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Margareth kag oA tings te ‘Cid Disciplinar £ PAZ E TERRA HISTORIA coe —e 1890: 1930 Indicios de uma anormalidade social, as praticas populates de vi- da e lazer dos trabalhadores fabris, dos improdutivos, dos pobres, das mulheres publicas, das criangas que vagueiam abandonadas nas ruas vao se tornando objeto de profunda preocupacio de médicos-higienistas, de autoridades ptblicas, de setores da burguesia industrial, de filantro- pos e reformadores sociais, nas dé- cadas iniciais do século XX. Cres- cimento urbano-industrial, expansao demografica, na cidade moderna — diz um contemporaneo saudosista — os vizinhos j4 nao se conhecem, nao se pode confiar em quem esta do lado, os sentimentos se tornam mais superficiais, os antigos lagos de so- lidariedade se rompem, a vida ja nao é como antes. Percebidos como selvagens, ignorantes, incivilizados, _ rudes, feios e grevistas, sobre os trabalha- dores urbanos que compoem a clas- se operaria em formagao nos inicios da industrializacgéo no Brasil cons- titui-se paulatinamente uma vasta empresa de moralizagao. Seu eixo principal: a formagdo de uma nova do trabalhador, décil, sub- sso, mas economicamente produ- tivo; a imposicao de uma identida- de social ao proletariado emergen- te, se assim j4 podemos chami-lo. Conjuragaéo do mal, contencao das convulgdes futuras da historia, a tentativa de domesticagéo do ope- rariado passa pela construgdo de um novo modelo de comportamen- to e de vida, que se tenta impor aos dominados, O projeto de integracao do proletariado e de suas familias ao universo dos valores burgueses, do- mesticacado literal que a imagem projetiva de “barbaros” justifica, desdobra-se em miltiplas estraté- gias de disciplinarizacao: mecanis- mos de controle e vigilancia que atuam no interior da fabrica, mas também fora dela. Que perseguem 0 trabalhador em todos os momen- tos de sua vida, até nas horas de la- zer, buscando redefinir sua mancira de pensar, de sentir, de agir e erra- dicar prat e hdbitos considera- dos perniciosos e tradicionais. COLEGAO ESTUDOS BRASILEIROS VOL.: 90 ; A MARGARETH RAGO fs UFF HLA /DeS | SALA DE LEITURA Do cabaré ao lar A Utopia da Cidade Disciplinar Brasil: 1890—1930 2.* edic&o Paz e Terra Copyright by F Luzia Mergareth Rago, 1985 Capa Isabel Carballo (sobre ilustracdes da revista Eu sei tudo, 1920, A.E.L., UNICAMP e foto de O Estado de Sdo Paulo, dlbum publicado em 1918.) Fotos Arquivo EDGARD LEUENROTH Revisaio Suely Bastos Silvio Chages Beatriz Siqueita Abrao CTP-Bresil. Catalogacdo-na-fonte. Sindicato Nacional dos Edffores de Livros, RJ. Rigid Do cabaré go lar : a utopia da cidade dis- Pago, Luzia Margareth ciplinar ; Brasil 1890-1930 / Lusia Margareth. — Rio de Janeiro ; Paz e Terra, 1985, (Colegio Estudos trasileiras : v. 907 Bibliografin. 1. Brasil — Histéria — 1889-1930. 2. Traba- tho © trabalhndores — Brasil — Histéria. 1. Two. 1. Série. 95-0898, ‘ODD-201.05, Direitos adguiridos pele EDITORA PAZ E TERRA S/A Rua Sao José, 90, 11? andar Centro, Rio de Janeiro, RT Tel. 221-4066 Rua do Triunfo, 177 Santa Ifigtnia, SAo Paulo, SP Tel: 223-6522 Conselho Editorial Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasperian Fernando Henrique Cardoso 1987 ¥ Impresso no Brasil / Printed in Brazil *Senhores — (...) essa cidade que todos nds jé vislumbramos com os olhos da imaginagdo, que pode ser uma realidade dentro de alguns meses, essa cidade da satide ¢ do bem-cstar, ser4 visitada por todos os povos, Para ali chamaremes todas as familias honestas que a pobreza e a falta de trabalho tenham varride das regides superpovoadas. (...) Teriamos 14 enormes colégios onde a juventude, educada segundo principios adequados, préprios a desenvolver ¢ a equilibrar as faculdades morais, fisicas e intelectuais, preparar-nos-iam geragOes fortes para o futuro!”