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A CRISE DO SISTEMA ESCRAVOCRATA E AS INTERPRETACOES MITICAS DA REALIDADE SOCIAL Liana Maria Salvia Trindade * RESUMO Estudo sobre a religiosidade afro-brasileira durante a crise do sistema escravocrata. Os rituais magicos africanos, os movimentos messidnicos do catolicismo e o discurs profético kardecista constituem sistemas de conhecimento, interpretacdes miticas e organizacoes culturais ante d situacao anémica da sociedade. Unitermos: religides afro-brasileiras — messianismo — magia —anomia social —abo- icionismo Durante a segunda metade do século dezenove, as principais atividades produtivas da nagdo estavam centralizadas em torno da primazia da grande lavoura cafeeira do sul do pafs que substitufra a decadente lavoura canaviei- ra do nordeste. A hegemonia desta lavoura na economia nacional resultara da correlagio de fatores externos provenientes da conjuntura internacional de mercado, que favorecia a exportagao do café em detrimento de outro produto exporta- do, a cana-de-agticar, que, nao apenas) no Brasil, mas também nos demais pafses produtores deste, entrava em declfnio. Internamente, a expansao da agricultura cafeeira foi favorecida tanto pela fertilidade do ‘solo paulista (que propiciava este cultivo) como pela introdugao da mao-de-obra escrava em outras regides do pafs. A paulatina entrada da emigragdo européia nas re- gies paulistas aumentava e modificava o contingente de mio-de-obra e as relag6es de trabalho na monocultura cafeeira. A cidade de Sao Paulo estrutura-se em funcio da atividade agricola de provincia constitufda como um nucleo comercial de exportagdo cafeeira, on- (*) Professora Assistente Doutora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. ¥ Rey.Inst.Est.Bras., SP, 30 : 61-70, 1989 61 de concentram-se os bancos, a administracao e as diversas atividades ocupa- cionais decorrentes da produgao e comercializacéo do café. O crédito agrf- cola, organizado através de um incipiente sistema bancério, propiciar4 ope- rag6es de intermedidrios nos negécios do café e a acumulacao de capitais provenientes do crescimento paralelo do comércio cafeeiro. A elite cafeeira paulista expande seus interesses econémicos através do investimento deste capital, acumulado na comercializagao do café, em outras atividades produtoras de artefatos que irao substituir o acanhado artesanato do perfodo colonial.! Os dados encontrados nas estatfsticas de 1872 sobre as atividades eco- némicas existentes na cidade de Sao Paulo indicam os seguintes sistemas de servigos e de produgao: trabalhos em metais, madeira, tecidos, edificagées, costura, vestudrios em couro e peles e calcados; mineiros, servigos domésti- cos, criados e jornaleiros; incluindo-se a categoria ‘‘sem-profissao”’, perfa- zem um total de 3.620 atividades registradas nas freguesias da Sé, Santa Efi- génia, Consolacio, Sao José do Belém, Bras, Guarulhos, Nossa Senhora do e Penha.2 Florestan Fernandes (1959) demonstra que, no quadro de distribuicdo destas atividades ocupacionais entre o trabalhador escravo e¢ 0 livre, estas novas atividades econémicas, nascidas do crescimento do comércio e da produgio urbana, estado mais orientadas para o segundo. Os dados apresentados pelo autor revelam, j4 em 1872, a eliminacgao Progressiva do trabalho escravo nas atividades ocupacionais existentes nas zonas urbanas e¢ rurais da capital paulista. Nesse mesmo ano, a populagao de trabalhadores livres, constitufda de ex-escravos alforriados e brancos, totali- zava 27.557, enquanto que o ntimero de escravos existentes perfazia um total de 3.828 indivfduos.3 Os ex-escravos, que nao haviam recebido nenhum apoio institucional que os preparasse para uma atividade auténoma, foram reduzidos, principal- mente,ao exercicio de servicos domésticos ou ficaram marginalizados perante © sistema de produgdo em Sao Paulo.4 Os servigos