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‘Transconversagdes queer: sussurros e gemidos luséfonos Quatro cadelas mirando a(s) Psicologia(s) Wiliam Siqueira Peres” Fernando Altair Pocahy™” Nuno Santos Carneiro™” ho" Fernando Silva Teixeira seguir rastro as carlografias em (dis)eursos_nefastos da maiusculizada Psicologia, Comiposigdes dos desejos ¢ desejos binarios de binirias normas, para depois (dis)torcer as camas, a “familia”, a clinica, a pesquisa, a geni(t)alidade. Escrita profana, Micro-rebelido epistemologica que o cu (pro)mete, porque no comeso era e é (também) 0 cu, Um escrever torcido e trans-latido entre quatro cadelas mirando a Psicologia. (Djenunciar aqui o ménage que psis, numa histéria sem histéria, intentam tem seus leitos vazios manchados da(s) Verdade(s) modemna(s). Por uma psicologia menor, manifesto esquizo-queer-analitico dos desejos-prazeres-sentidos na/da transcontemporaneidade lus6fona, No lugar de uma conclusio, propomos a provocagio de que sé uma psicalogia-em-devir-acadelado possa construir visibilizagdes do invisiblizado humano. Ou os latidos que acreditamos promissores para que se retire a Psicologia da sua traidora e traida contengGo das multitudes, PALAVRAS-CHAVE: transcontemporaneidade; Psicologia e Teoria Queer; Processos de Subjetivacio; Desconstrucionismo; Politicas Anais. ABSTRACT: to follow the cartographies’ path throughout pernicious (dis)courses of the capitalized Psychology. Com/positions both around desires and binary desites raised from binary norms, followed by (unfolding the beds, the “family”, the clinical thought and practice, the research, the geni(tjality. Profane ‘writing. Epistemie micro-rebellion promised and incorporated by the ass, because in the beginning it was and it (also) is the ass. A distorted and a trans-barked way of writing by four female dogs looking at Psychology. To (denounce the ménage that psychologists, supported by a history without history, intent to build over their empty beds which are blemished by modem ‘Truth(s). Towards a minor psychology, this is a schizo-quecr-analytic manifesto on desires-pleasures-senses within the lusophone transcontemporaneity. In the absence of a conclusion, we propose rather the provocative state that only a bitchy-psychology-to-come could edify the visibility of the invisible human. Otherwise, we believe it is in the promising barks that Psychology can be withdrawn from its betraying and betrayed contention of ‘multitudes * Doutor em Satide Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ, Pés-Doutor em Psicologia © Estudos de Géneros pela Universidade de Buenos Aires, Professor no Programa de POs- Graduagdo em Psicologia da Faculdade de Cigncias © Letras da Universidade Estadual Paulista — UNESP / Assis, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexuatidades - GEPS. E-mail: poreswiliam@ gmail com Doutor em Educagio pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Pés-Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina ~ UFSC, Professor no Programa de Pés-Graduacio em Psicologie da Universidade de Fortaleza ~ UNIFOR, coordenador Laboratério de Estudos e Pesquisas sobre Corpo, Géneto ¢ Sexualidade nos Processos de Subjetivagio/ Multiversos. E- mail: pocahy@uol.com.br "Doutor em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Cigncias da Educagao da Universidade do Porto, Centro de Psicologia da Universidade do Porto. Investigador Visitante da Universidade Metropolitana de Manchester Bolsista da FCT em pés-doutoramento (referéneia - SFRH / BPD / 68661 / 2010). E-mail: nunoscarneiro/@gmail.com “* Doutor em Psicologia Clinica pela Pontificia Universidade Catéliea de Sio Paulo - PUCISP, Pos- Doutor em Psicologia pela Georgetown University, Professor Livre Docente no Programa de Pés- Graduago em Psicologia da Faculdade de Ciéneias e Letras da Universidade Estadual Paulista ~ UNESP/ Assis, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades — GEPS. E-mail fiteixeirafilho@gmail.com Revista Periddicus 1* edigdo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index,php/revistaperiodicusfindex KEY WORDS: Transcontemporancity; Psychology and Queer Theory; Processes of Subjectivation; Deconstructionism; Anal Policies RESUMEN: seguir el rst 2 las carografas en (dis)cursos nefastos de Ia mayisculizada Psicologia, Com/posiciones de los deseos y de los deseos binarios de binarias normas, para después (des)torcer las camas, la “familia”, la clinica, la investigaciGn, la geni(Qalidad, Escrta. profana. Micro-rebelion epistemolégica que el culo (projmete, porque en al principio era y es (también) el culo, Un escribir torcido e trans-latido entre cuatro perras que miran la Psicologia, (D)enunciar aqui el mengje que losas psis, en una historia sin historia, intentan en sus camas borroneadas por la(s) Verdad(es) moderna(s). Por una psicologia menor, manifesto esquizo-queer-analiico de los deseos-placeres-sentidos en Ta! de Ia transcontemporaneidad huséfona. En el lugar de tna conelusién, proponemos la provocacién de que solamente una psicologia-en-devenir-perreado(2) puede construir visbilidades de lo invisible humano. © Ios latidos que ereemos promisores para que se retire la Psicologia de sa tridora y trafda contencién de las