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BE NDAMIN) WALTEN. OBn08 ESCaLWi tas Vs | + J >* Mably_u aewinn, AN Bra svtienss, 1483, Bonu th Litwenar I (ror. Moin Psers POCTT ICA. Se Pass) O narrador Consideragdes sobre a obra de Nikolai Leskoy 1 Por mais famitiar que seja seu nome, o narrador nao esti de fato presente entre nés, em sua atualidade viva. Ele & algo de distante, ¢ que se distancia ainda mais. Descrever um Leskov* como narrador no significa trazé-lo mais perto de nds. ¢ sim, pelo contririo, aumentar a distancia que nos se- Para dele, Vistos de uma certa distancia, os tracos grandes ¢ simples que earacterizam 0 narrador se destacam nele, Ou melhor, esses tragos aparece, como um rosto humano ot! um corpo de animal aparecem num rochedo, para um observador localizado numa distincia apropriada ¢ num Angulo vel. Uma experiéneia quase cotidiana nos impde a cxigtn dessa distancia e desse Angulo de observagio. E a experignein de que a arte de narrar est em vias dle extingdo. So cada ver mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente, Quando (2) Nikolak Leskor mS. Petersbungo. Por scus in idades com Tolstoi, por sua oricataczo regio, com Dostlerati, Mas ot tates nos duradouros de sua obra sio exatamente aqucles em que ais tendencioe mem wma express3o dog tica € dourinaria— os primeiros romances, A sign. ficasdo de Leskox esticm suas natrativas, que pertencem ava fase posterior. Desde fim da guerra twuse tas tentativas de difundr essa narrativas nos paises le Nngua alema. Atém dav pequenas coletineas publicadas pels editoray Muaation Georg Molter, devemos meucionar, com especial destaque. seleyd0 em move vo. umes da editora C.H. Beck, faa WALTER BENIAMIN +> num grupo que alguém narre alguma coisa, o emba- Hose generalize. E como se esivéssomos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inaliendvel: a faculdade de intercambiar experiéncias. interUjma das eausas desse fendmeno € Obvia: as agbes da experiéncia estio em baixa, e tudo indica que continuarao caindo até que seu valor desapareca de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nivel esti mais baixo que nufica, e que da noite para o dia nao somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformagdes que antes ndo julgariamos possiveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um proceso que con- tinua até hoje. No final da guerra, observou-se que os comba- tentes voltavam mudos do campo de batalha nao mais ricos, ¢ sim mais pobres em experiéncia comunicivel. E 0 que se di- fundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiéncia transmitida de boca em boca. Nao havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiéneias mais radiealmente desmoralizadas que a experiéncia estratégica pela guerra de trincheiras, a experiéncia econémica pela inflagao, a experiéncia do corpo pela guerra de material a experiéncia ética pelos gover- nantes, Uma geragao que ainda fora 4 escola num bonde pu- xado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permacera inalterado, exceto as nuvens, ¢ debaixo delas, num campo de forcas de torrentes ¢ explosdes, o fragil ¢ mindsculo corpo humano. 2 JA experiéncia que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que Fecorreram todos os narradores.|E, entre as narrativas esctitas, as melhores so as que menos se distinguem das his \brias orais contadas pelos inimeros narradores anénimos. Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de miltiplas maneiras. A figura do narrador s6 se torna plena- mente tangfvel se temos presentes esses dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar”, diz 0 povo, ¢ com isso imagina © narrador como alguém que vem de longe. Mas também escu- tamos com prazer 0 homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu pais e que conhece suas historias ¢ tra- ma Ye TeemcA, ARTE E POLITICA 1 digdes, Se quisermos coneretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exem- plificado pelolgamponés sedentério, e outro pelo marinheiro comerciante\ Na realidade, esses dois estilos de vida produ- ziram de certo modo suas respectivas familias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas ca- racteristicas proprias. Assim, entre os autores alemaes mo- dernos, Hebel ¢ Gotthelf pertencem a primeira familia, e Sielsfield ¢ Gersticker A segunda. No entanto essas duas fa- miflias, como j& se disse, constituem apenas tipos fundamen- tais. A extensio real do reino narrativo, em todo o seu alcance histérico, s6 pode ser compreendido se levarmos em conta a interpenetragdo desses dois tipos arcaicos, O sistema corpora- tivo medieval contribuiu especialmente para essa interpene- tragdo. O mestre sedentério ¢ os aprendizes migrantes tra- balhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de se fixar em sua pAtria ou no estrangeiro. Se os camponeses € os marujos foram os pri- meiros mestres da arte de narrar, foram os artifices que a aperfeigoaram.