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80 Acta da utr: pose pola deenogain ©, mas agora minha metontmia ¢ insuportdvel Introdugio: Verdades parciais Essa ecfonese, em sua deitia, jé nfo poso esconder! Perdi toda a poesis que me era tio cara. E,em tipica hipotipase,veio enti a falecer James Cliford James Clifford University of California, Santa Crug, George E. Marcus O trabalho interdisiplnar, to diseatido bajeem dia, nao Rice University 48 refer ao confront entre diseiplnasjcontittdas (ne ha dela, na verdad, quer se dear desazer). Para face algunas coisa intericplinar, nao basta escolber um “bjt” (wm tema) colcer& sua volta das ou ts c- | idade conse em rir we novo bjeto que no pertence a ning | Roland Barthes, “Jeunes chercheurs Voc vai preciar de mais mesas do gue imagina Elenore Smith Bowen, conselho para o trabalho de campo, ‘em Retr to laughter Nosso frontispicio mostra Stephen Tyler, um dos colaboradores deste volume, trabalhando na india, em 1963. O etndgrafo esti absorto, escre- vendo — anota algo que Ihe é ditado? Elabora uma interpretacio? Registra uma observacio importante? Rabisca um poema? Curvado no calor, tem um pano molhado pendurado sobre os éculos. Nao se pode ver sua expressio. ‘Atris dele, um interlocutor olha para longe — com tédio? Paciéncia? Diver- timento? Nesta imagem, o etnégrafo esti na borda do quadto — sem rosto, quase extraterreno, uma mio que escreve. Este no € o retrato comum do trabalho de campo antropolégico. Estamos mais acostumados a imagens de Margaret Mead brincando exuberante com criangas, em Manus, ou fazendo 82 Asser da culture: pote epoca da enogais perguntas aos aldedes, em Bali. A observagio participante, a férmula clés- sica do trabalho antropolégico, deixa pouco espaso para textos. Mas, ainda assim, perdido em algum lugar em seu relato do trabalho de campo entre os pigmeus Mbuti — correndo por trilhas na mata, sentado a noite cantando, dormindo em uma cabana de folhas lotada -, Colin Turnbull menciona que catregava para todos os lados uma maquina de escrever, Nos Argonautas do Padfico Ocidental, de Bronislaw Malinowski, em que ‘uma fotografia da tenda do etndgrafo, em meio is habitagées de Kiriwina, é exibida com destaque, nio ha qualquer exposico do interior da tenda. Mas em ontra foto, em uma pose cuidadosa, Malinowski registrou a si mesmo escrevendo a uma mesa. (A tenda esti aberta; ele est de perfil e alguns trobriandeses estio do lado de fora, e observam aquele rito curioso.) Essa notivel fotografia s6 foi publicada dois anos atrés — um sinal dos nossos tempos, € no dos dele." Principiamos no com observacio participante ou textos culturais (passiveis de interpretacio), mas com a escrita, a constru- fo de textos. A escrita nfo é mais uma dimensfo marginal, ou oculta, mas ‘vem surgindo como central para aquilo que os antropélogos fazem, tanto no campo quanto no que a ele se segue. O fato de que até recentemente a eserita nio tenha sido retratada ou setiamente discutida reflete a persisténcia de uma ideologia que reivindica a transpaténcia da representacio e o imediatismo da experincia, A esctita reduzida a um método: boas anotagées de campo, elaboracio de mapas precisos, “tedacio minuciosa” de resultados. Os ensaios aqui reunidos afirmam que essa ideologia se desintegrou. Neles, a cultura € vista como composta pot representagies ¢ cédigos se- siamente contestados; neles, assume-se que 0 poético € o politico sio in- separiveis, que a ciéncia esté nos processos histéticos ¢ linguisticos, e no acima deles. Os textos partem do principio de que os génetos académicos € literatios se interpenetram e que a escrita de desctigdes culturais € propria- ‘mente experimental e ética. Seu foco na construgo de textos e na retética serve para destacar a natureza artificial e construida dos relatos culturais. Esse foco mina modos de autoridade abertamente transparentes ¢ chama 4 atengo para as condigdes histéricas da etnografia, para 0 fato de que a etnografia esti sempre enredada na invengio, € nfo na representagio das * Malinowsli, 1961, p. 17. A forogralia dentro da tenda foi publicada, em 1983, por George Stocking, em Hizory of Anropolgy 1,p. 101, © volume contém outrascenas reveladoras da excita emg. 7 Tncrdugi: Verdes paca 83 culturas (Wagner, 1975). Conforme ficari evidente nas préximas paginas, a gama de t6picos abordados nio € literatia, no sentido tradicional. A maior pparte dos ensaios, embora enfoquem priticas textuais, vio além dos textos, adentrando contextos de poder, resisténcia, constrangimentos institucionais ce inovacbes. ‘A tradigfo etnogrifica é aquela de Herédoto ¢ do Persa de Montes- quieu. Essa tradicZo olha de forma obliqua para todos os arranjos coletivos, distantes ou préximos. Ela transforma o estranho em familiar, o exético em cotidiano, A etnografia cultiva uma clareza engajada, como aqucla instada por Virginia Woolf: ‘Que nunca paremos de pensar — o que é esta “civilizacio” na qual nos en- contramos? O que sio estas ceriménias e por que devemos participar delas? (O que sio estas profissées e por que devemos ganhar dinheiro com elas? “Aonde, em resumo, isso esti nos levando, esse cortejo dos filhos de homens educados? (Woolf, 1936, pp. 62-63) A etnografia situa-se ativamente enfre poderosos sistemas de significa- dos. Coloca suas questdes nas fronteiras entre civilizagées, culturas, classes, sagas € géneros. A etnografia decodifica e recodifica, revelando as bases da cordem coletiva ¢ da diversidade, da incluso ¢ da exciusio, Ela descreve pro- ccess0s de inovagio ¢ de estruturacio e faz parte, ela mesma, desses processos. A etnografia € um fenémeno interdisciplinar emergente, Sua autori- dade e sua tet6tica espalharam-se por muitas éreas em que a “cultura” é um objeto problemitico recente de descricZo e critica. Este livro, embora parta do trabalho de campo € de seus textos, abre-se para a pritica mais abran- gente de escrever sobre, contra ¢ entre culturas. Este raio de aco de alcance indefinido inch itar apenas algumas perspectivas em desenvolvimen- to, a etnografia histérica (Emmanuel Le Roy Ladutie, Natalie Davis, Carlo Ginzburg), a poética cultural (Stephen Greenblatt), a csitica culeural (Hayden White, Edward Said, Fredtic Jameson), a anilise do conhecimento implicito € das priticas cotidianas (Pierre Bourdieu, Michel de Certeau), a critica das estruturas hegeménicas de sentimento (Raymond Williams), 0 estudo de co- munidades cientificas (seguindo Thomas Kuhn), a semiética dos mundos exéticos e dos espacos fantésticos (Tzvetan Todorov, Louis Martin) e todos 84 Acta de leur: pote plc da mogrfa aqueles estudos que abordam sistemas de significados, tradig6es em conflito ou artefatos culturais ‘Essa complexa érea interdisciplinar, cuja abordagem toma aqui, como ponto de partida, uma crise na antropologia, é diversa e est em transforma- Gio. Por isso, néo quero impor uma falsa unidade aos ensaios explorat6rios que se seguem. Embora compartilhem uma simpatia geral por abordagens que combinam poética, politica e histéria, cles divergem varias vezes entre si ‘Mbitas contribuigdes combinam teoria literéria e etnografia. Algumas explo- ram os limites dessas abordagens, sublinhando os petigos do esteticismo e os constrangimentos do poder institucional. Outras defendem ardorosamente formas experimentais de escrita. Mas, cada qual a seu modo, todas analisam priticas atuais e passadas 2 partic de um compromisso com possibilidades faturas. Veem a escrita etnogréfica como inventiva, em estado de transfor- magio: “a Histéria”, nas palavras de William Carlos Williams, “deveria ser para nés como a mio esquerda de um violinista”. As abordagens “literatias” vém, nos iiltimos tempos, ganhando certa popularidade nas ciéncias humanas. Na antropologia, escritores influentes como Clifford Geertz, Victor Turner, Mary Douglas, Claude