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O DAY AFTER A ABOLICAO José Roberto do Amaral Lapa* I. O tema Se havia realmente uma generalizada expectativa da sociedade brasileira, escravos e livres, quanto & Aboligdo, torna-se imperioso analisar — via dis- curso dos escravistas, emancipacionistas, abolicionistas e indiferentes, pois nao h& como negar que esta ultima categoria existisse — que grau de infor- magao e consciéncia social essa expectativa continha, para poder verificar-se © que aconteceu a partir do dia seguinte. Ao que tudo indica, pelo vasto conhecimento que acumulamos sobre os temas do escravo, do negro e da Aboligdo, o alcance ptiblico que a campa- nha abolicionista atingiu fora até entao o mais amplo que o pafs assistira. As fontes primérias disponfveis, por sua vez, dao oportunidade a que se possa refletir sobre quest6es como: o que significaria para cada um e para todos ter dormido escravo e acordado livre? vivenciar a liberdade implicaria numa re- ciclagem que envolvesse a mudanga do vestudrio, da alimentagdo, da mora- da, da organizacio e das estratégias de sobrevivéncia, dos usos e costumes, do relacionamento e das formas de solidariedade ou luta social, da leitura e do uso do corpo, das formas de pensamento, da linguagem e da mem6ria? Em outras palavras, 0 que queremos significar € que mesmo consideran- do o distanciamento geogrdfico, as dificuldades de comunicacao, o analfa- betismo obstaculizando 0 acesso a informacao, as fugas que os remetiam a lugares mais distantes ou de mais diffcil acesso, os escravos deveriam nutrir, em diferentes graus, essa expectativa de que estava pr6xima a liberdade, sem @) Professor Titular do Departamento de Hist6ria do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) ¢ Diretor do Centro de Memoria da mesma universidade. Rey.Inst Est Bras..SP, 30 : 189-201, 1989, 189 que isso pudesse com certeza implicar, necessariamente muitas vezes, num nfvel de consciéncia social, alcangando o que isso podia significar. Essa compulséria alienagio devia possivelmente ocorrer com freqiiéncia i peitada. Nesse sentido, 0 que poderia suavizar a caréncia de informagiio, se- tia o fato de que no geral, particularmente no trabalho rural ¢ no espaco di quilombos, os escravos vivendo aglomerados deviam transmitir oralmente e dialogar sobre o seu futuro mais imediato, enquanto que na cidade sabe-se que a sua facilidade de comunicacio, embora vivessem em moradas que I itavam o seu ntimero e onde estavam em estreito contacto com os senhores. na verdade levava a possibilidade de contactos e movimentos decisivos para aquela expectativa. Assim e por isso, 0 dia doze deve ter transcorrido no mesmo clima dos lltimos. meses, o dia treze com manifestagdes que iam da euforia A medita- Gio, € 0 dia quatorze de maio € os que se seguiram, ainda que as comemora- gOes viessem de antes — desde 8 de maio — quando 0 projeto foi introduzido na Camara e se prolongassem por todo o més, foram rapidamente mergu- Thando em uma realidade que desfazia esperancas, apurava estratégias de so- brevivéncia e convivio social, de solidariedade entre a prépria comunidade, 9 que ocorria naturalmente em meio a oportunidade de maior conhecimento recfproco € msior desejo de informacao. Em todo o caso nfo devem ter sido poucos aqueles ex-escravos que co- mo no conto “O Velho Lima” (Contos fora da moda) de Artur Azevedo — onde um homem adoescendo nas vésperas da Proclamacio da Republica, vem a sarar apenas alguns dias depois, ficando perplexo diante do que ocor- rera, sem saber como se comportar — nao tiveram nocdo do que acontecia ou do que havia mudado em suas vidas. Portanto, entre agdes e reagdes, para os negros e os brancos, o day after apresentou a convergéncia de um complexo: de comportamentos, costumes, posturas e perplexidades novas para muitos, mudando a natureza da luta de classes, nao mais possfvel de desenvolver-se naquele contexto histérico, se- nao em termos capitalistas e portanto de mercado de trabalho. E possfvel raciocinar que no momento da Abolicdo a reagao dos envol- vidos, do lado do oprimido, fosse graduada a partir da realidade histérica em que viviam até mesmo da legislacao anterior, repleta de limitagGes e contra- dig6es, que todavia colocara certas parcelas ao seu abrigo. Assim, neste caso estariam os libertos para os quais esta condicao nao os afastava do movi- mento abolicionista, desde que com certeza tinham parentes e amigos ainda sob 0 cativeiro, para falarmos em motivos mais fortes de solidariedade e luta, sem nos referirmos As raz6es que supostamente deviam empolgar a todos, isto é, a raga, o sofrimento, a origem, 0 convivio, as unides e outras. Registre-se entretanto que as relagGes entre libertos e escravos estavam longe de ser tranqiiilas, com rivalidades e discriminagées, cujas rafzes muitas vezes se remontavam a Africa, enquanto que muitos libertos possufam escra- vos.! sus- ()_ MATTOSO, Katia de Queirés. Ser escravo no Brasil. Sio Paulo, Brasiliense, 1982. p. 213-7. 