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Ren ete E a 5 a a Cs a s 3, i ES a7 E} i Sumario Prefacio da 1* Edicio ~ Gilberto Freyre ....., Preficio da 2* Edigio ~ Maria Stella de Azevedo Exu € 0 Primeiro a Comer .., Alimentagio ¢ Identidade . Tudo Come e de Tudo se Come: Em Torno do Conceito de Comer nas Religides Afro-Brasileiras A Mesa dos Deuses Comem os Orixds, Voduns, Inquices Ajeum ... Cozinha. Espago Sagrado dos Quitutes dos Deuses Utensilios do Fazer Culinario .... Os Pratos de Nana: A Comida dos Filhos ¢ a Comida dos Ancestrais Bebidas Rituai Cento € Cingiienta Alimentos dos Terreiros .... Animais do Sacrificio ..., A Comida dos Inquices . O Tabuleiro das Vendedeiras de Rua Caruru dos Ibejis ..... Olubajé ... Comida de Tempo oc... Inhame Novo. Pilio de Oxaguia ... Eb6 de Oxalé . Lorogun eee se A Xangozeira no Mercado do Recife .... Noché Sepazim: Um Ritual Divino Arrambam: A Festa das Frutas No Terreiro de Pai Adio . Culto Doméstico € Alimentagio Ritual Bibliografia Prefdcio / Seguindo * critério da andlise comparacional, situando ° ee pesquisa num conjunto motivacional de tradicionalidade e funcionseang Raul Giovanni da Motta Lody acaba de realizar valiosa pesquisa de « ade", abrangentemente séciocultural \ campo, afro-bra africanolégicos no Brasil. » Sobre "a alimentagao cerimonial ¢ m terreiros ‘leiros". Pesqui Sere fen cf Ati ilciros". Pesquisa que, assim sistematica, estava faltando aos estudc a s 08, E ee que 0 abuso, na apresentagio da Pesquisa, de adjetivos em "al", dé a essa Sta toques de trabalho escrito em antropologés. Esses toques, por¢m, nao se acentuam no decorrer do relato, pelo idénco pesquisador, de quanto colheu sobre assunto tao aliciante. De quanto colheu em diferentes cidades brasileiras marcadas por presengas africanas: Salvador, Rio de Janciro, Aracaju, Maceid, Recife, S40 Luis do Maranhao. De quanto. conseguiu recolher de "cozinheiros de terreiro, vendedores de rua, adeptos dos cultos afro-brasileiros" por meio de uma pesquisa de campo "vivida, sentida ¢ provada, incluindo-se a ingestao de muitos alimentos...". Nem outra caracteristica pode assumir a verdadeira pesquisa de campo senio esta: a de inteira imersio do pesquisador na matéria que aborda. Tratando-se de pesquisa sobre alimentagao ritual de terreiros — alimentagao que, ao cardter sagrado, junta alguma coisa de sensual nos gostos € nos cheiros — a identificagao do pesquisador com o objeto da pesquisa ou ocorre ou o estudo sera simples esforgo abstrato de quem flutuou sobre esse objeto. Flutuagao em vez de imersao. Como observa de inicio Raul Giovanni da Motta Lody, "a unidade ¢ 0 sentido social dos terreiros tém nos alimentos comunitirios verdadeiros prolongamentos das alimentagGes secretas dos pejis, quando os deuses satisfazem seus desejos de dendé, mel, carnes, farinhas, frutas, bejerecum, iru, cozimentos e papas." Mais: "E por meio da alimentagio comum dos deuses € seus crentes que 0 culto tem assegurada sua sobrevivéncia.” Por ai se vé 0 quanto sao profundos os significados sagrados da culinaria ritual dos terreiros afro-brasilciros. Sua importincia mistica. Também a extensa pesquisa de campo, de que agora aparecem os resultados, em livro interessantissimo, mostra que a essa cozinha ritual na¢ falta, no Brasil marcado por presengas africanas, variedade regional dentr< ™ de uma unidade pan-afro-brasileira. Muito se enganaria quem SUPUSE sce que a cozinha afro-baiana ritual monopoliza os pratos ntuais afro-brasileiros Uma das surpreendentes revelagdes da pesquisa realizada por Lody ¢ mostra, nopolio baiano, ser o Maranhio “dete, contra a crenga geral nesse quase mo! de vasto receituario gastrondmico (afro-brasileiro)” ¢, como tal. de “alto significado etnogrifico...". Neste particular, como em varios, a Bahia, pelz muita repercussio de seus valores afro-brasileiros, abafa os de outra; as quais nao faltam artes, mitos, complexos provincias ¢ regides brasileiras, rivais dos afro-baianos. Outro exemplo, além do maranhense, seria, no setor da culindria ritual afro-brasileira, 0 do vulto das “influéncias das ervas ¢ favas” nas casas de Xangé de Pernambuco, Alagoas ¢ Sergipe, estados que, no mesmo setor, parecem vir constituindo um conjunto afro-brasileiro nitidamente diferenciado, no