Lévi-Strauss, Jean Duvignaud e Edmund Leach, para mencionar apenas alguns, demons- traram interesse pela teoria ¢ pritica literitias. Cada um & sua maneita, bor- raram a fronteira que separa arte e ciéncia. Mas essa atragio nfo é inédita. As identificagSes autorais de Malinowski (Conrad, Frazes) sio bem conhecidas. “Margaret Mead, Edward Sapir e Ruth Benedict viam a si mesmos como 20 ‘mesmo tempo antropélogos ¢ artistas literdrios. Em Paris, o surrealismo € a cetnografia profissional trocavam regularmente tanto ideias quanto pessoas. Mas, até recentemente, as influéncias literatias foram mantidas & distancia do cetne “rigoroso” da disciplina. Sapir ¢ Benedict tiveram, afinal, que escon- der sua poesia do olhar cientifico de Franz Boas. E, embora os etnégrafos tenham sido muitas vezes chamados de romancistas mangué (principalmente aqueles que escrevem um pouco bem demais), a nogio de que procedimen- tos literitios perpassam qualquer trabalho de representagZo cultural é uma idela nova na disciplina. Para um niimero cada vez maior, contudo, a “na- tureza literéria” da antropologia ~ e, particularmente, da etnografia — parece Ee nso: Vedas prciis 95 set muito mais do que uma questi de escrever bem ou de ter um estilo particular.” Os processos literitios — metifora, figuragio, narrativa — afe- tam as formas como fendmenos culturais so registrados, desde as primeiras “observagbes” rabiscadas até a versio final do livro, até chegar i forma como cessas configuracdes “fazem sentido” em atos de leitura especificos? Ja hé muito se afirma que a antropologia cientifica é também uma “arte”, que as etnografias tm qualidades literdrias. Escutamos com frequén- cia que um autor escreve com estilo, que determinadas descricSes sio vividas ou convincentes (mas qualquer descricio precisa no deveria ser convincen- te?) Uma obra é considerada evocativa ou artisticamente composta, além de ser factual; fangdes expressivas ou retdricas so concebidas como decorati- ‘vas ou apenas como maneiras de apresentar uma anilise ou descricio objeti- vva de forma mais eficaz. Assim, os fatos podem ser mantidos separados, 20 menos em principio, de seu meio de comunicagio, Mas as dimensées liter’- ria ou retética da etnografia nfo podem mais ser compartimentalizadas tio facilmente. Elas atuam em todos os niveis da ciéncia cultural. Na verdade, 2 propria nogio de uma abordagem “literéria” de uma disciplina, a “antropo- logia”, & seriamente enganosa. (Os ensaios aqui reunidos nao representam uma tendéncia ou perspec- tiva dentro de uma “antropologia” coerente (pate Wolf, 1980). A definicio da disciplina no modelo dos “quatro campos” ~ da qual Boas foi, talvez, 0 lilimo virtuoso ~ inclufa a antropologia fisica (on biol6gica), a arqueologia, 4 antropologia cultural (ou social) e a Linguistica. Poucos argumentariam, hoje, a sério que esses campos compartilham uma abordagem ou objeto uni- ficados, embora 0 sonho continue, gracas, em larga medida, a arranjos ins- titucionais. Os ensaios deste volume ocupam um novo espaco aberto pela desintegracio do “Homem” como #los de toda uma disciplina, e recorrem a desenvolvimentos recentes nos campos da critica textual, da histéria cultura, da semitica, da flosofia hetmenéutica e da psicanilise. Ha alguns anos, em * Unna lista parcial de obras que exploram este campo em expansio do Jogia inlui (sem mencionae os colaboradores deste volume): Boon bra de Hayden White (1973, , Latour e Woolgar (1979), para uma eoncep¢io da stividade cientifica 36 Acca da ctu: pote pla da eno ‘um ensaio vigoroso, Rodney Needham passoui em revista as incoeréncias te- Gricas, as raizes entrelagadas, as companhias impossiveis ¢ as especializacdes divergentes que pareciam estar conduzindo a uma desintegracio intelectual da antropologia académica, Ele sugeriu, com uma imparcialidade irdnica, que © campo poderia, em breve, ser redistribuido por diversas disciplinas vizi- has. A antropologia, em sua forma atual, iria passar por uma “metamorfose itidescente” (Needham, 1970, p. 46). Este conjunto de ensaios faz parte des- sa metamorfose. Mas, se sio pés-antropolégicos, sio, também, pés-literérios. Michel Foucault (1973), Michel de Certeau (1983) e Terry Hagleton (1983) argumen- taram recentemente que “literatura” é, em si mesma, uma categoria transi- t6ria, Desde o século XVII, sugerem eles, a ciéncia ocidental teria excluido certos modos expressivos do seu sepertério legitimo: a retérica (em nome da significacio transparente € “evidente”), a ficcio (em nome do fato) ea subjetividade (em nome da objetividade). As qualidades eliminadas da ci- éncia foram alocadas na categoria de “literatura”. Os textos literitios eram considerados metaféricos ¢ alegéricos, compostos de invengdes a0 invés de fatos observados; concediam ampla clasticidade as emocées, as especulagdes € 20 “génio” subjetivo de seus autores. De Certeau observa que as ficcdes da linguagem literdsia eram cientificamente condenadas (¢ esteticamente apreciadas) por carecerem de “univocidade”, do relato supostamente sem ambiguidades da ciéncia natural e da histétia profissional. Nesse esquema, o discurso da literatura e da fico é inerentemente instavel; ee “joga com a es- tratificagio do sentido; narra uma coisa para dizer outra; esboca a si mesmo em uma linguagem da qual retira continuamente efeitos de significado que ‘no podem ser circunscritos ou verificados” (De Certeau, 1983, p. 128). Esse discurso, reiteradamente banido da ciéncia, mas com sucesso irregular, é in- curavelmente figurativo e polissémico. Sempre que seus efeitos comes a ser sentidos muito abertamente, um texto cientifico pareceri “literitio”; a impressfo sera de que usa metiforas demais, de que se apoia no estilo, na evocacio etc)" © “Pode-se objtar que estilo Gguraivo alo &0 nico estilo, ou mesmo o nico estilo postico, © ‘que a rebsiea umbem ex presente naqullo que € chamado de esto simples Mas, aa verda= de, esse € apenas um estilo menos decorado, ou melhor, um estilo decosado de maneia mais simples, cele tem também, como 0 liicoe 0 épico, suas peéprias Figur especais. Um extilo. do qual a figura este extsitamente ausente nfo existe", aficma Gérard Genete (1982, p. 47) Insodugi: Vadades pcs 87 Por volta do século XIX, a literatura havia despontado como uma insttuigdo burguesa intimamente aliada da “cultura” e da “arte”, Raymond Williams (1966) mostra como essa sensibilidade especial e refinada funciona- ‘va como uma espécie de tribunal de recursos, em reacio aos deslocamentos ed vulguridade atibuidos & sociedade industrial de classes. A literatura © a arte eram, de fato, zonas circunscritas, nas quais os valores “mais elevados” nio utilitirios eram preservados. Ao mesmo tempo, erm dominios para a encenacio de transgressdes experimentais avant-garde. Sob essa luz, as formagdcs idcoldgicas da arte ¢ da cultura nfo tém qualquer status essencial ou eterno, Encontram-se em mudanga e em contestagio, como a ret6rica especial da “literatura”, Os ensaios que se seguem nfo recorrem, na verdade, uma pritica literria demarcada como um dominio humanizador, estético ou criativo. Lutam, cada um a seu jeito, contra as definigées prontas de arte, ratura, ciéncia e hist6ria. B, se as vezes sugerem que a etnografia é uma ‘arte”, devolvem a palavra a um uso mais antigo — antes que fosse associada 4 uma sensibilidade mais elevada ou rebelde -, a0 significado que tinha no século XVI, tal como recuperado por Williams: a arte como modelagem habilidosa de artefutos itis. A construsio da etnografia é artesanal, ligada 20 ‘trabalho mundano da escrita, A escrita etnogrifica € determinada 20 menos de seis maneiras: (1) contextualmente (cla cria€ se apoia em meios sociais significativos); (2) reto- sicamente (usa ¢ € usada por convencées expressivas); (3) institucionalmente (screve-se dentro, ¢ contra, tradigdes, disciplinas e