maltudes. PALABRAS-CLAVE: Transcontemporancidad, Psicologia y Teoria Queer, Procesos de Sujetivacién, Desconstrucionismo, Politicas Anales. Latir e morder é preciso... A descoberta pritica dos homossexuais revoluciondrias & que “pessoal” néo € outra coisa que nao um feckamento[,] ¢ 0 “politico” sé é uma expressio possivel da libido. Em outros termos, 0 buraco de nosso cu ndo & nem vergonkoso nem pessoal, é piblico ¢revolucionéri. Guy Hocquenghem Vamos nos pautar, ao longo deste texto desenvolvido com base em conversa s entre as cadelas que aqui escrevem, na inspiradora proposta de Guy Hocquenghem sobre a mudanga de paradigma a respeito da compreensio que temos de sexo, sexualidade, prazer e erotismo. Ou seja, comecemos pelo cu, érgao universal no corpo humano, Buraco pelo qual sai excremento, mas também entra uma infinidade de coisas: mios, pés, pintos, dildos, legumes, enfim, o que nossa imaginagdo nos permitir. O cu é um Srgio que dé prazer, tanto quanto zona erdgena de nosso corpo. Porém, & proibido assumir isso! E proibido sentir prazer ali, no cu. Somos ensinados a nio gostarmos de dar 0 cu ou de meter no cu. Nos ensinam que este ato é um pecado nefando, uma aberragio, uma nojeira, uma excrego, que nos causaré profunda dor, enfim, sempre se associa 0 ato de dar/meter o/no cu a uma coisa ruim, insuportavel, imoral, no humana. Este texto nfo pretende fazer uma apologia do cu, mas tentar recuperar alguns principios ja instaurados nos anos 60 a partir da revolugdo sexual que foram abafados pelas ditaduras e politicas neoliberais que se instauraram de forma globalizada e nos Revista Periddicus 1* edigao maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusiindex calaram o prazer, 0 gozo, a alegria de gerenciamento auténomo do corpo-prazer. Inspiramo-nos, portanto, em Hocquenchgem para lembrarmo-nos de que, na alcova, podemos ser mais do que um pinto, uma vagina, uma boca, um peito, ou mesmo um eu, Nosso corpo, como nos lembram Deleuze ¢ Guattari (1996), & sem-6rgdos, € quem os organiza em organismo so nossas matérias-politicas de representagdo platénica essencializadas e ha séculos e séculos naturalizadas. E hora de pararmos de dizer “Amém!” a estas ditaduras biopoliticas de organizago do nosso corpo em organismos funcionais, aptos e adaptados a servir as normas de codificagdo de nosso prazer, e, sobretudo, das teorias que inventamos para explicar este e outros prazeres. No campo da sexualidade, 0 cu pode ser um bom comeco para desterritorializarmos esta indecéncia teérica disfargada de ciéncia do sexo, de racionalidade sa. E importante, contudo, marcarmos nossos posicionamentos dis sursivos. Quem vos fala/escreve sio ativis do cu, Mas, repetimos, nao ativistas que tém 0 cu como rgd central do prazer, mas que o tomam como possibilidade desconstrutiva das regras generificadas do dito “comportamento sexual”, do ato sexual, dos prazeres, das teorias que se supdem explicativas dos mesmos, O cu, como referéncia, nos faz lembrar que as regras no precisam existir previamente, elas podem ser construidas conforme a relago que se estabelece. O ato sexual pode ser, a cada vez, uma descoberta e no uma repeti¢ao do mesmo, Repetir 0 mesmo no sexo é buscar nele ndo 0 prazer, mas a satisfagdio imagindria de se estar conformado a uma pratica regrada socialmente, “Fao sexo, logo, sou normal!”, diré a esmagadora maioria das pessoas. Mas que sexo? Aquele que nos disseram ser 0 “natural”, 0 “verdadeiro™? Aquele que nos disseram que nao o aprendemos, mas que naturalmente nos despertamos para ele? Aquele que comega la ‘com um abrago, um beijo, um “fogo” que sobe nas entranhas, que endurece nosso pau, entumece nossa vagina, arrepia nossos pelos? Esse é o sexo? Quem o define assim? Por que e desde quando estas sensagdes foram associadas ao sexo? Por que sé estas sensagdes foram associadas ao sexo? E se 0 pau nao entumecer, a vagina nio ficar umida? Nao seremos, por isso, normais? E se, ao invés de sentir prazer metendo 0 pau na vagina, preferirmos ter um pinto no cu? E se isso for esporidico? E se, ao invés do sexo, quisermos um abraco? Ha um jeito certo, um jeito normal de se pensar sobre 0 sexo? Quem define? Para que se define? Enfim, por que ¢ desde quando nos perguntamos sobre isso? O que querem saber quando criam essas perguntas em nossas cabegas? Para além de mijar ¢ procriar, para que nos serve nosso pinto? Por que investiram tanto poder a quem o tem? Por que tanto investimento em um érgio? E Revista Periddicus 1* edigdo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index.php/revistaperiodicusfindex preciso olharmos pelas lentes dos olhos do cu, isto , criticamente sobre as nossas priticas sexuais ¢ as teorias que se inventaram para nomeé-las, policidelas, disciplind« las. Olhando o mundo pelos olhos do cu, mudamos de perspectiva quanto ao prazer, a0 sexo, € aos paradigmas que nos engessam e nos normatizam. E preciso tirarmos a sujeira insipida, ascéptica que lambuza o cu de maculas. Por isso, 0 buraco do nosso cu é revolucionério, pois a partir dele, podemos ver outras formas de prazer na aleova ena vida. Assim, mirando a Psicologia a partir dos olhos do cu, pretendemos desconstruir uma série de pressupostos desta disciplina no que diz respeito & sua compreensio sobre © desejo, sobre