190 Rey.Inst-Est.Bras.SP,30 : 189-201, 1989 Na verdade o dia seguinte no‘ tinha a capacidade de aliviar as tensdes entre a massa recém-egressa’ da escraviddo e os libertos que jf haviam se ajustado de alguma maneira a sociedade bem como entre estes e os homens que nasceram e sempre foram escravos. No momento da Aboligao, todas’as criangas ¢ adolescentes, filhos de es-_ cravos, estavam entretanto libertos desde a Lei Rio Branco de 28-09-1871 (Lei do Ventre Livre), bem como os idosos que pela Lei dos Sexagendrios (1885) tinham sido libertados e portanto também engrossavam essa popula- G40, com um contingente possivelmente’ pequeno se considerarmos que a/ex- pectativa de vida devia ser bem menor que a geral, dado o desgaste fisico € mental que a sociedade lhes impusera ao longo da vida. Ao clculo de 800.000 escravos que a ‘Lei Aurea” concedeu a liberdade h4 de acrescen- tar-se estas parcelas da populagao que mais diretamente foram atingidas pela forga da lei, pois € claro que dé maneira mais indireta toda a sociedade seria atingida. Em 1890 o Brasil possufa um total de 14.333.91'5 habitantes.2 Até 1885 havia registro de mais de 400.000 ingénuos, enquanto em 1886/1887 foram registrados 18.946 como sexagen4rios, embora as estatfsticas oficiais apon- tassem 90.713 cativos de mais de 60 anos, o que mostra a lei sendo burlada em nada mais que 71.767 velhos que com certeza continuavam a ser escra- vos depois de libertados!3 Se acrescentarmos a esse contingente os demais alforriados através das diferentes modalidades de acesso a liberdade, temos com: certeza um per- centual razo4vel da populacio livre, mas oprimida’e bastante vinculada a es- cravidao pelos seus ascendentes e descendentes. A consideragio que fazemos em relacio a esses segmentos parte do princfpio de que sobretudo os recém-nascidos (ingénuos, “‘riobrancos”) e os idosos continuaram como se'sabe sob uma escravidao disfargada. E possfvel admitir que velhos preconceitos fossem exarcebados € novos preconceitos fossem gerados. O fardo de um passado de quase quatrocentos anos nfo era algo que num tinico e brusco movimento pudesse ser jogado pa- ra fora da janela e esquecido. Tendo sobretudo na segunda metade do século XIX reunido uma das maiores concentrag6es de escravos do pafs, o:chamado ‘Oeste Paulista” vem tendo 0 seu passado devassado nas implicagdes econémicas, sociais, cultu- rais e politicas que isso representou. O estudo de Cleber da Silva Maciel se insere nesse conjunto de pesqui- sas, cujos resultados vém-se acelerando nos iltimos anos.4 Como a obra inaugura um programa de publicacoes singular para uma cidade do interior, vamos ocupar-nos primeiramente em falar algo sobre a iniciativa, para a seguir resenharmos 0 livro. (2) ESTAT{STICAS HISTORICAS BRASILEIRAS: Séries Econémicas, Demogréficas e So- ciais 1550 a 1985, Rio de Janeiro, IBGE, v. 3, 1987. p.31. (3). CONRAD, Robert. Os tiltimos anos da escravatura no Brasil. Rio de Janeiro, Civilizaco Bra- sileira, 1975. p. 279: (4) MACIEL, Cleber da Silva. Discriminagées raciais: negros em Campinas 1888-1921. Campi- nas, Editora da Unicamp, 1987 (Colegio Tempo & Meméria, Série Campiniana, v. 1). Rev.Inst.Est.Bras.SP,30 : 189-201, 1989 191 Il. A Colecao O langamento da Série Campiniana, integrada & Colegio ‘Tempo & Mem6ria”, € 0 resultado de um esforco sistemitico, coletivo e interdiscipli- nar, que se pretende permanente, desenvolvido pela UNICAMP, como con- tribuicdo a histéria e historiografia da cidade de Campinas. Tem uma origem e uma histéria. A idéia de reunir-se em colegdo a pro- duco relevante, para se conhecer a evolucao da cidade, j4 percorreu um ca- minho e passou possivelmente por mais de uma tentativa.5 Entretanto, s6 agora se conseguiu resgat4-la, com a infra-estrutura e o esforgo comum dos que trabalham em vdrias unidades daquela Universidade, com especial destaque para a editora da UNICAMP, 0 Nticleo de Estudos Regionais e o Centro de Meméria. A partir das capas e da apresentagdo gr4fica, o langamento da Série Campiniana marca a nova fase de desenvolvimento da Editora da UNICAMP. O capista Carlos R. Lamari concebeu as capas a partir de uma rarfssima colegao de 25 desenhos em bico-de-pena que reproduzem vistas parciais, lo- gradouros e ediffcios de Campinas da época. Assim, o fundo das capas apre- senta discretamente uma selecdo dessas gravuras, enquanto no centro desta- ca-se uma delas, 0 que permitir4 individualizar cada capa dos 25 primeiros volumes da Campiniana. Esses desenhos, de autor desconhecido, eram impressos em pequenos cartées, que no infcio do século (data de referéncia 1902) a Fabrica de Fu- mos Liberdade, de