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A CRISE DO SISTEMA ESCRAVOCRATA E AS INTERPRETACOES MITICAS DA REALIDADE SOCIAL Liana Maria Salvia Trindade * RESUMO Estudo sobre a religiosidade afro-brasileira durante a crise do sistema escravocrata. Os rituais magicos africanos, os movimentos messidnicos do catolicismo e o discurs profético kardecista constituem sistemas de conhecimento, interpretacdes miticas e organizacoes culturais ante d situacao anémica da sociedade. Unitermos: religides afro-brasileiras — messianismo — magia —anomia social —abo- icionismo Durante a segunda metade do século dezenove, as principais atividades produtivas da nagdo estavam centralizadas em torno da primazia da grande lavoura cafeeira do sul do pafs que substitufra a decadente lavoura canaviei- ra do nordeste. A hegemonia desta lavoura na economia nacional resultara da correlagio de fatores externos provenientes da conjuntura internacional de mercado, que favorecia a exportagao do café em detrimento de outro produto exporta- do, a cana-de-agticar, que, nao apenas) no Brasil, mas também nos demais pafses produtores deste, entrava em declfnio. Internamente, a expansao da agricultura cafeeira foi favorecida tanto pela fertilidade do ‘solo paulista (que propiciava este cultivo) como pela introdugao da mao-de-obra escrava em outras regides do pafs. A paulatina entrada da emigragdo européia nas re- gies paulistas aumentava e modificava o contingente de mio-de-obra e as relag6es de trabalho na monocultura cafeeira. A cidade de Sao Paulo estrutura-se em funcio da atividade agricola de provincia constitufda como um nucleo comercial de exportagdo cafeeira, on- (*) Professora Assistente Doutora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciéncias Humanas da USP. ¥ Rey.Inst.Est.Bras., SP, 30 : 61-70, 1989 61 de concentram-se os bancos, a administracao e as diversas atividades ocupa- cionais decorrentes da produgao e comercializacéo do café. O crédito agrf- cola, organizado através de um incipiente sistema bancério, propiciar4 ope- rag6es de intermedidrios nos negécios do café e a acumulacao de capitais provenientes do crescimento paralelo do comércio cafeeiro. A elite cafeeira paulista expande seus interesses econémicos através do investimento deste capital, acumulado na comercializagao do café, em outras atividades produtoras de artefatos que irao substituir o acanhado artesanato do perfodo colonial.! Os dados encontrados nas estatfsticas de 1872 sobre as atividades eco- némicas existentes na cidade de Sao Paulo indicam os seguintes sistemas de servigos e de produgao: trabalhos em metais, madeira, tecidos, edificagées, costura, vestudrios em couro e peles e calcados; mineiros, servigos domésti- cos, criados e jornaleiros; incluindo-se a categoria ‘‘sem-profissao”’, perfa- zem um total de 3.620 atividades registradas nas freguesias da Sé, Santa Efi- génia, Consolacio, Sao José do Belém, Bras, Guarulhos, Nossa Senhora do e Penha.2 Florestan Fernandes (1959) demonstra que, no quadro de distribuicdo destas atividades ocupacionais entre o trabalhador escravo e¢ 0 livre, estas novas atividades econémicas, nascidas do crescimento do comércio e da produgio urbana, estado mais orientadas para o segundo. Os dados apresentados pelo autor revelam, j4 em 1872, a eliminacgao Progressiva do trabalho escravo nas atividades ocupacionais existentes nas zonas urbanas e¢ rurais da capital paulista. Nesse mesmo ano, a populagao de trabalhadores livres, constitufda de ex-escravos alforriados e brancos, totali- zava 27.557, enquanto que o ntimero de escravos existentes perfazia um total de 3.828 indivfduos.3 Os ex-escravos, que nao haviam recebido nenhum apoio institucional