piblicos especificos); (4) do ponto de vista do género (uma etnografia pode, geralmente, ser distingui- da de um romance ou de um relato de viagem); (5) politicamente (@ autoti- dade para representar realidades culturais é distribuida de forma desigual e, por vezes, contestada); (6) historicamente (todas as convengGes e constran~ gimentos acima esto em mudanga). Bssas determinagdes regulam o registro de fiogdes etnogrificas cocrentes. ‘Chamar etnografias de ficgSes pode suscitar contendas empiticistas. Mas a palavra, tal como vem sendo comumente utilizada na teoria textual recente, perdeu sua conotagio de falsidade, de algo que apenas se opde a verdade. Sugere a parcialidade das verdades culturais ¢ histérieas, as formas ‘nas quais slo sistemitieas e exclnsivas. Os esctitos etnogrificos podem ser adequadamente chamados de ficeGes no sentido de “algo feito ow mode- lado”, o que é o sentido principal da raiz latina da palavra, fingere. Mas é 38 Asia da culture: poise pola da exnografa importante prescrvar 0 sentido no apenas de construgio, mas também de ctiagio, de invenio de coisas que nfo sio de fato reais. (Fingere, em alguns de seus usos, implica cetto grau de falsidade) Os cientistas sociais inter- pretativistas comegaram, recentemente, a encarar as boas etnografias como “ficgées verdadeiras”, mas, em geral, ao preco de enfraquecet 0 oximoro, seduzindo-o A alegagio banal de que todas as verdades sio construidas. Os ensaios aqui reunidos preservam a perspicécia do oximoro, Por exemplo, Vincent Crapanzano retrata os etnégrafos como malandros, prometendo, como Hermes, no mentir, mas sem nunca se comprometer também a con- tar toda a verdade. Sua tetérica fortalece ¢ sudverte sua mensagem. Outros ensaios zeforgam 0 ponto e enfatizam que as ficg6es culturais se baseiam em exclusdes sisteméticas € questionéveis. Essas exclusdes podem envolver 0 silenciamento de vozes incongruentes (“O caso de Dois Corvos nega isso!” ou 0 emprego recorrente de uma forma de citar, “falando em nome de”, teaduzindo a realidade dos outros. Circunstncias hist6ricas ou pessoais su- postamente irtelevantes também serio excluidas (aio se pode contar tudo). Além disso, 0 criadot (mas por que somente um?) de textos etnogrificos no pode evitar figuras de linguagem, imagens e alegorias que selecionam impdem sentido a medida que o traduzem, Nesta visio, mais nictzschiana do que realista ou hetmenéutica, todas as verdades construidas so tornadas possiveis por meio de “mentitas” poderosas de exclusio e retérica. Mesmo os melhores textos etnogréficos ~ ficgdes sérias, verdadciras — so sistemas, ‘on economias, de verdade. O poder ¢ a histéria atuam por seu intermédio, de formas sobre as quais os autores nfo tém pleno controle. ‘As verdades etnogrificas sio, assim, inerentemente pariait —engajadas ¢ incompletas. O ponto é hoje amplamente seiterado — e questionado em aspectos estratégicos por aqueles que temem o colapso de padrées claros de verificagio. Mas, uma vez aceito ¢ incorporado 4 arte etnogrifica, um senso rigoroso de patcialidade pode ser uma fonte de juizo representacio- nal. Uma obra recente de Richatd Price, First-Time: The historical vision of an Afro-American people (1983), & um bom exemplo de patcialidade sétia e auto- consciente. Price reconta as condigdes especificas de seu trabalho de campo entre os Saramaka, uma sociedade Maroon do Suriname. Somos informados a respeito dos limites extetnos ¢ autoimpostos da pesquisa, sobre informan- tes especificos e sobte a constngio do artefato escrito final. (O livto evita uma forma aplainada, monolégica, apresentando-se literalmente como uma montagem, cheia de buracos) Firs#Time é uma evidéncia do fato de que r Inaroduo: Verda paris 89 ‘uma autoconsciéncia politica ¢ epistemolégica aguda no precisa levar a uma autoabsorio etnogréfica, ou A conclusio de que é impossivel ter certeza de qualquer coisa sobte outros povos. Em vez disso, 0 livro nos condnz uma percepeo concreta de por que um conto popular Saramaka, narrado por Price, ensina que “conhecimento € poder, € que nunca se deve revelar tudo co que se sabe” (Price, 1983, p. 14). Uma complexa técnica de revelacio € de segredo regula a comunica- gio (teinvencio) do conhecimento dos “Primeiros Tempos”, um saber so- bre as lutas cruciais da sociedade pela sobrevivéncia no século XVIII. Com ‘o emprego de técnicas de frustracio, digressio ¢ incompletude deliberadas, 8 ancifos transmitem seu conhecimento hist6rico aos parentes masculinos mais jovens, de preferéncia na hora do canto do galo, que antecede 0 ama- ahecer. Essas estratépias elipticas, de ocultagii e revelacio parcial, determi- nam as relagdes etnogrificas tanto quanto a transmissio de historias entre geragies. Price tem que aceitar 0 fato paradoxal de que [1 qualquer narrativa Saramaks (inclusive aquelas nertadas durante 0 canto do galo, com a intencio explicta de comunicagio de conhecimento) deixaré de fora muito daquilo que 0 narrador sabe sobre acontecimento em ques- lo. O pressuposto & de que o conhecimento de uma pessoa deve aumentar lentamente, $6 se conta a alguém, sobre qualquer especto da vide, um pow: ‘quinho mais do que o falante supe que ele j sabe (Price, op. ct, p10). Logo se torna evidente que nfo existe um corpus “completo” de conhe- cimento dos “Primeitos Tempos”, que ninguém ~ ainda mais o etnégrafo visitante — pode ter acesso a esse saber, a no ser por meio de uma série infinita de encontros citcunstanciais e perpassados pelo poder. “Accita-se {que 08 diversos historiadores Saramaka terio versdes diferentes, e cabe 20 ‘ouvinte compor pata si mesmo a versio de um acontecimento que ele, na- quela ocasifo, accita’ . 28). Embora Price, o historiador e etndgrafo escrupuloso, armado com a esctita, tenha construfdo um texto que supera em extensio aquilo que os individuos sabem ou contam, esse texto, ainda assim, “representa apenas a ponta ‘vamente sobre os Primeiros Temps As questdes éticas levantadas pela formagio de um arquivo escrito de ‘um saber secteto e oral so consideriveis, e Price lida com elas abertamente. 40 Acetic da cle pte epoca da enogaia Parte da solugao adotada foi minar a completade (mas nao a setiedade) de seu préprio relato por meio da publicagio de um livro que é uma série de fragmentos. O objetivo nao é indicar lacunas lamentéveis que permanecem ‘em nosso conhecimento acerca da vida Saramaka no século XVIII, mas, em ver disso, apresentar um modo de conhecimento intrinsecamente imperfei- to, que gera lacunas & medida que as preenche. Embora o proprio Price no esteja livre do desejo de escrever uma etnografia ou uma histéria completas, de retratar “todo um modo de vida” (ibid., p. 24), a mensagem da parcialida- de ecoa por todo o livro. Os etnégrafos sto mais ou menos como o cacador Cree que (le acor- do com a histétia) veio a Montreal para testemunhar em um julgamento relativo ao destino das terras onde cacava, no novo projeto hidrelétrico de James Bay. Ele deveria descrever seu modo de vida. Mas, quando foi fazer 0 juramento, hesitou: “Nao tenho certeza se posso dizer a verdade... S6 posso E importante lembrar que a testemunha falava de forma astuta, em: um determinado contexto de poder. Desde o ensaio seminal de Michel Lei- ris, em 1950, “L’Bthnographe devant le colonialisme” (mas por que tio tar- diamente?), a antropologia vem tendo que lidar com a determinagio histé- tica € © conflito politico em seu meio. Uma década veloz, de 1950 a 1960, vviu o fim do império transformar-se em um projeto amplamente aceito, se no um fato concreto. A “situation coloniale” de Georges Balandier tornou-se subitamente visivel (1955). As relagGes imperiais, formais e informais, cram a regra aceita do jogo ~ a ser reformado gradativamente, ou ironice- mente ultrapassado, de diversas maneitas. Essa “situagio” foi sentida, em ptimeiro lugar, na