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A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90: LOGICA E MECANISMOS DE CONTROLE LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA A grande tarefa politica dos anos 90 € a reforma ou a recons- trugdo do Estado. Entre os anos 30 e os anos 60 deste século, 0 Estado foi um fator de desenvolvimento econdmico e social. Nesse perfodo, e parti- cularmente depois da Segunda Guerra Mundial, assistimos a um perfodo de prosperidade econémica e de aumento dos padrées de vida sem prece- dentes na hist6ria da humanidade. A partir dos anos 70, porém, face ao seu crescimento distorcido e ao processo de globalizagao, o Estado entrou em crise e se transformou na principal causa da redugdo das taxas de cresci- mento econdmico, da elevacdo das taxas de desemprego e do aumento da taxa de inflagiio que, desde entdo, ocorreram em todo o mundo. A onda neoconservadora € as reformas econdmicas orientadas para 0 mercado foram a resposta a esta crise — reformas que os neoliberais em um certo momento imaginaram que teriam como resultado 0 Estado mfnimo. Entretanto, quando, nos anos 90, se verificou a inviabilidade da proposta conservadora de Estado minimo, estas reformas revelaram sua verdadeira natureza: uma condigio necesséria da reconstrucao do Estado — para que este pudesse realizar_néo apenas suas tarefas classicas de garantia da pro- priedade e dos contratos, mas também seu papel de garantidor dos direitos sociais e de promotor da competitividade do seu respectivo pats. A reforma do Estado envolve quatro problemas que, embora interdependentes, podem ser distinguidos: (a) um problema econdmico- politico — a delimitaco do tamanho do Estado; (b) um outro também econémico-politico, mas que merece tratamento especial — a redefini¢ao do papel regulador do Estado; (c) um econdmico-administrativo - a recupe- ragdo da governanca ou capacidade financeira e administrativa de imple- mentar as decisdes politicas tomadas pelo governo; e (d) um politico — 0 50 LUA NOVA N? 45 — 98 aumento da governabilidade ou capacidade politica do governo de inter- mediar interesses, garantir legitimidade, e governar. Na delimitagéo do tamanho do Estado esto envolvidas as idéias de privatizagao, “publiciza- do” e terceirizagao. A questo da desregulacio diz respeito ao maior ou menor grau de intervengiio do Estado no funcionamento do mercado. No aumento da governanga temos um aspecto financeiro: a superagao da crise fiscal; um estratégico: a redefinigdo das formas de intervengdo no plano econémico-social; ¢ um administrativo: a superagdo da forma burocrdtica de administrar 0 Estado. No aumento da governabilidade estéo inclufdos dois aspectos: a legitimidade do governo perante a sociedade, e a ade- quagao das instituigdes polfticas para a intermediagao dos interesses. Neste trabalho vou tentar analisar os quatro aspectos basicos da reconstrugdo do Estado: a delimitagao de sua abrangéncia institucional e os processos de redugdo do tamanho do Estado, a demarcagdo de seu papel regulador e os processos de desregulamentagaio, 0 aumento de sua capaci dade de governanga, e o aumento de sua governabilidade. Nos quatro casos, 0 objetivo nao é enfraquecer 0 Estado, mas fortalecé-lo. O pressu- posto sera sempre o do regime democritico, néio apenas porque a demo- cracia é um valor final, mas também porque, no estdgio de civilizago que a humanidade alcangou, € 0 nico regime que tem condigdes de garantir estabilidade politica e desenvolvimento econdmico sustentado. Deixarei em segundo plano a questdo do porqué da crise do Estado, e farei apenas uma breve referéncia & discussao tedrica sobre o problema das limitagdes da coordenagao pelo mercado que tornam imperativa a intervengo com- plementar do Estado. O tema central deste artigo € 0 processo de reforma do Estado em curso e a sua fundamentagio pratica e tedrica. E a andlise dessa reforma e das instituigdes que dela derivam a partir de uma ldgica de controle econémico e social. Partirei da premissa de que o Estado € funda- mental para promover o desenvolvimento, como afirmam os pragmdaticos de todas as orientages ideolégicas, bem como uma maior justiga social, como deseja a esquerda, e nao apenas necessério para garantir 0 direito de propriedade e os contratos — ow seja, a ordem —, como quer a nova dire- ita neoliberal. Como & mais apropriado para a andlise dos problemas econémicos € politicos, usarei essencialmente 0 método histérico. Nao examinarei a crise do Estado e as reformas decorrentes em abstrato, mas a partir da realidade desta segunda metade dos anos 90. Utilizarei, entretan- to, instrumentos I6gico-dedutivos e gerais sempre que forem titeis para a andlise. Nesse sentido desenvolverei alguns modelos: a distingao das ativi- dades exclusivas de Estado dos servigos sociais e cientificos; a definigaio de uma propriedade publica ndo-estatal entre a propriedade estatal ¢ a pri- AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 51 vada; a conceituagio das novas instituigdes que definirdo 0 