes de deslocamentos espaciais, causalidade € seriacio temporal (“antes” ¢ “depois") jd se aplicam ao objeto e n§o apenas as suas Prprias agdes. Ao mesmo tempo, a crianga desenvalve seu “esquema corporal” (0 corpo configurado de forma automitica, inconsciente}, 4 base de relagdes intersensoriais ¢ de reagGes tonico-emocionais na interagdo com as pessoas ¢ as coisas; & posteriormente, constréi sua “imagem corporal” (o corpo representado e vivenciado de forma consciente) (Wallon, 1963; Piaget, 1966/1982). Dos 12 aos 18 anos, o objeto € concebido como exterior, e a crianga aprende a subordinar uns aos outros os fendmenos exteriores, levando em conta as relagdes entre eles. As nogdes de “antes” e “depois” passam a se aplicar aos fenédmenos agora concebidos como exteriores e independentes do sujeito. Dos 18 aos 24 meses, com a aquisi¢’o da linguagem, a crianga passa a evocar eventos e’agdes por meio de imagens simbdlicas ou signos, e as “séries objetivas” temporais prolongam-se no passado e no futuro sob a forma de “sé- ries representativas”. O tempo deixa de ser apenas um eterno presente, limitado as percepgdes € agGes atuais. Os esquemas das fases precedentes, uma vez diferenciados em esquemas imitativos (representacdo em atos), internalizam-se, constituindo as imagens representativas, as quais permitem a combinacao mental dos esquemas antes de sua execugZo no mundo externo. No perfodo pré-operatério (dos 2 aos 8 anos), elabora-se progressivamente a nogo de um tempo homogéneo, continuo € uniforme, gragas & aquisigao, em sua fase final (por volta dos 7-8 anos), das operagdes temporais ¢ métricas. Estas aperagdes resumem-se a trés: (1) Ordenacfio temporal dos acontecimentos: que aparece quando a crianga tem que coordenar movimentos de velocidades dife- rentes. (2) Classificacio de duragdes: Em se tratando de coordenar movimentos de velocidades diferentes, a duragiio se dissocia do espaco percorrido ou do trabalho realizado. A crianga, mediante uma coordenagiio operatéria, passa a conceber: (a) primeiramente (dos 4 a 6 anos), a duragéio como inversa da velo- cidade (mais depressa = menos tempo); (b) posteriormente (dos 7 a 8 anos), a 363 Sopre A AVALIAGAO & (RE)HABILITAGAO COGNITIVA, igualdade das duragées sincrénicas e (¢) a imbricagdo das duragdes umas nas outras. O esquema do tempo tinico pressupde, além dessas operagdes, uma operaciio métrica temporal (medida do tempo). (3) Medida do tempo: A condi- gao basica da medida do tempo & a construgio de uma duragfio unitéria que possa ser repetida sucessivamente e comparada aos intervalos que se pretende medir. A construgdo dessa unidade de tempo implica na coordenagdo operatéria ou imbricagio de intervalos sucessivos que caracterizam movimentos regulares, repetitivos ou ciclicos, como o do ponteire do relégio. A igualagao das duragdes sucessivas, por sua vez, pressupée a conservacdo da velocidade, que comega a ser adquirida por volta dos 6-7 anos. Outro importante aspecio de funcionamento temporal humano € 0 “tempo psicolégico” ou “duragao jnterior’, ou seja, o tempo-da ago individual, vivenciado de modo subjetive e afetivo durante o desenrolar da ago prdpria, De acordo com Piaget (1946), 0 tempo subjetive do adulto nao nasce ja inteiramente orga- nizado, mas ¢ construido conjuntamente com o tempo fisico, a partir do tempo Pritico ou sensério-motor, da mesma forma que as nogdes de objeto, espaco, causalidade € esquema corporal. Neuropsicologia da percepcio do tempo - Diferentemente dos outros sen- tidos (tatil, visual, auditivo, olfativo, gustativo), o sentido do tempo nao possui receptores ou analisadores préprios, modalmente especificos, j4 que o tempo nao € uma substancia ou forma de energia. Entretanto, os varios analisadores sensi- tivos possuem, especialmente em seus terminais corticais, neurdnios codificadores das propriedades temporais dos estimulos (Sokolov, 1975) ¢ estabelecem cone- xO€s com 0 Cértex associativo € com o sistema hipocampal-limbico. Através dessas aferéncias, os estimulos externos, dotados