domésticos eram ocupa- dos por 1.304 escravos e 3.506 trabalhadores livres. A atividade agricola, que durante a década de 70 era exercida pelos es- cravos, passa a ser ocupada pelo imigrante europeu, devido a uma politica econémica de colonizagao estrangeira na agricultura cafeeira. As primeiras col6nias paulistas sao criadas em 1827 e expandem-se entre 1847 e 1857 com a criagéo de 60 colénias particulares com sistema de parcerias, utilizan- do nelas cerca de 6.000 colonos portugueses, alemfes e sufgos. Em 1875 a colonizagao oficial estabelece varios micleos coloniais e canaliza para a agricultura’ paulista a corrente migratéria de italianos. Segundo o recensea- (1) BASTIDE, R. & FERNANDES, F. Brancos e negros em Sdo Paulo. 2. ed. Sio Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959. p, 40. (2) Idem. Ibidem. p. 44. 3) Idem. Ibidem, p. 45. (4) Conforme os dados apresentados por FERNANDES (op. cit. p. 45), os servicos domésticos exercidos por escravos representavam cerca de 40% de suas atividades ‘ocupacionais. 62 Rey.Inst.Est.Bras.,SP,30 : 61-70, 1989 mento apresentado por Florestan Fernandes, se em’ 1872 os trabalhos agri- colas eram exercidos por 826 escravos e 3.704 trabalhadores livres, podemos inferir que esta diferenca significativa tender4 a aumentar trés anos apés de- vido & iniciativa oficial de introdugao sistemética de imigrantes italianos na agricultura. Nao tendo sido elaboradas novas formas de aplicagao do trabalho escra- vo, como assinala F. Fernandes, intensificam-se certas formas de exploragao escrava, mantendo-se a mentalidade escravocrata na continuidade de rela- g6es sociais tradicionais entre os senhores e os negros “‘do sobrado”’, ou se- ja, aqueles que exerciam fungGes domésticas nas casas dos senhores, ao se- rem alforriados, passam a ser alugados para os servicos domésticos ou ma- nuais. Os negros do ‘‘eito”, que caracterizavam a exploracdo escrava no universo rural, passam a ser marginalizados pelo sistema de produgao agri- cola & medida em que se formam col6nias e que progressivamente se ocupa da mao-de-obra européia. O processo de urbanizacao da cidade de Sao Paulo e sua industrializacao durante as décadas de 70 e 80 resultam do afluxo de capitais nacionais pro- venientes da comercializagao do café e dos recursos antes investidos no tré- fico negreiro, assim como de capitais estrangeiros, principalmente ingleses, anglo-canadenses ¢€ norte-americanos, os quais foram empregados na multi- plicagao de vias férreas, no aproveitamento do potencial hidrelétrico do pla- nalto paulista, na melhoria dos servigos de bonde e no desenvolvimento in- dustrial.5 Porém, este desenvolvimento econémico nao chegou a beneficiar de ma- neira significativa as camadas sociais subalternas, que eram as mais atingidas pelas epidemias (como a varfola e a tuberculose); vivendo em condigées in- salubres na periferia da cidade, sem os beneffcios de uma polftica voltada ao saneamento bdsico. Durante a década de 70, 0 processo de urbanizaciio nio encontrara adequagoes basicas habitacionais e ambientais para o atendimento social da populagao. O relatério da Secretaria de Polfcia de Sao Paulo, datado de 1874, traz o seguinte parecer: O reaparecimento da variola.(apés o surto ocorrido em 1858) e sua permanéncia nao pode deixar-se de atribuir, em parte, A falta de boas condigdes higiénicas desta cidade. Nas ruas nado hé asseio, valas insalubres cortam a cidade, em alguns lugares margeados por uma vegetacao que apodrece pela acao de 4guas plitridas e estagnadas, servindo o seu leito para despejo publi- co. A aglomeracao de pessoas em casa sem ventilagao, sobre- tudo nas quitandas, nao é menos nociva (...). Os cad4veres de variolosos séo inumados nas quadras destinadas para casos comuns e as sepulturas para adultos nao tém mais de 7 palmos de profundidade. Neste mundo rural e urbano da provincia paulista, a crise do sistema