propriedade de Tito Martins Ferreira, estabelecida 4 Rua 13 de Maio, 120, distribufa a seus clientes e amigos. Para uma cidade brasileira da época, 6 diffcl encontrarmos um conjunto de desenhos como esse, 0 que o tora um inestim4vel acervo inconogr4fico sobre Campinas. Os bicos-de-pena integram os arquivos “Joao Falchi Trinca” e ‘Geraldo Sesso Jiinior’’, ambos do Centro de Meméria. Desde que alguns professores do Departamento de Histéria agremiaram- se no antigo Grupo de Estudos de Histéria Regional (1984), conscientes de que se fazia necess4rio socializar um niimero considerdvel de iniciativas, que se individualizaram dentro e fora da Universidade, com o objetivo comum de estudar a cidade, reconhece-se que a caminhada chega a bom termo, com Ppertinécia, muito trabalho e alguma ousadia. Uma cidade nao deixa de ser a maneira — de cada um e de todos — de construirmos 0 nosso pequeno mundo de quase nada e participarmos do vasto mundo dos homens. (9) A histéria da Campiniana, i. numa série de artigos do prof. déncia da Comissio de Publicagées do Bicentenfrio da cidade, a criacko de uma colegio de obras sobre Campinas, ao que sc seguiu a sugestio do historiador Celso Maria de Mello Pupo, para que a colegio recebesse o nome de Campiniana, ambas as idéias aprovadas por unanimi- dade e agora recuperadas pelo Centro de Meméria— Unicamp. Cf.: MATOS, Odilon Nogueira de, Por que nfo uma ‘‘Campiniana’’?—Sonho de uma noite de verso (A propésito da “‘Campi- niana"”) = Acordando paraa realidade—A prop6sito da “Campiniana"”. Correio Popular, Cam- pinas, respectivamente em 6, 13 e 20 maio 1977 e 27 abr. 1988. a idéia inicial ¢ as tentativas de implement6-Ia estio contadas filon Nogueira de Matos, que relatam ter proposto, na presi- 197 Rev.Inst.Est.Bras.SP, 30 : 189-201, 1989 A dinamica da 6tica, das falas, sentimentos, pensamentos e eventos de uma cidade, com a maneira de ser do que est4 por trés dessas manifestagoes, implica em movimentos e siléncios, em estertores e gargalhadas, em Histéria enfim. Reclama-se verificar como repercutem nesse espago as grandes trans- formag6es econémicas, ‘sociais, polfticas e culturais que ocorrem no Brasil. Mas, em contrapartida, nado se pode deixar de sondar como a sociedade local em sua prética de vida — condicionada ou reagindo aquelas imposicées das mudangas regionais e nacionais — constréi 0 seu proprio espago e dindmica. Na intersegao desses dois processos, importam os cédigos e€ valores, os usos € costumes, o trabalho e 0 lazer, os estilos de vida, as tens6es e disten- s6es, 0 discurso académico e as falas populares. Assim e por isso, a série abrigar4 numa inovacao universitéria a produ- go académica e aquela que nao o €. O saber histérico, nem sempre impres- sionista, que descreveu uma crénica minuciosa, capaz de surpreender datas, fatos e personalidades numa representacdo que procura ser fiel, ao lado da ciéncia institucionalizada, atenta aos métodos, conceitos e teorias, mas também balanceada pela seducio da subjetividade, da arqueologia do que nao houve, do que foi apenas insinuado, do siléncio e do nada, que vem as- saltando a cidadela dos historiadores nos ultimos anos, Com certeza nfio vao se dar mal, lado a lado, no seu objetivo comum de gerar conhecimento. De Campinas, pode-se dizer que a fase historiografica anterior A Univer- sidade assistiu 4 construgdo de uma biblioteca rica, onde alguns classicos da crénica local séo indispensveis a qualquer projeto de estudo da histéria da cidade. E 0 caso, para lembrarmos apenas alguns, de Leopoldo Amaral, Be- nedicto Ot4vio, Rafael Duarte, Pelagio Alvares Lobo, Carlos Francisco de Paula, José de Castro Mendes, Omar Simdes Magro e Ricardo Gumbleton Daunt. Entre os estudiosos que continuaram oferecendo uma contribuigdo nessa linha, registre-se os nomes de Odilon Nogueira de Matos, Lycurgo de Castro Santos Filho, Julio Mariano, Jorge Antonio José, Celso Maria Mello Pupo, Theodoro de Sousa Campos Junior, Benedito Barbosa Pupo, Duflio Battisto- ni Filho, Maria Liicia de Souza Rangel Ricci, alguns ligados 4 Universidade € outros nao. Nesse caso estéo ainda Joao Batista de S4 (Jolum4 Brito), Nelson Omegna e Geraldo Sesso Jtinior, falecidos recentemente. HA ainda uma nova geraco de estudiosos, produto da Universidade, que comparecem a esta Colegao, como é o caso de Cleber da Silva Maciel, que abre a série e dos que virao a seguir, como Ademir Gebara, Carmem Sylvia Vidigal Moraes, Maria Carolina Bovério Galzerani e outros, muitos outros, que desenvolvem pesquisas e estudos sobre Campinas, que a Campiniana pretende atrair para o seu convivio.6 (© Préximos volumes da Série Campiniana, cujo langamento est programado para 1988: 1) PU- PO, Celso Maria de Mello. Campinas: eventos e personalidades, 2) MORAES, Carmem Sylvia Vidigal de. O idedrio republicano e a educacao: 0 Colégio ‘'Culto & Ciéncia"’ de Campinas 1869/1892. 