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Fernando Belo LINGUAGEM E FILOSOFIA Algumas questées para hoje IMPRENSA NACIONAL- CASA DA MOEDA (qgt IMPRENSA NACIONAL- CASA DA MOEDA Estudos Gerais / Serie Universitaria Da linguagem — Signo e valor diferencial em Saussure E sabido que o texto Curso de Linguistica Geral (Saussure, 1972), atri- buido a Ferdinand de Saussure (1857-1913), que teve uma influéncia deci- siva na constitui¢do da linguistica estrutural e depois nas ciéncias huma- nas que a si mesmas se denominaram estruturalistas, foi publicado em 1916, a partir das notas de alguns dos seus alunos tomadas nos seus cursos de «Linguistica Geral» na Universidade de Genebra, respectivamente em 1907, 1908-1909 ¢ 1910-1911 '. Do estudo comparatista das varias Iinguas, 2 boa maneira do século XIX, de que a sua Mem6¢ria sobre o Sistema Primitivo das Vogais nas Linguas Indo-Europeias (publicada aos 21 anos!) é um excelente espécime, mas onde os principios estruturais estdo j4 em funcionamento (pratico, € nao ted- rico, como diria Althusser), Saussure sera levado a repensar progressiva- mente os conceitos da linguistica (numa aventura do pensamento de que algumas cartas assinalam o drama) como vird a expé-los nas aulas citadas e sem nunca ter ousado redigir uma exposi¢ao tedrica. Alguém disse que 0 CLG é mais um texto de epistemologia linguistica do que de ciéncia lin- guistica propriamente dita, apesar dos exemplos desta que constantemente 0 esmaltam. E justamente a este titulo epistemolégico que ele nos inte- Tessa aqui. Dois pares de conceitos que estruturam o Curso formarao o cerne da nossa questionagao: Iingua/fala, por um lado, signo/valor diferencial, por outro. A primeira distingdo é avancada na longa introdug4o, com o ob- jectivo de delimitar 0 objecto da linguisti sta seré uma linguistica da lingua, e nao uma linguistica da fala, Porque a fala, para Saussure, per- manece também objecto de outras abordagens cientificas (fisiologia do apa- relho fénico, actistica, psicologias do pensamento e infantil, etnografia e 1 $6 0s trabalhos de R. Godel (1957) de Mauro (Saussure, 1972) permitiram ter acesso 0s manuscritos originais donde foi compilado 0 CLG. A discussfo a que tal publicagdo deu origem (por exemplo, L. J. Calvet, 1975) permitiu matizar algumas afirmagdes da «vul- gata» do Curso, sem impedir a validade da leitura desta que aqui se faz. ai pré-histéria, com a sua indecidivel questo da origem das linguas, e assim de seguida), a terceira tarefa que Saussure assinala A linguistica é a de «delimitar-se e definir-se a si mesma» (Saussure, 1971, 30). Ora, a lingua, «parte determinada, essencial, da linguagem» ibid.) («a lingua, dird o texto mais tarde, é para nés a linguagem menos a fala» — ibid., 138), «é um objecto bem definido no conjunto heterdclito dos factos de linguagem» (ibid., 41), «é a parte social da linguagem, exterior ao individuo» (ibid., 42), «é um objecto que se pode estudar separadamente» (ibid.), «é de na- tureza homogénea» (ibid.). Ou seja, a lingua, delimitada pelo CLG, ¢ um fenémeno imanente a propria linguagem e pode ser tornada objecto ex- clusivo de uma ciéncia linguistica. O gesto inicial de Saussure, ao distin- guir lingua/fala, é assim constitutivo da Jinguistica como ciéncia funda- mental da linguagem. E «o ponto de vista que cria 0 objecto» (ibid., 32): a definicdo de lingua como sistema imanente constitui a linguistica como ciéncia com objecto préprio. Eis que parece claro e foi sem divida fundador, mas algo oscilaré ao lingua é um sistema de qué? longo do CLG que tentaremos acompanhar: ‘A resposta mais evidente a quem pega na primeira parte do Curso («Prin- cipios gerais»), que comeca pela definicao da «natureza do signo linguis- tico», é de que se trata de um sistema de signos *, Mas Saussure dird va- rias vezes que «a lingua é um sistema de puros valores, em que nada de exterior determina o estado momentdneo dos seus termos» (ibid., 143; cf. 190, 194, 198). Uma leitura atenta do Curso dara conta facilmente de que ele