You are on page 1of 77
GEORGES D1D1- HUBERMAN MMAGENS APESAR DE TUDO. “Tradugiode Vanessa Britoe Joie Pedra Cachopy ‘R44 | Lisboa, 2012 5 sumAnio ‘Quatro pedagos de pelicula arrancados aoinferno ‘arasaberé precisoimaginar-se. Auschwite, Agosto de 1944: quatro imagens apaar ddesude, apesar dos rscos,apesis de sermosincapazes de saber como olhar para eas bole. © Sondertommanao no seu trabalho, Scbrevivinciaesolictagio a rosatirs em tirsinsis noqueesté de fora. A imagem fotogrifiea supe na debra docesaparecimes. to préximo da testemuntae da irepreseatabitidade do testemuno: arcancar oma imagem a esse seal. Organizecio da eapcagio de imagens clandestinas, Primeira re ‘quéncia: da cémara de gis do crematbrio v imagens das fosas de incisceagio. Se- _guuda sequéncia: 29a ivr, no bosque de Biskenay, imagem de uma eremesian de salheres despidas. O wolode pelicula, escondid num tubo de pasta dentifvica,ehega ‘Asmmos da Rersténcia polaea para serenviado «maislongen. Contra todo e qnalques ionaginivel ‘As forograiasde Agosto de 1944 ditigem-se ao inimogindvel e cefutem-no. Prien época doinimaginével: 2 «Solugio finals come méquina de «desimaginaciom gone rulizada. Fazer desaparecer a psique dae vkimas, sua lingua, 0 Seu ser, 8 scus res: tos, es instrumentos do seu desaparecimento.e mesino ot arquivos,ameménia desse ‘desaperecimento. A eeario na histiria» sempre refutada por excepedes singular ‘os arquivos da Shoah to feitos destas excopgdes. A aptidio particular de forograia para seteprodurire se transmits apesar de tudo: 0 intentita absolute de focoget campos de conceatracdo coexiste com a actividade de dois lboratdrios fotos em Auschwitz. Segunda época do inimagindvel: Auschwitz impensivel? E preciso re pensar os Fundamentos da nossa snropologia (Hanah Arend). Auschwitz india. vel preciso repensar os Cundamentos lo testermentin (Prinuo Levi. Auschwitz in mginivel? Prestar & imagem © mesma alengéo que se presta A palavia das {estemunhas. Oesparo-stétice doinimaginive desconhece ahistérianaxsuss singh lavidades coneroias. Como Robert Antelme, Maurice Blachor e Georges Dataile nada sacrficaram 20 inimaginsvel-osemelhente eaespécie humana. ry & No préprio lhoda historia Para recordar é preciso imaginat Imagem e testemunho em Filip Mlle: imediatisno éaménadia ¢ complesidade da montager. A usgéncia do presente «fotograficon ea . sua fenomenclogia. Hlementag desta fenonienologis: a Semelliante,dissemelhante, sobrevivente ‘Para ura critica visual das imagens da hisSra:restringir o punto de vista (otal ‘meats abo fantropologicamente). As fo.ografiasde Agosto de 1944 como drama dda imagem humana eaquantotaloeinseparével» Bataille) eosemethanteem ques io. Quando. carrasco vota humano zo dissemelhante manequins», colunas de basalton) a vtima resist conservando a imagem spesar de tudo do mundo, des, do Sonha.e dofhumano cm geal (Levi manternio-nos dieitos»).Canservar mesmo ae Jmagens a arte: inexact, a0 mesma tempo verdade, da figura danteeca doin ‘eno (Lascireoga speransa..).O recueso imagem comonecessdade lacunar die {ntormapioe de vsibiidade, neeeasidade do gett edo aparecimenta, As foto srafias de Agosto de 1944 como cots sobreviventsstestemurhha nie sobrevive is imagens que extn de Auschwitz. Tempodo clrice tempoda tere, instante sed ‘mentaso: necesidace de uma arqueologia visual. Walter Benjamin perate «cima pemamténticado passadon, dae regime onivece titioe 2g oe saisda dade, sexivel mal ‘quer asde sido ‘ain an foto- ds sedi- a ny 1H, APESAR DA IMAGEM TODA ‘Imagem-facto onimagem-fetiche ‘critica do inimaginavel eo seu retoro polémica. O pensamento da imagen como terreno politic. As fotagralas de Agosto de 1944, sintoma histbicoc terion, 50 ‘ndimagens da Shoah. Absolitizae rode real para ne apor imagem toda, ou hstori- . Uma dna imagem toda ou um d {undalores:memcae present cm Alain Rexnas, ari etestemunho oman Ophuts.