3) SANTOS FILHO, Lycurgo de Castro & NOVAES, José Nogueira. A febre amarela em Campinas 1889/1900. 4) AMARAL, Leopoldo. Campinas: recordagdes e outros ‘escritos (org. Joao Falchi Trinca). 5) MORAES, Plinio Guimaraes. Burguesia cafeeira paulista 1889/1919. Rev.Inst Est Bras_SP,30 : 189-201, 1989. 193 Registre-se ainda a relevante contribuicao que tem sido dada & histéria da cidade por dois brazilianists, professores da UNICAMP: Robert Wayne Andrew Slenes e Peter Louis Eisenberg, este recentemente falecido. A cidade onde nascemos ou vivemos, pode ser para nés, por varios mo- tivos, um espaco-tempo, onde somos gente ou nao somos nada, produzimos € reproduzimos a nossa vida e fugimos da morte, amamos ou odiamos, somos. miser4veis ou ricos, esgueirando pela sua paisagem, por suas pragas e ruas, seus antros e moradas, pelos seus causos e histéria, pelos seus mistérios e fantasmas. Com alguma imaginagio, ainda é poss{vel sentir a parabola da bola no antigo “‘pastinho” do Guarani, 0 sereno abencoado do Café do Povo, onde se perderam os namoros da vida, o grupo de uniforme azul que o Exército da Salvagio punha a cantar no mercadao, entre mendigos, bébados e prostitutas, © cine Coliseu, onde era possfvel carregar o banco duro para o lugar que desse melhor Angulo de visao, e af cavalgarmos juntos, gritando e gesticu- Jando, com os mocinhos dos filmes de far-west, 0 que invariavelmente pro- yocaya 0 latido de alguns caes que sempre estavam a passear pelo salao. Mas, isso pouco importa, pois o leitor hé de perdoar-nos estarmos nos traindo e encontrar4 também ele, outros espagos dentro desse mesmo, desco- bertos a partir de suas préprias lembrancas e vivéncias. Os que vivem em Campinas, estdo conscientes de que’a cidade atravessa momentos decisivos da construgdo do'seu passado e do seu futuro. E isso se faz ao embalo de forcas maiores que hoje sensibilizam o Pafs nos debates pa- ra uma nova Constituicéo, pelos quais perpassa uma preocupagao com a meméria nacional, com o patriménio hist6rico e cultural do Pafs. Os grupos preservacionistas se multiplicam, ha confrontos entre autoridades e ecolo- gistas, que desesperadamente tentam nao deteriorar o meio ambiente, en- quanto arquitetos e historiadores, personalidades' ou’ pessoas anénimas se surpreendem indo a praca para denunciar atentados contra as’ vozes € as re- presentagdes que nos chega do passado e precisam ser preservadas para 0 presente e o futuro. A cidade nos faz personagens de sua aventura. Algumas dimensdes des- sa aventura comecaram a ser recolhidas na Série Campiniana. Mas, vejamos entao como transcorreu o “‘dia seguinte” nessa cidade, cuja fama de mau tratamento dispensado aos escravos desperta polémica até hoje. Os dados de que se dispe mostram para os uiltimos dezesseis anos an- teriores 4 Abolicdo um crescimento lento e oscilante, para cair um ano antes. Essas alteragdes foram ditadas, ao que se cré, menos pelas alforrias e pelo decréscimo do tréfico inter e intraprovincial e mais pelas fugas constantes que agitavam o municfpio, dando em conseqiiéncia a multiplicagaéo dos qui- lombos e suas investidas as fazendas e viajantes, gerando inseguranca gene- ralizada. A década de oitenta’é marcada pelas correrias de tfmidos policiais ¢ ou- sados quilombolas, pelos protestos individuais e tentativas de revolta coleti- va, sempre registradas pela imprensa, sendo que os dois tiltimos anos — 1886 194 Rey-InstEst Bras.,SP;30 : 189-201, 1989 ¢ 1887 — apresentam um recrudescimento sem precedentes dos roubos, da violéncia e da repressao. 7 No capftulo dos crimes, registre-se contudo uma queda geral nessa déca- da, em relagao a década anterior, dos indices de crimes contra a pessoa, contra a propriedade, contra a ordem piiblica e corpo de delito, o que alids corresponde a um continuado declfnio ou pelo menos a nao-correspondéncia entre o {indice de delitos e o aumento da populagdo urbana e a intensidade do processo urbano, conforme mostra estudo recente que se centrou no leyan- tamento exaustivo dos 1274 processos criminais em Campinas, de 1830 a 1889, referentes 4 populagao livre. Verifica-se que essa tendéncia s6 € que- brada, isto €, s6 tem leve acréscimo em dois tipos de delito — furto, roubo feiticaria — na década de 1870 a 1879 em relacao a década de 1880 a 1889, 0 que nao seria diffcil de explicar, caso tenham sido cometidos por escravos. Entretanto, evidencia-se um salto substantivo nos crimes de “maus-tratos em escravos”, que de apenas um praticado na década de.70 a 79 saltam para 22 na década seguinte, parecendo corresponder ao clima que se respirava no municfpio de Campinas naqueles anos que antecederam Abolicao. No sentido dos nossos comentérios, praticamente observa-se tendéncia semelhante nos crimes praticados por escravos