. (tlio Verne — Os 500 Miihdes da Begum, 1877) “Na comuna livre (...) a vida é calma, agraddvel, digna de viver. Quase tudo é ali, quase tudo esté ali. O trabalho torna-se exercicio salutar, 0 contato com a natureza é normal. (...) Nao sio necessdrias oficinas gigantescas, para onde, em forma de massa, criaturas humanas, automatizadas, fluem de manha, e de onde, refluam A tarde, num fluir e refluir de rebanho que nao condiz com a dignidade da pessoa humana”. (Serafim Porto — Jornal O Libertdrio) Ao Edu, companheiro ¢ amigo. A Julia © Rago, meus pais. Nota da Autora: este trabalho condensa a dissertagéo de mestrado defen- dida sob o titulo de Sem Fé, Sem Lei, Seni Rei — Liberalismo e Experiéncia Anarquista na Repiblica, sod orientagao do dr. Edgar 8. de Decca (Departa- mento de Histéria do IFCH da UNICAMP, novembro de 1984), Contamos para tanto com o apoio da FAPESP, a quem agradecemos nesta ocasiéo. 8 + {INDICE APRESENTACAO ...... ee ee I INTRODUGAO oo. neces one te Feb eae WSs HIRE WAS i I. FABRICA SATANICA/FABRICA HIGIENICA . sa Bi Uma nova economia dos gestos 19 As resisténcias cotidianas do proletariado we 27 A pedagogia “paternalista” dos patter SS Purificar 0 espago fabril........ ax ST © controle da fabrica: os anarquistas € 8 autogestio _. 47 II. A COLONIZACAO DA MULHER ol De volta: ao dar 2... ce eens ce nte ope hele aioe om 62 O mito do amor materno é 7A Seqiiestro da sexualidade insubmissa ........ - 85 Os anarquistas e 0 campo da moral ...... demtay, “OS! ll. A PRESERVACAO DA INFANCIA . 117 Apropriac&o médica da infancia . ‘i 117 O trabalhador infantil no imagindrio operdtio < 135 A resisténcia dos pequenos trabalhadores 145 ‘A pedagogia libertéria ¢ a formagdo do homem novo .. 146 IV. A DESODORIZACAO DO ESPACO URBANO ....... 163 Gestiio higiénica da miséria .......... Do publico ao privado; um desiocamento A disciplina das vilas operarias ...... . Gestao “‘cientffica” da habitagao popular . Imagens libertarias da cidade do futuro ... V. CONCLUSAO ..........06- Fetinensie deeaaseees age QOS VI. BIBLIOGRAFIA ........-- 1 sae 207 9 APRESENTACAO Este prefacio merece uma explicagao. Estévamos cu ¢ a autora em busca de uma inspiracio que melhor traduzisse ao ptiblico a abrangéncia de sua pesquisa, quando nos veio a idéia que tanto persegue os temas literdrios: a imagem do duplo. Lembrei-me do conto de Borges O outro assim enunciado pelo autor: “esta aparicio espectral terd procedido dos espelhos do metal ou da 4gua, ou simplesmente da meméria, que faz de cada um um espectador e um ator. Meu dever era conseguir que os interlocutores fossem bastante diferentes para serem dois e bastante parecidos para se- rem um”, ~ Vasculhando as prateleiras da biblioteca da UNICAMP caiu-me nas mfos inesperadamente o duplo deste livro. Descobri que em outro lugar, por coincidéncia, no mesmo ano de 1980, data de inicio desta pesquisa, acontecia na Itélia um Coléquio de historia. dores. Esta insdlita coincidéncia me surpreendeu ainda mais quando yerifiquei que a Revista Movimento Operdrio e Socialista, que estava em minhas maos, mudava seus rumos editoriais, no inverno de oitenta, diante dos inesperados resultados do coléquio. Na minha meméria a autora também apareceu no ano de oitenta. Apés longa auséncia, seu retorno 4 Universidade era um refazer de caminhos, uma mudanca de rumos. Uma meméria que me foi