que os preparasse para uma atividade auténoma, foram reduzidos, principal- mente,ao exercicio de servicos domésticos ou ficaram marginalizados perante © sistema de produgdo em Sao Paulo.4 Os servigos domésticos eram ocupa- dos por 1.304 escravos e 3.506 trabalhadores livres. A atividade agricola, que durante a década de 70 era exercida pelos es- cravos, passa a ser ocupada pelo imigrante europeu, devido a uma politica econémica de colonizagao estrangeira na agricultura cafeeira. As primeiras col6nias paulistas sao criadas em 1827 e expandem-se entre 1847 e 1857 com a criagéo de 60 colénias particulares com sistema de parcerias, utilizan- do nelas cerca de 6.000 colonos portugueses, alemfes e sufgos. Em 1875 a colonizagao oficial estabelece varios micleos coloniais e canaliza para a agricultura’ paulista a corrente migratéria de italianos. Segundo o recensea- (1) BASTIDE, R. & FERNANDES, F. Brancos e negros em Sdo Paulo. 2. ed. Sio Paulo, Companhia Editora Nacional, 1959. p, 40. (2) Idem. Ibidem. p. 44. 3) Idem. Ibidem, p. 45. (4) Conforme os dados apresentados por FERNANDES (op. cit. p. 45), os servicos domésticos exercidos por escravos representavam cerca de 40% de suas atividades ‘ocupacionais. 62 Rey.Inst.Est.Bras.,SP,30 : 61-70, 1989 mento apresentado por Florestan Fernandes, se em’ 1872 os trabalhos agri- colas eram exercidos por 826 escravos e 3.704 trabalhadores livres, podemos inferir que esta diferenca significativa tender4 a aumentar trés anos apés de- vido & iniciativa oficial de introdugao sistemética de imigrantes italianos na agricultura. Nao tendo sido elaboradas novas formas de aplicagao do trabalho escra- vo, como assinala F. Fernandes, intensificam-se certas formas de exploragao escrava, mantendo-se a mentalidade escravocrata na continuidade de rela- g6es sociais tradicionais entre os senhores e os negros “‘do sobrado”’, ou se- ja, aqueles que exerciam fungGes domésticas nas casas dos senhores, ao se- rem alforriados, passam a ser alugados para os servicos domésticos ou ma- nuais. Os negros do ‘‘eito”, que caracterizavam a exploracdo escrava no universo rural, passam a ser marginalizados pelo sistema de produgao agri- cola & medida em que se formam col6nias e que progressivamente se ocupa da mao-de-obra européia. O processo de urbanizacao da cidade de Sao Paulo e sua industrializacao durante as décadas de 70 e 80 resultam do afluxo de capitais nacionais pro- venientes da comercializagao do café e dos recursos antes investidos no tré- fico negreiro, assim como de capitais estrangeiros, principalmente ingleses, anglo-canadenses ¢€ norte-americanos, os quais foram empregados na multi- plicagao de vias férreas, no aproveitamento do potencial hidrelétrico do pla- nalto paulista, na melhoria dos servigos de bonde e no desenvolvimento in- dustrial.5 Porém, este desenvolvimento econémico nao chegou a beneficiar de ma- neira significativa as camadas sociais subalternas, que eram as mais atingidas pelas epidemias (como a varfola e a tuberculose); vivendo em condigées in- salubres na periferia da cidade, sem os beneffcios de uma polftica voltada ao saneamento bdsico. Durante a década de 70, 0 processo de urbanizaciio nio encontrara adequagoes basicas habitacionais e ambientais para o atendimento social da populagao. O relatério da Secretaria de Polfcia de Sao Paulo, datado de 1874, traz o seguinte parecer: O reaparecimento da variola.