novo Estado que est4 surgindo; as principais formas de controle ou coordenacio econdémica e social existentes no capitalismo contempordneo; e, final- mente, 0 que chamarei de a “Iégica do leque de mecanismos de controle”, que fundamenta a escolha de instituigdes e formas de atuacdo do Estado. CRISE E REFORMA A Grande Crise Econdmica dos Anos 80 reduziu a taxa de crescimento dos pafses centrais & metade do que foram nos vinte anos que se seguiram & Segunda Guerra Mundial, levou os pafses em desenvolvi- mento a terem sua renda por habitante estagnada por 15 anos, e implicou no colapso dos regimes estatistas do bloco soviético. Quando dizemos que esta Grande Crise teve como causa fundamental a crise do Estado — uma crise fiscal do Estado, uma crise do modo de interveng’o do Estado no econdmico e no social, e uma crise da forma burocratica de administrar 0 Estado — esté pressuposto que o Estado, além de garantir a ordem interna, a estabilidade da moeda e 0 funcionamento dos mercados, tem um papel fundamental de coordenagao econdmica.! Ou, em outras palavras, est implicito que a coordenagio do sistema econdmico no capitalismo con- temporaneo é, de fato, realizada ndo apenas pelo mercado, como quer 0 neoliberalismo conservador de alguns notdveis economistas neoclissicos,” mas também pelo Estado: o primeiro coordena a economia através de tro- cas, o segundo, através de transferéncias para os setores que o mercado no logra remunerar adequadamente segundo o julgamento politico da sociedade, Assim, quando h4 uma crise importante no sistema, sua origem deverd ser encontrada ou no mercado, ou no Estado. A Grande Depressio dos anos 30 decorreu do mal funcionamento do mercado, a Grande Crise dos anos 80, do colapso do Estado Social do século vinte. O mercado é 0 mecanismo de alocagio eficiente de recursos por exceléncia, mas mesmo nesta tarefa sua agdo deixa muitas vezes a desejar, dada ndo apenas a formagao de monopélios, mas principalmente a existén- cia de economias externas que escapam ao mecanismo dos precos. O Estado moderno, por sua vez, € anterior ao mercado, na medida em que | Examinei inicialmente a crise do Estado em “O Cardter Ciclico da Intervengao Estatal” {1988) € nos ensaios publicados em A Crise do Esiado (1991) Refiro-me a economistas como Friedrick Hayek, Milton Friedman, James Buchanan, Mancur Olson e Anne Krueger. 52 LUA NOVA N? 45 — 98 Hobbes e 0 contrato social precedem Adam Smith e o principio indiv’ dualista de que, se cada um defender seu proprio interesse, 0 interesse cole- tivo estard garantido através da concorréncia no mercado. O Estado mo- derno é anterior ao mercado capitalista porque é 0 Estado que garantiré os direitos de propriedade e a execugao dos contratos, sem o que o mercado nao poderd se constituir. Mas é também contemporaneo e concorrente do mercado, porque cabe a ele o papel permanente de orientar a distribuigio da renda, seja concentrando-a nas maos dos capitalistas nos perfodos de acumulagio primitiva, seja distribuindo-a para os mais pobres, de forma a viabilizar a emergéncia de sociedades civilizadas e modernas, que, além de ricas, demonstraram ser razoavelmente eqilitativas. A grande crise dos anos 30 originou-se no mal funcionamento do mercado. Conforme Keynes téo bem verificou, o mercado livre levou as economias capitalistas insuficiéncia crénica da demanda agregada. Em conseqiiéncia entrou também em crise o Estado Liberal, dando lugar & ‘emergéncia do Estado Social-Burocratico: social porque assume o papel de garantir os. direitos sociais e o pleno-emprego: burocrdtico, porque o faz através da contratagdo direta de burocratas. Reconhecia-se, assim, 0 papel complementar do Estado no plano econémico e social. Foi assim que sur- giram o Estado do Bem-Estar nos pafses desenvolvidos e 0 Estado De- senvolvimentista e Protecionista nos paises em desenvolvimento. Foi tam- bém a partir dessa crise que surgiu 0 Estado Soviético na Riissia transfor- mada em Unido Soviética e depois em boa parte do mundo — um Estado que tentou ignorar a distingdo essencial entre ele proprio e a sociedade civil, ao pretender substituir 0 mercado ao invés de complementé-lo. Esta distorgio, que alcangou sua forma limite na Unido Soviética, decorreu da superestimagdo do papel da classe média burocrati- ca na gestio dos sistemas econémicos contemporaneos. Com a emergéncia das grandes empresas e do grande Estado, ou mais amplamente, das grandes organizagées piblicas ¢ privadas, 0 capitalismo deixou, neste século, de ser o produto da alianga da burguesia nascente com a aristocra- cia — esse era 0 capitalismo do século dezenove — para se transformar no resultado da alianga dos proprietérios do capital com uma classe média burocrética em expansao. Esta nova classe média ou tecnoburocracia, que estudei extensamente nos anos 70, detém 0 monopélio do conhecimento técnico e organizacional, que se tornou crescentemente estratégico & medi- da que o desenvolvimento tecnolégico se acelerava em todo o mundo.