ativada pela presenga de uma revista que em minhas maos falava dos novos rumos que eu mesmo escolhera alguns anos atras. Estranha posigao, de me sentir como espectador e como ator. Diante da revista e diante da autora, Também com ele, em 1980, eu me vi espectador — cheio de expectativas — e que no convivio com sua pesquisa eu também recriei meus caminhos. Fu me tornava ator em minha prépria meméria. Mas tal como Borges, preciso emergir do fundo dos espelhos e devo conseguir — como respons4vel pelo prefacio deste livro — que os interlocutores sejam bastante diferentes para serem dois e bastante parecidos para serem um. Se me perguntassem qual o tema central deste livro eu respon- deria com o nome de seu duplo, Cultura Operdria e Disciplina Indus- trial, titulo da Revista Movimento Operdrio e Socialista (janeiro — margo de 1980). A chave para a indagacado de Borges nao é de dificil solugao em se tratando da Revista. O que acontecetia se juntdssemos num coléquio tendéncias da historiografia inglesa, francesa, americana e italiana? As diferencas sfo evidentes. Nao é possivel confundir os percursos de uma historiografia inglesa, a qual deve sua renova- céo & E. P. Thompson, com a historiografia francesa inspirada reconhecidamente nos trabalhos de Michel Foucault. A polarizagao estd presente no proprio titulo, A cultura operdria 6 um tema amplamente pesquisado pelos seguidores de Thompson e a disci- plina industrial est4 indissociavelmente ligada a Michel Foucault. A riqueza deste coléquio, entretanto, esta no fato de que ele desfaz linhagens historiogrdficas nacionais. H4 historiadores ingleses ins- pirados em Foucault ¢ historiadores franceses seguindo as sendas de E. P. Thompson. Enfim, o tema do coléquio nos coloca diante de novos horizontes de abordagem histérica das classes trabalhado- ras. Por isso, néo se pode csqueccr que para além da cultura ope- r4ria e da disciplina industrial, a temética originalmente aberta pelo italiano Mario Tronti ¢ pelo americanc Dayid Montgomery sobre o controle operdtio do processo de trabalho nas fabricas, mudam radicalmente as interpretagdes do papel desempenhado pelos trabalhadores diante da técnica e da autoridade patronal. Para o ptblico brasileiro alguns esclarecimentos devem ser feitos. Boa parte dos historiadores que renovaram o estudo das classes trabalhadoras na Europa e nos Estados Unidos nao tém suas obras traduzidas para o portugués. Apenas para citar alguns exem- plos, lembraria que a renovacdo da historiografia marxista sobre as classes trabalhadoras deve-se principalmente ao ja classico livro de E.P. Thompson, The Making of the English Working Class, editado em 1967. Por outro lado, se ja existe a traducio brasileira do livro de Michel Foucault Vigiar ¢ Punir, nao ha nada relacio- nado com a renovacio das tematicas historiogr4ficas abertas pelo W | | SALA DE LI autor, Nas palavras de Michelle Perrot, uma historiadora pouco conhecida entre nés, “Vigiar e Punir — mais do que um estudo sobre as origens da prisao é uma pesquisa sobre o conjunto destes fenémenos solidérios entre si. Se trata de uma obra fascinante ¢ extraordinariamente estimulante para o historiador que nao procure a muito cOmoda seguranga de um esquema; ele deve ao contrario articular a reflexdio, muitas vezes tedrica e abstrata, com os parti- culares da vida conereta, coordenar os diferentes niveis e tentar recolher as especiticidades. Apesar das analogias formais a fabrica nio € 2 prisio, e por outro lado seu problema tem sido o de obter dos individuios livres uma presenga regular e a pontualidade. Onde a indtstria moderna