es- cravocrata relega os negros a uma situacdo de marginalidade social € situa-os (5) Cf: MAFFEI, Lucy Hutter. Imigracdo italiana em Sdo Paulo 1902/1914: 0 proceso migratério. Sao Paulo, IEB/CESP, 1986. Rey.Inst Est Bras.,SP, 30 : 61-70, 1989 63 em posi¢ao de inferioridade fre; tepleto de » que vao desde salteadores até mesmo o desemprego, a fome e as epidemias, os negros'encontraram forinas poss{veis de acao — 'seja através da fuga para a realizacdo iluséria da liberdade ou através das representagées € Titualizagoes da religiosidade africana —, com uma compreensio existencial definida que lhes fornecia os quadros sociais de referéncia e situavam-nos na vida social. Os noticiérios de jornais, ao denunciarem as fugas dos quilombos e a existéncia de “‘sess6es noturnas” de “‘feiticaria”’ (cultos organizados, presi- didos por sacerdotes como Felisberto Cabinda e Joaquim Mina, cujos cog- nomes revelam suas descendéncias étnicas), localizados em nicleos rurais e residenciais urbanos, expressam os sentimentos de temor das classes domi- nantes ante estas ocorréncias. Intensifica-se nesta época a concepgao do ne- gro, e de sua cultura, como uma ameaga intrinseca A ordem social. : Os jornalistas destacam em suas noticias a presenca de lideres negros, denominados “‘sacerdotes de cultos maléficos”” no interior da provincia de Sao Paulo. O nome de Felisberto Cabinda é apresentado como “um dos s4- bios pregadores do famoso Juca Rosa, que faz PprelegGes perante numeroso auditério de escravos e alforriados em sua casa na rua Supirity em Soroca- ba’”’.6 A mesma notfcia indica os elementos apreendidos pela policia na resi- déncia de Felisberto Cabinda: ‘‘rafzes, imagens, (PatwAS, facas, garrafas com Ifquidos e folhas secas’’. Podemos inferir deste relato que estes objetos apreendidos compdem um is amplo, possivelmente de origem Banto, la a denominagao étnica Cabinda que acompanha o nome de seu Ifder re- ligioso. Genericamente, as rafzes e garrafadas fazem parte da medicina po- pular, enquanto que as facas, utilizadas em rituais de sacrificios de animais e os patuds, sao elementos especificos dos cul- tos africanos. As imagens, apenas citadas no artigo, deveriam compor um provavel altar. Devido a auséncia, nos noticiérios, de descrig6es dos rituais, inferimos a presenca da’ religiosidade africana como forma organizada de culto e a transmissio do conhecimento religioso na comunidade negra através das meng6es ocasionais encontradas nestas noticias. Os jornais assinalam o co- nhecimento doutrinério e as formas de difusdo das crengas “através de pre- gagoes doutrinfrias realizadas por sacerdotes, discfpulos de Juca Rosa’’. Deste cardter de doutrinagfio e consulta, encontram-se teferéncias, por exemplo, no jornal A Provincia de Sdo Paulo, datado de 06.06.1879, onde relata-se a prisio de um preto velho, em Braganca; “cuja casa era freqiien- temente procurada por forros e cativos que vao consultar e receber lig6es de bruxaria (...) havendo mesmo reunides em certas noites com cardter de ses- s&o fatidica’’. Verifica-se nestas redagées a utilizagao de termos significativos como “fatidica”, “‘sessdes noturnas”, “‘propagadores”, “‘sacerdotes maléficos” e (6 APROVINCIA DE S. PAULO, Sio Paulo, 31 out. 1876. 64 Rey.Inst.Est Bras.,SP,30 : 61-70, 1989 “sociedades malditas’” como atributos dados as reunides teligiosas e que eram tidas, pelos redatores, O jornal A Provincia de 6, enfatiza de maneira genérica a ocorréncia de pritica de feiticaria ¢ a existéncia de “propagadores de venenos” ao relatar, na cidade de Tieté, a ocorréncia de “‘reunides notur- nas com sessGes onde participam pessoas do’ povo, presididas por Mama Catarina”. Estes encontros fazem parte, segundo o redator, de uma “‘maldita sociedade’’. Considera-se atemorizante, sobretudo, o fato de haver formas societérias propiciando a reunidio de negros e a construcdo e propaga Nota-se que