é percorrido por uma oscilagao entre os conceitos de signo ¢ de valor, que interessa ao nosso propésito por a claro. O Curso comega por definir 0 signo, antes de vir 4 nogdo de valor, que veremos ser, no entanto, 0 conceito epistemologicamente decisivo da linguistica saussuriana. A questo a que tentaremos responder é a seguinte: porqué comegar pelo signo? Ver-se-4 que a filosofia anda metida nisto. O signo é caracterizado triplamente. «O signo linguistico une nado uma coisa e um nome, mas um conceito e uma imagem actistica» (ibid., 122), ou seja, a lingua nao é uma nomenclatura. Rompe-se assim com toda uma concepgao tradicional de linguagem, que é ja a do primeiro g:ande texto filoséfieo sobre a linguagem, 0 Crétilo, de Plato, ruptura essa que Per- mite aceder a imanéncia da lingua, desembaragando-a do seu referente ex- tralinguistico. Ao «conceito vird a chamar «significado» e & «imagem actistican «significanten (ibid., 124), mas uma curiosa preciso aparece so- bre este ultimo, que «no é 0 som material, mas a marca psiquica desse SS 2 Segundo Calvet (1975), que cita Godel, Saussure teria proposto Mims aula posterior substituir este titulo («Natureza do signo linguistic») por estoutro: «A lingua como sistema de signos» [cf. «Os signos de que a lingua se compe [...}» (Gaussure, 1971, 176]. 22 som», preci dard sentido. _Desta definicdo do signo como unidade de dois elementos indissocid- veis resultam duas caracteristicas: 0 signo une esses dois elementos consti- tutivos arbitrariamente (cf. ibid., 124-127) e «o significante, porque é de natureza auditiva, desenvolve-se no tempo ¢ ao tempo vai buscar as suas caracteristicas: a) representa uma extensdo, ¢ b) essa extensio é mensurd- vel numa sé dimensdo; é uma linha» (ibid., 128). Veremos depois as difi- culdades destas duas caracteristicas, Depois de um capitulo sobre a «imutabilidade e a mutabilidade do signo (de que apenas salientaremos a recusa, de passagem, da velha pro- blematica filoséfica da origem da linguagem) *, um terceiro capitulo pro- duz a célebre distincao entre sincronia e diacronia, que introduzird & se- gunda parte («Linguistica sincrénican), com a peculiaridade de que sem esta ndo poderé definir 0 conceito de valor, mas é j4 este conceito que, em circularidade epistemoldgica, permite estabelecer a sincronia. A primeira questéo da segunda parte serd a tentativa de delimitar as «entidades concretas» ou unidades da linguistica (identificadas com os sig- nos: «a entidade linguistica s6 existe pela associagao do significante e do significado» — ibid., 176), mas a tentativa fica gorada‘, A razio sera dita mais adiante: «a nocdo de valor cobre as de unidade, de entidade concreta e de realidade» (ibid., 188). Estamos em pleno paradoxo: 0 Curso nao hesitou em comegar pelo conceito de signo, mas este revela-se inoperante para estabelecer a linguis- tica da lingua anunciada. Paradoxo que ¢ reforcado pela maneira bizarra, num epistemélogo da linguistica, como o conceito de valor seré introdu- zido no capitulo seguinte. Saussure recorreré ao que nao se pode evitar chamar um mito sobre a origem da linguagem, com as duas nebulosas amorfas ¢ indistintas de «pensamento» (antes dos significados) ¢ de sons (antes dos significantes), que desemboca sobre «um mistérion: «o pensa- mento, cadtico por natureza, é forcado a organizar-se por decomposicao. Nao ha nem materializagdo das ideias nem espiritualizagdo dos sons, mas trata-se de algo misterioso: 0 ‘pensamento-som’ implica divisdes e é a partir 0 que aqui parece insélita e a que s6 0 conceito de valor 3 © acto de nomeagéo «podemos imagind-fo [eu sublinho], mas nunca foi verificado [.-.] De facto, nenhuma sociedade conhece nem nunca conheceu a lingua sendo como pro- duto herdado das geragdes anteriores que se deve receber e manter intacto. & esta a razo por que o problema da origem da linguagem néo tem a importancia que se lhe atribui nor- ‘malmente, Nao é sequer uma questdo a levantar; 0 tinico objecto real da ica € a vida normal e regular de um idioma jé constituido» (ibid., 130). 