[No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes, com 0 saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentario,| 3 Leskov esté A vontade tanto na distancia espacial como na distancia temporal. Pertencia a Igreja Ortodoxa grega ¢ tinha um genufno interesse religioso. Mas sua hostilidade pela burocracia eclesidstica nao era menos genuina. Como suas relagdes com o funcionalismo leigo no eram melhores, os cargos oficiais que exerceu nao foram de longa duracao, O emprego de agente russo de uma firma inglesa, que ocupou durante muito tempo, foi provavelmente, de todos os em- Pregos possiveis, o mais vitil para sua produgio literaria. A servigo dessa firma, viajou pela Russia, ¢ essas viagens enri- queceram tanto a sua experigneia do mundo como seus conhe- cimentos sobre as condicdes russas. Desse modo teve ocasiao de conhecer o funcionamento das seitas rurais, 0 que deixou tragos em suas narrativas. Nos contos lendarios russos, Leskov encontrou aliados em seu combate contra a burocracia orto- 2» wavrensennnn doxa.\Escreveu uma série de contos desse género, cujo perso- nagem central € 0 justo, raramente um asceta, em geral um homem simples e ativo, que se transforma em santo com a maior naturalidade,\A exaltagZo mistica é alheia a Leskov. Embora ocasionalmente se interessasse pelo maravilhoso, em questdes de piedade preferia uma atitude solidamente na- tural. Seu ideal 60 homem que aceita o mundo sem se prender demasiadamente a ele. Seu comportamento em questdes tem- porais correspondia a essa atitude. E coerente com tal com- portamento que ele tenha comecado tarde a escrever, ou seja, com 29 anos, depois de suas viagens comerciais. Seu primeiro texto impresso se intitulava: “Por que so 0s livros caros em Kiev?”. Seus contos foram precedidos por uma série de ¢s- critos sobre a classe operiria, sobre o alcoolismo, sobre os médicos da policia e sobre os vendedores desempregados. 4 10 senso pritico é uma das caracteristicas de muitos nar- radores natos)Mais tipicamente que em Leskov, encontramos esse atributo num Gotthelf, que d4 conselhos de agronomia a seus camponeses, num Nodier, que se preocupa com os pe- rigos da iluminagao a gis, e num Hebel, que transmite a se leitores pequenas informagdes cientificas em seu Schatzkai tlein (Caixa de tesouros). [Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa, Ela tem sempre em si, as vezes de forma Tatente, uma dimensto utilitiria.|Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestdo pratica, seja num provérbio ou numa norma de vida — de qualquer ma- ncira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se “dar conselhos" parece hoje algo de antiquado, é porque as experiéncias estiio deixando de ser comunicaveis. Em consc- qiéncia, nao podemos dar conselhos nem a nés mesmos nem ‘20s outros, Aconselhar é menos responder a uma pergunta ‘que fazer uma sugestdo sobre a continuagio de uma historia que esta sendo narrada. Para obter essa sugestio, é necessirio primeiro saber narrar a histéria (sem contar que um homem s6 éreceptivo aum conselho na medida em que verbaliza a sua si- ‘tuagio) 40 conselho tecido na substancia viva da existéncia tem um nome: sabedoria. A arte de narrar esté definhando porque MACE TECNICA, ARTE E POLITICA 201 a sabedoria — 0 lado épico da verdade — est em extingio.| Porém esse processo vem de longe. Nada seria mais tolo que ver nele um “sintoma de decadéncia” ou uma ceracteristica “moderna”. [Na realidade, esse processo, que expulsa gra- dualmente a narrativa da esfera do discurso vivo ¢ ao mesmo tempo dé uma nova beleza ao que est desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolugio se- cular das forcas produtivas. 