que na década de 80 a 89 s6 crescem em relagdo 4 década anterior em trés casos: quando a vitima € o feitor, administrador ou capataz, saltando de seis para 58, e nos casos em que a vitima é livre ou em crimes contra propriedade, em que o acréscimo foi de um delito. Nessa década que estamos privilegiando, Campinas € de longe o municf- pio da provincia de Sao Paulo que tem o maior plantel de escravos, ficando sempre a cidade de Bananal, no Vale do Parafba, em segundo lugar, mas com uma diferenga grande. Assim, pelas estimativas que dispomos, em 1872 Campinas possufa um total de 13.685 escravos, sendo 8.806 homens e 4.879 mulheres.? Dois anos depois, em 1874, passaria para 14.028 escravos, para uma populacdo de mais de 17.000 habitantes livres, aumentando para 14.372 escravos em 1885, para cair para 9.986 um ano antes da Aboligao, em 1887.10 Essa trajet6ria da curva de escravos evidencia em_prii i mnclu- sdes das iiltimas luisas e estudos sobre, | enieios do" Ose inti, apertaaoeye a0 até as: vésperas. da Abolicao, quando nao mais conseguem reter 0 éxodo coletivo e se precipi- tam concedendo nada menos de 3.200 liberdades no més de fevereiro de 1888!!1 Providéncia tardia, pois tudo se mostrava fora do seu alcance nessa altura. (7) MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escraviddo. Si0 Paulo, Brasiliense, 1987. p, 29. (8) Idem. Ibidem.p.39. (9) CONRAD, Robert. Op. cit. p. 357. (10) SANTOS, Ronaldo Marcos dos. Resisténcia e superacdo do escravismo na provincia de Sao Paulo 1865/1888. Sao Paulo, Instituto de Pesquisas Econémicas— USP, 1980. p.20-1¢41. (11) Idem, Ibidem: p, 104-38. Rey InstEst Bras.SP,30 : 189-201, 1989 195 Ill. O Livro O livro Discriminacées raciais — negros em Campinas 1888-1921, re- presenta a nova contribuicao que vem recebendo da Universidade a cidade de Campinas e a sua regiao — historicamente conhecida como “‘Oeste Ve- lho”, no interior do Estado de Sao Paulo. Nesse sentido, a produgao univer- sit4ria centrada nesse espago vem contribuindo de maneira decisiva para uma Tevisfio do que se conhece até agora e que em boa parte repousa em impor- tante literatura autodidata, jornalfstica e descritiva. Ficamos a imaginar como uma idéia inicial, possivelmente envolvida em muita empatia — que poderia até acabar num projeto polftico — conseguiu ca- pitalizar para a dissertacfio de mestrado uma pesquisa, que com objetividade cientffica e isengao foi levada a bom termo. Ganha ainda uma:significagao especial 0 fato de ter sido empreendida por um professor da Universidade Federal do Espfrito Santo, que optando fazer seu mestrado na UNICAMP, no conv{vio com o meio académico e sobretudo na identidade com a comu- nidade negra da cidade, conseguiu escrever um trabalho que passa a ser fun- damental para o conhecimento da problem4tica que aborda em termos locais e regionais. O perfodo estudado, que na verdade vai de 1888 a 1925, e nao como consta da capa do livro, compreende trinta e oito anos em que o racismo € exacerbado, explicitando-se nas evidéncias da disciplina da ordem publica contra o lazer, as relacées sociais no trabalho e nos logradouros piiblicos, enquanto se procura legitimar essa agdo generalizada com um discurso cien- tffico e/ou ideolégico que por sua vez persuade A exaustio os contempora- neos sobre a inferioridade racial do negro, inclusive numa linguagem elabo- rada, bem captada pelo autor (p. 37-8). Nao sobrava lugar para o negro naquela sociedade. Depois de sugar-lhe durante 388 anos, tornara-se um fardo, que era antes necessrio eliminar do que integrar. Mais uma ironia da Abolicao. Mesmo que obtivessem honesta e dificultosamente dinheiro para pagar os servicos — publicos e particulares — estes lhes eram recusados! A obra nos traz uma soma de contribuig6es para o estudo do tema e nes- sa linha de suas qualidades, gostarfamos de lembrar entre outras, o levanta- mento enumerativo (p. 93) da imprensa negra em Campinas como o mais completo de que dispomos. Alias, a descrigfo da cidade no perfodo estudado d&-nos uma idéia bem préxima da realidade do seu crescimento, entiio com novos problemas e deslumbramentos. Nesse sentido, 0 texto distribui-se bem entre a economia, a sociedade e a cultura. As criticas que sfo colocadas a outros autores, como por exemplo, Flo- restan Fernandes (p. 130), Octavio Ianni (p. 133) e Carlos Hasembalg (p. 124) so pertinentes. Mas, € para um grande ntimero de revelagdes que o livro nos traz que © leitor mais interessado sera atrafdo, com possfveis desdobramentos de pes- quisa € novos questionamentos, como € o caso, por exemplo, do critério que acabou virando comércio de “‘placas”’ para distinguir os mendigos auténticos dos falsos (sic! p. 108) ou ainda das priticas escravistas, da aplicaciio da le- gislag&o escravista ou ainda a escravidao disfarcada depois de 13 de