Franca, em larga medida devido aos conflitos vietnamitas e argelinos e através dos escritos de um grupo etnograficamente consciente de intelectuais e poetas negros, o moviment de de Aimé Césaire, Lé- opold Senghor, René Ménil e Léon Damas. As paginas de Prisence Afrcaine 10 inicio dos anos 1950, criaram um frum incomum para 2 colaboraczo entre esses escritores ¢ cientistas sociais, tais como Balandier, Leisis, Marcel Griaule, Edmond Ortigues e Paul Rivet. Em outros palses, a ete de cansince veio um pouco mais tarde. Pode-se pensar no influente ensaio de Jacques F Inwood pac 1 ‘Maquet, “Objectivity in Anthropology” (1964), em Reinventing Anthropology de Dell Hymes, nas obras de Stanley Diamond (1974), Bob Scholte (1971, 1972, 1978), Gérard Leclerc (1972) ¢, em particular, na coletinea Anthropolagy and he colonial encounter de Talal Asad (1973), que estimulou um debate bastante esclarecedor (Firth et al,, 1977). Nas imagens populares, 0 etndgrafo passou de um observador soli- disio e dotado de autoridade (cuja melhor encarnacio, talvez, seja Margaret ‘Mead) para a figura pouco lisonjeira retratada por Vine Deloria em Caster died faryoar sins (1969). Na verdade, 0 retrato negativo acentuou-se, por vezes, 20 ‘ponto da caricatura ~ 0 ambicioso cientista social que se apropria do conhe- ‘cimento tribal sem oferecer coisa alguma em troca, divulga retratos toscos de povos refinados ou (mais recentemente) se deixa iludir por informantes sofisticados. Essas imagens sfo tio realistas quanto as versdes heroicas an- teriores da observacio participante. O trabalho etnografico de fato enredou- -se em um mundo de desigualdades de poder duradouras e em estado de transformacio, ¢ essas implicagées continuam. Bsse trabalho coloca em cena relagdes de poder. Mas sua fun¢io nessas relacdes é complexa, por vezes ambivalente, e potencialmente contra-hegeménica Em muitas partes do mundo surgem, hoje, regras diferentes para 0 jogo da etnografia. Um estranho que estude as culturas nativas americanas pode esperar, tlvez como exigéncia para que possa continuar sua pesquisa, ser chamado a testemunhar em favor de conflitos em torno de reivindicagdes de terras. E miltiplas restrigdes formais so agora impostas ao trabalho de campo pelos governos nativos, em niveis nacional e local. Essas restrigées condicionam a partir de novas formas aquilo que pode, e, especialmente, que io pode ser dito sobre povos especificos. Uma nova personagem entrou em cena: o “etndgrafo nativo” (Fahim (org.), 1982; Ohnuki-Tierney, 1984). Nativos que estudam suas proprias culturas oferecem novos Angulos de vi- sio € profundidade de entendimento. Seus relatos sio, ao mesmo tempo, empoderados ¢ restritos, de formas muito particulares. As diversas regras 1p6s e neocoloniais para a pritica etnogrifica nfo necessariamente geram re- latos culturais “melhores”. Os critétios para se avaliar um bom relato nunca foram definidos ¢ esto em transformacio. Mas o que surgiu a partir de todas essas mudangas ideol6gicas, alteragdes nas regras e novos compromissos & © fato de que uma série de pressdes histéricas comecou a reposicionar a antropologia em relagio a seus “objetos” de estado. A antropologia ja no fala com uma autoridade automitica em nome de outros definidos como in- 42 A casi da cul: police pollica d coprai capazes de falar por si mesmos (“primitivos”, “sem eserita”, “sem histéria”). Outros grupos sio mais dificeis de alocar em tempos especiais, quase sempre passados ou passando ~ representados como se no estivessem envolvidos em sistemas mundizis atuais, que ligam os etndgrafos com os povos que estudam. As “culturas” no posam para fotografias. As tentativas de fazé-las posar sempre envolvem simplificagdes e exclusdes, a selegio de um foco temporal, a construgio de uma relacio eu-outro especifica e 2 imposicéo ou ‘a negociagio de uma relacéo de poder. ‘A critica do colonialismo no periodo do pés-guerra — uma fragilizacio da capacidade do “Ocidente” de representar outras sociedades — foi reforca- da por um processo importante de teorizagao quanto aos limites da propria representacio. Nio ha forma alguma de avaliar adequadamente essa critica multifacetada daquilo a que Vico se referiu como o “poema sério” da his- das mentalidades ‘pés-modernismo’ avalanche de “epistemologias alternativas” — feminista, étnica e néo ociden- tal. O que est em questo, embora nem sempre seja admitido, € uma critica em curso dos discursos mais tipicos e arraigados do Ocidente. Ha vitias filosofias que talvez. tenham esse olhar critico implicitamente em comum, Por exemplo, o deslindamento do logocentrismo de Jacques Derrida, dos gregos a Freud, ¢ 0 diagnéstico bastante distinto de Walter J. Ong das conse~ ‘quéncias da escrita compariham uma rejeicio mais abrangente das formas institucionalizadas pelas quais uma grande parte da humanidade construi, 1hé milénios, 0 seu mundo. Novos estudos hist6ticos dos padres hegemé- nicos de pensamento (0 marxismo, a Ecole des Annales, o foucaultianismo) compartilham com estilos recentes de critica textual (a semidtica, as teorias da recep, o pés-estruturalismo) a conviegio de que aquilo que parece “real” na histéria, nas ciéncias sociais, nas artes, ¢ até mesmo no senso co- mum, pode sempre ser analisado como um conjunto restrtivo ¢ expressivo de cédigos e convengées sociais. A filosofia hermenéutica em seus diversos estilos, de Wilhelm Dilthey e Paul Ricoeur a Heidegger, lembra-nos de que ‘os mais simples relatos culturais sio ctiagdes intencionais, que os intérpretes constantemente constroem a si mesmos através dos outros que estudam. As ciéncias da “linguagem” do século XX, de Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson a Benjamin Lee Whorf, Sapir e Wittgenstein, tomaram impossivel fugir as estruturas verbais sistematicas e situacionais que determinam todas Ino: Verades pcs 43 as representagdes da realidade. Finalmente, a volta da retotica 2 um lugar int- portante em muitas areas de investigacio (ela havia sido, durante milénios, 0 ceme da educagio ocidental) possibilitou uma anatomia detalhada de modos exptessivos convencionais. Aliada a semidtica e @ anilise do discurso, a nova ret6rica esti voltada para o estudo daquilo que Kenneth Burke chamou de “estratégias para englobar as situagbes” (Burke, 1969, p. 3). Trata-se menos de como falar bem do que de como falar, e de como agit de forma significa- tiva, em um mundo de simbolos cultursis piblicos. O impacto dessas criticas esta comecaindo a se fazer sentir na percep- cio da etnografia em relacio a seu proprio desenvolvimento, Histérias nfo celebratérias estio se tomando comuns. As novas historias tentam evitar 0 mapeamento da descoberta de algum saber atual (as origens do conceito de cultura, € por af vai); ¢ sto suspeitas de promover ou destituir precursores intelectuais com o objetivo de confirmar um paradigma especifico. (Para essa ‘lima abordagem, ver Harris [1968] ¢ Evans-Pritchard (1981). Ao invés disso, as novas hist6rias tratam as ideias antropol6gicas como entedadas nas ptiticas locais e nos constrangimentos institucionais, como solugées circuns- tanciais e muitas vezes “‘politicas” para problemas culturais. Elas entendem a ciéncia como um processo social. Enfatizam as descontinuidades histéricas, bem como as continnidades, das priticas passadas e atuais, com a mestna fre- quéncia com que fazem 0 conhecimento atual parecer petmanente, estivel. ‘A autoridade de uma disciplina cientifica, nesse tipo de relato histérico, seri sempre mediada pelas reivindicagbes de retorica e de poder.