«f preciso mostraroqueniopodemes ers. A montagenv-narravade lan ‘Bann ea tuontagem-siatoma de Goda, Quando mostrar no faleiian masfases A fonte Perdida? Wajeasan, porém, reprova no lme es Deriersjoursaastacia de eon ‘extualizasio documentl (de cujoabuso eu, pelaparte que me toca, zeraculpa WEB Par cape ae ome der pasa 79480 E-raosou,eRepete photograph Auchan». 9 Bids p0s do): «Esta degradagdo que afecta as imagens de arquivos parece ser acomps nhadaporumaslteracioprofundadope6priovslordapala A palavra negada? Tal seria o produto de toda e qualquer «leituray ligada a «l6- gica funestan da reconsticuigio historica, ou sej, da «provay.Seguem-se novas restrigBes em masse: a busca da imagem-facto érestringida a da imagem-prova, © esta vé-se logo em seguida restringida a algo semelhance & propria ¢ldgica do Pensamento negacionista>, no sentido em que «a Shoah teve gar sem prova,¢ ‘cabe a todos sabé-lo sem prova. Ninguém precisa de prova, Aexceppic daqueles que negem a Shoab»# A partit desse momento, a malefic e uma nova perspectiva: a perversidade (histdre P do, como arquivo, que vai de ora em diante incarnara «ldgica funesta» posta em cia das imagens caracteri \-se a partir dda prova vem substituir a versio (fantasmatica) do ftiche. Ba imagem como documento, como atest pritica na andlise des quatro fotografiag de Auschwitz. Se ‘meuscontraditores, nenhum argumentoespecifico sobre oarquivo como «ecri» da verdade, & porque supostamente se conhece este desenvolvimento: ele foi efectuado noutro local. 0 seu lugar preciso especificado na acusacso surpreen- dente segundo a qual minha andlise~como, de resto, toda a exposigiio Mémoi redescamps-nio teria tido outro fito que nao o de «varrer» o trabalho desenvol- vido por Claude Lanzmann para seu filme Shoah: hi, nos textos dos Seri ques promocores da exposigio esperam varter com wma nova.rsjada de vento os onze anos de trabalho durante o¢ quais Claude Lanzmana realizou o seu filme Shooh?|..J Claude Lanzmann decidiu nfo ullizar 2 fotografia. O seu filme esté en rizado mum reflexdo profunda sobre oestatuto daimagem, sobre o papel do arqui- ria dos campos de concenteagio, Jd seria tempo de fazer ‘08 propos vyerde encontrar neles um pretexto para odeseartar,a ele e4 sua obra. lum esforgo para comprcen 3s ditos «iconoclastaso de Lanzmann em {G.cacan, <8 Dealers {Wajcuan,eDelacropnnce photographie, E-PACNOU, eeporter photogape schitan p. 7- Tal com os organizadores da exposigio Mémoire descamps,aunca tente-longe disso~ adescartar» a obra de Lanzmann. Até no seu titulo, o presente trabalho sieua-se na esteira de uma reflexio iniciada a propésito de Shoah Shoah é um filme: nove horas ¢ meia de imagens ao ritmo de vintee quatro fotografias por segundo e de sons, de rostose de palavras. Ora, o discurso proferido sobre este filme pelos meus dois polemistas faz dele o prdpro inimagindvel oinimaginével incarnado enquanto obrade «pura» palavrae de recusa «absoluta» daimagem, «Shoah atinge o grau absoluto da palara[.]- Ao optar por nao utlizarimagens de arquivo, Lanizmamn fez uma escolha que expressa, de modo exacto, a sua de. terminagd Pela sua parte, Gérard Wajeman exagerara previamente oinimaginivel, afi mando que cautorde Shoah conseguira «mostrar num filme oque nenhuma ima- gem pode mostrar, [uma vez que este] mostra que existe algo como. Nada vet, {quel oqueisso mostra éque no hdimagemp.° Consequéncia que cogn: «Se ha Shoal, entao nao ha imagem por viry.!© Consequéncia paradoxal: «Poder Por av silencio absoluio do horror uma pelavra absolutan® dizer que, mesmo sem ser visto, a simples existéncia do filme de Lanzmann [J é Suficiente para fazer com que cada ser humano seja hoje uma testemunha da$ho- aly Nerano apogen docailto humanistada Divina Coméala, passariapelacabe- $a dos exepetas de Dante -de Bocécio a Landino ea depois deste~ afimar que aquele poema nao era feito de palavees, que depos dele nao surgiriam outras pa- lavras,¢ que eas condicio absoluta do poema dispensava até a sua leitura, bas {ando fazer de cada ser humano uma testemunha do Inferno, por exemnpo, S.Dwrvnenaean, eter mage tote p.228ays FE Pacnous, Reporter phatgraphc dt Avschwienp. 