} 3 Meus trabalhos te6ricos a respeito sio “A Emergéncia da Tecnoburocracia” (1972) , “Notas Introdut6rias 40 Modo Tecnoburocratico ou Estatal de Produgio” (1977), depois reunidos no AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 53 Entretanto, daf nao se tornava Ifcito supor que seria possfvel ou desejavel substituir os empresarios pelos administradores na gestio da economia, nem o capital pela organizagao na definicdo das relagdes bisicas de pro- dugdo, muito menos 0 mercado pelo planejamento burocratico na coorde- nagdo da economia. Ao invés disto, bastava admitir que a combinacao ou a complementaridade de mercado e Estado, de capital e organizacao, de empresérios ¢ administradores puiblicos e privados, tornara-se essencial para o bom funcionamento dos sistemas econdmicos e a consolidagao dos regimes democraticos. Com a aceleracao do desenvolvimento tecnolégico ocorrida na segunda metade deste século, 0 sistema econdmico mundial passou por uma profunda transformagdo. Com a redugao brutal dos custos de trans- porte e de comunicagio, a economia mundial globalizou-se, ou seja, tornou-se muito mais integrada e competitiva. Em conseqiiéncia, os esta- dos nacionais perderam autonomia, e as politicas econdmicas desenvolvi- mentistas, que pressupunham paises relativamente fechados e autarquicos, nao mais se revelaram efetivas. Aos poucos foi se tornando claro que 0 objetivo da intervengdo deixara de ser a protecdo contra a concorréncia, para se transformar na politica deliberada de estimular e preparar as empre- sas ¢ 0 pafs para a competigao generalizada. Estado e mercado no mais podiam ser vistos como alternativas polares para se transformarem em fatores complementares de coordenagdo econdmica. Em parte em conseqiiéncia da incapacidade de reconhecer os fatos novos que ocorriam no plano tecnolégico, em parte devido a visto equivocada do papel do Estado como demiurgo social. e em parte, final- mente, porque as distorgGes de qualquer sistema de administragdo estatal sao inevitaveis & medida que transcorre o tempo, o fato € que, a partir dos anos 70 € principalmente nos anos 80, a economia mundial enfrenta uma nova grande crise. No primeiro mundo as taxas de crescimento reduzem-se para a metade em relacZo ao que foram nos primeiros 20 anos apés a Segunda Guerra Mundial, enquanto as taxas de desemprego aumentam, principalmente na Europa, e 0 milagre japonés que sobrevivera aos anos 80, afinal sogobra nos anos 90. Na América Latina e no Leste Europeu, que se recusam a realizar o ajustamento fiscal nos anos 70, a crise se desen- cadeia nos anos 80 com muito mais violencia. livro A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia (1981), 0 trabalho inédito “As Classes Sociais no Capitalismo Contemporneo” (1980) € 0 capitulo 10, “Btapas do Desenvolvimento Capitalista”, de Lucro Acumulagao e Crise (1986). 54 LUA NOVA N? 45 — 98 Esta crise, porém, nao tem mais como causa a insuficiéncia cronica de demanda de que falava Keynes. Esta é a causa da crise do mer- cado nos anos 20 e 30. Muito menos pode ser atribuida a aceleragao do pro- gresso tecnolégico, que pode causar desemprego transitério, mas na ver- dade é a fonte de todo 0 processo de desenvolvimento. Sua causa funda- mental seré agora a crise do Estado — do Estado Intervencionista, que, de fator do desenvolvimento, se transforma em obstéculo. $6 no Leste € no Sudeste Asidtico a crise ndo ocorre, exatamente porque ali foi possivel evi- tar a crise do Estado. Mas mesmo af, no anos 80, economias como as do Japio e da Coréia j4 comegam a dar sinais do esgotamento do modelo esta- tista de desenvolvimento. Acctise do Estado a que estou me referindo néio é um conceito vago. Pelo contrério, tem um sentido muito espectfico. O Estado entra em crise fiscal, perde em graus variados o crédito piblico, ao mesmo tempo que vé sua capacidade de gerar poupanca forgada a diminuir, sendo a desa- parecer, 4 medida que a poupanga publica, que era positiva, vai se tornan- do negativa, Em conseqiiéncia, a capacidade de interven¢do do Estado diminui dramaticamente. O Estado se imobiliza. Accrise do Estado esté associada, de um lado, ao caréter cfclico da intervengao estatal, e de outro, ao processo de globalizagao, que reduz- iu a autonomia das politicas econdmicas e sociais dos estados nacionais. A Grande Depressiio, embora uma crise do mercado, foi também uma crise do Estado Liberal. Esta crise provocou o surgimento do Estado Social, que no século vinte procurou proteger os direitos sociais e promover o desen- volvimento econémico, assumindo, na realizagdo desse novo papel, trés formas: a do Estado do Bem-Estar nos pafses desenvolvidos, principal- mente na Europa, a do Estado Desenvolvimentista nos pafses em desen- volvimento, e a do Estado Comunista nos pafses em que 0 modo de pro- dugo estatal tornou-se dominante. A ctise dos anos 30 foi uma crise do mercado — de um merca- do que o Estado nao lograva entdo regular de forma satisfat6ria. Por isso, quando as politicas macroecondmicas keynesianas ¢ as idéias de planeja- mento apareceram nos anos 30, foram logo