maio, como se pode ver em varios momentos. Assim, também ficamos conhecendo a regulamentacao do transporte publico que afeta o negro como eventual 196 Rey. Inst Est Bras.,SP,30: 189-201, 1989 agente do servicgo ou seu usuario, a “‘caga’’ as mulheres negras nos cortigos, para obrigé-las a atender a grande demanda dos servicos domésticos como criadas, as descrigdes da cadeia (p. 162-3) 0 “‘termo de Bem-Viver” (p: 164), a continuidade da existéncia de “‘quilombos’’ depois de 1888 (p. 166), © espancamento piiblico de presos, e vai por af. Fica-nos a dever o autor estudo mais detido em relagdo As enumeracg6es €& descrigées que faz, por exemplo, das comemoragGes do 13 de maio. A lin- guagem dos jornais da €época — com certeza a fonte principal que consultou — poderia ser enriquecida na andlise que procedeu, com uma consulta aos di- cionérios contemporaneos. A freqiiéncia ativista e a multiplicagao ao longo do perfodo das entidades negras, infelizmente pouco documentadas, mostra que o seu grau de mobilizacéio e organizaciio esté longe — com todas as li- mitag6es e contradigdes que se colocaram nesse sentido — de uma apatia ou acomodagao. Dito isto, passemos a propor certas quest6es que o livro provoca, mas que muitas vezes nao chega a aprofundar. Ao longo do texto, fica suficientemente demonstrado que, ao deixar de ser escravo, o negro deixa também de ser interessante como trabalhador pa- ra o homem branco (p. 28). Ora, essa € uma questéo que merece ser bem ex- plorada: como se processa a discriminagdo racial num processo de transigao capitalista? Como sabemos que o sistema capitalista nao cons¢guiu superar a questo racial, antes mesmo pelo contrario (no que parece nao perder muito para o socialismo) 0 tem acirrado, queremos crer que naquela transi¢ao de que trata o livro alguns componentes conjunturais devem ter contribufdo pa- ra que a questéo adquirisse contornos especfficos, 0 que o autor demonstra nao desconhecer, mas contudo nos deixa ainda espaco para algumas obser- vagées. De um lado, havia declarada e crescente demanda de forca de trabalho, o que nos leva em principio a concluir que a formagao e reprodugao dessa for= ga, cumprindo a racionalidade capitalista, deviam ser prioritérias, sem ater-se ad problema de cor, desde que a qualificagio do ex-escravo respondia ple- namente as necessidades do mercado de trabalho brasileiro e no caso regio- nal, uma vez que estavam mais ligados ao trabalho agricola, para o qual os negros possufam longo treinamento. Entretanto, por que entdo nao foi essa forga (dos negros) incorporada como se podia esperar? Nao teria um custo menor, com menores responsabi- lidades e adaptagao praticamente nula, recrutar a massa de libertos, em vez de atravessar o AtlAntico, para o mesmo trabalho nos cantées ¢ aldeias euro- péias? ‘Assim como no trafico de escravos, 0 tréfico de imigrantes envolvia in- teresses dentro da divisaéo internacional do trabalho, que devem ser conside- rados, mas no em termos da explicagao plena para o que se deu, antes como uma contribuigaéo convergente entre outras — internas e externas — para po- dermos entender esse deslocamento demogrdfico, de certa maneira também compulsério. Por outro lado, € preciso considerar, que além da declarada discrimina- Gao racial da tradicional sociedade brasileira — ou se quiserem da familia campineira — em relacdo aos negros, torna-se imperativo considerar que essa discriminagdo nao deixava de atingir também o imigrante europeu. Em que ficamos entao? E possfvel mesmo, que particularmente em relagao as classes Rev.Inst-Est.Bras. SP, 30 : 189-201, 1989 197 médias urbanas, o comprometimento discriminador fosse até mais intenso-do que em relacdo aos libertos, pela competicado que o trabalhador estrangeiro também oferecia aqueles segmentos sociais. Caso contrério, nao poderfamos desconhecer que em termos da forca de trabalho, conhecimento e relacionamento social, 0 trabalho negro deveria possivelmente até responder melhor do que o imigrante europeu as expecta- tivas da economia e sociedade nacionais. O que estamos tentando dizer € que assim como durante séculos 0 tréfico de escravos foi —ao que tudo indica e nao obstante pesquisas mais recentes e localizadas procurem relativizar essa afirmacdo’— um grande negécio para 0 capitalismo, na época estudada, é 0 trdfico de imigrantes europeus que passa a substituir aquele rendoso ‘‘comércio”’. Dessa maneira, esse fator precisa ser também considerado no texto, i.6., interessa mais ao capitalismo internacional promover esse reajustamento nos mercados de trabalho, pelos lucros que proporciona e por tentar resolver problemas de ordem social, do que recrutar os trabalhadores negros nacio- nais, que agora sim nado apresentavam mais interesse ao capitalismo, pois ca- so contrdrio, nfo seria possfvel de repente