as noticias contém a intencionalidade impl{fcita dos redat res, que referem-se aos objetos de culto, encontrados nas residéncias invadi- das pelos policiais, como elementos dispersos, fora do contexto costumeiro de referéncia e nao contextualizados ritualmente. A medida que as préticas religiosas nao aparecem niencionadas nestes relatos, os objetos destas prati- cas aparecem deslocados, sugerindo ao leitor uma idéia de estranheza e de- sordem. Registra-se, em marco de 1890, a deniincia da existéncia de um batt contendo “feitigarias” em um rancho no caminho da Barra (situado na cida- de de Santos), “‘onde residia o casal de pretos feitigeiros Antonio Lopes e Maria Joaquina’”’. Neste bavi foram encontradas “‘rafzes de cip6, pedacos de pano cheios de nés, lencgos amarrados, umas garrafas contendo rafzes de gui- né, pele de leopardo'e mais drogas, além de muitas outras bugigangas”’.” A imagem do lider religioso negro funde-se Aquela do quilombola, sim- bolizando a desordem e a violéncia criminal. Desta maneira, os Quilombos, assim como as residéncias dos sacerdotes dos cultos africanos, sao descritos como lugares fatidicos, marcados pela pi jetos distintos, cuja combinagao estranha transformam-nos e1 QO relato do jornal Didrio Popular sobre um quilombo; em Itu, invadido pela policia em julho de 1886, enfatiza o fato de se haver encontrado neste “uma engenhoca de moer cana, rafzes, cabegas de cobras e mais traquitandas do. ae As recompensas pagas pel iO € perseguicdo dos quilombolas propi- ciam a comercializacao destas capturas realizadas pela prépria polfcia. No Didrio Popular de 24.12.1884, um jornalista critica a atuagao dos agentes policiais que estimulam as fugas de escravos, buscando gratificacées faceis. (7) OESTADODES. PAULO, Sio Paulo, 2 mar. 1890. Rey.Inst Est Bras., SP, 30 : 61-70, 1989 65 Isto ocorre de tal maneira, escreve o redator, que os policiais yao as fazendas préximas da Capital desencaminhar os escra- yos, aconselhando-os a fugas para a Capital, indicando-lhes para onde devem ir. Os pobres escravos, dias depois do con- vite, com a promessa certa da almejada liberdade, dirigem-se para esta cidade, onde sao encontrados e guardados pelos seus sedutores, até que aparecendo neste ou naquele jornal a gratifi- cacao esperada, sao os pobres pretos entregues a seus senho- res, sem a menor formalidade. As expectativas de liberdade e construgdo de sua autonomia e identidade social, a serem realizadas através das formag6es comunitdrias dos quilombos, irfo conduzir os negros a intensificagao dos conflitos sociais. Em 09.07.1886, o jornal Didrio Popular destaca nessas fugas o temor da populacao: ‘‘os habitantes das proximidades do bairro de Ressaca estao im- pressionados com o facto de haverem apparecido, por aquellas paragens, al- guns escravos fugidos. Consta-nos que estes quilombolas sao os mesmos que h4 pouco tempo assassinaram um fazendeiro num bairro da Rocinha e com- meteram outras atrocidades nos Municfpios de Jundiay e Campinas’. Dias depois, o mesmo jornal, em uma noticia intitulada ‘*Caga aos Qui- lombos”’, relata que “‘foi encontrado em um Quilombo deserto, situado no Municfpio de Piray, 0 cadaver de um ex-escravo, com os pés amarrados e a cabega mutilada’’. Qs jornais revelam ec, ao mesmo tempo, estimulam o conflito entre ne- gros e brancos, ao denunciarem a existéncia de formagGes e de quilombos, descreyendo-os como ameacadores e atemorizantes. As imagens negativas dos negros) que; construidaspela:imprensa, estao contidassnassrepresentacoes, simbolicas-dos quilombolas e “feiticeiros” ex- Pressam ‘as’ noc6es: preconcebidas pela ideologia dominante, favorecendo a tendéncia’ geral' de uma politica discriminatéria de exclusao do negro a uma maior participagao social na nova sociedade emergente. As fugas, as revoltas e os numeiosos quilombos formados nos iltimos anos do periodo abolicionista manifestani/a