adotadas e implicaram em uma melhoria considerdvel do desempenho das economias nacionais. Nos anos 50 tomou-se um lugar comum a idéia de que o Estado tinha papel estratégi- co na promogio do progresso técnico e da acumulagao de capital, além de Ihe caber a responsabilidade principal pela garantia de uma razodvel dis- tribuig&o de renda. Entretanto, estes éxitos levaram a um crescimento explosivo do Estado nao apenas na drea da regulagdo, mas também no plano social e no plano empresarial. Para isto cresceu a carga tributdria, AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 55 que de 5 a 10 por cento no inicio do século passou para 30 a 60 por cento do Produto Interno Bruto dos paises, e aumentou o ntimero de burocratas piblicos, que agora ndo se limitavam a realizar as tarefas classicas do Estado. O Estado tornava-se um Estado Social-Burocratico na medida em que, para promover o bem-estar social e o desenvolvimento econémico, contratava diretamente, como funciondrios piiblicos, professores, médicos, enfermeiras, assistentes sociais, artistas, etc. Ora, como sempre acontece, com o crescimento, com 0 aumen- to de sua capacidade de arrecadagao de impostos e de suas transferéncias, aos poucos as distorgdes comecaram a aparecer. As transferéncias do Estado foram sendo capturadas pelos interesses especiais de empresdtios, da classe média, e de burocratas ptiblicos. As empresas estatais, que ini- cialmente se revelaram um poderoso mecanismo de realizagéo de poupanga forcada, na medida em que realizavam lucros monopolistas e os investiam, foram aos poucos vendo esse papel se esgotar, ao mesmo tempo que sua operagao se demonstrava ineficiente ao adotar os padrées buro- créticos de administragdo. Na realizagéo das atividades exclusivas de Estado e principalmente no oferecimento dos servigos sociais de educagao e satide, a administragao publica burocratica, que se revelara efetiva em combater a corrupgao ¢ 0 nepotismo no pequeno Estado Liberal, demons- trava agora ser ineficiente e incapaz de atender com qualidade as deman- das dos cidadaos-clientes no grande Estado Social do século vinte, tornan- do necessdria sua substituigdo por uma administragdo publica gerencial.+ Em conseqiiéncia seja da captura do Estado por interesses privados, seja da ineficiéncia de sua administragdo, seja do desequilfbrio entre as demandas da populagdo e sua capacidade de atendé-las, 0 Estado foi entrando em crise fiscal — uma crise fiscal que, em um primeiro momento, no inicio dos anos 80, apareceu sob a forma da crise da divida externa. Na medida em que o Estado via sua poupanga pablica tornar-se negativa, perdia autonomia financeira e se imobilizava. Suas limitagdes gerenciais apareci- am com mais nitidez. A crise de governanca, que no limite se expressava em episddios hiperinflacionarios, tornava-se total: 0 Estado, de agente do desenvolvimento, se transformava em seu obstaculo. Por outro lado, 0 processo de globalizacio — uma mudanga quantitativa gradual que afinal se transformou, neste final de século, em 4 Examinarei o conceito de administragdo piblica gerencial mais adiante, na seco sobre gov- emanga e reforma administrativa, Para um aprofundamento do tema ver Bresser Pereira (1996). 56 LUA NOVA N® 45 —98 uma mudanga qualitativa da maior importancia —, imp6s uma pressio adi- cional para a reforma do Estado. Decorrente de uma grande diminuigao dos custos dos transportes e comunicagGes internacionais, a globalizagdo levou a um enorme aumento do comércio mundial, dos financiamentos interna- cionais e dos investimentos diretos das empresas multinacionais. Significou, assim, um aumento da competigao internacional em niveis jamais pensados e uma reorganizagiio da producio a nivel mundial patroci- nada pelas empresas multinacionais. O mercado ganhou muito mais espago a nfvel mundial, rompeu ou enfraqueceu as barreiras criadas pelos estados nacionais, e transformou a competitividade internacional em condi¢ao de sobrevivéncia para o desenvolvimento econémico de cada pafs . As conse- giiéncias foram, como acontece sempre quando 0 mercado prevalece, de um lado, uma melhor alocagdo dos recursos € 0 aumento da eficiéncia da produgo; de outro, perda relativa da autonomia do Estado, que viu reduzi- daa sua capacidade de formular polfticas macroeconémicas e de isolar sua economia da competigéo internacional. Com isso, dado 0 fato que os mer- cados sempre privilegiam os mais fortes, os mais capazes, aprofundou-se a concentragao de renda, seja entre os paises, seja entre os cidadaos de um mesmo pafs. Entre os paises porque os mais eficientes tiveram melhores condigées de se impor sobre os menos eficientes. Entre os cidadaos de cada pafs pela mesma razdo. Entre os trabalhadores de pafses pobres e ricos, entretanto, a vantagem foi para os primeiros: dado 0 fato que scus salarios sio consideravelmente mais baixos, os pafses em desenvolvimento pas- saram a ganhar espago nas importagdes dos pafses desenvolvidos, depri- mindo os salérios dos trabalhadores menos qualificados nesses pafses. A