95-96, 7 G.Wajentans«Suint al Goda cone"Msie™ Vansant 35326, & waoman, obj dsp. 21 Of os enuncndorconcotiases de M. HeMDCtEnERG,eloin Tauehnie aberta Beni bull mali. 3h: Prodi aconceod Aus int peo na iia hoa éconsonaningonsiiadedeeceacaare acenecineaivenqunietal Uaienrs imam npusibidade de npr fr par onc: xara Aachen ainped. ae de afro om imagens. Ta aomtons «30 vio se were, as eo na Lage nea nia Representa ic dsconhcimento nape and oir Ets igtochep-eonde {tad tendo ioclaramenie expos eld heh filme deftvos Claude ramones Em iodo 0 caso, é nas posigdes do proprio Claude Lanzmann que teremos de tentar compreender a razdo pela qual a rejeigo psicologica da imagem como Jitiche se vin reconduzida a urna rejeigao histérica da imagem como arquivo. A este propésito,note-s que todos os ataques langaios em mais de sessenta pig nas, por Elisabeth Pagnoux ¢ Gérard Wajeman, tinham sido previamente ex- pressos emt algumas inhas pelo préprio Lanzmann, numa curtn entrevista dada 40 jornal Le Mande: critica metodolégica da minha analise estava contida nas trés palavras «insuportivel pedantismo interpretativon;o tema do fetichismoj ra omnipresentej a rejeiydo das imagens de arquivo, em nome do testermunho, via-se justificada com esta breve definisdo: «S30 imagens sem imaginagion2* Tudo aquilo que Wajemane Pagnoux acharam oportuno epetirnos seus textos publicados na revista Les Temps modernes dirigida por Claude Lantzmann_-,con- {saa andlise das quatroimagensde Auschwitz, ndoera senio uma conscienciosa repetigio das teses defendidas pelo cineasta acerca da sua peépria concepyio da jimagem, do arquivo edo testermunho. A premissa desta concepeio era legitima ~ como jd sublinhei- tendo sido seguidamente generalizada de modo abusivo: «© ponto de partida do filme, ex: plica Lanzmann, é em parte o desaparccimento dos vestigios:jé no existe nada, €onada, eerapreciso faver um filme apartir desse nada». Prescindirde todas 8 imagens de arquivo impunha-se legitimamentea partir do momento em que Lanzmann verficou que no havia imagens ia realidade especifiea~extrema 2 qual o seu filme era dedicado: a saber, os campos de exterminio, tais como Chelmno, Majdanek, Sobibor ou Treblinka. Esta escolh, ainda por cima, impunha-se contra uma situacio simétiiea: hevia demasiadas imagens dos cam pos de concentragdo ~tais como Bergen-Belsen, Buchenwald ou Dachau ima- {gens que se tornaram confusas por serem geralmnente uilizadas como uma fco- nografia do exterminio nas cimaras de gés. Shoak deve grande parte da sua G.tanzann cha quston st psa docoment mt celle ea li 26. © CoLanzveansy ebelenetlaparaan 29, forgaedoseuadn iyel rigor a esta escolha historicamente fundada, que é tam- byémn uma escotha formal, fruto de uma reflexio sobre o cinema doctmental. ‘Mas, ajusante do préprio filme, 0 rigor tornou-se discurso, depois dogma c, finalmente, rigorismo. «Admiro os peremptézios», escreve algures Lanamann, scaqueles que nd tém dividas, Aqueles que sabem tudo». Como se aplicasse a formula a si mesmo, Lanzmann tomou peremptéria - ou seja, generalizadora, Jogo abusiva~uma escolha que era legitima no quadro estrito da sua regra inicial. De certa forma, teriamos dois Claude Lanzmann: por um lado, 0 cineasta de Sho- 4h o grande jornalista que obstinada eincessantemente Fania perguntas,¢ que as fri sempre ~A custa de momentos trigicos sobre aspectos especificos, concte tos, precisos, insustentiveis, do exterminio; por outro lado, uma vez arrumadas as perguntas, o «peremptiiow tomona