conseguiu a sua mao-de-obr2? Como campo: neses, artesios ou errantes foram transformados em operdrios? Através de quais meios? Com quais estratégias? Quais foram as etapes destas mudangas? Quais foram as conseqiiéncias da tecno- logia; qual, por exemplo, o papel das m4quinas? Estas modifica- ram, e como, a disciplina? Qual foi a importancia da resisténcia contra este novo modo de trabalho e de existéncia? Eis algumas interrogacdes postas pela génese da disciplina industrial”. (Le tre eta della disciplina industriale nella Francia del XIX secolo). ‘Além dos estudos da prépria Michelle Perrot, o universo fou- caultiano ampliou-se com a divulgaco dos trabalhos do grupo de pesquisadores da revista francesa Recherches. Durante vérios nt- meros da revista foi debatida a questéio da génese da disciplina industrial, ampliando o enfogue da disciplina dos trabalhadores para além dos muros da fabrica, atingindo todos os aspectos de cua vida cotidiana. Sio exemplares nesse particular os mumeros da revista Recherches, “Le petit trayailleur infatigable’” (1976), “Disciplines & domicile” (1977), “Les Haleines du Faubourg’ (1977), “Le soldat du travail” (1978). As diferéncas de abordagens em se tratando de Thompson e Foucault sdo significativas. Para o primeiro, as classes trabalhadoras séio sujeitos de sua propria histéria, e por isso, a énfase dada a questao da experiéncia de classe € do fazer (making) de uma cultura de classe. Com os seguidores de Foucault desloca-se significativa- mente o eixo da experiéncia e/ou da cultura das classes trabalha- doras, acentuando-se o significado da acao disciplinar de intimeros agentes sociais na producao do colidiano ¢ da identidade dos tra- balhadores, atrayés da criacio das instituicGes basilares da socie- dade, tais como a famflia nuclear, a escola ¢ a fabrica. . Aléin dessas pelarizagdes nao se pode negligenciar a jmportan- at cia do debate aberto por Mario Tronti em Operdrios e Capital e por David Montgomery em Worker’s Control in America sobre a questao da autonomia operdria e¢ do controle do processo de traba- Tho no ambito dos conflitos internos da fbrica capitalista, questio- nando a fundo o problema da alienacgo colocado pelo debate marxista, Instigante campo de reflexio tanto na Itélia como nos EUA a partir dos anos 70. Com Mario Tronti emerge a tradigao italiana dos conselhos de fébrica, que, tematizada por Antonio Gramsci, também por ele foi banida do universo do pensamento politico, David Montgomery, ao mesmo tempo, resgata a questdo do controle operério no processo de trabalho, reavaliando historica- mente a oposicao operdria A introducao do taylorismo nas fdbricas americanas. © leitor pode estar se perguntando porque eu até agora s6 falei do duplo deste livro, Mas o que fazer, se eles sao bastante parecidos para serem um? Num mundo onde a falta de densidade das coisas € tao desconcertante, ainda assim devemos demarcat os limites. Infelizmente, o paradoxo de Borges s6 vale como enunciado no ambito deste prefacio. A liberdade do literato nao é a mesma do historiador. Qual € a singularidade deste livro? Qual é sua densidade, mesmo reconhecendo a existéncia de seu duplo? O leitor logo perceberaé. A densidade esté na sua trama, na forma pela qual a autora, convivendo com o debate instaurado pelo seu duplo, preduz uma singularidade inconfundivel pelo arranjo que ela dé aos ele- mentos de sua histéria. No entanto, aqui iremos encontrar Thomp- son, porque se fala de experiéncia e de cultura operdria. David Montgomery ¢ Mario Tronti instigam a autora e cla cede sabia- mente a tentagao, investigando