5 [0 primeiro indicio da evolucdo que vai culminar na morte da narrativa ¢ 0 surgimento do romance no inicio do perfodo moderno,JO que separa o romance da narrativa (e da epopéia no sentido estrito) é que ele est essencialmente vinculado ao livro. A difusio do romance s6 se torna possivel com a in- vengao da imprensa. A tradi¢io oral, patriménio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza 0 romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa — contos de fada, lendas e mesmo novelas — & que ele nem procede da tradico oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiéncia o que ele conta: sua propria experiéncia ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas A experiéncia dos seus ouvintes. O romancista se- grega-se. A origem do romance ¢ 0 individuo isolado, que nlio pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupagdes mais importantes e que ndo recebe conselhos nem sabe da-los. Es- crever um romance significa, na descricZo de uma vida hu- mana, levar o incomensurivel a seus Gltimos limites. Na ri- queza dessa vida e na descricao dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. O primeiro grande livro do género, Dom Quixote, mostra como a gran- deza de alma, a coragem e a generosidade de um dos mais nobres herdis da literatura so totalmente refratérias ao con- selho e no contém a menor centelha de sabedoria. Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no ro- mance algum ensinamento — talvez 0 melhor exemplo seja Withelm Meisters Wanderjahre (Os anos de peregrinacao de Withelm Meister) —, essas tentativas resultaram sempre na 2 WALTER BENIAMIN transformagao da propria forma romanesea. © romance de formacdo (Bindungsroman), pot outro lado, nao se afasta absolutamente da estrutura fundamental do romance. Ao in- tegrar 0 processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente fragil as leis que determinam tal proceso. A legitimagao dessas leis nada tem a ver com sua realidade, No romance de formacdo, é essa insuficiéncia que esté na base da ago. 6 Devemos imaginar a transformagio das formas épicas segundo ritmos compariveis aos que presidiram a transfor- magdo da crosta terrestre no decorrer dos milénigs. Poucas formas de comunicagio humana evoluiram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primérdios remontam Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favordveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narra~ tiva comegou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem diivida, ela se apropriou, de maltiplas formas, do novo contetido, mas no foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidaco da burguesia — da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes — destacou-se uma forma de comunicagio que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia in- fluenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influéncia, Ela é (io estranha & narrativa como 0 ro- mance, mas é mais ameacadora e, de resto, provoca uma crise no proprio romance, Essa nova forma de comunicagao é a in- formagio. Villemessant, 0 fundador do Figaro, caracterizou a es- séncia da informagio com uma formula famosa, “Para meus Ieitores", costumava dizer, “o incéndio num sétdo do Quartier Latin é mais importante que uma revolugio em Madri.” Essa férmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de Jonge encontra hoje menos ouvintes que a informagao sobre acontecimentos préximos{Q saber, que vinha de linge — do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradigdio —, dispunha de uma autoridade que era MA Ye TECNICA, ARTE E POLITICA 203 valida mesmo que niio fosse controlavel pela experiénciaMas a informagdo aspira a uma verificagao imediata,| Antes de mais nada, ela precisa ser compreensivel “em si € para si”. Muitas vezes nao € mais exata que os relatos antigos, Porém, enquanto esses relatos recorriam freqientemente ao miracu- oso, é indispens4vel que a informacdo seja plausivel. Nisso cla é incompativel com o espirito da narrativa.\Se a arte da narra- tiva & hoje rara, a difusdo da informacao é decisivamente res- ponsdvel por esse declinio. Cada manha recebemos noticias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histérias surpreendentes. A razo que os fatos ja nos chegam acompanhados de explicagdes. Em outras palavras: quase nada do que acontece est a servico da narrativa, € quase tudo esta a servico da informagao. Metade da arte narrativa esti em evitar explicagdes. Nisso Leskov ¢ magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A dguia branca.) O extraordinério ¢ o miraculoso so narrados com a maior exatido, mas 0 contexto psicolégico da acio nao & imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a hist6ria como quiser, ¢ com isso o episédio narrado atinge uma amplitude que nio existe na informacao. a Leskov freqientou