4 «A lingua apresenta, pois, esta caracteristica estranha ¢ flagrante: por um lado, nfo encontramos entidades perceptiveis a uma primeira abordagem; por outro, nao podemos du- vidar de que elas existem e de que é a sua harmonizagio que constitui a lingua» (Ibid., 182 © seg). 23 fas a a as suas unidades» (ibid., Faas (da pressaio atmosférica sobre uma célebre, das duas faces de uma ligar ao recurso a duas ou- omia (cf. ibid., 142-143) ue a lingua elabors 191). Seguem du toalha de agua em que produz vagas € a orta) que haveria que folha de papel que s¢ © tras comparacoes, jgualmente célebres, com a econ e com 0 jogo de xadrez (cf. ibid., 154-156). Que indica esta maneira de proceder? A respo' é que 0 conceito de signo ndo permite chegar 20 conceito de va- e este € jntroduzido por um gesto definitério independente. Ora, s6 auténoma permitird dar estatuto epistemoldgico a distinc¢ao e nos pord na pista do paradoxo aquele releva da fala, fala, observacdo qu uanto este releva da lingua, em termos de definicao que Saussure secundarizou € subordinou @ lingua ge uma ciéncia linguistica. O ave agudiza a questo de saber porqué en- 4 responder cabal- sta parece-me Ser a Se- guint lor, esta defini¢ao inicial entre lingua € entre signo ¢ valor: end gus mas a que se ndo poder + comegado pelo sisi iber em inal o valor: € uma grande ilus um certo som com um do sistema de que faz los termos € cons- rio, € do todo so- lise, os elemen- no, que consiste afit .] mostra-nos que tao tel mente antes de sal A ideia de valor L. io con- siderar um termo apenas como a unido de certo conceito- Defini-lo assim seria isola-lo parte; seria acreditar que podemos comecar Pel qruir o sistema a partir da sua soma; pelo contra lidério que temos de partir para obtermos, Por ani tos que ele encerra. [ibid., 193.1 a tradigdo filosofica sobre @ linguagem, osigéio do Curso até aqui; ela s6 cessa stemolégico que estaré na base do riano é sistema»), que terd o su- alor, sem confusdes * nem redugao *: «a s so soliddrios ¢ em que 0 ande ilusdo» padeceu rganizaco da xP de um principio epi fermo saussu! Desta «gté mas também a 0 com a invocagao o de estrutura (0 t ibe. vel falar de vi que todos os termo: conceit cesso que se sal ‘Agora é poss a é um sistema ¢m eantes de tudo, na lingué __ + «Quando se fala do valor de ut palavra, pensamos geralmente, cm de representar uma ideia ¢ 6 é, com efeito, um dos aspectos ye diferenga hd entre 0 valor ¢ ‘aquilo a que cha ‘que nao, se bem que a confu- propriedade que dela t Go valor linguistico. Mas, sendo assim, 4 fnamos significacdo? Estaremot ‘perante sindnimos? Julgamos sao seja facil, ve que ela & provocada pela vmnalogia dos termos ¢, sobretudos pela fe distingao que eles definert> (ibid, 193-194). «Como se explica que 0 valor, rrr rcagho, isto é, com 0 reverso da imagem auditiva?> ignificasdo, ¢ € muito dificil delicadeza d assim definido, se con! ro seu aspecto conceituals ¢ Unt elemento da si istinguir as duas n0v0eS» wxé porque uma depende da OU, ‘Contudo, é necessirio que apro- ‘questo, sob pena de reduzirmos a lingua a uma simples nomenclatura.» (bid. 194.) 24 valor de um resulta da presenca simultanea dos outros» (ibid., 194). Segue- -se uma série de exemplos linguisticos de que ressalta que «em todos os casos se nos deparam nao ideias dadas de antemao, mas valores que ema- nam do sistema: quando dizemos que eles correspondem a conceitos, su- bentendemos que estes sio puramente diferenciais, definidos nao positi- vamente pelo seu contetido, mas negativamente pelas suas relagdes com os outros termos do sistema. A sua mais exacta caracteristica ¢ serem 0 que os outros nao so» (ibid., 198). Agora, sim, estamos num terreno linguistico epistemologicamente firme e o signo toma o seu lugar claramente secundario: Em portugués, um conceito «julgar» esta unido a imagem actis- tica julgar; dentro da palavra (mot), ele simboliza a significagao; mas compreende-se que este conceito nao tem nada de aprioristico, que néo é mais do que um valor