de informagdes temporais, alcangam as seguintes estruturas: (a) o(s) marcapasso(s)-mestre(s), sincronizan- do-o(s) para oscilar em fase com 0 respectivo “zeitgeber”, p-ex., estimulo lumi- noso - via retino-hipotalamica (nticleos supraquiasmaticos; Oren & Terman, 1998); (b) 0 cértex cerebral ¢ estruturas subcorticais, permitindo a formacao de reacdes condicionadas; ¢ (c) no homem, 0 cértex associativo terciério multimodal pré- frontal e temporo-parfeto-occipital, onde os estimulos externos s40 seminticamente codificados, Varios estudos tém demonstrado a importancia das estruturas temporo- limbicas na discriminagao, codificagio ¢ registro das informagées temporais (Vinnogradova, 1975; Moiseeva, 1982). O lobo temporal esquerdo parece ser especializado para processar sequéncias rdpidas de informacées auditivas, como as da fala e da musica (Samson, Ehrie, & Baulac, 2001). Lesdes do cireuito hipocampal-limbico produzem distirbios da codificagdo e registro de intervalos temporais da faixa de segundos a minutos. Nesse circuito (corpos mamilares, nicleos talamicos anteriores e nicleos septais mediais) e nas regides corticais senso-perceptivas a ele ligadas existem neurdnios capazes de reproduzir os parémetros temporais dos estimulos, operando assim na codificagio, registro e estimativa de intervalos de tempo. 364 ‘TeeNOLOGIA EM (Re)HAaRirracho CoGnrriva meio dos sonhos, além de, por intermédia de alucinagées visuais, quando ha deprivagio sensorial ou abuso de drogas, por exemplo. ‘Toda aco, para ser realizada com eficiéncia, necessita de informagdes corretas do meio em que o individuo interage. O maior aporte de informagSes sensoriais que o ser humano recebe vem do mundo visual, Necessitamos todo o tempo de informagées visuais precisas e de altissimo nivel para poder executar tarefas, desde 0 ato de preensio de um objeto as atividades de autocuidado, por exemplo, até o use de um computador. O homem possui diferentes Gras distintas visuais, desde as Greas periféricas e de tonco cerebral, area tectal do mesencéfalo, até ica: , temporais € parietais que respondem a diferentes aspec- tos da estimulacdo visual, além de uma organizagao com mapas sensitivos para formas, tamanho, cores, angulagio, profundidade, movimento, luminosidade, fi- gura-fundo ¢ localizagao ‘espdcial, nas areas’ visuais primarias. A percepgio visual prové ao observador sobre “que” objetos esto no meio e “onde"e “como” estado localizados, permitindo agdes apropriadas. Existem distintos circuitos para estas duas fungdes: +0 sistema visual dorsal (do cértex occipital ao cértex parietal posterior), fornece a Jocalizagao espacial, quanto aos aspectos corporais ¢ de movi- mentos dirigidas ¢ relages espaciais (integrag3o visuomotora). Lesées mestas reas podem causar, além de distirbios conceituais espaciais e topografi- cos, negligéncia unilateral, apraxia construtiva e ataxia Optica. * 0 sistema visual ventral (do cértex occipital as regides inferotemporais) fornece 0 reconhecimento e a identificagao de objetos. Lesdes nestas areas geram diversos tipos de agnosias visuais, dependendo da regidio ( Beaumont, et al, 1996). O processamento visual abrange as scguintes fungdes: procura e pesquisa visual; plano ¢ exploragdo visual; sustentagio da fixagdo visual no estimulo por tempo programado, distingdo das caracteristicas do objeto ou figura; captagao € comparacdo de detalhes; pesquisa por scanning em diferentes arranjas; localiza- ¢Go da informagao no espago; monitoramento da velocidade de resposta para informagio visual; observagdo do todo e divisdo em partes; reconhecimento do estilo em diferentes perspectivas (inclui atributes criticos, imagem visual ¢ pensamento abstrato); formacdo e uso de imagens visuais para descrever obje- tos, figuras Ou cenas que no esto presentes; estocagem de atributos visuais elementares num sistema de memiéria visual. De acordo com uma perspectiva da Neuropsicologia Cognitiva, o reconhe- cimento visual de objetos possui uma seqdéncia de trés tipos de representagdes (Riddoch & Humpreys, 1994): 1} representagdo inicial, na qual hé mudanca de luz e a geometria bidimensional do objeto € gerada; 2) representagdo centrada no observador na qual a localizagdo das superficies do objeto, visiveis da po- si¢Zo do observador, so internamente geradas (esta representagdo perde a gene- ralizago porque desereve o objeto somente do ponto de vista do observador); 3) representagdo centrada no objeto, em que a representagdo € generalizada. 