a escola dos Antigos. O primeiro nar- rador grego foi Herédoto. No capitulo XIV do tereciro livro de suas Histérias encontramos um relato muito instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egipcio Psammenit foi der- rotado € reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo. Deu ordens para que Psam- menit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha degradada A condigo de criada, indo ao poco com um jarro, para buscar 4gua. Enquanto todos os egipcios se lamentavam com esse espetéculo, Psammenit ficou silencioso ¢ imével, com os olhos no chio; e, quando logo em seguida viu seu filho, caminhando no cortejo para ser execu- tado, continuo imével. Mas, quando viu um dos'seus servi- dores, um velho miserdvel, na fila dos cativos, golpeou a ca- o. beca com os punhos ¢ mostrou os sinais do mais profundo desespero. Essa hist6ria nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informagdo s6 tem valor no momento em que é nova. Ela s6 vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a cle € sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente a narrativa. Ela nao se entrega. Ela conserva suas forcas ¢ depois de muito tempo ainda & capaz de se desenvolver. As- sim, Montaigne alude & historia do rei egipicio e pergunta: porque ele s6se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é que ele ‘‘jé estava to cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as comportas”. E a expli- cago de Montaigne. Mas poderiamos também dizer: “O des- tino da familia real nao afeta o rei, porque é o seu proprio destino". Ou: “muitas coisas que no nos afetam na vida nos afetam no paleo, e para o rei 0 criado era apenas um ator”. ‘Ou: “as grandes dores so contidas, ¢ s6 irrompem quando ‘ocorre uma distensio. O espeticulo do servidor foi essa di tensio”. Herédoto nao explica nada, Seu relato & dos mais sec0s, Por isso, essa histéria do antigo Egito ainda é capaz, depois de miténios, de suscitar espanto e reflexdo. Ela se asse- metha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos ficaram fechadas hermeticamente nas cfimaras das pirdmides que conservam até hoje suas forgas germinativas, 5 04 WALTER BENIAMIN 8 (Nada facilita mais a memorizago das narrativas que aquela sébria concisio que as salva da anilise psicolégica,) Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia ds sutilezas psicolgicas, mais facilmente a historia se gravaré na meméria do ouvinte, mais completamente ela se assimilard & ‘sua propria experiéncia ¢ mais irresistivelmente ele cedera i inclinag’o de reconti-la um dia. Esse processo de assimilagiio se dd em camadas muito profundas e exige um estado de distensio que se torna cada vez mais raro. Se 0 sono: €oponto mais alto da distensio fisica, 0 tédio € 0 ponto mais alto da distensio psiquica. O tédio ¢ 0 passaro de sonho que choca os ‘ovos da experiéncia. O menor sussuro nas folhagens 0 assusta. Seus ninhos — as atividades intimamente associadas ao tédio a Ae Tecnica, anres poutrica xs — jf se extinguiram na cidade ¢ estio em vias de extingio no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade dos ouvintes. Coatar historias sempre foi a arte de conté-las de novo, ¢ ela se perde quando as histérias nao silo mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ‘ou tece enquanto ouve a hist Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que € ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histérias de tal maneira que adquire espontanea- mente o dom de narri-las. Assim se teceu a rede em que esti guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, h& milénios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. 7 A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesio — no campo, no mar e na cidade —, é ela prépria, num certo sentido, uma forma artesanal de comu- nicagio. Ela nao esta interessada em transmitir 0 “puro em- da coisa narrada como uma informagao ou um relatério. ja mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida tird-la dele. {Assim se imprime na narrativa a marca do nar- rador, como a mao do oleiro na argila do vaso. Os narradores gostam de comegar sua histéria com uma descricio das cir- cinstfincias em que foram informados dos fatos que vao contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa historia a uma experiéncia autobiogrificaLeskov comega A fraude com uma descrigdo de uma viagem de trem, na qual ouviu de um com- panheiro de viagem os episédios que vai narrar; ou pensa no entero de