determinado pelas suas relagdes com outros valores similares ¢ que sem eles a significacdo ndo exis- tiria. Quando afirmo que uma palavra significa qualquer coisa, quando insisto na associago da imagem actistica e do conceito, rea- lizo uma operacdo que, numa certa medida, pode ser exacta e dar uma ideia da realidade; mas de nenhum modo exprimo o facto lin- guistico na sua esséncia e na sua amplitude. [Ibid., 198-199, eu su- blinho.] Eis a razdo da precisio assinalada anteriormente sobre o significante linguistico (ndéo «o som material, mas a marca psiquica desse som»): Na sua esséncia, o significante nao é fénico, é incorporal, cons- tituido nao pela sua substancia material, mas unicamente pelas di- ferengas que separam a sua imagem acustica de todas as outras. [bid., 200.] Principio este tao essencial que se aplica a todos os elementos da lingua, inclusivamente aos fonemas [...] Os fonemas so, acima de tudo, entidades opositivas, relativas ¢ negativas. [/bid., 200-201.) E mesmo na fonologia que tal principio é claro, pois que justamente os fonemas nao sao signos, nao tém conceito ou significado, so puros factos de lingua, e nao de fala’. 7 Por isso, a fonologia estrutural se constituiu (Trousbetzkoy ¢ Jakobson) como regido tebrica antes das outras, enquanto justamente a seméntica, onde o signo funciona a pleno, no ‘conseguiu até hoje determinar o seu estatuto linguistico de forma satisfatéria (cf. 0 § 34 deste livro). 25 citar as duas (equivalentes) afirmagdes decisi, Jd nos é agora 2 é «uma forma, nfo uma substancia» (ibid., 199), vas de Saussure: @ U aes diferencas, sem termos positivos» (ibid., 202-203), «na lingua ndo ha Sead valor: o valor é a diferenca; mais Precisamente, Como ¢ possiel deft Tt istica é a diferenca dessa entidade para tq, o valor de umt aes do sistema da lingua, ele resulta ndo da unidade id das ff or aieant mas da sua posicao na estrutura em relacdo com significa » ‘ ides dos outros termos °. : . que chamel mito saussuriano das massas informes de «pensamento», e de «sons» pode agora ser eliminado: possivel Ao nivel do significado, como ao do significante, a lingua nio comporta nem ideias nem sons preexistentes ao sistema linguistico, mas apenas diferengas conceptuais ou diferencas fénicas safdas do sistema. O que ha de ideia ou de matéria fénica num signo im. porta menos do que aquilo que existe em volta dele, nos outros signos. O valor de um termo pode ser alterado sem que se Ihe to- que no sentido ou no som, mas sé porque um termo vizinho so- freu uma modificacao. [Ibid., 203.] Mas que & que trouxe tal mito ao Curso, bem como as metéforas da pressdo atmosférica sobre a 4gua e das duas faces da folha de Papel, ou ainda as comparac6es com o xadrez e a economia? Foi justamente o facto de ele ter comecado pelo conceito de signo com as suas duas vertentes, Que estatuto vem entdo agora a tal conceito? Saussure continua: «mas a afirmago de que tudo é negativo na lingua s6 é verdadeira quando apli- cada ao significado ou ao significante tomados isoladamente: a partir do momento em que se considera o signo na sua totalidade, estamos em pre- senga de algo que € positivo ao seu nivel» (ibid., 203). Mas o préprio Saus- sure advertiu frequentemente que a unidade significado/significante era in- dissoliivel, como tomé-los isoladamente? Mais do que contradigao tedrica, esta dificuldade obrigar-nos-4 a manter uma suspeita sobre a epistemolo- gia saussuriana, mais concretamente sobre o estatuto da distingao inicial entre lingua ¢ fala. Qual é, de facto, o «nivel» em que o signo, como totalidade, € algo de positivo? Sé pode ser justamente o nivel da fala. Tomemos dois indicios. * Eis uma boa definigdo de estrutura devida a M. Serres: «uma estrutura é um con- Junto operacional com significagao indefenida, agrupando elementos, em qualquer niimero, de que se no especifica 0 contetido, ¢ relagdes, em mimero finito, de que se no especifica ‘ natureza, mas de que se definem a fungio € certos resultados quanto aos elementos» (cit. in R. Bouveresse, 1977, 427). Mas para uma andlise deste conceito no chamado «estruturalismo», V. 0 excelente artigo de Deleuze (1973). 