(apés o surto ocorrido em 1858) e sua permanéncia nao pode deixar-se de atribuir, em parte, A falta de boas condigdes higiénicas desta cidade. Nas ruas nado hé asseio, valas insalubres cortam a cidade, em alguns lugares margeados por uma vegetacao que apodrece pela acao de 4guas plitridas e estagnadas, servindo o seu leito para despejo publi- co. A aglomeracao de pessoas em casa sem ventilagao, sobre- tudo nas quitandas, nao é menos nociva (...). Os cad4veres de variolosos séo inumados nas quadras destinadas para casos comuns e as sepulturas para adultos nao tém mais de 7 palmos de profundidade. Neste mundo rural e urbano da provincia paulista, a crise do sistema es- cravocrata relega os negros a uma situacdo de marginalidade social € situa-os (5) Cf: MAFFEI, Lucy Hutter. Imigracdo italiana em Sdo Paulo 1902/1914: 0 proceso migratério. Sao Paulo, IEB/CESP, 1986. Rey.Inst Est Bras.,SP, 30 : 61-70, 1989 63 em posi¢ao de inferioridade fre; tepleto de » que vao desde salteadores até mesmo o desemprego, a fome e as epidemias, os negros'encontraram forinas poss{veis de acao — 'seja através da fuga para a realizacdo iluséria da liberdade ou através das representagées € Titualizagoes da religiosidade africana —, com uma compreensio existencial definida que lhes fornecia os quadros sociais de referéncia e situavam-nos na vida social. Os noticiérios de jornais, ao denunciarem as fugas dos quilombos e a existéncia de “‘sess6es noturnas” de “‘feiticaria”’ (cultos organizados, presi- didos por sacerdotes como Felisberto Cabinda e Joaquim Mina, cujos cog- nomes revelam suas descendéncias étnicas), localizados em nicleos rurais e residenciais urbanos, expressam os sentimentos de temor das classes domi- nantes ante estas ocorréncias. Intensifica-se nesta época a concepgao do ne- gro, e de sua cultura, como uma ameaga intrinseca A ordem social. : Os jornalistas destacam em suas noticias a presenca de lideres negros, denominados “‘sacerdotes de cultos maléficos”” no interior da provincia de Sao Paulo. O nome de Felisberto Cabinda é apresentado como “um dos s4- bios pregadores do famoso Juca Rosa, que faz PprelegGes perante numeroso auditério de escravos e alforriados em sua casa na rua Supirity em Soroca- ba’”’.6 A mesma notfcia indica os elementos apreendidos pela policia na resi- déncia de Felisberto Cabinda: ‘‘rafzes, imagens, (PatwAS, facas, garrafas com Ifquidos e folhas secas’’. Podemos inferir deste relato que estes objetos apreendidos compdem um is amplo, possivelmente de origem Banto, la a denominagao étnica Cabinda que acompanha o nome de seu Ifder re- ligioso. Genericamente, as rafzes e garrafadas fazem parte da medicina po- pular, enquanto que as facas, utilizadas em rituais de sacrificios de animais e os patuds, sao elementos especificos dos cul- tos africanos. As imagens, apenas citadas no artigo, deveriam compor um provavel altar. Devido a auséncia, nos noticiérios, de descrig6es dos rituais, inferimos a presenca da’ religiosidade africana como forma organizada de culto e a transmissio do conhecimento religioso na comunidade negra através das meng6es ocasionais encontradas nestas noticias. Os jornais assinalam o co- nhecimento doutrinério e as formas de difusdo das crengas “através de pre- gagoes doutrinfrias realizadas por sacerdotes, discfpulos de Juca Rosa’’. Deste cardter de doutrinagfio e consulta, encontram-se teferéncias, por exemplo, no jornal A Provincia de Sdo Paulo, datado de 06.06.1879, onde relata-se a prisio de um preto velho, em Braganca; “cuja casa era freqiien- temente procurada por forros e cativos que vao consultar e receber lig6es de bruxaria (...) havendo mesmo reunides em certas noites com cardter de ses- s&o fatidica’’. Verifica-se nestas redagées a utilizagao de termos significativos como “fatidica”, “‘sessdes noturnas”, “‘propagadores”, “‘sacerdotes maléficos” e (6 APROVINCIA DE S. PAULO, Sio Paulo, 31 out. 1876. 64 Rey.Inst.Est Bras.,SP,30 : 61-70, 1989

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