diamteira eteimou em dar ele préprio as respostas, respostas universaise absolutas sobre da a Shoal todas os arquivos, ‘todas 2s imagens, todo o cinema... & entdo que, evidentemente, as escolhas leg- timasse transformaram em regeas abusivas. Eentéo que a grande arte da form lagdo de perguntas se tornou pequena mestria de respostas impostas. # tio exacto afirmar, como faz Lanzmann, que «nio hi uma dinica imagem [de arquivo] dos campos de Belzec, Sobibor ¢ Chelmno, e praticamente nada sobre Treblinka», quanto ¢ abusivo deduvir dat que «ndo ha imagens da Sho- ‘ho. Ehistoricamente falso-no caso que nos ocupa—situae 0 caso de Auschwitz nesse mesmo plane de «desaparecimento dos vest{gios». F tio legttimo dar a palavra aos sobreviventes do exterminio2¢ quanto é abusive dedusir dai que as imagens de arquivos nio nos ensinam nada a respeito da «verdade» e queo seu questionamenio atenio se reduvird de qualquer forma a um culto de ‘cones: «Mas que culto absurdo da imagem de arquivo vem a ser este? A que ideia de prova onde refutagio —do real se refere ele?»"? Tal éo que Lanzmann clarifica rowtro iugar com as seguintes palavras: CLatemannyelaguete nenlisanyp 6 € de Régis Debayquese tata nessa, Lana, ela qustio seat pan cle document p29 Sep que tamamaen do prescinds por bares -de iene tant evict do sda © ctanzmoin ePaceryourles mores .g. Sempre disse que as imagens de arquivo so imagens sem imaginacio. Elas peti- ‘camo pensamentoe matam todo poder de evoc: fi, um imenso trabalho de elaborasio, de criapio da meméria do acontecimento, © so, Vale bem mais fazer oque en meu filme é um «monumento» que fax parte daqeilo que monummentaliza, como it (Gérard Wajeman. [J Preferiro arquivo flmico as palaveas das testemunhas, como se aquele pudesse mais do que estas, reconduair sub-repticiamente esta desqualif- cago da palavra humans na sua destinagio para e verdade.2® 'Nio se percebe por que motive um pedago de real - 0 documento de arquivo - atrairia to fatalmente 0 wdesmentido» do real. Nao se percebe por que motivo o facto de se questionar uma imagem de arquivo equivaleria de modo tio meed- nico reeusa de escutara epalayra humans. Questionar uma imagem no re- leva apenas de uma «pulsio escdpica», como julga Lanzmann:! é-the necessé- tio cruzar de novo ¢ constantentcnte acontecimentos, palavras, textos. Nao se ppereebe por que motivo o facto de se trabalhar nos arquives equivaletia a pres- cindir de um «trabalho de claboragao»: muito pelo contrério, o arquivo-massa frequentemente inorganizada de inicio ~s6 se torna significante ao ser paciente- mente elaborado. Isto, geralmente, exige mais tempo ao historiador do que aquele de que necessita um cineasta pora fazer um filme. E por que razio construir um «monumento», atendendo a como o préprio ‘Lanzmann qualifica o seu trabalho, teria de equivaler a desqualificar os «docu- ‘mentoso sein os quais o monumento se erige no vazio? Nao serd que as questdes de Lanzmann, em Skoah, partem a mais das vezes de um conhecimento profun- do da histéria proveniente dos priprios documentos? Por que razio assumir 0 tom da «lenda» - «tal 0 que me permite dizer que o filme é imemorizi»”® ~e recusar, juntamente com a «legenday necessaria is fotografias de arquivo, todo ure earapo ca meméria? Lanzmnann reivindica com ltiventer feito durante onze anos «uma obra visual da coisa maisirrepresentavels, obra de que ele defende a 1 CoLamasasn eLesmanument contrat rchiv?o p75 Bids pat 2 tds p stutoridade desde hé quase vinte anos. erd que ele no ¢ capaz de imaginar, por partir de uma recusa generalizada do documento fotogrifico, que Alex - eam todos os membres do Sonderkommando que colectivamente assumiram um ta risco- no dispunha de mais de onze minutos para fazer um documento visual da coisa mais irrepresentavel e para o transmitir como podia para além da sue Prépria morte