26 F nae ee pe 90) mais rigorosamente do significante, Ram aaGn mente espacial («extension») ¢ temporal (cf. ibid., » © valor, como diferenca sistematica ou estrutural escapa a essa caracteristica, uma vez que as diferen de inam so simultaneas, sem tem incréni Se a PO, Ou sincrénicas; o que implica, obviamente, que também a lingua, como sistema sincrénico de diferengas, é prévia ao tempo. Pelo contrdrio, a fala nfo pode senao desenvolver-se no tempo € no espaco (reformularemos posteriormente esta afirmago). O que insi- nua que significante, e bem assim o signo, releva da fala, gua. No rigor da definieao saussuriana, o significante, como «marca psi- quica», ¢ néo «som material» (ibid., 122), escapa a «natureza auditiva», que é quem comanda a sua linearidade, o que nao faz mais do que acen- tuar a dificuldade epistemolégica em questo. O outro indicio foi bem ana- lisado por Benveniste num célebre texto sobre o arbitrdrio do signo («Na- ture du signe linguistique», Benveniste, 1966, 49-55), em que este mostra que tal arbitrariedade sé tem sentido no entre o significante ¢ o signifi- cado, mas entre o signo, que é a unidade indissoliivel desses dois elemen- tos, € o referente extralinguistico, que, algumas paginas antes, Saussure tivera 0 cuidado de eliminar do conceito de signo. De facto, 0 argumento decisivo para tal cardcter arbitrério (que é, aliés, o argumento de Hermé- genes no Crdtilo, como o serd de Nietzsche) & a existéncia de linguas dife- rentes (irmd, soeur e sister dizem a mesma relagao familiar, como boi, boeuf € ox 0 mesmo animal) que dizem o mesmo referente com sons ar- bitrariamente diferentes. Enquanto eu nao posso ter 0 significado de irma e de boi em portugués sem que ele esteja necessariamente (¢ ndo arbitra- riamente) ligado ao respectivo significante: necessidade que é constitutiva da lingua em que falo e penso. Ora, diz Benveniste, 0 conceito de arbi- trdrio € necessdrio a Saussure para confirmar 0 de valor: € nao da lin- [...] a escolha que aproxima um segmento actistico de uma ideia é perfeitamente arbitraria. Se assim n&o fosse, a nogao de valor nao estaria completa, pois aceitaria um elemento imposto do exterior. Mas, na realidade, os valores mantém-se relativos; por isso, a rela- ¢4o ideia-som € radicalmente arbitraria. [Saussure, 1971, 192.] «Ora, argumenta Benveniste, este elemento imposto do exterior é a rea- lidade objectiva que este raciocinio toma como eixo de referéncia» (Ben- veniste, 1966, 54). O que o «arbitrério do signo» preserva é justamente a imanéncia da propria lingua, na qual ndo ha sendo diferencas. Desta hé que distinguir a significagfo, como fenémeno da linguagem, que néo da lingua, ou seja, fenémeno da fala, Como resulta da conclusdo do ar- tigo de Benveniste, chamada a significagao «denominagdon: «vé-se, por- 27 contingéncia inerente A lingua afecta a denominacao tanto, que a parte de eng de ¢ na sua relagdo com ela» (ibid., 55). enquanto simbolo da realida i Podemos agora fazer um balanco das aquisic6es da linguistica de Saus- sure. Dois focos se estabelecem nela, 0 do conceito de signo e o do con- ceito de valor diferencial, o primeiro inerente a fala enquanto discurso so- bre a realidade através de uma economia da significacdo, 0 segundo inerente a lingua enquanto objecto tedrico produzido pela linguistica no seu gesto de se constituir como ciéncia, funcionando no sistema imanente dessa lingua segundo uma economia da diferenca. Destas duas economias se faz a linguagem (lingua mais fala) sem que se possa, a ndo ser por uma decisio epistemoldgica (e que marca os seus limites proprios, a que vire- mos em devido tempo), «separar» rigorosamente lingua ¢ fala, valor e signo. Aqui encontramos a resposta & questdo levantada acima: porque co- mega Saussure pelo conceito de signo se ¢ 0 de valor que é decisivo para © seu propésito e se este é, de facto, introduzido no Curso em autonomia relativa com o de signo? A