as praticas e as resisténcias operérias pelo controle do processo de trabalho. Também visitaremos Fou- cault porque num universo sem densidade ¢ sem limites a disciplina recobrindo a fdbrica, espraia-se também pela escola, pela familia, na sexualidade da mulher e na educacao das criancas. Depois desta histéria perguntaremos onde acaba a fabrica e comega a familia, ou também, como delimitar a sexualidade da mulher diante da educagiio dos filhos?, etc, etc. O leitor ao se enredar na trama deste livro descobrird que, tanto os trabalhadores produzindo sua cultura, como as normas disciplinares a eles impostas pela fabrica, peles varias agéncias do poder pdblico ou privado regulando a sua maneira de morar, a sua saiide, a sua educacao, a sua sexualidade, enfim todo este universod Iv a de praticas histéricas, esté contido no perfodo que boa parte de historiografia denomina de Primeira Reptblica. Se todas estas préticas sociais puderam ser tematizadas pela autora no campo onde uma historiografia sé vé Reptiblica Velha € mundo oligérquico, nada mais resta a dizer, a no ser: vamos mudar de assunto! Desejo-lhe, caro leitor, uma boa viagem. Outubro, 1985. Edgar Salvadori de Decca Penso que perderiamos a dimensao da utopia anarquista se uot mantivéssemos presos & l6gica do partido. Afinal, os libertarios ifundem uma outra concepcao do poder, que recusa percebé-lo apenas no campo da politica institucional, Por isso mesmo, desen- idiana. Propdem miiltiplas fo: ; = as i nie de resisténcia politica, que investem contra as relacdes de poder onde quer que se constituam: na fabrica, na escola, na famflia, no bairro. na tua. Desvendam os intimeros ¢ sotisticados mecanismos tecnolé. gicos Fe saerelelo da dominagao burguesa, andlise do poder em sua positividade, 5 que se exerce molecular, ininterrupta e ‘iliac ee bs Scininlos da vida social, produzindo individualidades, ades- ‘ando os gestos, elevando a rentabilidade do trabalho — eo; aponta Michel Foucault —, abre toda uma Perspectiva metodold; fea ae, permite tepensar a atuacdo dos anarquistas a partir de Bites Taetnetios} Embora situados em campos tedricos e metodolégicos erenciados, Thompson e Foucault chamam a atengaio para outro: momentos do exercicio da dominacao burguesa, possibilitando 7 put as Praticas politicas “nGo-organizadas” do proletariado ¢ estazer o generalizado mito do atraso e do apoliticismo dos liher- tarios. Com estas lentes e co jeti acd m estes objetivos, penetrei no interi fabricas, dos bairtos e vilas operari fa arate no pais, atenta para todas as manife pelo discurso Ppatronal Cobertas foram muitas. Ao leitor : Viagem. .. , Marga, julho de 1985, 2. Michel Foucault, Vigiar e Punir. Petrépolis, 14 ‘Vozes, 1977, 1, FABRICA SATANICA/FABRICA HIGIENICA Na pequena e mal iluminada sala da gréfica situada & rua Santa ‘Cruz da Figueira, n.° 1, em Sao Paulo, o tipégrafo Edgard Leuen- ‘foth conversa com alguns companheiros. Discute com o advogado ‘Neno Vasco ¢ com 0 linotipista Mota Assungao a claboragao do meiro niimero de um jornal operério: A Terra Livre. O espanhol lanuel Moscoso também participa da reuniao. Estamos no ano de 1905. O primeiro ntimero deste periddico anuncia: i Somos sccialistas e anarquistas. Como socialistas, atacamos 0 instituto da propriedade privada ¢ a moral que a tem por base. No monopétio da riqueza produzida por todos, sem que a parte de cada um possa rigorosamente ser determinada, na apropriacio individual da terra, dos meios de produgio e de comunicagiio, bem como dos produtos, vemos nés a origem principal da miséria e do aviltamento da grande maioria, da