Nordeste do Brasil, tanto do baiano como do. maranhense; ¢ os dois, em certos particulares, diferenciados ao modo de cada um, das origens africanas. Por meio do estudo especifico de cada um desses conjuntos e, também, do constituido pelo Rio de Janeiro, a abrangente pesquisa de Lody chega a nos apresentar um quadro quase completo da gastronomia ritual afro-brasileira. Quase completo por lhe faltar estudo igualmente especifico de 4rea mineira, com a sua impressionante riqueza de simbolos, de tabus e do que o Nicido pesquisador denominaria "injungdes’. E por meio da consideragao do complexo séciocultural afro-brasileiro total, formado no Brasil por esses conjuntos, que o pesquisador Lody conclui da “alimentacio publica ¢ comum nos terreiros" constituir sempre, além do clo "socializante", expressao de “fortes preceitos religiosos". Por conseguinte, pode-se considerar a cozinha “um espago de culto tao significativo como 0 pei". A pesquisa de Lody nao faltam minucias sobre 0 assunto pesquisado que talvez sejam apresentadas em livro pela primeira vez. Os "cento ¢ cingiienta alimentos dos terreiros", por exemplo: cada um deles identiticado € descrito, Tampouco lhe faltam constatagdes sé possiveis 4 base de pesquisa realizada tao em extensdo ¢ tao em profundidade. Exemplo: a grande influéncia iorubana presente nas alimentag6es votivas, todas clas com sentidos Préprios. Mais: a penetragio profana em algumas das tradicionais festas culindrias afro-brasileiras. 10 EES “=~ Atrairam-m¢ Ae © @ atengio de amigo, que fui, do babalorixé Adio, do icadas pel ; ene Lody, destacando-se de Adio ter Pelo pesquisador Raul Giovanni da Motta afobratince de Rent sirigido “importante reduto dos costumes » OU, mais precisamente, "reduto de tradigses adquirindo as divindades nesse terreiro AS cerimOnias € situages proprias". Sugere ¢ naquele famoso babalorixé € meu amigo sempre a a a ea fortemente brasileiro, nacionalmente brasileiro, . Do que sei a respeito, Adio, em vez de considerar- se um inovador ti ji ; ", que tivesse desenvolvido originalidades de culto, tinha-se na conta — & base di ido, j lo ra Lagos, a fim a base de ter ido, quando jovem, do Recife para Lagos, a fim de, durante anos, como que formar-se ou doutora Recife, as paginas a cle dedi voltadas ao culto dos orixés, caracteristicas especificas © muit ter havido em Adio o que n: me impressionou: do se em teologia ou em religiao, uma, 5 numa, para ele, Santa Roma de sua crenga, que era a africana Lagos - do Unico ortodoxo desse culto no Nordeste de sua época. $6 admitia como seu exato confrade o babalorix4 Martiniano, da Bahia. Isto mesmo acentuou na carta em que, por volta do ano 1928, apresentou-se a Martiniano. Um Martiniano que eu verificaria, em nosso encontro em Salvador, ter por Adio © mais fraterno afeto. E certo, entretanto, ter Adio me comunicado, numa das nossas muitas conversas, na sua casa do Fundao, que nao se considerava negro africano, porém, de todo, brasileiro. © contetido diferenciador a contradizer a forma ortodoxa. Nunca — acentuava-me — conseguira, em Lagos, reintegrar-se nos costumes afticanos, ou desabrasileirar-se, embora tivesse aprendido nagé e, no setor teoldgico, se int ado do culto dos orixés na sua completa pureza. E possivel, assim, que sendo tio fiel & sua condicio de brasileiro, tivesse abrasileirado na substincia, dentro dos ritos ligados a esse culto, 0 que Ihe velmente parecesse a parte daquela pureza teoldgica e como que fle: socioldgica, além de susceptivel de abrasileirar-se em sabores ¢ odores equivalentes dos africanos. / Adio era homem nao sé de notavel inteligéncia como admiravel pela sua correcao de atitudes. Tendo adquirido em Pernambuco, ou no Nordeste, um prestigio nem de longe igualado por outro babaloriss, quer uu enterro foi um acontecimento nos seus dias, quer depois de sua morte ~ § se prestigio, para A sombra dele enriquecer-se recifense -, nunca abusou des — como poderia ter enriquecido ~ ou para negocid-lo como poderia ter negociado — em termos eleitorais. LE Se foi o "mantenedor de costumes € priticay cercaday de sigilos, 1 ~ BOS, tabu, e voros de fe" aque se refere Lody, apoiado em informes de seus sucesso, cases sigilos € esses fabus cram parte do seu eseripulo em preservar a pure 2 : al fora