a “familia” e os arranjos relacionais olhados como outros face a esta nogdo de “familia”, sobre a clinica e sobre a pesquisa(-intervengo). Mostraremos como estes pressupostos sio atravessados por teorias construidas no século XIX, fundadas a partir de premissas falocéntricas, machistas e heteronormativas e que, ainda hoje, apesar do seu arcaismo, tém forga ¢ poder para organizar ¢ sustentar um plano de saber. O nista a movimento que empreenderemos aqui ¢ 0 da critica desconstruci universalizagdo da matriz de inteligibilidade da subjetivagao que organiza o humano a partir da suposta coeréncia entre sexo/género/orientagdo sexual/desejo/priticas sexuais para, a partir disto, extrair “a verdade sobre cada um de nés”. Como se isso fosse, de fato, possivel! Falicia da modernidade, o racionalismo mostra a sua insipiéneia no pés- contemporaneo. Se quisermos, de fato, sobreviver como psicélog@s no século XXI, sera preciso muito mais que o escoramento do saber sobre si no pinto, no eérebro, nos comportamentos, nos horménios, na familia burguesa, pois que estes elementos nao passam de entidades ficticias da cultura humanista, Ser preciso, cremos, redefinir 0 humano, e sermos honestos para assumirmos que qualquer definigdo a surgir sobre isso partiré de um projeto ético e nfo de uma evidéncia, uma observagio, Por isso, com quais olhares construiremos este projeto? No momento, o olho do cu nos serviré para iniciarmos 0 rascunho de um projeto ético jé que & tempo de falarmos a partir das margens, dos invisiveis, dos abjetos, dos restos, das experiéncias desejantes das e nas alcovas. Mirada 1: Uma introdugio as transconversagdes queer ¢ outras cartografias do desejo Revista Periddicus 1* edigdo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex Como possibilidade de afimilamento de anilise, dada a existéncia de muitas linhas que participam das composigdes desejantes latidas por estas cadelas, queremos centrar as problematizagdes ao redor da questo do “sexo anal”, das praticas sexuais que tomam o cu como referéncia de prazer e realizagao pessoal, em detrimento de outras posigdes que associam o cu A sujeira, ao asco, a injuria e & humilhagao. A partir das proposigdes trazidas por Javier Séez e Sejo Carrascosa (2011), a Psicologia pode se fartar de novas prerrogativas a respeito dos processos de subjetivagdo, considerando a auséneia ou a negagdo do cu como linha de subjetivagdo, ou seja, seria como se algo faltasse em nossas constituigdes como sujeitos/as, como se fossemos subjetivados/as parcialmente. Dar ou nio dar o cu parece estar na exegese dos processos de subjetivacZo, no fmago da feitura da(o)s sujeita(o)s— ou da/os sujeita/os? Desde que nascemos somos levados a aprender que todo mundo tem cu e, por isso mesmo, cada um e cada uma devera cuidar dele da melhor maneira possivel, mantendo-o a principio recluso, limpo, secreto ¢ intocdvel, além de também, a prinefpio, concebé-lo como sujo, negative repugnante; neste sentido o cu se toma o lugar da injuiria, do insulto, da humilhagao, © valor negativo atribuido ao cu determina de modo generalizado que se 0 cu for penetrado isto se dard como castigo, como tortura, como algo doloroso, como humilhagao, como perda da macheza de uma p ‘oa; 0 cu jamais poderd ser visto ou imaginado como objeto de prazer, Como nos apontam Séez & Carrascosa (2011), “ser um homem & ser impenetrivel” (p.21); seguindo essas consideragdes, as mulheres também teriam seus cus interditados, pois para as mesmas seria esperado somente penetragdes vaginais e, mesmo assim, restritas 4 fungdo reprodutiva sem associagdes com as dimensdes dos prazeres. Uma das primeiras coisas que se aprende quando crianga & de que o cu é algo sujo, que tocé-lo & proibido e que dar o cu € algo terrivel, mesmo que a crianga no tenha nogio do que significa dar 0 cu, © discurso em forma de insulto e a entonagdo vocal irénica c/ou desaprovadora se incumbe de criar um modo de aprendizagem competente; neste momento uma crianga ao ouvir “vai tomar no cu” nada associa de concreto, assim como alguém ser chamado de viado, sapatio ou travesti nada de conereto se efetiva em termos de compreensdo conceitual, Nas palavras de Suely Rolnik das (1986), a crianga se infantiliza quando entra em contato com 0 adulto e, na maior vezes, essa entrada & associada 4 proibigdo, a ameaga, a0 negativo, a0 perigoso, a0 imoral, ao indecente. Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index,php/revistaperiodicusfindex Seguindo essa légica, 0 sexo anal aparece, inicialmente, no imagindrio como 0 pior, 0 abjeto, aquilo que nao deve ser considerado como aprovado e muito menos como praticavel. Em termos de subjetivagao, essas expresses que negativizam o cu (vai tomar no cu, fez 0 servigo que nem 0 cu), criam realidades e posiges sociais, politicas e culturais de contengo do desejo que ouse se expressar fora da norma heterossexista e falocéntrica Quando o adulto fala uma expressdo depreciativa nao tem consciéncia da realidade e dos valores que esti criando e transmitindo, mesmo que de forma anedética e de brincadeira, Interessante que isso vale tanto para os meninos como para as meninas, logo, ausente de género, mesmo porque todo mundo tem cu ¢, independente de ser masculina ou feminina, sua positividade