inseguranca e da inquietagéo de todos (...) Qucremos uma sociedade que tenha por fim assegurar a cada um o seu desenvolvimento integral; uma sociedade em que © trabalho, tendendo A satisfagio das necessidades do individuo, seja escolhide por cada um ¢ organizado pelos préprics trabalha- dores. Tomamos o nome de anarquistas ou libertarios, porque somos inimigos do Estado, isto é, do conjunto de instituicdes politicas que tém por fim impor, a todos, os seus interesses e a sua vontade mas- carada ou nao com a vontade popular (A Terra Livre, 10-12-1905), Com o advogado Benjamin Mota, o mesmo tipégrafo reunia-se de 1901 para editar o jornal A Lanterna, que ficaré famoso por anticlericalismo, Neno Vasco, figura proeminente do movimento parco-sindicalista europeu, dirige em Sao Paulo O Amigo do Povo jarticipa ativamente da redagao de A Terra Livre. Outro conhecido 15 ‘nquanto que em » inaugura outro S40 que me causal a sam de um periodo que ver ieee idéias © de acontecimentos verso vai-se delinea 5 ntemente recuper delineando gradativamente aos meus eee Um uni- inevitavel dade, que paulatinamente ganha a adestio de milhares de trabalha- dores, a0 acenar com a promessa da instituigéo de um mundo em que cada homem ser4 dono dos préprios atos. Propondo a reorgani- zacio da atividade do trabalho e dos miltiplos campos da vida social, espelham os desejos e prometem realizar as perspectivas de intimeros trabalhadores, frustrados passo a passo pela imposigaéo incessante da vontade dos dominantes. O movimento alastra-se rapidamente, conquistando varias fé- bricas, milhares de trabalhadores, a despeito de toda a violéncia da repressao organizada pelos setores privilegiados ¢ das indimeras estratégias disciplinares constitufdas com o objetivo de produzir uma nova figura do trabalho, politicamente submissa, mas economica- mente rentavel. “Desde cedo, afinal, os dominantes véem desmoronar a imagem disciplinada ¢ laboriosa que haviam projetado sobre o imigrante europeu. “Nem da Asia, nem da Africa”, os trabalhadores prove- nientes do sul da Europa, brancos e civilizados como se desejara, trazem consigo nao apenas uma forcga de trabalho, mas todo um conjunto de expectativas, de valores e de tradiges culturais. Ao entrarem no pafs, fazem explodir todas as projegdes continuamente langadas sobre seus ombros, procurando cada vez mais incisiva- mente afirmar sua propria identidade. Indolentes, preguigcsos. boé- mios, grevistas ou anarquistas, segundo a representacdo imaginaria construfda pela sociedade burguesa, lutam para definir sua nova identidade, a partir dos sistemas de representacdes. dos valores e| das crengas que lhes sio proprios.' As expectativas burguesas projetadas sobre o imigrante recém- chegado se frustram continuamente, Em contrapartida, os indus- triais procuram fixar sua mao-de-obra nas fabricas, recorrendo a indmeras tecnologias de disciplinarizagdo, incessantes e ramnificadas. Do interior do espaco da producao ao percurso de volta a casa, penetram em sua habitacio, invadindo e procurando controlar até mesmo os momentos mais inesperados de sua vida cotidiana. Mais do que qualquer outro grupo social, os imigrantes aparecem aos olhos dos setores privilegiados da sociedade imersos num estdgio ameagador de transigio: recém-saidos de seus paises, de suas regides de origem, ainda nao definiram 0 novo modo de vida. Como sera ele? O desconhecido assusta: é preciso que se ensine aos trabalhado- 1, Maria Stella Bresciani, Liberalismo: Ideologia e Conirole Social. Tese, de Doutoramento, USP. 1976. 17

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