> Outro impacto importante da critica politico/tedrica da antropologia que vem se avolumando pode ser brevemente resumido como uma rejeicio do “‘visualismo”, Ong (1967, 1977), entre outros, estudou as formas pelas quais os sentidos so organizados hierarquicamente em diferentes culturas 5 Bclai dessa categoria as diversas hstias das deias “antropolégicae”, que precisa sempre ter uma orgunizagio evolucionist Ineo 0 vigoroso hstoricismo de George Stocking, que smuitas vezes tem 0 efeito de quesionar as gencalogias disiplinares (ver, por exemplo, Sto ‘pp. 69-90). A obra de Terry Clark sob ainsi constiuigio 5 ‘pontim nessa dresio que estou indianda, Ve verras obras de De Certeau (por exemplo, 1 a hitérn das ideias ou da tora, Uma abordagem semeltante pode ser encontrada em est= dos sociisrecentes da pesquisa cientifiea: por exemplo, Knors-Cetina (1981), Latour (1984), Kaoss-Cetina e Mlkay 4A Acs da cl pot pola daenopaia ¢ épocas. Ong axgumenta que a verdade da visio as culturas letradas oci- dentais ptedominou sobre as evidéncias do som ¢ da interlocugio do tato, do olfato do paladar. (Mary Pratt observou que as referéncias a0 cheiro, ‘muito proeminentes em relatos de viagem, so virtualmente ausentes das ctnografias.) As metiforas predominantes da pesquisa antropol6gica tém sido 2 observagio participante, a coleta de dados e a descricio culeusal, que pressupdem, todas elas, uma visio externa — observar, objetificar ou, um pouco mais de perto, “ler” uma dada tealidade. A obra de Ong foi ‘como uma critica da etnografia por Johannes Fabian (1983), que consequéncias de se tomar os fatos culturais como coisas observadas, 20 invés de, por exemplo, escutadas, inventadas em dialogo ou transcritas. Se- guindo Frances Yates (1966), 0 autor argumenta que a imaginagio taxondmi- cano Ocidente tem uma natureza fortemente visual, constituindo as culturas como se fossem teatros da meméria, ou arranjos espacializados. Em uma polémica de mesmo tipo contra 0 “orientalismo”, Edward Said (1978) identifica imagens recorrentes por meio das quais os europeus € rorte-americanos visualizaram as culturas orientais ¢ érabes. O Oriente fun- ciona como um teatro, um palco no qual se repete uma performance, a ser assistida de um ponto de vista privilegiado. (Barthes [1977] atribui a estética burguesa emergente de Diderot uma “perspectiva” semelhante) Para Said, Oriente é “textualizado”; suas historias miltiplas ¢ divergentes ¢ suas ¢2- tegorias existenciais sio entrclagadas de forma coerente de modo a compor ‘um corpo de signos que pode ser lido pelos virtuoses. Esse Oriente, ocul- to e frdgil, é trazido 4 luz amorosamente, resgatado na obra do intelectual estrangeiro. O efeito de dominacio nesses embates espaciais/temporais (© que nio se limitam, é clato, a0 orientalismo em si) éa atsibuigio ao outro de uma identidade nitida, enquanto a0 mesmo tempo fornecem, a0 observador consciente, um angulo de observacio a partir do qual pode ver sem ser visto, pode ler sem ser intetrompido. ‘Uma vez que as culturas no sejam mais prefiguradas visualmente — como objetos, teatros, textos ~, torna-se possivel pensar em uma poética setagio entre vozes, entre elocugdes posicionadas. cultural que seja um: Em um paradigma discursivo, € nfo visual, as metforas predominantes © Obseevaio feta por Prat no seminco de Santa Fé. A sclatva desatenso para com o som esté ‘comerandé a see cortigida nos escrtos eenogficosrecentes (por exemplo, Fed, 1982). Para teemplos de uma obra que dedica uma atencio incomum ao sensorial, vr Stole (1984a, 19848). ? Inuodago: Vedas pcs 45 na etnografia afastam-se do olho observador em diregao & fala (¢ a0 gesto) expressivos. A “voz” do escritor perpassa ¢ situa a anilise, e renuncia-se @ retérica objetiva e distanciada. Renato Rosaldo argumentou e exemplificou recentemente esses pontos (1984, 1985). Outras alterages na encenacio do texto so advogadas por Stephen ‘Tyler neste volume. (Ver, também, Tedlock, 1983) Os elementos evocativos e performativos da etnografia sfo, assim, legitimados. E, 0 problema poético crucial de uma etnografia discursiva passa a set como “alcangar, por meios esctitos, aquilo que a fala ctia, e como fazé-lo sem simplesmente imitar a fala” (Tyler, 1984c, p. 25). Por outro ingulo, podemos notar quanto foi dito, como critica ¢ elogio, sobre 0 olhar etnogrifico. Mas, € a escuta etnografica? E nesse ponto que Nathaniel ‘Tarn quer chegar, em uma entrevista na qual fala sobre sua experiéncia como um homem tricultural, um francés/inglés em processo intermindvel dc transformacio em americano. 1 possvel que se tate mis uma ver do cenégrafo ou do antzopélogo com os vidos bem abertos para aqulo que considera como exético em oposigio , qu estou deseobrindo algo snovasquase todos os dias, como se a linguagem estvesse brotando a partic de toda fonte concebivel (aro, 1975.9), 20 familiar, mas ainda acho, quase todos 0 novo no uso da lingua aqui, Aprendo express O interesse nos aspectos discursivos da tepresentagio cultural chama ‘ atencio no para a interpretacio de “textos” culturais, mas para suas rela- ges de producio. Estilos divergentes de esctita estio, com graus vatiados de sucesso, digladiando-se com essas novas ordens de complexidade — regras e possibilidades diferentes no horizonte de um momento hist6rico. As prin- Cipais tendéncias experimentais foram revisadas, detalhadamente, em outro lugar (Marcus e Cushman, 1982; Clifford, 19832). Aqui, basta mencionar a tendéncia geral em direcio a uma expecfzaro dos discursos na etnografia: quem fala? Quem escreve? Quando ¢ onde? Com quem ou para quem? Sob quais limites instivucionais e histéricos? Desde a época de Malinowski, 0 “método” da observagio pattici- pante oscilou em um eq icado entre subjetividade e objetivida- 46 Acca da cals poten paisa de enol de. As experiéncias pessoais do etnégrafo, ptincipalmente as experiéncias de participagao e empatia, sto reconhecidas como centrais no proceso de pesquisa, mas sio firmemente contidas pelos padres impessoais de observacio e de distancia “objetiva”. Nas etnografias cléssicas, a voz do autor sempre esteve manifesta, mas as convenes da apresentacio textual eda leitura proibiam uma conexo muito préxima entre o estilo autoral ea realidade representada. Embora possamos facilmente discernir 0 sotaque tipico de Margaret Mead, de Raymond Firth ou de Paul Radin, ainda assim no podemos nos refer ‘Tikopia de uma cultura “firthiana” tio livremente como falamos de mun- dos dickensianos ou flanbertianos. A subjetividade do autor é separada do referente objetivo do texto. Na melhor das hipéteses, a voz pessoal do autor é vista como um estilo em seu sentido mais fraco: uma tonalidade, ou ‘uma ornamentagio dos fatos. Além disso, a experiéncia de campo real do cetnégrafo sé é apresentada de maneiras muito estilizadas (por exemplo, a “historias de chegada” discutidas adiante por Mary Pratt). Os momentos de séria confusio, sentimentos ou atitudes violentas, censuras, fracassos importantes, mudangas de rumo e prazeres excessivos séo exciuidos dos relatos publicados. Nos anos 1960, esse conjunto de convengées expositivas se estilhacou. Os etnégrafos comecaram a escrever sobre suas experiéncias de campo de formas que perturbaram o equilibrio predominante entre subjetivo /objetivo. Perturbagées anteriores jé haviam ocorrido, mas foram mantidas & margem: o extravagante LAffique fantime de Leitis (1934); Tristes trpiques (cujo impac- to mais forte fora da Franca s6 se deu apés 1960); € o importante Return to langhter de Elenore Smith Bowen (1954). E sintomitico que Laura Bohannan, farcar como Bowen ¢ apresen- tar sua narrativa de campo como um “romance”. Mas as coisas estavam mu- dando rapidamente, ¢ outros — Georges Balandier (L'Afrigne ambigi, 1957), David Maybury-Lewis (Ue savage and the innocent, 1965), Jean Briggs (Never in Avger, 1970), Jean-Paul Dumont (The Headman and I, 1978) ¢ Paul Rabinow (Reflections on fiedvork in Moraco, 1977) — logo estavam escrevendo “factual- mente” com seus proprios nomes. A publicacio dos diérios de Malinowski em Mailu e Trobriand (1967) estragou todos os planos. A pattir dai, um pon- to