deve ser evitada. Isso denota uma grande farsa se considerarmos que mulheres heterossexuais enrabam homens heterossexuais e gays; lésbicas enrabam mulheres ¢ homens; travestis enrabam homens e mulheres; transexuais enrabam homens e mulheres, sejam com sua bio-picas, sejam com suas tecno-pit S, sejam com ambas as picas-bio-tec. Todo esse entrecruzamento de posicionamentos tedricos, filoséficos, moralistas, resistentes, parece construir estratégias de manutengdo 4 ordem heteronormativa, de modo a cristalizar identidades sob a marca normativa heterocentrada ¢ falocéntrica, restrita 4 reprodugdo biotecnoldgica, desde que reprodutores de corpos uteis ¢ déceis, logo, servis ds bio-politicas e as armadilhas do bio-poder. A pritica do sexo anal, seja com picas, objetos, dedos e dildos foram capturadas pela Iogica bindria e universal que determina desqualificagdo, desvalorizago e toda forma de injaria que um ser humano possa receber ao ser descoberto e/ou associado com essas formas de prativas e prazeres. Da mesma forma, a pritica do sexo oral também seré associada a uma negatividade que colocard seus praticantes em posigdo de abjegdo e, juntamente com a pritica de sexo anal, sero tomados como principais elementos de composigao das expresses homossexuais, 0 que, por sua vez, se mostram presentes nas expressdes € priticas trans-lesbo-homofébicas to presentes em nossos cotidianos, nas midias nas igrejas, nas ruas, no governo, O que se faz urgente é a revisio dos conceitos equivocados e valores negativos atribuidos As priticas sexuais anais, ou @ arte de dar o cu, de modo a positivar 0 cu e seus prazeres, considerando que nao se trata de privilégio de alguns, mas possibilidade Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index.php/revistaperiodicusfindex de todas ¢ todos. Citando novamente Javier Sez y Sejo Carrascosa (2011, p. 14), em seu livro Por el culo: politicas anales, “abre tu culo y se abrira tu mente! As auséncias de referéncias que deixam o cu de fora das subje agdes tem evidenciado paradigmas que solicitam problematizagdes a respeito dos conceitos, metodologias e priticas que temos disponiveis enquanto epistemologias cientificas e de analises dos sujeitos utilizados pelos diversos saberes, entre eles, a Psicologia ¢ suas posigdes diante da vida. A emergéncia de novos/as sujeitos/as de direitos que ganham visibilidades na atualidade clarifica a respeito de expresses humanas que até entdo estavam invisiveis e que demandam reivindicagées de direitos de ser, estar e circular no mundo de modo igualitério, ou pelo menos com direitos equivalentes as outras expresses humanas ja reconhecidas, respeitadas e emancipadas como cidadas e cidadios. No ympo das configuragdes das expresses sexuais ¢ de géneros, os estudos feministas, seguidos pelos estudos gays e lésbicos e logo apés os estudos queer tém colocado em tela deniincias e, a0 mesmo tempo, reivindicagdes de outros modos de tratamentos das diferengas, no sentido de serem politizadas em uma perspectiva das listicas da existéncia; ou seja, aponta para a urgéncia de ampliagiio de conceitos ¢ metodologias que foram construidas em contextos outros em que as demandas e perguntas diziam respeito Aquele momento sécio-historico, politico e cultural, © que por sua vez indica modos de subjetivacdo que formatavam determinados tipos de homens mulheres, heterossexuais e homossexuais, jovens ¢ idosos/as, composigdes de valores, figuragdes e discursos, bem diferentes dos sujeitos/as subjetivados/as em tempos atuais. Seguindo essa configuragdo, podemos perceber como a Psicologia, ou melhor, uma certa Psicologia foi construida ¢ como as contribuigdes dessa certa Psicologia contribufram com o Estado neoliberal-conservador para a manutengdo do sistema sexo/género/desejo/praticas sexuais (Butler, 2003), 0 que implica a reificagdo da heterossexualidade como obrigatoria e universal, do falocentrismo como eixo norteador das relagdes humanas, sempre organizado por sistemas de pensamentos bindrios, sedentérios ¢ universais que insistem na crenga de um tinico corpo, ‘inico sexo, jinico ‘género, ‘nico aparetho mental, Tais posicionamentos da Psicologia restrita a esses sistemas de pensamentos a coloca em uma posigao politica de policiamento da vida em consondncia com o Estado neoliberal, reificando os modos de disciplinamento dos corpos ¢ regulagdes dos prazeres, clarificados por Michel Foucault (2008) como biopoliticas. Revista Periddicus 1* edigdo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex H4 uma base de sustentagdo das teorias dessa Psicologia regulatéria que se orientam pelas referéncias da(s) identidade(s), © que faz de suas andlises e priticas reducionistas uma aproximagdo com o essencialismo, que, por sua vez, por ocasides se nutre do binarismo e, em outras, do relativismo, Essas posigdes da Psicologia so, ainda, hegeménicas, porém nio totalizadas, pois tém surgido em seu bojo criticas e problematizagées que solicitam novas conexdes da Psicologia com a realidade, principalmente aquelas advindas dos movimentos sociais emaneipatério: como & 0 caso das lutas ¢ conquistas dos movimentos das mulheres, dosmovimentos LGBT’, dos movimentos queer, dos movimentos negros, dos movimentos ecologicos, enfim, da emergéncia de