216 Intervengito em agnosia: viswal ¢ distiérbios viswoespaciais Os tipos de alieragdes consistem em: falha na andlise das caracteristicas do objeto (agnosia aperceptiva) ¢ falha no reconhecimento e identificagao do objeto (agnosia associativa). Estas alteragées podem estar em diversos niveis de com- plexidade e em diferentes estégios do processamento visual, podem ser especificas ou generalizadas; podem ser categ6ricas (mais alteradas em alguns tipos de objetos do que em outros); de percepgao de tamanho, formas, cores, luz; em objetos do cotidiano ou nao; em posigdes dos objetos no espago e na cons- tancia da forma. Podem existir alteragdes em objetos concretos ou figurades, em letras, cendrios concretos ou figurados, fotos, figuras coloridas ou em preto-c- branco, sobrepostas ou camufladas; figura-fundo; na percep¢do gestaltica, isto €, na representagdo integrada que combina caracteristicas especificas com caracte- ristieas glohais do objeto e de uma cena (simultancoagnosia, por ex.: o paciente néo pode ver'os Garros passando enquanto vé os prédios na rua); na percepgo de detalhes; na percepgiio de faces (prosopoagnosia — dificuldade em reconhe- cer visualmente a identidade especifica de faces humanas conhecidas). Outras alteragdes consistem na percepgdo dos objetos em perspectiva nao-usual (ope- ragdes perceptuais que envolvem corre¢Ges, transformagdes ¢ rotacao do estimu- lo); na identificagao verbal (anomia 6ptica — quebra da ligagdo entre o sistema perceptual ¢ o sistema de linguagem); na imagem mental (que geralmente esté alterada nas agnosias visuais associativas) e finalmente na meméria visual, Em geral, nas patologias degenerativas, a deterioragio inicia-se em figuras comple- Xas em preto-c-branco, scguindo o grau de complexidade inverso da aquisigao, até chegar a objetos concretos muito simples ¢ conhecidos. Quanto 4 reabilitagdo da percepgdo visual, existem ainda poucos estudos neuropsicolégicos cognitivos que comprovem a eficicia e a sucesso destes tra- balhos, mas na pratica clinica parecem surtir bons resultados. Iniciando-se o processo de reabilitagao pela avaliagao, dentre as baterias de testes padronizados para Terapeutas Ocupacionais (Grieve, 1993), encontramos. itens para avaliagdo da percepefio visual ¢ espacial e dos distirbios visuocons- tutivos na Bateria de Avaliagiio Perceptiva de Rivermead (RPAB-Rivermead Perceptual Asssesment Battery) e na Bateria de Avaliagdo Neurolégica de Chessington para Terapeutas Ocupacionais (COTNAB-Chessington Occupational Therapy Neurological Assesment Battery) (Whiting, Lincoln, Bhaynani, Cokbrunn, 1985) (Tyerman, Tyerman, Howard, P., Hadfield, C., 1986); além de diversos testes neuropsicolégicos contendo itens especificos para o assunto, tal como The Middlesex Elderly Assesment of Mental State-MEAMS (Golding, 1989), (Thames Valley Test Company — Suffolk-UK). Algumas regras da intervengio serao descritas a seguir: 1. A terapia € baseada na andlise criteriosa dos estagios prejudicados do processamento visual ¢ no conceito fundamental do tratamento cognitive que segue o retreinamento dos components cognitivos em niveis gradua- dos, construindo estratégias e transferindo para situagdes da vida real (Sohlberg & Matteer, 1989). Por ex.: identificar itens de acordo com uma 217 kenya Sr vas continua sendo de natureza “prdtica”. Mais tarde, quando a crianga emprega um objeto intermedidrio (“meio”) para produzir o resultado desejado (“fim”) (p.ex., puxar 0 cordao para balangar a boneca), o esquema se complexifica. A crianga adquire a percepgio do “antes” e do “depois”, porém essa ordem tem- poral é limitada, por se referir as suas préprias ages. E 0 tempo de seu esquema corporal (sensério-motor) em ago. A crianga nao é capaz de ordenar os eventos em si préprios, isto é, como fendmenos exteriores (Piaget, 1966/1982). Dos 8 aos 12 meses, a crianga torna-se capaz de coordenar intencionalmene os diferentes esquemas adquiridos nas fases anteriores e de subordind-los mu- tyamente como meios e fins. Quando, entre a crianga e 0 objeto (brinquedo), ha um.obstéculo interposto (almofada, mao do expetimentador), permanecendo o objeto visivel para ela, a crianga tenta primeiro afastar o obstaéculo, recorrendo aos seus esquemas circulares secundérios (p.ex., “bater para fazer balangar”, dando palmadas no obsticulo). Nesta fase, a crianga comega a construgae do objeto permanente; ¢ as nogdes de deslocamentos espaciais, causalidade € seriagio temporal (“antes” ¢ “depois") jd se aplicam ao objeto e n§o apenas as suas Prprias agdes. Ao mesmo tempo, a crianga desenvalve seu “esquema corporal” (0 corpo configurado de forma automitica, inconsciente}, 4 base de relagdes intersensoriais ¢ de reagGes tnico-emocionais na interagdo com as pessoas ¢ as coisas; e posteriormente, constréi sua “imagem corporal” (o corpo representado e vivenciado de forma consciente) (Wallon, 1963; Piaget, 1966/1982). Dos 12 aos 18 anos, o objeto € concebido como exterior, e a crianga aprende a subordinar uns aos outros os fendmenos exteriores, levando em conta as relagdes entre eles. As nogdes de “antes” e “depois” passam a se aplicar aos fenédmenos agora concebidos como exteriores e independentes do sujeito. Dos 18 aos 24 meses, com a aquisi¢’o da linguagem, a crianga passa a evocar eventos e’agdes por meio de imagens simbdlicas ou signos, e as “séries objetivas” temporais prolongam-se no passado e no futuro sob a forma de “sé- ries representativas”. O tempo deixa de ser apenas um eterno presente, limitado as percepgdes € agGes atuais. Os esquemas das fases precedentes, uma vez diferenciados em esquemas imitativos (representacZo em atos), internalizam-se, constituindo as imagens representativas, as quais permitem a combinacao mental dos esquemas antes de sua execugZo no mundo externo. No perfodo pré-operatério (dos 2 aos 8 anos), elabora-se progressivamente a nogdo de um tempo homogéneo, continuo € uniforme, gragas & aquisigao, em sua fase final (por volta dos 7-8 anos), das operagdes temporais e métricas. Estas operagies resumem-se a trés: (1) Ordenagfo temporal dos acontecimentos: que aparece quando a crianga tem que coordenar movimentos de velocidades dife- rentes. (2) Classificacio de duragdes: Em se tratando de coordenar movimentos de velocidades diferentes, a duragiio se dissocia do espaco percorrido ou do trabalho realizado. A crianga, mediante uma coordenagiio operatéria, passa a conceber: (a) primeiramente {dos 4 a 6 anos), a duragéio como inversa da velo- cidade (mais depressa = menos tempo); (b) posteriormente (dos 7 a 8 anos), a 363 SORRE A AVALIAGAO_E (RE)HARILITAGAG COG: igualdade das duragGes sincrGnicas ¢ (c) a imbricagao das duragécs umas nas outras, O esquema do tempo dnico pressupde, além dessas operagdes, uma operacdio métrica temporal (medida do tempo). (3) Medida do tempo: A condi- gio bdsica da medida do tempo é a construgio de uma duragio unitéria que possa ser repetida sucessivamente e comparada aos intervalos que se pretende medir. A construgao dessa unidade de tempo implica na coordenagdo operatéria ou imbricagio de intervalos sucessivos que caracterizam movimentos regulares, repetitivos ou ciclicos, como o do ponteiro do relégio. A igualagao das duragdes sucessivas, por sua vez, pressupde a conservacio da velocidade, que comega a ser adquirida por volta dos 6-7 anos, Outro importante aspecto do funcionamento temporal humano € © “tempo psicolégico” ou “duragdo interior”, ou seja, 0 tempo da agao individual, vivenciado de modo subjetivo e afetivo durante o desenrolar da agiio prépria. De acordo com Piaget (1946), 