razdo é, se se pode dizer, de ordem estraté- gica em relagdo justamente a concepcao filosdfica de linguagem dominante na linguistica do século XIX: € essa também a razao que encontra Benve- niste (ibid., 50-51), mas haverd que ir mais longe e reconhecer, como fa- remos no capitulo seguinte, que essa concep¢do é a que perdura no epis- tema ocidental desde a constituigdo da metafisica por Platao. E 0 proprio Saussure quem nos traz assim A interrogagao filoséfica. O seu gesto de definigao de signo, eliminando o referente extralinguistico e a concep¢ao da linguagem como nomenclatura, é necessdrio 4 posterior definicao da lingua como sistema imanente onde nao hd sendo diferencas, necessario, em termos filoséficos, a desontologizacao da linguagem, sem a qual ne- nhuma linguistica, enquanto ciéncia auténoma, é possivel °. Autonoma, nomeadamente, da filosofia. Sé que 0 conceito de signo resiste, carregado de uma longa historia metafisica, como sublinha J. Derrida, ao mostrar como o par signifi- cante/significado é cimplice dessoutro par sensivel/inteligivel, em torno do qual a filosofia se constituiu, de Platao e Aristételes a Kant e Husserl. Persisténcia que vimos a trabalhar no discurso saussuriano e que foi in- tuida pelo seu autor quando introduziu os termos de significado e signi cante, que «tém a vantagem de marcar a oposicdo que os separa entre si e que os distingue do total de que fazem parte. Quanto a signo, se 0 aceitamos, é porque nao sabemos como o substituir, uma vez que a lin- gua comum nao sugere nenhum outro» (Saussure, 1971, 124). Honesti- 9 Um gesto semelhante em Galileu (cf., adiante, 0 § 23.) 28 ria linguistica proposta. Temos um ee aoe valor ou diferenca linguistica —» mas associado a um outro —o de Signo > que finalmente no tem sentido sendo no quadro tradicional ela- borado pelos estéicos. A ruptura saussuriana poderd entdo dizer-se pelo «principio da subordinacio da significagao ao valor» ", correlativo da su- bordinacao, claramente afirmada pelo Curso, da fala em relagdo a lingua. : empirico, a lingua um objecto tedrico, e «é evi- dente que estes dois obj i leca; historicamente, a fala precede sempre» (ibid., 124). Nem a lingua climina a fala, nem o valor o signo: mas epistemologicamente serd pelo valor que se comecard e serd este 0 nticleo que nos permitiré, a partir de Saussure, questionar a filosofia. Tal nuicleo permitir-nos-4 esbogar uma concepedo da linguagem que devera depois ser alargada, mas se apresenta como uma proposta irredu- tivel, 2 maneira de um postulado epistemoldgico, irredutivel a qualquer Outro discurso sobre a linguagem, seja linguistico, seja psicanalitico, seja filos6fico. Tal esbogo far-se-4 a partir da distingdo de duas esferas de re- laces diferenciais na lingua: sintagmaticas e associativas, na terminologia do Curso, este segundo termo dando origem ao conceito linguistico pos- terior de paradigma: Por um lado, no discurso, as palavras contraem entre si, em virtude do seu encadeamento, relagdes que assentam no cardcter li- near da lingua [sic.], que exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Eles dispdem-se uns apés outros na cadeia fénica. Estas combinagGes, que tém como suporte a exten- so, podem ser chamadas sintagmas [...] Num sintagma, o valor de um termo surge da oposigao entre ele ¢ 0 que o precede, ou que se Ihe segue, ou ambos. [Jbid., 207-208]. 10 Pécheux, 1971, 96. «Se a ruptura saussuriana foi suficiente para permitir a consti- tuipdo da fonologia, da morfologia ¢ da sintaxe, ela nfo pdde obstar a um regresso ao em- pirismo em semAntica.» (Ibid., 94.) 