novos sujeitos e sujeitas de direitos. A emergéncia dos estudos queer, das politicas queer por meio de suas criticas aos processos pelas quais as identidades sio produzidas, evi lenciando que toda identidade € opressora ¢ excludente e, aqui, podemos citar as problematizagdes feitas por Javier Séez (2005), David Cérdoba Garcia (2005), Suzana Lépez Penedo (2008), entre outros, abre precedentes para problematizagdes dentro da prépria Psicologia no sentido de admissio de um estado de crise que & anunciado e que ao mesmo tempo parece ser negado, adiando enfrentamentos conceituais e metodolégicos que jé passaram da hora de serem clarificados. Seguindo os passos de Penedo (2008), podemos constatar que o carro chefe de problematizagdes feitas pelos teéricos queer dizem respeito aos usos ¢ abusos da categoria identidade, pois entendem a mesma como excludente ao se situar como marca individual em oposigao a outros marcadores sociais da identidade, tornando-a restrita a um lugar no mundo que, por si mesmo, se mostra como opositor e fascista. Nesta diregiio, David Cérdoba (2005) aponta para a urgéncia de uma critica & nogdo de identidade, de modo a definir uma posigio anti- essencialista que nega qualquer tentativa de naturalizagio, fixidez e totalizagao. ‘A mamutengdo deste acrOnimo em nosso (para no ficar deste... neste) texto cumpre a fungao de, primeiro, respeitar as lutas politicas empreendidas pelos movimentos sociais ao longo dos anos. Segundo, ‘a questo da garantia de Direitos e Politicas para a humanidade, ainda se faz. levando-se em conta identidades. Por fim, sabemos que estas dimensdes identitérias tendem a modificar-se conforme se reconfiguram os embates politicos. No que diz respeito, em particular, & incluso do I no acrénimo para referenciar a Intersexualidade, salvaguardamos o facto de nio ser consensual a consideragdo da mesma ‘enquanto categoria identitéria (ie,, se alguns sujeitos a reivindicam e nela investem como estatuto identitério, outros no o fazem por assungio da fluidez que sentem ser propria da vivéncia intersexual) ‘Os quadrantes geopoliticos diferenciam também a forma de olhar a Intersexualidade, com uma diferenga centre 0 espago das Américas ¢ alguns contextos do espago europeu, nos quais a luta pela despatologizagiio ‘comega a ser mais ¢ mais visivel. A dimensdo queer propde a continua desconstrugio identitiria de modo a revitalizar as miradas acerca dos miltiplos processos de subjetivago reposicionando as identidades a seu posto de fragilidade social Revista Periddicus 1* edigdo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex Ao lado da critica & identidade somamos problematizagdes que colocam em suspeita a propria nogdo de interioridade, apropriando-se do rechago feito por Judith Butler (2003) quando de seus estudos a respeito da identidade de género, ao questionar © sistema sexo/género/desejo em suas determinagdes de complementaridade que se orientam somente pelo viés do essencialismo, o que por sua vez colocaria em divida a heterossexualidade até entao tratada como universal e obrigatoria, Em suas andlises, Butler (2003) propde uma mudanga na diregio causal ¢ cartesiana estabelecida entre sexo e género, distanciando-se da naturalizacao que recai sobre © género, confundindo-o muitas vezes com a nogdo de sexo que se funda no biologico © na fisiologia reprodutiva, © que, por sua vez, se mostra carregado de influéncia moral. Para essa autora, a naturalizagao do sexo e do género se mostra como efeito politico de reprodugdo do modelo heteronormativo, demarcando o poder exercido por tecnologias politicas-morais-cristis de prescrigo da heterossexualidade. Neste sentido, as identidades sexuais e de género nao podem ser tomadas como expressio de uma interioridade natural e/ou essencial, pois a ideia de existéncia de uma esséncia interior nada mais é que o efeito regulatério provindo da propria identidade, que por sua vez é uma manifestagdo da exterioridade. Aqui fica patente que os/as sujeitos/as sdo construidos/as a partir de processualidades complexas que ndo antecedem a eles/as mesmos/as, 0 que, por sua ‘vez, nos remete ao espago politico em que as negociagdes de ocupagao de certos lugares no mundo se fundam, promovendo, assim, a subversio de valores, sentidos ¢ discursos normativos que se pretendem universais e imutaveis. De acordo com Cérdoba (2005) e Penedo (2008), a identidade apresenta em seu bojo uma dimensio de exclusdo e de exterminio de toda e qualquer outra marcagao identitaria, reificando sistema sexo/género/desejo e suas determinagées binérias e universalizantes, Demarcando essa dimensio de exelusio que habita a identidade, Cordoba (2005) parte da ideia de que © espaco discursive em que emerge a identidade nao a determina de antemao, Logo, sua afirmagao se constrdi diante das possibilidades de sua re-significagdo em espago aberto e de sua interabilidade, o que, por sua vez, denota que suas determinagdes de significados © de conteidos dio-se por meio da exclusio ¢ repressdo de outras formas identitarias possiveis. Nesta perspectiva, toda identidade & construida a partir dos efeitos de uma relagio de saber-poder-prazer pelas quais determinadas possibilidades de fixagdo Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex identitéria