globalizacio impés, assim, uma dupla pressiio sobre o Estado: de um lado representou um desafio novo papel do Estado é proteger seus cidadios, e essa protecdo estava agora em xeque; de outro lado, exigiu que o Estado, que agora precisava ser mais forte para enfrentar o desafio, se tornasse tam- bém mais barato, mais eficiente na realizagdo de suas tarefas, para aliviar 0 seu custo sobre as empresas nacionais que concorrem intérnacionalmente. Em conseqiiéncia da captura por interesses privados, que acom- panhou o grande crescimento do Estado, e do processo de globalizacao, que reduziu sua autonomia, desencadeou-se a crise do Estado, cujas mani- festagdes mais evidentes foram a crise fiscal, 0 esgotamento das suas for- mas de interven¢do e a obsolescéncia da forma burocrdtica de administra- lo. A crise fiscal definia-se pela perda em maior grau de crédito ptblico e pela incapacidade crescente do Estado de realizar uma poupanga publica que Ihe permitisse financiar polfticas publicas. A crise do modo de inter- vengio manifestou-se de trés formas principais: a crise do welfare state no AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 37 primeiro mundo, o esgotamento da industrializag4o por substituigdo de importag6es na maioria dos pafses em desenvolvimento, ¢ 0 colapso do estatismo nos pafses comunistas. A superaciio da forma burocrética de administrar 0 Estado revelou-se nos custos crescentes, na baixa qualidade e na ineficiéncia dos servigos sociais prestados pelo Estado através do emprego direto de burocratas estatais. As respostas 2 crise, que naturalmente ganharam cardter universal dada a difusio muito répida das idéias e politicas pablicas que ocorre hoje,’ variaram de acordo com a filiagdo ideol6gica de cada grupo. Para descrever estas respostas reduzitemos os grupos a quatro — a esquerda tradicional, a centro-esquerda social-democratica e pragmatica, a centro-direita pragméti- ca, €a direita neoliberal — e contaremos uma breve histéria estilizada. A esquerda tradicional, arcaica e populista, entrou em crise ¢ ficou paralisada. Nao poderia ter ocorrido de outra forma, j4 que diagnos- ticou erroneamente a crise como causada por interesses externos: antes pelo imperialismo, agora pela “globalizacdo”. A centro-direita pragmatica — aqui definida como formada pelo establishment capitalista e burocréti- co nos patses centrais e na América Latina — determinou aos paises alta- mente endividados, primeiro (1982), obediéncia aos fundamentos macro- econdmicos, principalmente através do ajuste fiscal e da liberalizagao dos precos para garantir 0 equilfbrio dos pregos relativos; e, segundo (1985, com 0 Plano Baker), as reformas orientadas para 0 mercado (liberalizagao comercial, privatizacdo, desregulagao), que deveriam ser apoiadas politi- camente por politicas sociais compensatérias direcionadas. A direita neoliberal, por sua vez, que criticara desde os anos 30 0 crescimento do Estado mas nao tinha audiéneia, agora ganhou adeptos, ¢ assumiu uma atitude triunfante. Entendeu que estas reformas orientadas para © mercado, que apoiou e ajudou a formular, trariam automaticamente o desenvolvimento de volta, desde que estivessem firmemente direcionadas para 0 objetivo do Estado minimo e do pleno controle da economia pelo mer- cado, Em decorréncia era necessério privatizar, liberalizar, desregular, flexi- bilizar os mercados de trabalho, mas fazé-lo de forma radical, j4 que para o neoliberal o Estado deve limitar-se a garantir a propriedade e os contratos, devendo, portanto, desvencilhar-se de todas as suas funcdes de intervengao no plano econdmico e social, Sua politica macroecondmica deveria ser neu- 5 Ver a respeito Melo € Costa (1995). Os autores analisam a difustio das politicas neoliberais e mais amplamente o mecanismo de policy bandwagoning, que consiste na emulagio, pelos ‘governos, de politicas pablicas exitosas em outros paises ou regives.. 58 LUA NOVAN? 45 —98 tra, tendo como tinico objetivo o déficit ptiblico zero e controle do aumento da quantidade de moeda para que esta cresca de forma constante 4 mesma taxa do crescimento natural do PIB; sua politica industrial, nenhuma, e sua politica social, na verséo mais pura do neoliberalismo, também nenhuma, dados os efeitos inesperados e perversos que as politicas sociais teriam.