sagrado sacerdote em Lagos, Posso testemunhar qu ar Guc asa, Nao admMitia SEHAD pessoas — COMO tive Oo Be 1 Bosto di do culto de qu aos dgapes em sua es ss tornar — de sua inteira amizade, além de confianga absolura, Uma aming € uma contianga que mio estendeu = injustiga de sua parte ~ aquele admire ‘ Ulysses pernambueano a quem se deve 0 inicio, em Pernambuco, de nn, aritude, da parte do governo, para com Xangos. Sei o quanto era objets «, esvelo ortodoxo a “alimentagio votiva de Ol6fin", dia de Natal. B-quianye, seu di escnipulos punt ocasides. Se como a sua m de alimentos a que nao se admitian caracteristica de varias sociedades negras africanay — ha no preparo de alimentos sagrados ligados a essa © a utr, esa — sem me utilizar de garfo ¢ faca = © particis, m estranhos, € que, segundo aque), “escolha de amigo", instituigio estudada por Herskovitz -, cu fora por Adio escolhido para sey especial amigo e, como tal, poder participar de certos alimentos postos 3 sua mesa fora da vista de estranhos: na sua intimidade de patriarca. Um patriarca muito de sua familia. E que, quer como homem de familia, quer como babalorix4, resguardava-se de turistas ¢ de curiosos, até mesmo de reporteres. Tanto que, nas ceriménias de cultos com musica e dangas rituais, ele s6 aparecia j4 de madrugada: quase que sé presentes os iniciados. Dangava, entio, ele préprio, no meio de uma grande reveréncia religiosa de todos. Mas a sua dariga nao era apenas impressionante pela expressao religiosa Também pela sua estética. Alto, grandio, j4 — quando o conheci — sessentio. de repente tornava-se surpreendentemente jovem. Agil. Quase o que deveria ser Nijinski, se africano e babalorixd. Assombroso Adio na danga ritual Pelo que escrevi um pequeno poema sobre o dangarino sacro que mais de uma vez vi dangar como se fosse um elfo. Registra Lody a "vasta ¢ fart culindria desenvolvida no terreiro de pai Adio", pormenorizando ter put dela ja penetrado - dessacralizada, & claro, mas com seus gostos ¢ odores ersten: — em carddpios profanos, O que terd acontecido a outros quitutes — isto é, de outras culindrias afro-brasileiros. Recordarei que ao organizarmos no Recife, em 1934, ° co Congresso Afro-Brasileiro reunido no Brasil, um dos meus cuidados foi este: a culindria. Quer a culindria cerimonial ou religiosa, que‘ * = de ceriménias ou rituais de terreiros por Ariel, outro pelo Editor, brasileiros, até ened ~ constam receitas de quitutes > aS NEO, de todos desconhecidos. U, pea ag . Um mente Nacional me lembro, fornecida pessoal a dessas receitas, se bem que aprendi de coisas eet PO" Ado. Um Adio muito prevente ne : sas ¢ mistérios afro-brasilei ; aprendi que ante istériog -brasilciros. Até mesmo com ele uanto Martiniano do Bonfim — seu amigo b: Ad: 5 go baiano ~ Adio foi, como babalorixé ‘lei *4, um brasileiro de otigem africana, f em Lagos ~ onde adquiri africana, formado em teologia saa cee ea © comando de mais de uma lingua da Africa — y > leixou de sentir. ile: “Se ~ acentue-se sempre brasileiro. De modo algum foi cle — negro brasilei rasilej ; Neero Beasiieie te ro brasileiro. Brasileiro de origem africana, sim. ° ue Nos leva ao problema do abrasileiramento de inspiracées e de ritos religiosos africanos — até mesmo a culindria cerimonial dos terreiros — ¢ do seu afastamento, em suas expresses, de rigidas ortodoxias africanas Fato, alids, reconhecido pelo perspicaz, pesquisador que é Raul Giovanni da Motta Lody quando, quase ao concluir 0 excelente estudo que é Santo também come, observa os cultos domésticos ¢ a alimentagio ritual dos santos afro- brasileiros que desempenham a fungao de "perpetuar a crenga" que cada vez mais estaria se transformando, isto é, se abrasileitando, por meio da adequagao de seus valores africanos a circunstancias brasileiras ¢ a dinamizagao de seus conceitos, em face dessas circunstancias. Dai procurar Lody, em cultos ¢ em ritos ligados & alimentagao tribal, seja funcional ¢ necessitado de tais adequagGes. Nem outro vem sendo o processo de abrasileiramento de valores ¢ de ritos catdlicos a circunstancias ou ecologias brasileiras, sem que, com tais modificagSes, venham sofrendo as ortodoxias origindrias perdas dos scus essenciais. Modificagdes cxistenciais. Lembro-me do babalorix4 Adao — com