Dostoievski, no qual travou conhecimento com a heroina de A propésito da Sonata de Kreuzer; ov evoca uma reuniio num citculo de leitura, no qual soube dos fatos rela- tados em Homens interessantes. Assim, seus vestigios esto presentes de muitas manciras nas coisas narradas, seja na qualidade de quem as viveu, seja na qualidade de quem as relata, —- O proprio Leskov considerava essa arte artesanal — a narrativa — como um oficio me ual. “A literatura”, diz ele em uma carta, “nao é para mir: uma arte, mas um trabalho 26 WALTER BENIAMIN Y»y manual.” Nao admira que ele tenha se sentido ligado ao tra batho manual e estranho a técnica industrial. Tolstoi, que tinha afinidades com essa atitude, alude de passagem a esse elemento central do talento narrativo de Leskov, quando diz que ele foi o primeiro “a apontar a insuficiéncia do progresso econdmico... £ estranho que Dostoievski seja tio lido... Em ‘compensaco, no compreendo por que nio se 1é Leskov. Ele € um escritor fiel a verdade”. No malicioso petulante A pulga de ago, intermediério entre a lenda ea farsa, Leskov exalta, nos ourives de Tula, o trabalho artesanal. Sua obra- prima, a pulga de aco, chega aos olhos de Pedro, o Grande € 0 convence de que os russos no precisam envergonhar-se dos ingleses. ‘Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artifices, do qual provém 0 narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados ¢ maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como “o pro- duto precioso de uma longa cadcia de causas semelhantes entre si”, O actimulo dessas causas sé teria limites temporais quando fosse atingida a perfeigao. “‘Antigamente 0 homem imitava essa paciéncia”, prossegue Valéry. “‘Iuminuras, mar- fins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamen- te polidas e claramente gravadas; lacas ¢ pinturas obtidas pela superposico de uma quantidade de camadas finas ¢ transhicidas... — todas essas produgdes de uma inddstria tenaz ¢ virtuosistica cessaram, e j4 passou o tempo em que 0 tempo nao contava. O homem de hoje nao cultiva o que nao pode ser abreviado."" Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que sc emancipou da tradicaio oral ¢ nio mais permite essa lenta superposicao de camadas finas transliicidas, que representa a melhor imagem do proceso pelo qual a narrativa perfeita vem & luz do dia, como coroa- mento das varias camadas constituidas pelas narragdes suces- sivas. macy TECNICA, ARTE E POLITICA 207 10 Valéry conclui suas reflexes com as seguintes palavras: “dir-se-ia que o enfraquecimento nos espiritos da idéia de eternidade coincide com uma aversio cada vez maior ao tra- batho prolongado”. A idéia da eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica, Se essa idéia esti se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto, Essa transformagao é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiéncia 4 medida que a arte de narrar se extinguia. No decorrer dos iiltimos séculos, pode-se observar que a idéia da morte vem perdendo, na consciéncia coletiva, sua onipresenga e sua forca de evocagdo, Esse processo se acelera em suas ditimas etapas. Durante 0 século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituigdes higiénicas e sociais, privadas e piblicas, um efeito colateral que inconscientemen- te talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos ho- mens evitarem 0 espeticulo da morte. Morrer era antes um epis6dio piblico na vida do individuo, e seu cardter era alta- mente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em diregio a0 qual se precipita 0 povo, através das portas escancaradas. Hoje, a morte & cada ver. mais expulsa do universo dos vivos. Antes no havia uma s6 casa e quase nenhum quarto em que no tivesse morrido alguém. (A Idade Média conhecia a con- trapartida espacial daquele sentimento temporal expresso num relégio solar de Ibiza: ultima multis.) Hoje, os burgueses vivem em espagos depurados de qualquer morte c, quando chegar sua hora, serdo depositados por seus herdeiros em sa- natdrios e hospitais. Ora, é no momento da morte que o saber ea sabedoria do homem e sobretudo sua existéncia vivida — c é dessa substancia que sio feitas as historias — assumem pela primeira vez uma forma transmissivel. Assim como no interior do agonizante desfilam inimeras imagens — visdes de si mesmo, nas quais cle se havia encontrado sem se dar conta disso —, assim o inesquecivel aflora de repente em seus gestos ¢ olhares, conferindo a tudo o que the diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, 208 WALTER BENIAMIN XY para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa esté essa autoridade. 