§ ‘A centro-esquerda pragmitica, social-democritica ou social-li- beral, diagnosticou com clareza a Grande Crise como uma crise do Estado, delineou a interpretagdo social-democrdtica ou social-liberal da crise do Estado em substituigao a interpretagao nacional-desenvolvimentista, ¢ ado- tou as propostas da centro-direita pragmatica visando a obediéncia aos fun- damentos macroecondmicos — ou seja, politicas econémicas que envolvem ajuste fiscal, politicas monetérias apertadas, pregos de mercado, taxas de juros positivas mas moderadas e taxas de cAmbio realistas — e a realizagio de reformas orientadas para 0 mercado. Mas alertou que estas politicas nao bastavam, porque o mercado apenas — 0 mercado auto-regulavel do equi- Iibrio geral neoclassico e da ideologia neoliberal — ndo garante nem o desenvolvimento, nem 0 equilibrio e a paz social. Desta forma afirmava que as reformas orientadas para 0 mercado eram de fato necessdrias, mas no com radicalismo neoliberal. Eram necessérias para corrigir as distorgdes provocadas pelo excessivo crescimento do Estado e pela interferéncia arbi- trdria na definigéo dos pregos relativos. Mas voltar ao Estado Liberal do século dezenove é definitivamente invidvel. Ao invés do Estado minimo, a centro-esquerda social-liberal propés a reconstrugo do Estado, para que este possa — em um novo ciclo — voltar a complementar e corrigir efeti- vamente as falhas do mercado, ainda que mantendo um perfil de intervengao mais modesto do que aquele prevalecente no ciclo anterior, Reconstrugao do Estado que significa: recuperacdo da poupanga publica e superacao da crise fiscal; redefinigio das formas de intervengao no econdmico ¢ no social através da contratagaio de organizages piblicas ndo-estatais para executar 0s servigos de educagao, sade, ¢ cultura; e reforma da administragdo puibli- cacom a implantacdo de uma administragao publica gerencial. Reforma que significa transitar de um Estado que promove diretamente 0 desenvolvi mento econémico e social para um Estado que atue como regulador e faci- litador ou financiador a fundo perdido desse desenvolvimento.” © Sobre o carter reaciondrio do pensamento neoliberal ver Hirschman (1991). 7 Uma apresentagio sistemética dessa perspectiva encontra-se em Bresser Pereira, Maravall e Przeworski (1993). Em termos priticos, a guinada em diregio a politicas econdmicas voltadas para 0 ajuste fiscal e a reforma do Estado em governos social-democriticos, como acontecet) na Franga (1981), na Espanha (1983), no Brasil (1995), so manifestagdes dessa nova posigdo da centro-esquerda social-liberal. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 59 A centro-direita pragmdtica e mais amplamente as elites inter- nacionais, depois de uma breve hesitagdo, perceberam, em meados dos anos 90, que esta linha de ago estava correta, e adotaram a tese da refor- ma ou da reconstrugio do Estado. © Banco Mundial e 0 Banco Intera- mericano de Desenvolvimento tornaram os empréstimos para a reforma do Estado prioritarios. As Nacdes Unidas promoveram uma assembléia geral resumida sobre a administracao piblica, Muitos pafses criaram ministérios ou comissdes de alto nivel encarregadas da reforma do Estado. O World Development Report de 1997 tinha originalmente como titulo Rebuilding the State. A reforma do Estado tornou-se 0 lema do anos 90, substituindo a divisa dos anos 80: 0 ajuste estrutural. Uma grande coalizao de centro-esquerda e de centro-direita assim se formou. Uma coalizio que levou os governos, na América Latina, no Leste Europeu, em um grande niimero de paises em desenvolvimento na Asia, e mesmo nos pafses desenvolvidos, a promoverem a reforma do Estado para torné-o menor, mais voltado para as atividades que Ihe sao especfficas, que envolvem poder de Estado, mas mais forte, com maior governabilidade e maior governanga, com mais capacidade, portanto, de promover e finan- ciar, ou seja, de fomentar a educacdo e da satide, 0 desenvolvimento tec- nolégico e cientifico, e, assim, ao invés de simplesmente proteger suas economias nacionais, estimuld-las a serem competitivas internacionalmente. Delineia-se, assim, 0 Estado do século vinte-e-um. Nao seré, certamente, 0 Estado Social-Burocrético, porque foi esse modelo de Estado que entrou em crise. Nao ser4 também o Estado Neoliberal sonhado pelos conservadores, porque ndo existe apoio politico nem racionalidade econdmica para a volta a um tipo de Estado que prevaleceu no século dezenove. Nossa previsio é a de que 0 Estado do século vinte-e-um seré um Estado Social-Liberal: social porque continuard a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvi- mento econdmico; liberal, porque o fard usando mais os controles de merca- do e menos os controles administrativos, porque realizard seus servicos so- ciais ¢ cientificos principalmente através de organizagdes piblicas nao- 8 Afinal o WDR recebeu o titulo The State in a Changing World, mas conservou sua inspi- ragdo bisica: a reforma ou a reconstrugio do Estado. Em sua introdugdo o documento afirma: “Desenvolvimento sustentado — econ6mico e social —exige um Estado efetivo... Quando as pessoas diziam, cinglienta anos atrés, que o Estado era central para 0 desenvolvimento econémico, ela pensavam em desenvolvimento garantido pelo Estado. Hoje nds estamos novamente verificando que o Estado é centrat para o desenvolvimento econdmico e social, mas principalmente como um sécio, um agente catalisador e facilitador.” 