reprimem, excluem, negam, interditam outras possibilidades de posigao de sujeito/a, Para David Cérdoba (2005), ha que se ater aos processos identitérios em sua produgdo, que exclui as diversidades humanas; porém, ao fazé-lo ela encobre esse processo de modo a dar a ideia de que a identidade seria uma esséncia, algo que as pessoas jé nasceriam com ela e, portanto, ndo permite sua problematizagao, pois aquilo que se mostra natural no pode ser transformado ou conectado com outros campos possiveis, Juntamente com Cérdoba (2005), pensar sobre a identidade somente seré possivel se considerada como espago politico em que se possa intervir — ¢, de fato, se imtervém — para modificar seus termos, para redesenhar seus limites, para incluir posigdes antes excluidas, para re-significar as posigdes existentes (idem, p. 53). Esses determinantes identitérios abrem precedentes para que se possa problematizar a respeito dos processos de subjetivagdo que individualizam e aprisionam o/a sujeito/a em uma nica dimensio identitéria e, nesse sentido, Beatriz Preciado (2008) propde que todo esse engendramento dos discursos normativos determinantes das identidades sexuais € de géneto que se materializa nos corpos se daria por meio de tecnologias e programagées de sexo e de género, sendo entendida como: tecnologia psicopolitica de modelizagdo da subjetividade que permite produzir sujeitos {que pensam ¢ atuam como corpos individuais, que se auto compreendem como espagos «© propriedades privadas, com uma identidade de género © uma sexualidade fixa. A programagio de género parte da seguinte premissa: um individuo = um corpo = um sexo ‘um género = uma sexualidade. Desmontar essas programagGes de género (...) implica “um conjunto de operagées de desnaturalizagio e desidentificagio”. (PRECIADO, 2008, p. 90) ‘Na trans-contemporaneidade podemos perceber a existéncia de diversos modelos de programagdo de sexo e de género, marcados pelo momento sécio-histérico, politico e cultural que se atualizam de acordo com as negociagdes de saber-poder-prazer que aproximam e/ou distanciam suas atrizes ¢ atores envolvidos/as nos processos so politicos de emancipagdo, Ao mesmo tempo, podemos perceber a existéncia de programadores diversos que atuam sobre os corpos ¢ suas modulagées de sexo, género, raga, orientagdo sexual, ‘geragdo etc., e, em especial os programadores “psi” que ndo s6 resistem a atualizar suas referéncias tedricas e metodolégicas, como também insistem muitas vezes em reificar priticas ultrapassadas e leituras totalmente descontextualizadas de seu tempo, o que, em linhas gerais, pode parecer suspeito de perversidade. Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index.php/revistaperiodicusfindex Serd na eventualidade de alargamento de teorias e metodologias da psicologia que acreditamos na possibilidade de promogdo de uma psicologia que ora estamos denominando Queer. Para tanto, a mesma deverd romper com postulados bindrios que se propdem universais e totalizados, dando passagem para a emergéncia de sujeitos/as nomades, e suas subjetividades também némades em consonfincia com politicas queer. Aqui © queer se aproxima da ideia de sujeito/a némade proposto por Rosi Braidotti (2000), quando afirma que ofa mesmo/a é um mito, uma ficso politica que permite analisar detalhadamente as categorias estabelecidas e os niveis de experiéncias € deslocamentos estabelecidos por ele/a: borrar as fronteiras sem desmanchar as pontes de conexio. Implica acreditar na poténcia e na relevancia da imaginagdo, na construgio de mitos, como um modo de éxti politico e intelectual destes tempos tra contemporaneos. Ofa sujeito/a némade se associa as construgdes instaveis, transitérias, arbitrérias e excludentes, 0 que aproxima de uma dimensio queering. Sua configuragio se di a partir do exterior constitutivo que se processa por meio de relagdes de poderes, saberes e prazeres que negociam o tempo todo os lugares possiveis de transitos e permanéncias dos/as sujeitos/as, sempre em processo, logo, em construgao permanente, Em uma perspectiva némade de produgdo de sujeitos/as, somos remetidos a problematizar os modos de subjetivagao que participam da feitura desses/as sujeitos/as e, nesse sentido, a produgdo da subjetividade némade. Rosi Braidotti (2000) diré que a configuragdo desse modo sujeito/a toma o/a némade como figura da subjetividade trans-contemporanea, como artefato tecnolégico do humano e pés-humano, dotado de capacidades miltiplas em trans-conectividade impessoal. Para Braidotti (2000), o/a némade somente esté de passagem e, se estabelece conexdes situadas, clas apenas servem como modos de sobrevivéncia, nunca aceitando plenamente os limites de uma identidade acabada e fixa. O/A némade nio tem passaporte que o/a aprisiona em uma identidade ou, se o tem, sempre é transitéria Essa trans-conectividade némade apresentada por Rosi Braidotti, e a emergéncia do sujeito ndmade, vém ao encontro das problematizagSes a respeito das expressbes queering © suas possibilidades de anilise fora dos manuais. A perspectiva de uma leitura “psi” que escape dos binarismos ¢ universais em diregdo a uma posigio némade de andlise remete a um distanciamento das referéneias que tomam o ser humano como uno, como estrutura fechada, como