iminente? E que, desse ponto de vista, « documento, por poco labarado ¢ por pouco «imemorial» ou elegendario» que sei, merece emtroea, a nossa parte, alguma atengaa? |Lanzmann acabard por construir em toraoda nogio dc arquivo um auténtico cengaste de sofismas ¢ de exageros (constragdo de que Gérard Wajeman rocebe da um argumento de autoridade para rebater todo 0 esforco de co- nihecimento visual sobre o divertimento hollywoodiano e, logo a seguir, sobre 0 embrutecimento televisive),Primeiro, a imagem de arquivo vé-se rem: ida por Lanzmann, de modo exclusiva, para a nogo de prova: ela no serviria para co- nhecer, mas apenas para provar, e para provar precisamente aquilo que niio ca rece de prova, Nesse aspecto, ela estaria préxima de um wdesmentido», ou seja, do negacionism.* im seguida imagem de arquivo vé-se deslocada pura oer reno da fcsio ¢ do fetichismo, sob osignoda «mentira» hollywoodiana. & certo que Lanzmann tem razao quando critica Spielberg, acusando-0~ como também Godard 0 fez de ereconstruie» Auschwite2* Mas no encalgo desta acusagzo vem tm raciocinioextravagante que consiste em dizér que oreconstruir» é afa- brieararquivoss De tal modo que o arquivo ~independeniemente deestarem ‘usa o mentioso bem (Spielberg) ou mal (Faurisson) intencionado—jé nlo se distinguiré da sua prépriafélsifcacdo, Lanzmann esereve indistintamente, a ropdsio da abjecgio espectacular inerente as reconstituses hollvwoodianas de Auschwitz, «fabricar arquivosn e «fabricar falsos arquivosn 2 © Gohawonan,staerpourle mere. 3 Glavin Helocsust, arepntenaionimparsblenp. ren ipo %cotnvenan, abut pour es morta p44 fa dy Sener al of do gue bic sos arquivo comotodores ines destegsnerie Nio é assim tio surpreendente que, nao distinguindo no seu discurso 0 ar quivo hist6rico do arquive falsificado, Claude Lanzmann tenha chegado i céle- bre hipdtese do «filme malditoy: esta hipétese ocorrerthe-4 precisamente no seguimento da sua critica de Spielberg, como se ~justa - problematizagao das ‘imagens provenientes de Hollywood (ainda que animadas por um ponto de vista Jumanista) podesse arrastar a injustificdvel destruigo de um arquivo visual proveniente de Auschwitz (ainda que animado por urn ponto de vista nazi): Spielberg escolheu reconstruis, Ora, de um certo modo, reconstruiré fabricar arqui- wa fn ‘vos. E seen tivesse encontrado um Gm ‘e interito- realizado por um $8, em que se mostrasse como trés mil jadeus, bo- mens, molheres, cciangas, morriam juntos, asfixiados numa cdmara de gis do ‘rematério ude Auschwitz, se eutvesse encontrado tal coisa, no s6 no aera mos ‘ado, como a teria destruide. Nao soucapne de dizer porqué. Para mim éebvio2* esvereio, dade que era estritamen: Para quem leu o texto de Jorge Sempriin 2 respeito da sua pereepgio dos docu- ‘mentos filmicos sobre os campos de concentragio é simples compreender a polémica, que mais tarde viria a subir de tom, entre os dois autores: Semprin ps em causa a «formulagéo extrema, fundamentalistay, de Lanzmann; este replicou opondo a prova dacumental des «imagens sem imaginago» 0 seu coro imenso de vozes |que, na Shoat}, atesta o que foi perpetrado».?# Dada ‘que persistia um sentimento de consternagao diante do seu preconceito «tesri- co», Lanzmann obstinou-se, variando o tom. Houve o lamento por nio ser ou vid ««Ninguém quis compreenders” Houve a minimizagio: «Quis simples mente opor 0 arquivo a Showy ~ mas sera possivel que Lanamann no se aperceba de que ope aqui uma classe de objectos histéricos em geralaum tra- ball cinematogratico em particular, o qu, desde logo, forma um contra-senso por «desproporgion? Lanta olsun rpeécnatin impose, pV | Sears {C-Lawans ce manent conte Freie, 927, onto. id part Oarquivo, continuari ele a defender, nfo comunica sendo informagées: ‘quanto cimagem sem imaginasdo», nfo afecta nem a emogdo nem a meméria, € s6 