60 LUA NOVA N45 — 98, estatais competitivas, porque tomaré os mercados de trabalhos mais flexiveis, porque promoverd a capacitagdo dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovagdo e a competicio internacional. Mas, afinal, quais sfio os componentes ou processos bésicos da reforma do Estado dos anos 90, que levardo ao Estado Social-Liberal do século vinte-e-um? Sdo a meu ver quatro: (a) a delimitagdo das fungdes do Estado, reduzindo seu tamanho em termos principalmente de pessoal através de programas de privatizacao, terceirizagao e “publicizagao” (este ultimo processo implicando a transferéncia para o setor ptiblico ndo-estatal das servigos sociais e cientificos que hoje o Estado presta); (b) a redugdo do grau de interferéncia do Estado a0 efetivamente necessdrio através de programas de desregulacfio que au- mentem 0 recurso aos mecanismos de controle via mercado, transformando o Estado em um promotor da capacidade de competigao do pafs em nivel internacional ao invés de prote- tor da economia nacional contra a competigao internacional; (©) © aumento da governanga do Estado, ou seja, da sua capaci- dade de tornar efetivas as decisées do governo, através do ajuste fiscal, que devolve autonomia financeira ao Estado, da reforma administrativa rumo a uma administragdo publica gerencial (ao invés de burocratica), e a separagdo, dentro do Estado, ao nivel das atividades exclusivas de Estado, entre a formulagao de politicas publicas e a sua execugao; e, final- mente, (@) 0 aumento da governabilidade, ou seja, do poder do gover- no, gragas & existéncia de instituigdes politicas que garantam uma melhor intermediagao de interesses e tornem mais legf- timos e demoeréticos os governos, aperfeigoando a demo- cracia representativa e abrindo espago para 0 controle social ou democracia direta. 9 Bob Jessop (1994: 103) afirma que 0 welfare state keynesiano serd substitufdo no século vinte-e-um pelo workfare state shumpeteriano, que promoverd a inovagéio em economias abertas e subordinaré a politica social as necessidades da flexibilizagao dos mercados e das exigéncias de competigdo intemacional. Hi uma clara relago entre 0 conceito de Estado Social-Liberal 0 workfare state shumpeteriano. AREFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 61 Uma outra forma de conceituar a reforma do Estado em curso, & entendé-la como um processo de criagao ou de transformagao de instituigoes, de forma a aumentar a governanga e a governabilidade. A privatizacdo é um processo de transformar uma empresa estatal em privada. Publicizagdo, de transformar uma organizagao estatal em uma organizaciio de direito privado, mas piblica ndo-estatal. Terceirizagdo € 0 processo de transferir para o setor privado servigos auxiliares ou de apoio. No seio do Estado estrito senso, onde se realizam as atividades exclusivas de Estado, a clara distingdo entre secretarias formuladoras de politicas piblicas, agéncias executivas e agén- cias reguladoras aut6nomas implica em criago ou redefiniggo da inst tuig6es. No plano das reformas, muitas delas implicam a criagdio de novas instituigdes, entendidas estas de forma restrita como instituigées organiza- cionais (isto € especialmente verdade para as instituigdes voltadas para 0 controle social), ¢ todas elas implicam novas instituigées legais: 0 voto pro- porcional, o voto distrital misto, a limitagao do ntimero de partidos, a fideli- dade partidéria, a propaganda politica gratuita, a garantia de participagiio nas decisdes politicas das instituicdes puiblicas ndo-estatais. Nessa linha de raciocfnio, mas de uma forma muito mais abstra- ta, é possfvel pensar na reforma do Estado a partir do modelo do principal- agente, como uma forma de criar incentivos e punigdes para que a vontade dos eleitores se realize no Estado. Segundo esse modelo, em sua forma simplificada, os eleitores seriam os principais, os politicos eleitos, seus agentes; estes, por sua vez, seriam os principais dos burocratas ou servi- dores piblicos.'° A tarefa fundamental da reforma seria a criagdo ou refor- ma de instituigdes de forma que os incentivos e punigdes se tornassem rea- lidade. Nesse nivel de abstragdo, néio tenho objegdo a esta abordagem. Afinal ela codifica 0 dbvio. Entretanto, quando muito dos seus autores, a partir de uma perspectiva da escola da escolha racional, supdem que os politicos s6 se motivam por rent seeking e a vontade de ser reeleito, excluindo 0 interesse ptiblico como uma terceira motivagdo, sua capaci- dade explicativa torna-se muito menor. Por outro lado, quando limita a motivagao dos administradores piiblicos ao rent seeking e & vontade de ocupar cargos, excluindo a vontade de realizagao e o interesse piblico, o comportamento de um grande ntimero de administradores e 0 sentido das reformas que inspiram a “nova administracdo péblica” — a administragao ptiblica gerencial — tornam-se incompreensivei ‘Nas proximas secdes vamos examinar estes quatro componentes 10 Para a anélise da reforma do Estado sob esta ética ver Przeworski (1996a) € Melo (1996). 