de interrogacéo implicito passou a set colocado ao lado de qualquer voz 10s samoanos como “meadianos” ou chamar os 20 inicio dos anos 1960, tenha tido que se _— Invodupio: Vedadeprciis 47 ‘etogtifica abertamente confiante e estivel. Quais desejos ¢ confuses ¢la cestaria atenuando? Como a sua “objetividade” era construida textualmente?” Um subgénero de escrita etnogritica surgiu: 0 “relato de campo” au- torreflexivo. As vezes sofisticados, as vezes ingénuos, ora confessionais, ora analiticos, esses relatos criam um frum importante de debates sobre uma ampla gama de temas epistemolégicos, existenciais e politicos. O discurso do analista cultural no pode mais ser, simplesmente, o discurso do “obser vador” experiente, descrevendo ¢ intexpretando costumes. Os ideais da ex- periéncia etnogrifica e da observacio participante passam 2 ser vistos como probleméticos. Novas estratégias textuais sto experimentadas. Por exemplo, ‘a primeira pessoa do singular (nunca banida das etnografias, sempre pessoais de forma estilizada) passa a set empregada de acordo com novas conven- ges. Com 0 “telato de campo”, a ret6rica da objetividade experienciada cede o lugar & autobiografia € 20 autorretrato irdnico, (Ver Beaujour, 1980, ¢ Lejeune, 1975,) © etnégrafo, um personage de uma fic¢o, ocupa o pros- cénio. Ble ou ela podem falar sobre tépicos antes “irrelevantes”: violencia © desejo, confusdes, brigas e transagdes econémicas com os informantes. Esses assuntos (desde hé muito discutidos informalmente.na disciplina) sai- ram das margens da etnografia ¢ passaram a ser vistos como constitutivos ¢ inescapaveis (Honigman, 1976). Alguns relatos teflexivos buscaram especificar o discurso dos infor- mantes, bem como o discurso do etnégrafo, encenando didlogos ou narran- do confrontos interpessoais (Lacoste-Dujardin [1977], Crapanzano [1980], Dwyer [1982], Shostak [1981], Mernissi [1984]). Essas ficgdes de didlogo tém © efeito de transformar o texto “cultural” (um ritual, uma instituigio, uma histéria de vida, ou qualquer unidade de comportamento tipico a ser descrita ou interpretada) em um sujeito falante, que vé tanto quanto é visto, que se cesquiva, discute e investiga de volta. Nessa concep¢io de etnografia,o refe- rente adequado de qualquer relato nfo é um “mundo” representado; trata-se, agora, de instincias especificas de discurso, Mas o principio da producio textual dialégica vai muito além da apresentacio mais ou menos habilidosa de encontros “reais”. Ele aloca as interpretagées culturais em muitos tipos de contextos teciprocos e obriga os escritores a encontrar diversas manciras 7 Bxploreiaselasio entre subjetivi como ficgées que se reforgava (Ciifoed, 19854). pessoal ¢ relatos culturais dodo de utordade,vistos tuamente, em um enssio sobre Malinowski e Conrad 48 Asie da cal: pose pln de emopai de apresentar realidades negociadas como multissubjetivas, atravessadas pelo poder e incongruentes. Nessa visio, a “cultura” é sempre relacional, uma ins- crigio de processos comunicativos que existe, histoticamente, enfre sujeitos em relagdes de poder (Dwyer [1977], Tedlock (1979). Os modos dialégicos no sio, em principio, autobiogrificos; nio precisam levar a uma hiperautoconsciéncia ou autoabsorgio. Conforme mostrou Bakhtin (1981), os processos dialégicos proliferam em qualquer es- paco discursivo representado de forma complexa (como a etnografia ou, no caso dele, um romance realista). Muitas vozes clamam pot expresso. A poli- ‘vocalidade foi restringida e orquestrada nas etnografias tradicionais por meio da concessio a uma voz de uma funcio autoral onipresente ¢ da alocagio das outras no papel de fontes, “informantes” a serem citados ou parafrase- ados. Quando o dialogismo e a polifonia sao reconhecidos como modos de producio textual, 2 autoridade monofénica passa a set questionada e apon- tada como caracteristica de uma ciéncia que seivindicou representar culturas. A tendéncia a especificar os discursos — historicamente ¢ intersubjetivamente — muda o lugar dessa autotidade, e, nesse processo, altera as questdes que fazemos is descricdes culturais. Basta citarmos dois exemplos recentes. O primeito envolve as vozes ¢ leituras dos nativos norte-americanos, 0 segun- do diz respeito as mulheres. James Walker é amplamente conhecido por sua monografia clissica ‘The San Dance and other ceremonies ofthe Oslala division ofthe Teton Sionse (1917). ‘Trata-se de um trabalho de interpretacio cuidadosamente observado ¢ do- cumentado. Mas nossa leitura precisa agora ser complementada — ¢ alterada ~ por um vislumbre extraordinatio de suas “constracées”. Foram publicados trés titalos em uma edi¢io em quatro volumes de documentos coletados pelo autor quando trabalhava como médico e etnégrafo na Reserva de Pine Ridge, entre 1896 e 1914. O primeiro (Walker, Lakota belief and ritual [1982a], editado por Raymond DeMallie e Elaine Jahner) é uma colagem de anotagdes, entrevistas, textos e fragmentos de ensaios escritos ou falados por ‘Walker ¢ por diversos colaboradores Oglala, Esse volume lista mais de trinta , sempre que possivel, as contribuigdes trazem o nome de seu enunciador, escritor ou transcritor. Esses individuos nio sio “informan- tes” etnogrificos. Lakota bel & uma obra escrita de maneita colaborativa, ceditada de una forum que wuibui v mesino peso reussico a diverses verses Inout: Verdades pcs 49 da tradico. As descrigdes e interpretagdes do proprio Walker so fragmen- tos entre fragmento. O etnégrafo trabalhou junto com os intéxpretes Charles e Richard Ni- nes, ¢ com Thomas Tyon e George Sword, os quais redigiram extensos en- saios em Lakota antigo. Esses ensaios foram agora traduzidos e publicados pela primeira vez. Em uma longa segio de Lakota bell; Tyon apresenta expli- cages que obteve junto a diversos xamas de Pine Ridge; ¢ € muito revelador ver questdes de crenga (como, por exemplo, a qualidade crucial e de dificil definigio de “nukan”) interpretadas em estilos diferentes ¢ idiossincriticos. O resultado é uma versio da cultura em processo que resiste a qualquer sin- tese final. Em Lakata belief os editores fornecem detalhes biogrificos sobre Walker, com pistas sobre as fontes individuais dos escritos em sua colecio, reunidos pela Colorado Historical Society, pelo Ametican Museum of Natu- ral History e pela American Philosophical Society. O segundo volume publicado foi Lakota society (1982b), que retine do- ‘cumentos que guardam alguma relacio com aspectos da organizacio social, bem como com conceitos de tempo e histéria. A incluso de extensas Con- tagens de Inverno (os registros hist6ricos Lakota) e de lembrangas pessoais de eventos histéricos confirma as tendé de questionar distin ‘gBes excessivamente claras entre 08 povos “cot storia (Rosaldo, 1980; Price, 1983). O terceito volume & Lakota myth (1983). B 0 éltimo traz 08 escritos traduzidos de George Sword. Sword foi um guerteiro Oglala, que mais tarde se tomou juiz do Tribunal de Causas Indigenas* de Pine Ridge. Com o incentivo de Walker, ele escreveu um registro vernacular detalhado da vida cotidiana, incluindo mitos, situais, guetras ¢ jogos, complementado por uma autobiografia, ‘Tomadas em conjunto, essas obras oferecem um registro incomum da vida Lakota, com miltiplas articulagdes, em um momento crucial da sua hist6ria — uma antologia em trés volumes de interpretacdes € transcricdes ad hoc por mais de vinte individuos ocupantes de um espectro de posigdes icrescidas de uma visio elaborada do con- junto redigida por um escritor Oglala em posicio privilegiada de observacio. Isto torna possivel avaliar criticamente a sintese feita por Walker desses di- versos materiais. Quando completos, os cinco volumes (incluindo The Sun Dancé) constitairio um texto expandido (disperso, nfo cocso) representando © Court of Indian Offenses" (N. do"T) 50 Acca d clr: pote pla ds