permite apurar, na melhor das hipéteses, coisas exactas, munca a verdade (creio compreender melhor, a contraria, 0 que Lanzmann designava por «pe~ antismo interpretativoy: a faculdade de extrair, de uma imagem de arquivo, emosio ¢ fragmentos de meméria, imaginagio e fragmentos de verdad). Ao invés, diz ele, «0 filme Shoah nfo foi feito para transmiticinformagées, embora ensine tudo»? Oargumento contradisério acaba por ser substituide pela obstinagéo e pelos ferrolhiosda certera: «Todos faqueles que contestam aproposicdo sobre. «filme interdito») se inscrevem no universo da prova. jé eu nunca duvidei da realidade do extermini #9 esoreve Lanzmann, como se o problema em jogo fosse esse, »homeadariente para um sobrevivente dos campos de concentrasio como Sen. prin. Exnoutro lugar: «Nunca fale de destruie we documento sobre as efmaras de gis [.] mas té-o-ia destruido. Acrescentava que nfo queria fandamentar 0 que dizia; no se pode it mais além; é como o cogivo cartesiano: ou se compreen- de ou nfo se compreende, E tudo» Diria antes que-se nfo se compreende wim tal ¢rudo, compreende-se, apesar de tudo, alguma coisa acerca dos propinitos {que motivam esta crispagéo do pensamento Nio se compreende que um intelectual reivindique ativamente néo funda- mentar 0 que diz. Descartes nunca desprezou o set interlocutor 20 ponto de 6 deixar com este tipo de fiase: «Ou se compreende ou niio se compreene. 6 tudo.» Pode compreender-se-com Descartes, justamente~ que advise pos- «a tomar hiperbélica, Nao se compreende - salvo no dominio mistico~a certexa hiperbstica. Bisto,justamente, porque ela nao foi feita para ser compreendid, tas para ser imposta. £0 que se passat com Elisabeth Pagnoux, quando se limita a escraver: «Lanzmann teria destruido o filme por razdes de uma profundidade éspantosa, que fazem de Shoah uma palavra absoluta».% 10 que se passa com 2 Dida p26 id 273 * Gitawzaany etal pouclestorton p24 2 E.raanour, tepoter photographie tAusSien p.96 Gérard Wajeman ¢ a sua permanente imitagdo do diseurso do mestre: «Nada mais. (..] E tudo. £o fundamento de tudo. |..| Ha mais alguma coisa a dizer» Eo que se passa, enfim, quando Jean-Jacques Delfonr tenta sobre-justficar Lanzmann, com o argumento de que aimagem de arquivo ofereceria «uma tal distncia a0 ponto de a condenario & morte nada mais ser do que uma informa- ‘20> a0 ponto de a imagem, em geral, ser desquealificada pela sua «estraturn vidente»; 20 ponto de se ter toda a razo a0 destruir uma tal «fica filmada pelos nazis, uma vex que ela contm e legitima a posigo do nazi; olaé-la implicaria necessariamente habitar essa posicao de espectador, exterior as vitimas, logo, implicaria aderir filmicamente, perceptivamente, & prépria posigdo nazi ¢ a0 pponto de, em qualquer dos casos, se considerar justificado, da parte de Lanz ‘mann, destruirum tal documento, sendo que «o faria porque realizou Shoah, o1 seja, una obra de arte que é a allernativa a essa pelicula, tornando~a [portanto} imitil».2* Que conclusao tirar entao desse pretenso cogito, senda de que a sua certeza hiperbélica se funda no cheque em branco de um «Sou, logo destruo»: «Sou a imagem toda da Shoak, logo posso destruir todas 2s (outras) imagens da Shoah»? Eis 0 que se assemelha menos a um cogito do que & paixo especular de um hhomem pelo seu pr6prio trabalho. significativo que ofilme-cavilhaimaginado por Tanzmann para fundara autoridade do seu préprio trabalho - que nio preci- sava de nada desse género ~se assemelhe a algo como a uma ponte abstracta, a ‘um fantasma estendido, precisamente, entre as duas sequéncias fotogréficas de Agosto de 1944: quer dizer, entre as imagens do «antes» (as mulheres conduzi dasa cirmara de gia) e as imagens do edepois» (as ossas de incincrasio). Lanz- ‘mannilude-se assim ao especular sobre um documento que ni existe, com fins bastante obscuros que olevam a nfo reflect sobre os documentos que, de facto, existem, llade-se, sobretudo, 20 enraizar todo o seu discurso ~ ado o seu filme, elaborade desde 1985, mas a sua cerieza dogmitiea reivindieada dez ou quinze © G.Wajeman, Cobia duniep 92 6-€.Waenan, «Delacroaace petagrpignane. 