62 LUA NOVA N® 45 —98 bsicos da reforma do Estado: (a) delimitagdo de seu papel, através dos processos de privatizagao, publicizagio ¢ terceirizagdo; (b) a desregulaco; (©) 0 aumento da governanga; e (d) 0 aumento da governabilidade. Em ou- tras palavras, analisaremos, respectivamente, a Idgica dos processos de redugo do tamanho do Estado, da diminuiggo de sua interferéncia nas atividades econémicas, de aumento de sua capacidade fiscal e administra- tiva, e do aumento do poder politico democratico de seus governantes. E a0 fazé-lo estaremos, concomitantemente, examinando as principais insti- tuigdes que estdo no centro da reforma do Estado dos anos 90. DELIMITAGAO DA AREA DE ATUACAO A reforma do Estado é vista freqiientemente como um proces- so de reducdo do tamanho do Estado, envolvendo a delimitagdo de sua abrangéncia institucional e a redefinigao de seu papel. Dado seu cresci- mento excessivo neste século, as esperangas demasiadamente grandes que foram nele depositadas pelos socialistas, e as distorges de que 0 Estado afinal foi vitima, essa perspectiva € essencialmente correta. O Estado cresceu em termos de pessoal, e principalmente, em termos de receita e despesa. Em muitos paises, os servidores piblicos, exclufdos os trabalhadores das empresas estatais, correspondem a cerca de 10 a 20 por cento da forga de trabalho, quando no inicio do século esta cifra estava préxima dos 5 por cento. As despesas do Estado, por sua vez, multi- plicaram-se por trés ou quatro neste século: nos dltimos 30 anos dobraram, variando hoje entre 30 € 50 por cento do PIB. !! Naturalmente esse processo de crescimento ocortia ao mesmo tempo que se ampliavam as fungdes do Estado, principalmente na drea social.!? O fato de que a relagao entre o mimero de servidores e a fora de trabalho economicamente ativa 6 sempre consideravelmente inferior & 11 _ Medindo o tamanho do Estado pela sua despesa 0 Banco Mundial (1997: 1.6) verificou ye “em trés décadas € meia, entre 1960 e 1995, 0 Estado dobrou o seu tamanho”, ~ Os Estados europeus, que desenvolveram um sistema de bem-estar sofisticado, garan- tindo um padrio minimo de vida a todos os seus cidadaos, encontram-se préximos do limite superior, enquanto que os paises de desenvolvimento intermedidtio € os Estados Unidos, em que as desigualdades sio profundas e certos direitos mfnimos nao estio assegurados, agrupam-se em torno do limite inferior. Conforme escreveu Adam Przeworski (1995b), para ‘que um pats seja “civilizado”, ou seja, que tenha menos de 10 por cento da sua populagdo abaixo da linha de pobreza, € necessério que sua carga tributéria esteja em torno de 45 por cento do PIB. Segundo esse critério os Estados Unidos nio sdo civilizados, j que cerca de 18 por cento da sua populagao é pobre. A REFORMA DO ESTADO DOS ANOS 90 63 relagdo entre a carga tributdtia e © PIB deriva em parte do fato de que os servidores piblicos tm uma qualificagdo e, em conseqiiéncia, uma remu- neragdo em média superior & remuneragao do setor privado. O motivo prin- cipal, entretanto, foi um processo gradual de delimitag4o da érea de atuagdo do Estado. Aos poucos foi-se reconhecendo que o Estado nao deve executar diretamente uma série de tarefas. Que reformar o Estado signifi- ca, antes de mais nada, definir seu papel, deixando para o setor privado para o setor piblico nao-estatal as atividades que nao Ihe sao especificas. Para delimitar com clareza as fungdes do Estado € preciso, a par- tir do conceito de Estado, distinguir trés areas de atuaco: (a) as atividades exclusivas do Estado; (b) os servigos sociais e cientificos do Estado; e (c) a produgdo de bens e servigos para o mercado. Por outro lado é conveniente distinguir, em cada uma dessas éreas, quais sao as atividades principais (core activities) € quais as auxiliares ou de apoio. A Figura I resume, através de uma simples matriz, essas distingGes. Nas suas colunas temos as Atividades Exclusivas de Estado, 0s Servigos Sociais e Cientificos e a Produgdo de Bens e Servigos para o Mercado. A definigao de quais sejam as atividades exclu- sivas de Estado deriva da propria definigao do que seja esta instituiggo. Politicamente, o Estado € a organizacao burocratica que detém o “poder extroverso” sobre a sociedade civil existente em um tertit6rio. As organiza- gies privadas e as piblicas ndo-estatais tém poder apenas sobre os seus fun- cionérios, enquanto que o Estado tem poder para fora dele, detém o “poder de Estado”: o poder de legislar e punir, de tributar e realizar transferéncias a fundo perdido de recursos. O Estado detém esse poder para assegurar a ordem interna — ou seja, garantir a propriedade e os contratos —, defender © pais contra o inimigo externo, e promover 0 desenvolvimento econdmico e social. Neste dltimo papel podemos pensar o Estado em termos econ6mi- cos: 6 a organizagio burocritica que, através de transferéncias, complemen- tao mercado na coordenagdo da economia: enquanto o mercado opera através da trocas de equivalentes, 0 Estado o faz através de transferéncias financiadas pelos impostos. Figura 1: Deli co da Area de Atuacao do Estado ‘Atvidades Servigos Socials | Produgéo de Bens e Exclusivas de Estado 0S | Servigos p/ Mercado Atividades ESTADO | j | | (Core) Le | fh pe as Atividades: i = | Auxiliares terceirigagao | | | Principais | Enquanto Pessoal T

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