consciéncia dos negros da de- sintegragéo de um)sistema de dominagao provocada pelos préprios domina- ores.) Nao Sendo’ os agentes principais deste processo, eles temem e sentem- se inseguros em relacao a sua situagdo social futura e procuram em sua cul- tura‘a forma aut6noma de construcdo de seu destino. O pensamento africano.compreende.o.destino-humano como um proces- so de ‘telagoes\entre forcas sociais, cosmicas'e naturais, Este processo é in- terpretado através dos signos dos jogos adivinhatérios, como o colar ou rosd- tio de Opele-Ifa e dos biizios, presididos pela divindade Ifa que, auxiliada por Exu, rege o destino humano. Qs noticiarios da época indicam a presenga, neste mesmo periodo, da arte adivinhatéria Opele-Ifa. Nota-se, na descrigéo dos objetos apreendidos pela policia, em 1880, durante a prisao do negro escravo Félix, na cidade de Sao Roque, referéncia a nove ros4rios de contas de capim. Embora 0 relato mencione contas de rosdrio feitas de capim e nao de nozes de manga, con- forme so comumente conhecidas as contas de Opele, sua forma faz-nos de- duzir a presenga, na provincia de Sao Paulo, deste jogo adivinhatério. 66 Rev.Inst.EstBras.,SP,30 : 61-70, 1989 Este jogo consiste em decifrar a disposigao das contas apds a queda do rosario, o que revela os vaticinios do consulente. O rosario Opele, cuja for- ma € associada ao rosario do catolicismo, onde espacgo a espaco (como no. Padre-Nosso de um tergo) coloca-se a metade de uma noz de manga, é joga- do ¢ interpretado pelo adivinho ou babala6.8 A combinagao de contas, confi- gurada na queda deste colar, constitui a mensagem ou discurso mftico de um Orixé determinado. Para cadacombinacao ou Odu hé a resposta de um ou mais Orixds, que revelam, através de seus relatos miticos,/aysituagdo,eas formas de defesa e resolugao de seus conflitos. Ainda neste mesmo artigo de jornal é encontrada referéncia a ‘‘sessGes de cura”’ realizadas por Félix. Comenta o jornalista que este ‘‘feiticeiro” fa- zia cruzes nas mios e no peito de seus adeptos com uma navalha e que, entre os objetos de culto mencionados, encontravam-se um crucifixo, cinco ora- ¢Oes manuscritas e uma garrafa contendo pés. Podemos deduzir. que cstas.“‘sessGes\deé cura’’ sao ritualizagdes do “‘fe- Ghiainento de corpo”. Este ritual magico de protecao fisica e psiquica contra todos os maleficios, também denominado de)“cura®, geralmente sucede a interpretagdo dada pelo jogo adivinhatério, quando sao reveladas as causas dos inforttinios do consulente. Ser curado, portanto, tem um significado mais amplo.do que aquele dado a terapia, pois, trata-se de uma‘prep: ) Corpo- ral voltada ao combate das forcas contrérias que atuam sobre o iduo que S€)Sente/atingido/e/ameacado. Este ritual ira proporcionar ao adepto a segu- Tanga emocional necessaria 4 luta contra os inimigos reais ou imagindrios. Neste momento histérico, os negros quilombolas enfrentavam as perse~ guiges policiais e combatiam todos aqueles que se opunham a sua luta li- bertdria. Por sua vez, os negros alforriados, sentiam-se inseguros em relacao. a sua nova posicao social.\O “fechamento de corpo” fornece 6 reforco de um sistema de seguranga m4gico para a defesa e agdo dos negros frente aos conflitos e incertezas sociais. Neste ritual, o sacerdote (babalorix4) faz com uma navalha pequenos cortes em forma de cruzes e tragos verticais na pele das maos, nos bragos, no peito e nas pernas do consulente. Gisele Cossard, ao descrever o ritual de “‘fechamento de corpo’’, con- forme é realizado no Candomblé de Angola, faz referéncias a utilizagio de um crucifixo que € colocado na cabega do paciente, durante a cerim6nia. A “‘pemba’’, ou p6 branco de giz, é acrescido de diversos outros ingredient como a noz-moscada, a folha de sertéo, os graos de cipreste, a lavanda, os. 6leos santos e o pé da pedra do altar sacralizado que, preparados, sao passa- dos no