verificarmos que a cor passasse a ser enxergada. Como provar que a preocupacdo com a reprodugao da forga de trabalho nfo tomasse em considerag4o s6 os negros? E claro que com isso nfo estamos querendo negar ou diminuir a evidén- cia do componente da discriminagio racial, que é algo que sobrenada até hoje, como estamos fartos de saber. Entretanto, se havia uma doutrina e uma pritica racista — camuflada as vezes = por parte da sociedade e das institui- g6es brasileiras, € preciso considerar que essa postura interna atende cons- ciente ou inconscientemente os interesses externos, que nao esto ligados necessariamente 4 questao racial. Alias, o texto mostra nao poucas vezes que o racismo nao se reduz a um problema de mercado de trabalho. Quando um restaurante, por exemplo, re- cusa-se a receber um negro, 0 comportamento racista af adquire conotagéo diversa (p. 190). O perfodo estudado equivale: grosso modo a uma geraciio, durante a qual se dao eventos e mudangas que de alguma maneira deviam ter afetado as re- lagGes sociais discriminatérias analisadas. No livro contudo essa sintonia entre as estruturas e 0 cotidiano € perdida de vista, tanto em nfvel muitas vezes municipal, quanto estadual e nacional. A maior parte das ocorréncias nao s6 nao é datada, mostrando despreo- cupagao em precis4-las, como também em nenhum momento mostra a sua re- percussao nas ocorréncias registradas. E verdade que afinal o autor relaciona a Abolicg&o, a Proclamagao da Republica ou a imigragdo ao trivial que ator- menta os negros de Campinas, mas ha naturalmente uma reciprocidade mais imediata, nem sempre perceptfvel, entre uma batida num corti¢go na caca de mulheres negras, por exemplo, e decisdes de polfticas publicas em diferentes n{veis, Ficamos a perguntar-nos por que essa interdependéncia fica meio pe- numbrada no texto. Embora reconhega que as “‘relac6es raciais em Campinas’ tivessem sido determinadas “‘por condicdes objetivas especfficas engendrando formas de relacdes raciais que lhe foram especiais’”’, em momento algum do livro fica evidenciada essa especificidade, mesmo porque a preocupaciio do autor nao parece ter sido a de estudar ou mesmo citar comparagdes com “‘outras re- 198 Rey.Inst.Est.Bras.SP,30 : 189-201, 1989 gides do Brasil e do mundo”, como registra na’ pagina 191. Alias, € ainda nesse momento do texto que se reconhece também que o “‘agravamento das relagées raciais em Campinas” a partir da primeira metade da década de 1920 mostra de alguma maneira a diminuigdo das associagdes dos homens de cor. Ora, ligar uma questao a outra nessa‘conclusao poderia, por outro lado, dar ensejo a outros tipos de interpretagfo, como por exemplo: a desmobiliza- go dos negros, sua aparente acomodagao diante da prépria desativagao das suas entidades, podendo ainda também significar uma melhora nas relagdes raciais ou entéo o temor diante do apuro do aparato repressivo e discrimina- dor dos brancos. Logo adiante, esse refluxo serd atribufdo a crise econémica, sobre a qual entretanto nada adianta. A partir dos anos 20, constata’ que devido a uma situaciio de estabilidade em niimeros absolutos, a comunidade negra comeca a crescer, o que é atri- bufdo apenas a “‘forma mais ajustada’” de sua entrada ‘“‘no mercado de tra- balho’’. Contudo, julgamos que a explicagio para esse crescimento € muito mais complexa. A consideragéo de que os negros nao estavam’alheios, mas atentos e dentro do jogo e do espaco de forgas que Ihes eram permitidos resistiam e lutavam, deve-se registrar nesse sentido, como o autor faz entender ao longo do trabalho, que envolvidos pelas ideologias dominantes, essa resisténcia e essa luta se faziam muitas vezes de maneira equivocada tendo pouco'alcan- ce, quando nao um efeito inverso. Do xingamento ao linchamento, as prdticas ofensivas contra os negros tém para si apontados um motivo: o racismo; mas ao longo do texto, eviden- cia-se que a crise econémica, a demanda e competicao no mercado de traba- lho, 0 temor de revoltas populares aliavam-se ao racismo para atuar nesse sentido. Pela soma de trabalhos que a pesquisa exigiu, as conclusdes (p. 196) ti- veram relativamente pouco alcance, pois de certa maneira chega-se ao 6bvio: 1. nao hé inferioridade racial do negro; 2. os negros nfo desaparecem como esperavam e/ou desejavam os arautos — negros e brancos! — da miscigenacao. Na indicagao das ‘Fontes e Métodos” (p. 24), seria interessante, uma vez que conseguiu obter nas entrevistas, que nos parecem terem sido bem conduzidas, informag6es relevantes, dar um ligeiro informe sobre as técnicas de hist6ria oral que usou ou nao para recolher os depoimentos. Ainda no que diz respeito as fontes usadas, numerosas e com informa- g6es importantes, permitindo a montagem de quadros e graficos expressivos, na verdade estes ao serem apresentados, ficam mais ao