totalidade Revista Periddicus 1* edigao maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex reconhece no humano a sua diversidade miiltipla de expressiio e de conexio com a diferenga da diferenga (DELEUZE & PARNET, 1998). E mais, toma a variagdo e descontinuidade do humano em sua positividade e poténcia, dando voz para que a insurgéncia de novas expresses sexuais e de género sejam ouvidas ¢ contempladas em suas reivindicagdes sociais, politicas ¢ emancipatérias de cidadania, direito de ir, de vir, de ser, de transitar e de viver fora das armadilhas patologizantes. Nestas configuragdes queer/némades em devires, novas politicas emancipatérias se mostram urgentes e, nesta rota, a politica queer se apresenta marcada por um viés emancipatério psicossocial supondo questionamentos das tendéncias integracionistas totalizantes de todas as agremiagGes de reivindicagao de direitos, assinalando os limites dessa integrago © propondo estratégias de enfrentamento aos regimes normativos, heteronormativos ¢ falocéntricos, Do mesmo modo, coloca sob suspeita as referéncias dadas de identidad acabadas, denunciando o cardter excludente desses marcadores identitarios que se mostram absolutos ¢ imutaveis. Se pensarmos em um modo simples para definir essa politica queer podemos el, assim como a apontar como suas caracteristicas a visio de identidade aberta e flexi utilizagdo de estratégias e instrumentos de lutas advindas das estruturas culturais da heteronormatividade. A politica queer, conforme David Cérdoba (2005), seré sempre inclusiva e distanciada de qualquer tentativa de integragdo a uma sociedade heterosexual, posicionando-se decididamente em miltiplos lugares marginais. Nesta perspectiva, o queer se caracteriza pela figura de um guarda-chuvas que comporta as mais variadas formas de dissidéncias as normas sexuais e de género, mas também a todas as formas de existéncias que se distanciam do normative e do hegeménico, tais como classe social, raga/cor, etnias, geragdo, entre outros, anunciando que nem todo gay/lésbica & queer, ¢ nem todo queer & gay/lésbica, evidenciando a presenga do heteroqueer Em uma andlise complementar, Suzana Lopes Penedo (2008, p.134) afirma: No mundo queer, onde sio as prticas sexuais e no quem as praticam que importam, ser homo ou heterossexual nio & to importante como tere pratcaratitudes queer diante dda vida (..) com certa imprecisio se poderia assinalar como queers aqueles heterossexuais que fazem criticas voluntirias & hetcrossexualidade, j que elegem determinadas priticas sexuais (bissexualidade, sado-masoquismo) ou simpatizam com ‘outras expresses queer. Todas essas problematizagées contribuem no sentido de nossas apostas irem ao encontro da proposigo de um distanciamento da ideia de identidade para se aproximar Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index,php/revistaperiodicusfindex da ideia de multidio, de multiplicidades e devires, conforme proposigdes feitas por Beatriz. Preciado (2008), que atestam que o ser humano ndo se resume a uma unidade, mas que varia de acordo com os modos pelos quais so colocados disposigdo do campo social ¢ atravessados por linhas de saberes, poderes e prazeres sempre datados sécio-historicamente, linhas que, por sua vez, podem ser cartografadas como discursos, © que, por seu turno, clarifica sobre os processos de subjetivagdo que esto em transite Nessa perspectiva, acreditamos na emergéncia de uma outra, nova ou diferente psicologia que estaria comprometida politicamente com os processos emancipatérios, que solicitaria ampliagdo conceitual ¢ metodolégica e compromisso com a vida como valor maior, democratica, inclusiva e potente, Essa expansio tedrica ¢ metodolégica solicitaria didlogos ¢ conexdes com outros saberes, © que, por sua vez, ciara redes rizomaticas de efetivago dos modos de ser, ar ¢ circular no mundo em que as anélises se distanciariam da nogo de individuo — aquele que ndo se divide e que é totalizado — para se afirmar como attificio de conexdio das diferengas, sem escalas de desigualdades e de reducionismos identitérios — mas de promogio de respeito e convivio pacifico das pessoas com 0 mundo, com as pessoas € consigo mesmas. Essas possibilidades de produgdo da psicologia politizada e comprometida com © coletive teriam, a principio, que desnaturalizar suas posigdes essencialistas e reducionistas, para somente depois realizar a desconstrugdo dos saberes que ainda insistem em diagnosticar, classificar, tratar e curar as dissidéncias de sexo e de género— sempre em interfaces com classe social, ragas/etnias, geragdes ¢ estilos de vida — na maioria das vezes realizando andlises completamente desfocadas de seus contextos modos datados de subjetivagio. Uma das possibilidades desses processos se efetivarem pode se orientar pelas propos ies de politicas queer que nasceram ¢ se processaram na rua, nos becos, nas periferias onde habitam os seres das bordas; onde habitam os devires ¢ multiplicidades que atestam a diversidade humana sem aprisioné-la a um territério cristalizado, sem se preocupar com a I6gica de desenvolvimento que solicita coeréncia ¢ inteligibilidade, pois a vida e seus viventes so muito mais que isso. Pensar as priticas da psicologia de modo ampliado e politizado abre