corpo do individuo.? Os lideres religiosos mencionados neste perfodo da crise escravocrata, tais como Juca Rosa, Felisberto Cabinda, Joaquim Mina e Marcelino, !0 ret- nem os adeptos das regides urbanas e rurais da provincia paulista{fa trans- (8) BRAGA, Juliano Santana. O jogo ae buzios: um estudo das priticas divinatérias nos cultos afro-brasileiros. MS. p. 20. (9) COSARD, Gisele Binon. Contribution 4 f étude des candombles au Brésil. MS, 1970. (10) A PROVINCIA DE S. PAULO, Sio Paulo, 3 out. 1876. DIARIO POPULAR, Sio Paulo, 7 maio 1885. O ESTADO DE S. PAULO, Sio Paulo, 27 abr. 1898. Rev.Inst.Est Bras., SP, 30 : 61-70, 1989 67 A teligiosidade africanalprove)a/comunidade de "interesses|comuns)€sti> mulando a producao de sfmbolos'e/a aprendizagem de um conhecimento mi- it © PrOCESSO ‘cognitivo, elaborar, conceitualizar € in- terpretar as experiéncias sociais. As representagoes simbdlicas dos Orixds e dos seus signos sagrados e as maneiras através das quais os individuos atuam no mundo social estao disso- ciadas, pois, toda a representacdo mitica constitui-se, para o comportamento humano,de"agées| propiciadoras' de resolugées|sociais. Os cultos‘africanos nao sao apenas formas de resisténcia cultural e social] dos negros na sociedade dos brancos{mas processos cognitivos fornecedores, Ge sentidos para as suas experiéncias sociais. O conhecimento religioso miti- co constroi a individualidade do negro e a sua compreensao de ser no mun- do, ante o risco de “nao ser’, ou seja, @G/Sua Teificacao Ou! massificacad. Utilizando 0 conceito de Emesto de Martino de “crise e presenga”, que im- plica 0 risco de destruicao do individuo como ser social, agente transforma- dor da hist6ria, podemos dizer que a luta libert4ria dos quilombolas (imitan- do os mitos guerreiros de Ogum) e 0 conhecimento mitico e cultural africano constitufram, para os negros, 6s recursos sociais desta crise existencial_ Contra este sistema social em transigaéo que, apds ter reificado o negro como instrumento de producao escravocrata, marginaliza-o no novo sistema emergente, resistem as comunidades negras dos Quilombos e dos.cultos.afri- canos como construtoresda individualidade eda identificagao social dos ne- As camadas subalternas de mestigos e brancos brasileiros que foram atingidas pela Lei das Terras (1850) — que proibia a aquisicao de terras de- volutas que nfo fosse através da compra, transferindo-as do patriménio da Unido para o dos Estados, sendo estes controlados pelos grandes fazendeiros — expressam a desagregacao social no campo através de manifestagGes “‘mes- sifnicas”, advindas da tradigao judaico-crista. Os acontecimentos sociais e politicos deste,contexto histérico do final do século sao interpretados como\signos| escatolégicos de um| tempo)apoca= liptico, O discurso bfblico traduz nas querigmas, ou proclamacoes reveladas, as profecias da destruicdo e surgimento de um novo tempo. Em Sao Paulo, nas regiées litoraneas e no interior da provincia aparecem movimentos sociais agrupados em torno de profetas e curandeiros. Nestes casos, nao h4, propriamente, a estrutura do movimento messianico, cujo lider constréi com seus adeptos comunidades orientadas pela mensagem profética de um novo tempo, mas reunises religiosas esparsas €Omjalaspitagao deuma Tealizacgao messianica: Surgem profetas com mensagens de redengao,.santos e curandeiros que(aglitinamyerexpressam as |/eSperancas)populares, como os redentores de um mundo emrextincao. Em maio de 1879, “na Villa de Dois Cérregos, ouve-se os desvarios € pregacgGes de um homem, por nome de Francisco de Godoy, que anda pre- gando o Evangelho, cuja misso recebera de Cristo que lhe aparecera e lhe tinha dito que no dia seguinte o mundo se acabaria (...).11 O jomal A Provincia de Sao Paulo, no ano de 1884, relata a romaria, acontecida em Bertioga, em torno de um famoso curandeiro “‘tio da menina (11) APROVINCIA DES. PAULO, Sio Paulo, 10 maio 1879. 