11 ‘A morte é.a sangdo de tudo o que o narrador pode contar. E da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras pa- lavras: suas histérias remetem a historia natural. Esse fen6- meno é ilustrado exemplarmente numa das mais belas narra- tivas do incomparavel Johann Peter Hebel. Ela faz parte do Schatzkstlein des rheinischen Hausfreunde (Caixa de te~ ‘souros do amigo renano das familias) ¢ chamavse Unver- hhofftes Wiedersehen (Reencontro inesperado). A hist6ria co- meca com o noivado de um jovem aprendiz que trabalha nas minas de Falun, Na véspera do casamento, o rapaz morre em tum acidente, no fundo da sua galeria subterranea. Sua noiva ‘se mantém fiel além da morte e vive o suficiente para reconhe- cer um dia, j4 extremamente velha, 0 cadaver do noivo, en- contrado em sua galeria perdida e preservado da decomposi- ‘go pelo vitriolo ferroso, A ancid morre pouco depois. Ora, Hebel precisava mbstrar palpavelmente o longo tempo decor- rido desde o inicio da histéria, e sua solugto foi a seguinte: “Entrementes, a cidade de Lisboa foi destruida por um terre- moto, ea guerra dos Sete Anos terminou, eo imperador Fran- cisco | mi rreu, € a ordem dos jesuitas foi dissolvida, ¢ a Po- Tenia foi retalhada, a imperatriz Maria Teresa morreu, ¢ Struensee foi executado, a América se tornou independente, ¢ a poténcia combinada da Franca ¢ da Espanha no pdde con- quistar Gibraltar. Os turcos prenderam o general Stein na grota dos veteranos, na Hungria, ¢ 0 imperador José morreu também, O rei Gustavo da Suécia tomou a Finlandia dos russos, e a Revolugdo Francesa ¢ as grandes guerras come- garam, € 0 rei Leopoldo II faleceu também. Napoledo con- quistou a Prissia, ¢ os ingleses bombardearam Copenhague, ¢ ‘0s camponeses semeavam e ceifavam. O moleiro mocu, ¢ os ferreiros forjaram, e os mineiros cavaram a procura de fildes metilicos, em suas oficinas subterrineas. Mas, quando no ano de 1809 os mineiros de Falun...”, Jamais outro narrador conseguiu inscrever tio profundamente sua historia na his- téria natural como Hebel com essa cronologia. Leia-se com MANE TECNICA, ARTE E POLITICA 2» ateng&o: a morte reaparece nela tdo regularmente comp 0 esqueleto, com sua foice, nos cortejos que desfilam ao meio- dia nos relégios das catedrais. 12 Cada vez que se pretende estudar uma certa forma épica & necessario investigar a relacdo entre essa forma e a historio- grafia. Podemos ir mais longe e perguntar se a historiografia nio representa uma zona de indiferenciagdo criadora com re- lag&o a todas as formas épicas. Nesse caso, a historia escrita se relacionaria com as formas épicas como a luz branca com as cores do espectro. Como quer que seja, entre todas as formas épicas a crénica € aquela cuja inclusdo na luz pura ¢ incolor da histéria escrita é mais incontestavel. E, no amplo espectro da crénica, todas as maneiras com que uma histéria pode ser narrada se estratificam como se fossem variagdes da mesma cor. O cronista é o narrador da hist6ria, Pense-se no trecho de Hebel, citado acima, cujo tom é claramente o da crénica, ¢ notar-se-4 facilmente a diferenca entre quem escreve a his- toria, o historiador, e quem a narra, o cronista. O historiador 6 obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episddios com que lida, e no pode absolutamente contentar-se em re- presenté-los como modelos da historia do mundo. E exata- mente o que faz 0 cronista, especialmente através dos seus representantes clissicos, os cronistas medievais, precursores da historiografia moderna, Na base de sua historiografia est © plano da salvacdo, de origem divina, indevassavel em scus designios, e com isso desde 0 inicio se libertaram do énus da explicaciio verificdvel. Ela é substitufda pela exegese, que niio se preocupa com o encadeamento exato de fatos determina- dos, mas com a maneira de sua inserg2o no fluxo insondavel das coisas. Nao importa se esse fluxo se inscreve na historia sagrada ou se tem carter natural. No narrador, o cronista conservou- se, transformado ¢ por assim dizer secularizado. Entre eles, Leskov € aquele cuja obra demonstra mais claramente esse fenémeno. Tanto o cronista, vinculado & hist6ria sagrada, como © narrador, vinculado & historia profana, participam igualmente da natureza dessa obra a tal ponto que, em muitas

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