70 + J-f-Dstvoun ea pelious aude Soa guration dre del Shoah Ie dat ene Sempre et anamannn 2415 ‘anos mais tarde - numa incompreensdo obtusa doque sium arquivo, umteste- munhoouum acto de imaginagio, Michel de Certeau escreveu que, «em histéria, tado comega com o gesto de pr eparte, decoligit de transformar assim em “documentos” certos objcctos dis- teibuidos de outra forma. lsta nova distribuigéo cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produeirtais documentos, pelo facto de recopiar, {ranscrever ou fotografar esses objectos, mudando a0 mesma tempo o seu lagar eo seu estatuton?* S6um mi do arcui- voe insistria ainda a ideia de que, «nele, a origem fala por si préprian.**86um -metalsico, tendo aceitado essa construsio, deduzisia que o arquivo se ‘desqualificado, Se € hoje novessario «zeelaborar um cénceito de arquivor, nos termos da afisico quereria ignorar essa construi proposta de Jacques Derrida, tal acontece, sem diivida, porque a histéria nos obrigou a um confionto penoso com os «arquives do mal», aos quais as fotogra- fias reunidas em Mémoire des camps davam uma visibilidade particularmente incémoda. Mas também, e simetrieamente, porque Freud a quem associarei, ‘no plano antropolégico, Aby Warburg - «tornou possivel pensar um arquivo hi- pomnésico» ou inconscienie.” Mas o préprio Freud no deixou de se debater com os diferentes modelos tedricos que oarquivo podia oferecer: come conciliar a destruigo dos vestigios com a memaéria indestrativel da desteuigéo (problema inerente, como se sabe, a todo o pensamento da Shoah)? Como interpretar, ou mesmo traduzir o canicter fatalmente aidiomdtico», quase intransmissive, do arquivo? Como pensar imanéncia do suporte téenico e da mensagem arqui da, & qual se esquiva toda a metafisica do sentido «puro» (compreende-seen- to a razlo pela qual Wajcman visa tao directamente o meio fotogréfico em si ‘mesmo, como que para presecvar a pureza do acontecimento, da origem)? 0 M-necentean Lert del hire. 2% Puen, Saltarchive Uns imprettion fenione 1a © to, Pay ps6 a7 e244 Certamente, «nada é hoje menos seguro ou menos clara de que a nosio de arquivo».*? O que é mais uma azio para nos aproximarmose o observarmos de petto, coneretamente, em vez de qualificar simplesmente como «vacuidade tec- nicizante> a miniicia das tentatives de reconstituigdo documental. Na sua mag- nifica fenomenologia do arquivo, Arlette Farge evoca a desmesura dos acertada- mente chamadlos «fundos» de arquivo, a sua «dificil materialidade», a sua natueza essencialmente lacunar ~ «0 arquivo nfo é um stock de que se retira- iam coisas por prazer; ele ¢ constantemente uma falta» ~¢ até, por vezes, «a impoténcia de nao saber o que fazcr delen.!® Tasta ter-se conftontado pelo menos uma vez com tais «fundos» documen- tas para tera experiéncia concreta de que o arquivo nfo da i memériaesse sen- {ido cristalizado, essa imagem fixe que nele vishumbra Claude Lanzmann. sempre ~incansavelmente - uma «histbria em construgio de que o resultado auace € inteiramente abareaveln.«t £ porqué? Porgie cada descoberta surge nele como um brecha na histéria concehida, uma singularidade provisoriamente inqualificivel que o investigador vai tentar remendar no tecido de tudo aquilo que jd sabe, para produzr, se possivel, uma hisévia repensadia do acontecimento fem questi. «0 arquivo quebra as imagens preconcebidas», escreve com razio Arlette Farge (eit sera que também as quatroimagens de Birkenau quebram, sua maneira,aimagem preconcebida, «industrial» ou abstracta, da organizagio

You might also like