Teatro Como Performance Da Recordação Na

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'* Marcio Saligmann-Sila - PSICANALI PELA DEMOCRACIA © i ‘ n.br Teatro como Performance da Recorda¢ao na Era das Catastrofes e Proteses de Memoria.* Marcio Seligmann-Silva Postado em: sabado, julho 7, 2018 Pais Clandestino. Jorde Eird e Maelle Poesy 1. “Apenas o que nao cessa de causar dor fica na memoria” ou: quando os robés a hitpsiipsicanalisedemocrack 2018/07heatro: -performance-da-recordacac-na-era-das-catastofes-e-proteses-de-memoriamarcio-.. 1/20 1910372021 _—_—Tealro como Performance da RecordagSo na Era das Caléstofes e Prétesss de Meméria* Marcio Seligmann-Siva ~PSICANALI A meméria esta em toda parte e sempre, ao seu lado, esta o esquecimento. Mas na nossa cultura de gadgets e préteses de memoria, nunca o tema da meméria esteve presente de forma tao ostensiva. A meméria que até ha pouco tempo era pensada de um modo nao muito diferente de como Aristételes ja o descrevera, ou seja, como uma faculdade intelectual com dois momentos, a capacidade de arquivar dados (memoria) e de recupera-los (recordagao), agora se tornou uma questéo tecnologica. Antes havia a técnica de memorizar, a mnemotécnica, também conhecida por Aristoteles. Essa mnemotécnica antiga tinha um paradigma no dispositivo extracorpério da tabua de cera, na qual podemos escrever (e apagar) 0 que quisermos. Essa tabuinha tinha a vantagem de poder ser infinitamente limpa e reutilizada, mas possuia um limite relativamente pequeno para armazenar informagées por conta de uma questao espacial. Justamente nossa era inventou “tabuinhas” potencialmente infinitas, que penetram 0 ciberespago e podem receber toda inscrig&o mneménica que quisermos. Nossos gadgets sao janelas de acesso para esse mar de informacgao, mas portam apenas uma parte infima dessa memoria cibernética do mundo. No entanto, aos poucos sonhamos com a introjegao desses gadgets em nossos corpos, permitindo nado so uma inscrigao “mais acurada” da realidade que percebemos (percepgao e armazenamento), como também ter acesso 4 memoria do mundo na internet (recuperagao de informagées). Esse tipo de fantasia-desejo se expressa, muitas vezes de modo distdpico, em ficgdes cientificas ou em séries televisivas. Black Mirror, por exemplo, série que procura refletir sobre esses gadgets que nos controlam cada vez mais (como ja notara Martin Buber, tornamo-nos extensdes deles, e nao o contrario; Lowy, 2012: 116), tem varios de seus episddios girando em torno do tema da memoria e de seu incremento por meio de dispositivos incorporados a nos. Toda a sua historia, Urso Branco, Volto ja, Crocodilo e Black Museum s&o episédios que evidentemente trabalham com o tema. USS Callister, que tem por tema uma empresa de videogames de imersdo, desdobra a questao da memoria na do download da pessoa (com “corpo e alma”) para dentro do ciberespaco (tema também recorrente no cinema: em Chappie, de Neil Blomkamp, as “vidas” vao sendo salvas ao serem transpostas para carcagas de robés; j no anime Sword Art Online, de Reki Kawahara, as vidas foram sugadas por um game, etc.). No episodio Black Museum, uma filha de um condenado a cadeira elétrica vai libertar 0 pai que havia sido transformado (“traduzido”) em um holograma vivo e virara atragéo em um pequeno museu dos horrores, no qual os visitantes podiam brincar de eletrocuta-lo, sempre novamente, até a morte. Também a série Westworld, que cria um parque de diversao com humanos-robés, & calcada no tema da memoria, ja que esses robés (dentro de um chavao classico, prometeico, exemplarmente encenado por Mary Shelley em seu Frankenstein) vao se revoltar na medida em que aprendem a construir suas memorias, que sao, antes da mais nada mamaria da dar Camo ascreven Nietzeche: “Cama fazer no hich homem uma meméria? Como gravar algo indelével nessa inteligéncia voltada| A hitpsipsicanalisedemocracta.com br/2018/07teato-como-perfarmance-da-recordacao-na-era-sas-catastrofes-e-proteses-de-memoriamarcio-... 2/20 1910372021 _—_—Tealro como Performance da RecordagSo na Era das Caléstofes e Prétesss de Meméria* Marcio Seligmann-Siva ~PSICANALI o __ instante, meio obtusa, meio leviana, nessa encarnagao do Westworld. Jonathan Nolan e Lisa Joy. esquecimento? [...] Grava-se algo a fogo, para que fique na memoria: apenas 0 que nao cessa de causar dor fica na memoria”. (1988: 295; 1998: 50) Outro modelo, além do Frankenstein de Shelley, 6 a pega do tcheco Karel Capek (1890-1938). Em seu RUR (que significa a abreviagéo do nome de uma firma: Reson’s Universal Robots), de 1920, 0 autor introduziu o termo “robé” na cultura moderna. A palavra vem do tcheco robota, utilizado para expressar o trabalho servil, duro, enfim, o labor. Capek, inspirado na tradigao judaica do Golem de Praga (um ser mitico que teria sido criado do barro e recebido vida através de palavras