quem tanto privei — como de um ortodoxo no seu modo essencial de ser religioso que se sentisse com © dircito de abrasileirar ou situacionar 0 que fosse existencial em valores € ens, devessem, no Brasil, adquirir aspectos cle, Adio, jé brasileiro, se tornara um sons, formas de paisagens, vozes, ritos que, desligados de suas orig existencialmente brasileiros, tal como re bores homem afetado por odores, sal ns nntes dos africanos. Tao afetado, modificado, transformado por itia seu regresso permanente a Africa, sentindo-se, como 13 ritmos, difere! eles, que no admi em valores € THES = até MesING vy sacerdoralmente responsive babalorixd, livre para deixar ques | ais ¢ santos pelos qu africanismos que aqui a entagio de P alimentagio brasileirismos. houvesse substituigoes [A ser exata & interpret igaey 4 Adio ter sido transafric r negritude religiosa, por de 5 se sugere, do modo flexiy, lady, de sempre rigide n ano cm vee a t a stig babalorix toca-se EM assunto de nay p one de ou Has! a sociologia _ como Adio, procedendo, antecipado a recente politica da Igreja Cars) vem sendo crescente a adaptagie, dy quando se trata de valores ¢ 4 africanida Hligiao, nicia para da religiao, imports tos. Babalort nesse sector, ccol6gicy ICA ey, situacionalmente, terao Se Jjo-curopeus, nos quais em espagos 1 as praticas catdlicas, a tr essencial, nos cultos € n; de musica, por exemplo. de Raul Giovanni da Motta Lody, € pesquisa « lerar problemas de sociologia d adig6es OU Constantes nj, curopéias. As Santo também come, antropologia cultural que nos leva a consid rcligiio. Uma sociologia que, quase sempre, principalmente, do que se tem estudado, e se continua a estudar, de religiGes de todo eruditas. Sem se atentar em exemplos oferecidos pelas menos vem se desenvolvendo a base eruditas € menos tehiricas. Insisto aqui em que, do meu convivio com o babalorixa Adio, ficou- me a impressio predominante de ter ele representado, no setor religioso afro-brasileiro — até mesmo no seu modo linirgico de valorizar a culinéria ritual, admitindo, entretanto, nela, presengas tropicais brasileiras ~ a superagio da condigao racial (africana negra) pela cultural (africana abrasileirada). Nunca surpreendi nele qualquer veeméncia quanto & primeira condicag) enquanto, mais de uma vez, vi-o revelar-se brasileiro de tal modo ientiticado) com a miscigenacio brasileira que chegou a me confidenciar - repita-se o registro do episddio — que, a certa altura, em sua estada na Afric, nao pudera " i c "EB i pudera "tolerar mais aqueles negros", Era o Brasil a chami-lo a si por ais motivos evide! ; evidentemente culturais a se sobreporem aos puramente rac Uma atitu e: fo i de, a desse tao importante babalorixaé, que talvez explique alteragdes relig : 5 igiosas por ele, ou com a sua béngdo, como que episcopal, OU candi, inv tidas de certo animo ja brasileiramente transafricano. ea ao tio interessante trabalho do eee eee comidas de santos" que 0 assunto foi versado ja ‘aldemir Cordeiro de Jesus Coelho de Aragio, da Universidade F ‘ed leral Rural de Pernambuco, em comunicagio — "A comida ——— de santo na dinamica do ter : " iro" — apresentada a XI Reuniao Brasileira de Antropologia, realizada no Recife, de 7 a 9 de maio de 1978. Consta de dados colhidos, a0 que parece, tio somente no chamado Grande Recife: sem a amplitude do estudo do pesquisador Lody. Destaca 0 professor Coclho da “comida de santo” propriamente dita a sua sacralidade: aspecto da matéria que o estudo do pesquisador Lody esclarece de modo amplo, a base de observagées recolhidas em terreiros dos mais represcntativamente brasileiros, por meio das varias regides em que esto situadas suas sedes. De ingredientes da cultura afro-brasileira ligados a ritos religiosos, ocupa- se magistralmente mestre René Ribeiro em seu Cultos Afro-Brasileiros do Recife, cuja nova edigao — segunda — acaba de ser publicada pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Quanto ao que possa haver de sincretismo 4 margem do assunto, ser oportuno ler-se 0 pronunciamento de outro mestre, este ainda jovem ¢ j4 provecto: 0 antropdlogo-socidlogo Roberto Mota no hicido prefacio ao referido Cultos Afro-Brasileiros do Recife. Gilberto Freyre Junho de 1978.

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