68 Rev.Inst.Est Bras., SP, 30 : 61-70, 1989 que aparecera nas praias vizinhas de Bertioga a fazer milagres e que, como ele agora, ela também havia conseguido reunir seu séquito de crentes (...).’” Este curandeiro, escreve 0 jomalista, atualmente hospeda-se em uma casa na tua de Sao Bento, casa que, por este fato, torna-se um ponto obrigatério da romaria dos basbaques, uma espécie de mecka para onde seguem em peregrinacaéo o mulherio local e maltrapilhas dos arredores e dos cortigos. O noticiario ridiculariza as “benzeduras do curandeiro (...) realizadas com a Agua que os adeptos vao buscar nas fontes e [que contém] dleo”. O benzedor € descrito como “tum pobre caipira, baixote, descalgo, com uma ca- Tapuga na cabeca ¢ que sempre que sai na rua € com um bordao na mio (...) e que se diz mais poderoso que os bispos e papas” (23.12.1884). Enquanto que nas zonas rurais predomina o catolicismo popular, nos centros urbanos o kardecismo expande-se durante as wiltimas décadas do sé- culo, expressando-se de maneira diferente, segundo as classes sociais de seus adeptos. A classe média emergente aceita a retérica de seu discurso “cientifico”, enquanto que as camadas sociais subalternas procuram no espi- Titismo a interpretagao de seus infortiinios e as formas terapéuticas da cura realizada através dos espiritos. Neste perfodo de mudangas sociais e politicas onde domin: GQSAGRERMENTEENID, rocictca so, cm 1890, uo jocnal A Pereerte Sao Paulo, a seguinte mensagem meditinica: O Sr. Dr. Ramos Nogueira, presidente do Centro Espifrita “Familia Espfrita’’ nos pede a publicacgao do seguinte: O Espf- tito que h4 pouco tempo se comunicou na Bahia, anunciando a subida de um homem desconhecido ao poder, [tornou a mani- festar-se] na sesso extraordindria do Centro da “‘Famflia Espf- rita’, que teve lugar no dia 27 do corrente [e] disse 0 seguinte: Breve o Brasil passara por crises tremendas, fome e verdadeira miséria, quando a nagao chegar ao verdadeiro desespero, lan- card mao desse homem que far4 prodfgios. Ele ser4 o Napoleao do presente século, aquele foi o heréi da guerra, este sera o he- r6i do amor e da caridade. Os seus feitos enfeitigarao os brasi- leiros, como todos os povos do mundo, porque sera o agente da regeneragfo humana. Verdadeiras nulidades da atualidade se levantarao para se- cund4-lo em sua missao gloriosa. Vé-se j4 o pafs dividido em trés grupos, o do povo que principia a sentir a calamidade que se avizinha; os de casaca dentro de todas as paixGes que se preparam para se instalarem no governo e a do poder, tendo a frente o ditador, designado para desbravatar o terreno e as san- 6es do her6i mencionado. O Ditador, cheio de boa vontade, cercado por ministros, no geral bem intencionados, mas sem orientagio alguma, que- rem tudo fazer, mas nao sabem o que querem. Os demais auxi- liares esto na mesma posigao. Nao importa, o chefe da nagao Rev.Inst Est Bras.,SP, 30 : 61-70, 1989 69 Jevaré ao fim sua missao. O profeta que assim manifesta € 0 espirito do Venerado mestre Allan Kardec (editorial do Correio Paulistano, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 02.04.1890). O final do século € sentido e interpretado pela populagdo socialmente empobreci és do referencial mftico afri evangélico ou heréico, due fomece signiiagdeseegilasdades para un mundo cao aero. Recebido em 12 de fevereiro de 1989. ABSTRACT This is a study of Afro-Brazilian religion during the slave system's crisis. African magical rituals, Catholic messianic movements, and Kardec-inspired prophetic discourse constitute systems of knowledge, mythical interpretations, and cultural organizations for confronting the society's anomic situation. Keywords: Afro-Brazilian religion — messianin — magic — social anomie — abolitionism 70 Rey.Inst.EstBras., SP, 30 : 61-70, 1989

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