enopai ‘um momento particular de produgio etnogrifica (e nfo a “cultura Lakota”). Fo esse texto extenso, 20 invés da monografia de Walker, que ptecisamos agora aprender a ler. Esse conjunto abre novos significados e desejos em uma pues cultural continua, A decisio de publicar esses textos foi provocada por teivindica- g@es feitas 4 Colorado Historical Society por membros da comunidade de Pine Ridge, na qual eram necessétias c6pias para as aulas de hist6ria Oglala. Para outros leitores, a “Colegio Walker” oferece ligées diferentes, propician- do, entre outras coisas, um modelo para uma etnopoética contendo histéria (€ individuos). dificil dar a esses materiais (muitos dos quais sio mui bonitos) a identidade atemporal e impessoal de, digamos, um “mito Sioux’ ‘Além disso, a questo de quem esereve (representa? transcreve? traduz? edita?) afirmagées culturais é inescapivel quando se trata dé um texto expandido dessa natuteza. Aqui, o etndgrafo jA no detém direitos inquestioniveis de resgate: a autoridade hd muito associada & tarefa de dar a um saber oral esqui- ‘vo, “em extingao”, uma forma textual legivel. Nao esti clato se James Walker (0u qualquer outro) pode ser considerado como autor desses escritos. Essa falta de clareza é um sinal dos tempos. Os textos ocidentais sio, tradicionalmente, atrelados a autores. As- sim, talvez seja inevitével que Lakota belief; Lakota society e Lakota myth se- jam publicados sob 0 nome de Walker. Mas, 4 medida que a peesis plural e complexa da etnografia se torna mais aparente — ¢ politicamente carregada =, a8 convengSes comecam, de formas sutis, a sc alterar. A obra de Walker pode set um caso incomum de colaboracdo textual. Mas ela nos ajuda a ver os bastidores. Uma vez. que os “informantes” comecem a ser considerados como coautores, ¢ 0 etndgrafo como um esctiba ¢ arquivista, bem como um observador intérprete, poderemos colocar questGes novas e criticas a todas as etnografias. Qualquer que seja sua forma monolégica, dialégica ou polif6- nica, as etnografias sio atranjos hierirquicos de discutsos. Um segundo exemplo da especificagio dos discursos diz respeito 20 género. Abordarei primeiro as formas pelas quais 0 género pode se impor & leitura de textos etnogréficos e, em séguida, explorarei como a exclusio de ppetspectivas feministas deste volume limita e direciona seu ponto de vis- ta discursivo. Meu primeiro exemplo, entre os muitos possiveis, € Dinnty and experienc: the religion of the Dinka, de Godfrey Lienhardt (1961), que est, seguramente, entre as mais refinadas etnografias da literatura antropolégi- ca recente. Sua interpretacio fenomenolégica da percepeio Dinka do self Inwedupo: Vedade pics 51 do tempo, do espaco e dos “Poderes” é inigualivel. Por isso, € um-choque quando percebemos que o retrato de Lienhardt diz respeito, quase que exclu- sivamente, & experiéncia dos homens Dinka. Quando fala sobte “os Dinka”, pode ou nfo estat falando também sobre as mulheres. Muitas vezes, nfo & possivel saber com base no texto publicado. Os exemplos escolhidos sio, de toda forma, esmagadoramente centrados em homens. Uma rapida leitura do capitulo de introducio do livro sobre os Dinka e seu gado confirma esse ponto. Hé uma tinica mencio a visio de uma mulher, ela se refere & afirma- io da relagio dos homens com as vacas, nada dizendo sobre a forma como as mulheres vivenciam o gado. Essa observacio introduz. uma ambiguidade em passagens tais como “os Dinka muitas vezes interpretam acidentes ou coincidéncias como atos de Divindade, distinguindo 0 verdadeiro do falso com base em sinais que aparecem aos homens” (Lienhardt, 1961, p. 47). O sentido pretendido da palavra “homens” é, com certeza, genérico, mas, cer- cado exclusivamente de exemplos extraidos da experiéncia masculina, desliza para um sentido generificado. (Esses sinais aparecem para as mulheres? As diferencas sio si ‘Termos como “os Dinka” ou “Dinka”, usados a0 longo de todo o livro, tornam-se igualmente ambiguos. ponto, aqui, nfo ¢ acusar Lienhardt de parcialidade; seu livro aborda co género em uma medida incomum. O que extraimos dai, 20 contritio, sio 2 historia ¢ a politica que intervém na nossa leitura. Os intelectuais britdnicos de certa casta e época dizem “homens” quando se teferem a “pessoas” com mais frequéncia do que outros grupos, um contexto hist6rico e cultural que hoje menos invisivel do que ja foi. A parcialidade do género que est em questo aqui nfo era um problema quando 0 livro foi publicado, em 1961. Se fosse, Lienhardt 0 teria abordado diretamente, como etnégrafos mais re- centes se sentem agora obrigados a fazer (como, por exemplo, Meigs, 1984, p. xix). Nao se lia “A Religiao dos Dinka” na época como se deve ler hoje, como a religiio dos homens Dinka ¢ apenas, talvez, das mulheres Dinka. Nossa tarefa é pensar historicamente sobre o texto de Lienhardt e suas pos- siveis leituras, incluindo a nossa, & medida que o lemos. ‘Davidas sistemticas sobre géneto na representagio cultural 6 se torna- ram correntes a partir da década passada, em alguns ambientes, sob a pressio. do feminismo. Muitos retratos das verdades “culturais” parecem agora refletir os dominios masculinos da experiéncia. (Hi hi também, é claro, casos inver- sos, embora muito menos comuns: por exemplo, a obra de Mead, que muitas ‘vezes se concentrava nos dominios femininos e generalizava, a partir dai, para 52 Acta da clr: patdea epoca da enopia ‘a cultura como um todo) Ao reconhecer esses vieses, contudo, é importante lembrar que aossas préprias versBes “completas” itfo inevitavelmente parecer pparciais; e, se muitos retratos culturais agora patecem mais limitados do que antes, isso é tim indicio da contingéncia e do movimento histrico de todas as leituras. Ninguém lé a partir de uma posi¢ao neutra ou definitiva, Essa precangio ébvia é muitas vezes esquecida em novos relatos que se propOem cconsertar 2s coisas ou a preencher uma lacuna n0 “nosso” conhecimento. Quando se percebe uma lacuna no conhecimento, e quem a per- cebe? De onde vém os problemas? Obviamente, trata-se de mais do que simplesmente perceber um erro, um bias ou uma omissio. Escolhi exemplos (Walker e Lienhardt) que enfatizam o papel dos fatores politicos e histéricos na descoberta da parcialidade discursiva. A epistemologia af implicada nfo pode fazer as pazes com uma nogéo de progresso cientifico cumulativo, ¢ 2 parcialidade em questo é mais forte do que o ditame cientifico normal de que estudemos os problemas por partes, de que no generalizemos em de- masia, de que o melhor quadro é construido pela justaposicao de evidéncias sigorosas. As cultusas nio sdo “objetos” cientificos (presumindo-se que tais coisas existam, mesmo nas ciéncias naturais). A cultura, bem como as visées que temos “disso”, sio produzidas historicamente e ativamente contestadas. Nio existe um quadro integral que possa ser “preenchido”, jé que a percep- gio e 0 preenchimento de uma lacuna conduzem a consciéncia de outras lacunas. Se a experiéacia das mulheres tem sido significativamente excluida dos relatos etnogréficos, 0 reconhecimento dessa auséncia, bem como sua corregio em muitos estudos recentes, agora ilumina o fato de que a experi- éncia dos homens (como sujeitos generificados, e no como tipos culturais —"Dinka” ou “Trobriandeses”) é, cla também, largamente subestudada. A medida que t6picos canénicos tais como “parentesco” so submetidos a um escrutinio exitico (Needham, 1974; Schneider, 1972, 1984), novos problemas relativos a “sexualidade” tornam-se visiveis. E por ai E evidente que sabemos mais sobre os Trobriandeses do que se sabia em 1900. Mas este “n6s” exige uma identificagao histérica, (Talal Asad argumenta, em seu texto neste volume, que 0 fato de que esse conhecimento costume ser inserito em determinadas linguas “fortes” no é cientificamente neuiro,) Se a “cultura” no & um