magicas cabalistas), escreve a sua ficgao cientifica a partir da experiéncia da Primeira Guerra Mundial, que revelou a forga destrutiva da técnica. Nessa obra 0 rob6 é uma metonimia da técnica e, portanto, uma espécie de antecessor da alavanca-arma da abertura do filme de Stanley Kubrik, 2001, uma Odisseia no Espago (1968). Em RUR os robés se revoltam como bons descendente de Adao, Prometeu e Mefisto. Na pega, Heléné Glory é uma ativista da Liga da Humanidade (1997: 32; lembremos que em 1918 foi criada a Liga das Nag6es) que luta para dar consciéncia aos robés. Na historia, ela € apresentada a Sylla, uma rob6, e nao acredita que nao se trata de uma pessoa. Essa passagem se torna depois topica nas ficgdes cientificas e reaparece, por exemplo, em Blade Runner, de Ridley Scott (1982), com relagao a replicante Rachel. Mas o proprietario da empresa, para provar a Héléne que Sylla é um robé, ordena que ela seja dissecada. Héléne se escandaliza diante da proposta de “matar” Sylla, ao que Domin responde: “Nao matamos maquinas” (1997: 27). Ora, nado se mata maquinas justamente porque nao consideramos que elas tenham alma ou vida. Elas nao sao pessoas: “Um robé é 0 quia evict da mais anasta an hamam” (1997: 24) A Golem tamhém na tradica judaica, nao pode ser assassinado, porque ele nao 6 uma pessoa, tem um ool hitpsipsicanalisedemocracta.com br/2018/07eato-como-performance-da-recordacao-na-era-sas-catastrofes-e-proteses-de-memoriamarcio-... 3/20 19103/2021 _—_—Tealro como Performance da RecordagSo na Era das Caléstofes e Prétesss de Meméria* Marcio Seligmann-Siva ~ PSICANALI de coisa. Robés e Golens sao avatares daquilo que os romanos antigos denominaram de homo sacer, seres simplesmente mataveis mas sem que sua destruigao fosse considerada assassinato. Héléne Glory, que quer libertar os robés e traté-los “como se eles fossem homens” (1997: 35), atua como uma perfeita defensora dos direitos dos trabalhadores. Ela desenvolveu compaixdo por aquilo que deveria estar excluido do circulo compassivo. Mas 0 erro que de certo modo. desencadeia a autoconsciéncia dos robés e os transforma em seres com vontade e, portanto, passiveis de revolta, foi o de introduzir nos robés a capacidade de sentir dor e de sofrer, ideia do Dr. Gall, diretor do departamento de pesquisas fisiolbgicas da RUR. Seu objetivo era absolutamente econémico: “Prevenir contra a degradagao do material’ (1997: 36). Q_robé que sente dor nao se desgasta ou quebra tao facilmente, pois ira evita-la. A partir da capacidade de sentir dor, os robés desenvolvem outros sentimentos e acabam por se revoltar contra os homens, numa perfeita revolugao aniquiladora. E a dor que faz nascer a consciéncia de si e a consciéncia de grupo: a comunidade é, an’ + ide de sofredores. Da dor a autocompaixao e a revoll Sh 0. 2.A moderna hist6ria do sofrimento e sua performance necessaria: teatro como curadoria. Recentemente temos acompanhado na cena teatral muitas obras que tém a memoria e especificamente a meméria da dor em seu centro. Assim, em T/Me, do norte-americano Lars Jan, dois atores apresentam-se como desdobramentos de uma voz autoral para exorcizar a figura paterna do autor. A cena de abertura, nao por acaso, 6 uma citagao de outra abertura, a do Hamlet shakespeariano. Nessa cena surge a figura do pai sob a forma de um fantasma. Esse pai espectral assombra seu filho e tem uma demanda especifica para ele: reconhega a minha dor, nao deixe a minha morte passar em branco, vingue-me. Esse pai € o pai de Jan e sua origem é nao a Dinamarca, mas sim a Polénia. Seu aspecto espectral é acentuado ao longo de toda a pega. Nem um nome certo esse pai tem. Um deles, provavel, é Henryk Stanislaw Ryniewicz. Jan tem como nome do meio Henrick: a marca paterna lhe foi passada assim, nado com o nome de familia (que o pai se recusou a passar ao filho) mas com uma corruptela do primeiro nome. Estranhamente ele recebe uma alcunha triplamente “escandinava’, Lars Henrick Jan, ele filho de um polonés e de uma afega! Trata-se nao de um ato de nomeacao como ato de estabelecer uma continuidade, mas, antes, de um gesto de produzir um corte, uma ruptura, quase uma renuncia. Esse misterioso pai teria atuado como espido nos paises da “cortina de ferro”, provavelmente como espido norte- americano e como contra-espido...Na pega escutamos transcrigdes de conversas telefénicas retiradas de escutas feitas pelo servigo secreto polonés nos anos 1950, quando o pai de Jan ia 4 Polénia visitar a familia e, decerto, espionar. Esse pai, que na juventude fora um resistente na luta contra o nazismo, acabou sendo preso e, no caminho de um campo de concentragao, foi salvo pelas milicias da resist] | hitpsipsicanalisedemocracta.com br/2018/07eato-como-perfarmance-da-recordacao-na-era-sas-catastrofes-e-proteses-de-memoriamarcio-... 4/20

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