29 De facto, entre ele ¢ todos os outros termos do sintagma: Por outro lado, fora do discurso, as palavras que tém qualquer coisa de comum associam-se na meméria [ou seja, fora da lineari- dade] e assim se formam grupos, no seio dos quais se exercem re. lagdes muito diversas [.. .] Estas coordenag6es so de espécie com- pletamente diferente das primeiras. O seu suporte nao éa extensio; a sua sede esté no cérebro; fazem parte do tesouro interior que a Iingua representa para cada individuo. Chamar-Ihe-emos relagées as- sociativas. A relagdo sintagmatica é in praesentia, refere-se a dois ou mais termos igualmente presentes numa série efectiva. Pelo con- trério, a relacdo [paradigmatica] une termos in absentia numa série mneménica virtual. [/bid., 208.) " Sublinhemos, de passagem, como é claro o obstdculo que conceito de signo é a uma tal linguistica, na referéncia que ele implica, malgré Saus- sure, a realidade extralinguistica designada por nomes e verbos, nomea- damente; ele impede a consideragao das diferengas, néo apenas das sin- tagmaticas (presentes ¢ efectivas), mas sobretudo das paradigmaticas (ausen- tes e virtuais). Ora bem, a concepgdo saussuriana de linguagem seria delineada pela existéncia de trés tempos na andlise de um facto linguistico empirico, de um discurso ou segmento de discurso: o primeiro tempo seria o da ané- lise das diferencas sintagmaticas, ou seja, dos valores que Ihes vém das suas diferencas reciprocas no seio do sintagma; o segundo tempo seria 0 da andlise das diferengas paradigmaticas, ou seja, dos valores que vém a cada termo linguistico pela sua insergo nos paradigmas ausentes e vir- tuais da lingua; o terceiro, enfim, resultaria da andlise dos efeitos de sig- nificagéo que lhes advém da relacéo que o discurso cria com a realidade extralinguistica. Certamente que uma tal andlise se embaracaria da ques- tdo de saber se os valores paradigmaticos nao esto jd sujeitos a efeitos da significacdo vindos de falas anteriores, se é certo que «os valores sé existem devido ao uso e ao consentimento geral» (ibid., 193). Mas, ao ni- vel do meu préprio discurso, interessa apenas sublinhar, na sucessividade daqueles trés tempos teéricos, que a epistemologia saussuriana implica uma 1 Ora, o discurso € a fala, Saussure teré de pér a questdo de saber «se o sintagma pertencerd a fala» (Ibid., 209), respondendo que ndo. Encontra-se aqui a mesma dificuldade em aguentar a distincdo lingua/fala. Digamos que, se a gramética generativa de Chomsky, que se ocupa de sintagmas e frases, pertence a linguistica da lingua, a resposta de Saussure € correcta; mas 0 que segue nesta citagdo mostra que se esté ao nivel linear da fala. © termo paradigma foi introduzido por Hjelmslev. 30 metodologia. E nela o primeiro tempo, relativo ao sintagma, transforma a propria questao da significacdo numa orientagdo que me foi aberta, ja nao por Saussure, mas pelas andlises de Benveniste no que diz respeito A predicacao. Na gramatica tradicional, o verbo é chamado «predicado». Benveniste define «o verbo como o elemento indispensdvel 4 constituigo de um enun- ciado assertivo finito» (Benveniste, 1966, 154): No seio do enunciado assertivo, a funcdo verbal é dupla: fun- cdo coesiva, que é a de organizar numa estrutura completa os ele- mentos do enunciado; fungdo assertiva, consistindo em dotar 0 enunciado de um predicado de realidade [...] A relacdo gramati- cal que une os membros do enunciado acrescenta-se implicitamente um celd est! que religa o agenciamento linguistico ao sistema da tealidade. [/bid.] Derrida, num texto critico sobre um artigo de Benveniste a propésito das categorias de Aristételes, diz do verbo «ser»: «‘ser’ da-se justamente na linguagem como o que a abre a ndo linguagem, para além do que nao seria sendo o dentro [...] de uma lingua» (Derrida, 1972 a, 218). O que implica que a economia da significagao nao pode ser vista como uma deno- minacdo (a maneira tradicional, em que o «nome», substantivo ou verbo, reenviaria, fora de qualquer enunciado, a seres ou accdes), mas como parte de uma economia mais geral de predicacdo. Nessa economia mais geral, dominada pelo verbo (que é a tinica fungao linguistica que articula o tempo — presente, passado ¢ futuro —, os modos — indicativo, conjuntivo, im- perativo —, os aspectos — perfeito, imperfeito —, didtese — voz activa, passiva e média —, a pessoa — eu/tu — e ndo pessoa — ele: trata-se sempre de predicacdo, que tem que ver com o que Benveniste define como