objeto a ser deserito, entio também nfio € um corpus unificado Fito foi a eegonha que trouxel” (David Schneider, em conversa pessoa). Foucault desreven sun abordagem como wma “histéria das problemétias” (1984). Inert Veradepucais 58 de simbolos ¢ significados que podem ser definitivamente interpretados. A cultura € contestada, temporal e emergente. A representacio e a explicacio = tanto por parte de nativos quanto de estranhos ~ estio implicadas nesse surgimento. A especificacio dos discursos que venho tracando é, assim, mais do que uma questio de se fazer reivindicagbes claramente delimitadas. Essa especificacao € inteiramente historicista e autorreflexiva. Com este espirito, volto-me agora para o presente volume. Todos se~ tio capazes de se lembrar de individuos ou perspéctivas que deveriam ter sido incluidos. O foco da coletinea a limita de uma forma que seus autores € organizadores podem apenas esbogar. Os leitores poderiam observar que 0 seu bias antropolégico deixa de lado a fotografia, o cinema, as teorias da per- formance, o documentitio, o romance nao ficcional, 0 “novo jornalismo”, a hiist6ria otal e diversas formas de sociologia. O livro dé relativamente pouca atengio as novas possibilidades etnogréficas que tém surgido a partir da ex- petiéncia no ocidental ¢ da teoria e da politica feministas. Deixem que eu me detenha nessa tiltima exclusio, pois ela diz respeito a’ uma influéncia in- telectual ¢ moral particularmente forte no ambiente universitério, a partir do qual esses ensaios foram produzidos. Por essa razo, sua auséncia exige um comentirio. (Mas, 20 me dedicar a essa exclusio em particular, nfo pretendo com isso afirmar que ela ofereca um ponto de vista privilegiado a partir do qual € possivel perceber a parcialidade do livro.) As teorizagées feministas sio, obviamente, de grande relevincia potencial para se repensar a escrita etogrifica. Elas colocam em questio a construgio politica e histérica das identidades e das relagdes seff/outro, ¢ examinam as posicdes generificadas que fazem com que todos os relatos de, ou feitos por, outros povos sejam inevitavelmente parciais.” Por que, entio, este livro nfo inclui texto algum escrito sob um ponto de vista essencialmente feminista? Muitos dos temas que sbordeacima se apoiam em obras feminist recentes. Alguns tbs ram todas as pecspetivastotalzanesearquimedianas (eh 5A Accra dears pesca pola da eograia O volume foi planejado como publicacio de um seminétio limitado pela instiruico promotora a dez participantes. Foi definido institucionalmen- te como um seminisio “avancado”, e seus organizadores, George Marcus © eu, aceitamos esse formato sem questioné-lo. Decidimos convidar pessoas que estavam fazendo trabalhos “avancados” sobre nosso tépico; com isso, queriamos dizer pessoas que ji houvessem contribuldo significativamente para a anilise da forma textual etnogrifica. A bem da coeréncia, situamos o seminéio dentro, ¢ nas fronteiras, da disciplina antropolégica. Convidamos participantes bem conhecidos por suas contribuigdes recentes para a aber- tura de possibilidades para 2 escrita etnogrifica, ou que sabfamos estar com pesquisas adiantadas relevantes para o nosso foco. O seminario foi pequeno, e sua formacio, ad bee, refletindo nossas redes intelectuais e pessoais especi- ficas, bem como nosso conhecimento limitado dos trabalhos adequados em curso. (Nio vou abordar personalidades individuais, amizades etc., embora sejam também evidentemente relevantes.) ‘Ao planejar o semindtio, fomos confrontados pelo que nos pareceu um fato bvio ~ importante e lamentivel. O feminismo’nio havia contri- buido muito-para a anilise teérica das etnografias como textos. Nos espa- 0s em que mulheres haviam feito inovagées textuais (Bowen, 1954; Briggs, 1970; Favret-Saada, 1980, 1981), elas no o fizeram sobte bases femninistas. ‘Algumas poucas obras muito recentes (Shostak, 1981; Cesara, 1982; Mer- nissi, 1984) haviam refle subj telacionalidade ea experiéncia feminista, mas essas mestnas formas textuais eram compartilhadas por outras obras experimentais niio feministas. Além disso, suas autoras nfo pareciam estar dialogando com as teorias sobre texto ¢ retérica que querfamos aproximar da etnografia, Nosso foco estava, assim, na teoria textual bem como-na forma textual: um foco , em sua forma, alegacdes feministas quanto & defensivel e produtivo. Com esse foco, no podiamos recorrer a quaisquer debates jé desen- volvidos gerados pelo feminismo sobre priticas textuais etnogrificas. Algu- ‘mas poucas indicagées muito iniciais (por exemplo, Atkinson, 1982; Roberts (0xg.), 1981) eram tudo 0 que ja havia sido publicado. E, desde ento, a si- tuagio nfo mudou muito. O feminismo contribuiu claramente com a teoria {orts “aatropoldgias” tals como natarezae cultura, piblico e pivado, sexo e géaero foram também questionadss (Ortner, 1974; MacCormack ¢ Strathern, 1980; Rosado e Lamphere, 1974; Rosldo, 1980; Rubi, 1975). Todaro: Verkade paris 5B antropoldgica. E diversas etndgrafas, como Annette Weiner (1976), esto ativamente reescrevendo © cénone masculino. Mas a etnografia feminista tem se dedicado ou & corresio do que se diz sobre as mulheres ou a tevisio de categorias antropoldgicas (por exemplo, a oposi¢ao natureza/cultura). A etnografia feminista nfo produziu formas nfo convencionais de escrita ou tuma reflexio desenvolvida sobre a textualidade etnogrifica em si. ‘As razbes pata este quadro geral precisam de uma investigacio cuida- dosa, ¢ este no é 0 lugar para isso."" No caso do nosso seminério e do nosso livro, ao enfatizar a forma textual e privilegiar a teoria textual, delimitamos 0 tépico de uma maneira que excluiu determinadas formas de inovacio et- nogtifica. Esse fato apareceu nas discusses travadas durante 0 seminério, nas quais ficou claro que havia forgas institucionais concretas ~ tais como 0s padrdes da obtencio de estabilidade no emprego,” os cinones, a influ- éncia das autoridades disciplinares, as desigualdades de poder em nivel glo- bal — que eram inescapéveis. Sob essa perspectiva, questdes de contetido na ctnografia (a exclusio e a incluso de experiéncias diferentes no arquivo an- tropol6gico, a reescrita de tradigdes estabelecidas) tornaram-se diretamente relevantes. E foi aqui que os escritos feministas e nfo ocidentais tiveram seu maior impacto.” Sem diivida, nossa separacZo nitida entre forma e contetido —e nossa fetichizagio da forma — foi, e &, contestivel. 18 um bias que pode muito bem estar implicito no “textualismo” modernista. (A maiotia de nés, durante 0 semindrio, com excecio de Stephen Tyler, ainda no era inteira- mente “‘pés-moderna”!) © 0 enssio into de Maia Suathen (1964), “Dislodging a Wold View”, tambm dsctdo por Paul Rabinow neste li, iaugura a investgagia, Deborah Gordon est deseavolendo una sndlse mais comple, em ma tie em preparncio 20 Programa de Histéa da Conscitci da Universidade da Calin, em Santa Cosa Devo mut is eonversas que mantive com ea. sl, "tena patterns" (N. do T) ° # porsivel que eja gerimene vedade que grupos hi muito excudos des posgdes de poder institacionl, tis como as maleres 08 a pessoas de cor, tznham menos libedade de fito paca empreenderexpetimentagbes textos Pasa ecrever de forma hetrodoxs, sugere Paul Rabinow neste iz, preciso paz aleangar a eitabildade. Em contexzosexpeifics, 2 preocupacio com a sutoreflexvidade e com o erdlo pode serum indo do estetcismo dos Pavegidos. Porgos, se uma pstoa o precisa se preocapar com sexlusio ou com Seatagio verdadira de nc, cla tem ras lberade pata questions as formas de du wwuica, Mas fico pouco bvontade com a alegiado pode se concedero pace da refleio sobre su- lena etéeas Ou epistemolopicasenquaato odiscrso marginal “dia como as cost so”. Maitasvezes€o contro, (Vero cosaio de Michal ache este volume)

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