nfvel da curiosidade, como € 0 caso por exemplo dos que vém na p4gina 109'€ 11/5, aos quais nado foram acrescentados quaisquer comentérios. Uma das principais fontes — o' jornal GETULINO — permitiu ao autor apontar uma contradigéo imanente no seu discurso, isto €, tentar ir contra a ideologia do dominante branco, mas se trai ao interpretar a realidade hist6- rica do negro, uma vez que o faz a partir da viséo que os brancos tém do mundo. Apesar das consideragGes que sao feitas em cima desse registro, uma questdo ‘sobrenada. Na verdade, o jornal nao se da conta de sua falsa cons- ciéncia e com isso o seu bom combate a discriminagao € inoperante, contri- buindo até talvez para reforcar o discurso discriminador. O jornal € conside- Rev.Inst.Est Bras.SP, 30 : 189-201, 1989 199 tado como uma das “‘iniciativas de lutas, resisténcia, assisténcia, conscienti- zagao e ajuda mutua voltadas especificamente para seus interesses de ‘‘Clas- se’’, como se lé, ficando-nos a impresséo que a contradico do periédico.em si passa um pouco para a andlise do autor. E uma questao delicada. Nas p4- ginas 70 e 71, sao demonstradas mais uma vez as contradic6es do jornal, que inclusive transpiram na prépria linguagem do livro. Na pagina 184 fica cla- rfssima a idéia do jornal de que a solugao era acabar com a raga negra no Brasil, através do branqueamento! Era a vinica maneira de superar ou elimi- nar © problema, portanto' a dificuldade que. a existéncia dos negros repre- sentava! A nogio de preconceito (p. 29) deve ser entendida nfo apenas como atribuigaéo de qualidades negativas a outra raga, mas também atribuir-se su- perioridade, isto é, A sua prépria raga. As duas afirmagées parecem ser iguais, mas nao sao, tanto assim que certas figuras de negros tinham suas qualidades realcadas para determinadas fungGes, nas quais seriam reconheci- damente insuper4veis. O preconceito nao € atingido pela lei — antidiscrimi- natéria (p. 31). Por outro lado, manifestagdes culturais, nas quais se reco- nhecia a superioridade negra, como € 0 caso por exemplo do samba e da ca- poeira, hoje invadidas pelos brancos; eram confinadas na época, o que est4. a reclamar mais reflexio e pesquisa. Uma curiosa revelagao que o livro nos traz € a da polémica que cercou (p. 96 e 127) a imigraco de negros norte-americanos plantadores de algo- dao. O jornal GETULINO posicionou-se contrariamente por motivos raciais, conforme afirmacSo do autor! A proposta guarda grande interesse pelas im- plicagGes que provocou. Nas paginas 127 a 128, a transcrigao que € feita do jornal nao deixa antever apenas temor da parte dos brancos diante de uma possfvel imigracgio de negros norte-americanos, com conseqiiente competigao pelo mercado de trabalho, o que fica claro é 0 componente polftico, pesando nesse receio, i. é., 0 negro norte-americano mais politizado e de melhor qualificagao profissional podia causar a ‘Republica, dificuldades polfticas e sociais’’. Era o medo da luta de classes, como aliés previu o GETULINO (p. 186), mas nao foi abordado nesta obra. A colocacao que € feita A p. 166 sobre a violéncia, provoca uma refle- x4o, que é a de que se torna necessdrio condenar a violéncia e a forma com que era feito o ato em si. Em outras palavras, a dimensao social da violéncia confere naturalmente Aquela a responsabilidade em “‘criar o criminoso’’. En- tretanto, como a violéncia € inerente ao crime, mudar-se a sociedade para alterar essa condicio humana exacerbada pelos interesses e contradigdes econémicas, sociais e polfticas, revela um nfvel idealista e utépico. Nao € possfvel ficar esperando essa reforma social, para daf e s6 entéo conseguir-se evitar o ato de prender. Sobre o Colégio Sao Benedito (p. 101), desde que as fontes permitam, um programa de pesquisa que se aguarda é aquele que possa conhecer os objetivos que nortearam sua fundacdo, a sua estrutura interna, regulamentos, disciplina, recursos que o mantinham, o contetido do ensino que era admi- nistrado, origem e destino dos seus alunos, etc. Outra interrogacao que fica no leitor € com respeito a proibicdo da cultu- ra intercalar na lavoura cafecira (p. 120). Se trazia tanta vantagem (como € demonstrado), por que sua interdigao, que é apenas registrada nessa passa- gem? Na verdade, essa prdtica sofreu ao longo da histéria do café perfodos 200 Rey.Inst Est Bras.SP,30 : 189-201, 1989 de estimulo e concesso ou de terminante proibicao. Por tiltimo, fica ainda alguma diivida sobre a utilizagao do conceito de elite negra (p. 72), para definir o grupo local tal como se apresenta naquela conjuntura. Sé6 porque nao é desclassificado? E um critério que se define por eliminagao, o que pode conduzir a um falso conceito. Recebido em 16 de agosto de 1988. Rey.Inst.Est Bras_SP,30 : 189-201, 1989 201

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