perspectivas nas quais as dissidéncias sexuais e de géneros sejam problematizadas fora dos itinerérios da patologizagao ¢ de reducionismos identitérios, aproximando-se de andlises que para além do biopoder e de suas regulagdes biopoliticas privilegiem os Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba br/index.php/revistaperiodicusfindex enfrentamentos aos processos de normatizagdo ¢ a positivagdo das resisténcias. So exatamente essas resisténcias em andlise que nos permitirdo situar os seres humanos na sua variagdo epistemolégica, na sua diversidade que escapa das racionalizagSes ¢ as conectam aos planos que nfo solicitam etapas de desenvolvimentos, coeréncias e inteligibilidades. Em acordo com Suzana Lopes Penedo (2008), ao invés de identidades talvez seja mais interessante falarmos em afinidades de expressées e relagdes humanas que por coabitarem a borda, nao haveria neces jdade de confrontos e desigualdades, mas de politicas de conjungdo e variagdo em que a partir das relagdes que estabelecemos com 0s outros afetamos ¢ somos afetad@s, isto é, a cada encontro nos modificamos em decorréncia dos processos de afetagao. Essa perspectiva clarifica que a subjetividade se encontra sempre em construgio permanente, expressa plasticidades e oscilagdes que sfio demarcadas pelas negociagdes de saberes, poderes e prazeres que, embora na busca da normatizagao possam produzir fixagdes, sempre deixam algo escapar, permitindo outras negocia es que se orientam pela produgdo ¢ criagdo de estilisticas da existéncia, ou, ainda, permitindo as sujeitas e sujeitos fazer da vida obras de arte. Uma psicologia que se pretenda queer, ou melhor, queerizada, a principio, poderia ser norteada por algumas proposigdes, entre elas: A) desconstruir os sistemas de pensamentos bindrios ¢ sedentérios, imagens ¢ discursos capturados pela légica normativa; Trata-se da necessidade de implodir/rachar as ideias e conceitos que se mostram como absolutos e acabados, ou seja, que tendem a produzir totalizagdes e engessamentos em tomo de uma identidade fixa, 0 que por sua vez impede aberturas & ampliagdes conceituais restritos 4 dualidade cartesiana que contrapée referéncias como homossexual/heterossexual, normal/patologico, pobre/tico, branco/negro ete B) mapear os conflitos existentes entre as estratégias de resisténcias © a dominagao psicossocial, politica e cultural; ‘Nao basta apenas mapear e/ou diagnosticar os confrontos entre bio-poder ¢ resisténcias; que as normatizagdes se dio sob efeitos do bio-poder e regulagdes biopoliticas & mais do que Sbvio, 0 que se toma urgente & 0 mapeamento das resisténcias &s forgas normativas como possiveis, positivas e urgentes, ou seja, & preciso Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www portalseerufba brindex php/revistaperiodicus/index que as resisténcias tenham ressonancias nas posigdes da Psicologia como possibilidade de vida, de ampliagio da vida, fora dos circuitos de patologizago para que as estilisticas da existéncia sejam tomadas como novos paradigmas de andlises, C) facilitar a emergéncia de novos/as sujeitos/as emancipados/as, destacando sua posig&o politica de direitos a ter direitos. Quando pessoas ¢ grupos nos falam de posigdes assumidas em suas vidas como dissidéneias as normativas do bio-poder, e que se mostram felizes e satisfeitas em se situarem assim, nada de classificagdo, patologizagdo ¢ cura faz sentido para uma psicologia queer, pois, na verdade, nada teriamos para dizer a elas, ¢ sim, elas é que teriam algo a dizer para a Psicologia; sio varias posig coneretas de uma Psicologia bio-politica e fascista que se encontra em exercicio ¢ que de vez em quando somos informados de suas priticas, entre elas, como é 0 caso de um psicélogo que, ao reeeber em seu consultério uma mulher de 40 anos, a qual informa ser vitima de violéncias sexuais ¢ de géneros por seu marido, ¢ que por isso deseja a separagao, é alertada pelo psi ‘outro homem pior que seu marido, tentando, assim, regul Slogo que ela deveria ser mais cuidadosa, pois pode encontrar ¢ se relacionar com aprisionada em tal situagdo. Nossa aposta seria que, a partir das problematizagdes conceituaise metodologicas dos modos de saberes ¢ fazeres das Psicologias pautadas pelos pressupostos sugeridos acima, poderemos dar inicio & produgiio de uma psicologia politica queer que, de fato, se mostre conectada com a realidade transcontempordnea, Mirada 2: (Psi-)hagiografando a “familia” ¢ (se) descansando com os desejos abrigados no lengol (hetero-homo-normo-)matrimonial. Pertencemos mais ao mundo, com toda a sua arriscada desordem, a sua fragmentacio, a sua liberdade. O mundo ‘evolui constantemente, enquanto a familia se debate para ficar na mesma. Remodelada, mobiliada de fresco, modernizada, ‘mas a mesma em esséncia, Uma casa na paisagem, abrigo ¢ prisdo em simultaneo. Rachel Cusk No seguimento do que estamos des(a)fiando neste (pré-)texto, cabe um foco sobre a (psi-)hagiografia da “familia”. Diga-se, desde ja, que por (psi-)hagiografia se designa, neste texto, a elevagiio (¢, mais especialmente, a elevagdo tradicional por parte Revista Periddicus 1* edigo maio-outubro de 2014 www. portalseer.ufba bv/index.php/revistaperiodicusfindex

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