0 tempo subjetivo do adulto nao nasce ja inteiramente orga- nizado, mas € construido conjuntamente com o tempo fisico, a partir do tempo pratico ou sensGrio-motor, da mesma forma que as nogGes de objeto, espago, causalidade ¢ esquema corporal. * Ne ia ba & - Diferentemente dos outros sen- tidos (tétil, visual, auditivo, olfativo, gustativo), 0 sentido do tempo nao possui receptores ou analisadores préprios, modalmente especifficos, j4 que © tempo nao é uma substiincia ou forma de energia. Entretanto, os varios analisadores sensi- tivos possuem, especialmente em seus terminais vorticais, neurdnios codificadores das propriedades temporais dos estimulos (Sokolov, 1975) e estabelecem cone- xdes com © cérlex associative ¢ com o sistema hipocampal-limbico. Através dessas aferéncias, os estimulos externos, dotados de informagdes temporais, alcancam as seguintes estruturas: (a) 0(s) marcapasso(s)-mestre(s), sincronizan- do-o(s) para oscilar em fase com o respectivo “zeitgeber", p.ex., estimulo lumi- noso - Via retino-hipotalimica (micleos supraquiasmaticos; Oren & Terman, 1998); (b) 0 cértex cerebral e estruturas subcorticais, permitindo a formagao de reagGes condicionadas; e (c) no homem, © cértex associative tercidrio multimodal pré- frontal e temporo-parieto-occipital, onde os estimulos externos sio semanticamente codificados. Varios estudos tém demonstrado a importancia das estruturas temporo- limbicas na discriminagéo, codificagaio e registro das informagdes temporais (Vinnogradova, 1975; Moiseeva, 1982). O lobo temporal esquerdo parece ser especializado para processar sequéncias ripidas de informagées auditivas, como as da fala e da misica (Samson, Ehrle, & Baulac, 2001). Lesées do circuito hipocampal-limbico produzem distirbios da codificagio ¢ registro de intervalos temporais da faixa de segundos a minutos, Nesse circuito (corpos mamilares, micleos taldmicos anteriores € micleos septais mediais) ¢ mas regides corticais senso-perceptivas a ele ligadas existem neurénios capazes de reproduzir os pardmetros temporais dos estimulos, operando assim na codificagao, registro ¢ estimativa de intervalos de tempo. 364 fsguema Corporat ¢ xerceppao ao tempo Outros estudos indicam a releviincia dos lobos frontais na organizagao temporal do comportamento (Jacobsen, 1935; Pribram et al., 1977; Moisceva, 1982). Experimentos eletrofisiolégicos com animais mostram que o cértex dos lobos frontais possui neurénios que codificam o intervalo entre a pista senso- rial ¢ a resposta motora, permitindo ao individuo predizer o momento em que determinada agao ou resposta motora deve ocorrer (Batuey et al., 1979; Fuster et al., 1982). A distribuigo desses neurénios nas regides frontais reflete uma certa hierarquia na estrutura temporal do comportamento: o cértex pré-frontal representaria em sua rede neuronal os aspectos mais gerais e abstratos do “esquema” comportamental, cabendo ao eértex pré-motor e motor decodificar detalhes cada vez mais concretos e exteriores da agio (Brow, 1987; Fuster, 1989). A organizagio temporal do comportamento € os processos mnésicos nela envolvidos parecem recrutar também circuitos reverberantes que o cortex frontal estabelece com o nticleo dorso-medial do talamo, cortex temporal infero- medial, nticleos da base € outras estruturas subcorticais (Fuster, 1989), O cerebelo parece ter papel relevante e critico na cronometragem antecipada ou “timing” das coordenadas espago-temporais dos movimentos (Pellionisz &Liinés, 1982). Os lobos frontais tém a meméria dos planos e agGes futuras, a memoria do futuro. Pacientes com lesdes frontais perdem essa dimensio temporal de seu comportamento, ficam limitados ao “aqui” e ao “agora” (4 mercé de estimulos ambientais), com dificuldades na sequenciago de eventos ¢ ages, produzindo erros de omissio, perseveracao ou execugao de agées na ordem errada. Os estudos de fluxo sanguineo cerebral durante a execugdo de sequéncias de movimentos mostram uma ativagdo marcante da drea motora suplementar e drea motora priméria (Orgogozo & Larsen, 1979). A idealizagao de um plano motor, ou seja, a programagao (sem execugdo) de uma sequéncia de movimen- tos voluntdrios (Ingvar & Philipson, 1977), ou a imaginagao de uma andanga por lugares diferentes ¢ sucessivos, dobrando as esquinas encontradas, ora 4 direita, ora & esquerda (Roland & Friberg, 1985) acompanham-se de aumento evidente do fluxo sangufneo bilateralmente na drea motora suplementar e cértex pré-frontal superior vizinho, mas nao na drea motora priméria. A ativagdo seletiva da regiio pré-frontal, particularmente de sua parte superior, pode ser observada durante a atividade mental “pura” e sequenciada, p.ex., durante a atividade de fala interna silenciosa e 0 raciocinio abstrato envolvido na reso- lugao de problema aritmético (Ingvar, 1983). Essa regio constitui o principal substrato neural dos programas de agao ou planos para uma atividade comportamental ¢ cognitiva futura. Tais planos de agio contém programas sob a forma de eventos neurais temporalmente estruturados, os quais podem ser retidos ¢ evocados, determinando assim o futuro além do agora - a “meméria do futuro” (Ingvar, 1985). Existem poucos estudos sobre alteragGes dos niveis mais abstratos da per- cep¢io do tempo. Ajuriaguerra e cols (1967), estudando sujeitos dementes por 365 Sowre A AVALIAGAO & (REJHABILITACAO COGNITIVA meio de testes piagetianos, observaram que a perda da nogao de tempo fisico e de tempo psicolégico correspondia, em seu conjunto, a0 grau de desintegragio operatéria; contudo, mesmo os dementes mais graves foram capazes de perceber € reproduzir estruturas temporais elementares, tais como batidas de ritmos constituidos de aié 5 elementos. Esses achados sugerem que a percepgio plena do tempo por uma pessoa adulta €, em parte, (1) um construto légico, sfntese de operagdes temporais que so adquiridas pela crianga mediante uma longa experiéncia ontogenética; ¢, em parte, (2) um sistema funcional complexo constitufdo por um conjunto dinamico de sub-fungées psicolégicas ¢ regides cerebrais. interconexas. ® . Metodologia Nés testamos esta hipétese, estudando 92 pacientes dividides em subgrupos de lesées focais demonstradas por tomografia Computadorizada ou ressondncia Magnética cerebral (inclusive 26 com lesées multifocais/difusas e deméncia), bem como 111 sujeitos controles normais (Darnasceno, 1996). Todos os pacien- tes e controles foram submetidos a uma avaliagdo abrangente com o Mini- Exame Mental (Folstein et al., 1975), CID-10 (WHO, 1992), Escala de Deteri- oragao Global (Reisberg et al., 1982), NINCDS-ADRDA (McKahnn et al., 1984), a Bateria Neuropsicolégica de Luria (Christensen, 1979); e testes especificos de percepgio do tempo, compreendendo: orientagdo no tempo oficial (hordrio, dia, més, ano), avaliagao retrospectiva da duragao de 5 minutos, sequenciagao de eventos, discriminagaio de simultancidade e sucessiio, comparagio de duragées, reagio motora condicionada ao tempo, reprodugie de duragGes, produgio da duragio de 1 minuto, e testes de conservagéo da velocidade do pomeiro do relégio, construgio de unidades temporais ¢ tempo psicoldgico. Resultados e Conclusdes A desorientagdo no tempo oficial (DT) estava relacionada a: (1) falta de pistas temporais externas (auséncia de “zeitgebers” sociais ou cronolégicos e/ ou déficit senso-perceptivo); (2) perturbagao do registro e/ou evocagao das informagées (amnésia); e (3) perda das operagées temporais (deméncia). A capacidade de ordenar eventos familiares que ocorrem numa seqiiéncia tempo- tal estereotipada perdeu-se apenas em casos de lesies multifocais/difusas acom- panhadas de deméncia. A avaliagdo retrospectiva de duragées unitérias (p.ex., 5 minutos) parece depender do dominio de operages métricas temporais e da experiéncia com medida de tempo, estando deficiente nos casos em que estas operagées no foram plenamente adquiridas (como em criangas pequenas e em adultos analfabetos) ou se perderam (como em dementes mais graves). A 366

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