instan- cia de locuao "), se predica um «sujeito-acgdo», sendo 0 «sujeiton de- terminado (no sentido da funcao gramatical de determinante, artigos e demons- trativos) de modo a poder «designar» um elemento da realidade extralinguis- tica. A designacdo (ou significagao) é entéo um fenémeno especifico da fala ¢ distingue-se da denotaco, que esta é efeito, pelo uso da lingua, das falas na prépria lingua (cf. Resweber, 1979, 12). A nomeacdo, de Platdo a Hegel, sera assim uma producdo suspeita da filosofia, resultante de esta nao conside- rar a linguagem sendo segundo a economia da significagdo, na ignorancia do valor e da prépria predicacao. 2 V., adiante, 0 § 13. 31 2—A linguagem em Nietzsche Um dos pontos fracos da linguistica estrutural pés-saussuriana é 0 da sua incapacidade em constituir uma semAntica. Nesta questéo joga plena- mente a «confusdo» entre signo e valor, a que nos referimos, e 0 ponto caracteristico em que tal confusao se manifesta como empecilho de uma semAntica é, me parece, o de uma teoria da metdfora ou, de forma mais geral, da polissemia, que o CLG nao tematiza, tanto mais bizarramente quanto 0 conceito de valor diferencial é decisiva libertagao para a elabo- ragao de tal teoria. E ainda o conceito de signo que funciona como tra- vao, na medida em que dele se reclama, nomeadamente em tentativas de semantica, uma objectividade do referente extralinguistico °. Ora, tal con- cepcdo, presente, de forma geral, nas epistemologias cientificas e nomea- damente na légica, resulta do discurso filosdfico tradicional: a propésito da transformagdo artistica, diz Cl. Margat-Barberis (1977, 32) que ela «re- siste a uma interpretacdo de ordem filoséfica, a qual supde um referente neutro, sem desejo ¢ sem histéria» “, Voltaremos & questo no capitulo seguinte, mas assinalemos desde j4 que este postulado de um referente ob- jectivo e neutro determinar4 a teoria aristotélica da metdfora, que domi- nou toda a retdrica ocidental até ao nosso século ', Ora, € este terreno estratégico que o fildlogo Nietzsche, preocupado com questées de filosofia estética, vai minar num texto péstumo, escrito no Verao de 1873 '*. Uma fabulosa fabula ”, espécie de contramito a 13 Benveniste, jé citado, sublinhava «objectivay (cf. p. 27). '4 Cf. Pécheux, 1971, 100, denunciando a «questéo dos universais semanticos, isto é, de um sistema metalinguistico capaz de descrever ‘a realidade’ aplicando-se a ela como uma rede. Esta imagem da rede subentende, parece-nos, a existéncia de uma correspondéncia real entre os universais da significacdo ¢ os universais extralinguisticos (fisicos, biol6gicos, an- tropolégicos, etc.)», a qual correspondéncia «repousa na realidade, em nossa opinio, sobre ‘um postulado realista que dissimula um certo niimero de dificuldades dizendo respeito a propria natureza dos ‘universais’». E a histéria que, nestes autores marxistas, poe aqui questo, como serd 0 desejo que 0 faré na problemética de Nietzsche que vamos evocar. 15 Ainda num autor recente como Le Guern, 1973, 103 e segs. 16 Nietzsche, 1969. Derrida (1972 b) mostrou como 0 conceito de metafora, estrategi- camente decisivo neste texto de Nietzsche, pertence ao espaco da metafisica; Sarah Kofman (1972) mostra, por seu turno, como Nietzsche veio a abandonar esse conceito em proveito do de interpretacao. 47 «Num qualquer canto afastado do Universo, espalhado no flamejante de inumerd- veis sistemas solares, houve uma vez uma estrela na qual animais inteligentes inventaram ‘© conhecimento. Foi 0 minuto mais arrogante ¢ mais mentiroso da ‘histéria universal’: mas nao foi sendo um minuto. Apés alguns suspiros da Natureza, a estrela congelou ¢ 0s ani- mais inteligentes tiveram de morrer.» (Nietzsche, 1969, 171.) A fungao desta fébula é desfa- zer a teleologia do conhecimento humano e relativizar este como uma fungdo de conserva- 40 da vida de animais fracos na luta ¢ jogando, portanto, na dissimulacdo. 32 opor ao das massas informes de pensamentos e de sons de Saussure, in- troduz um outro postulado sobre 0 «mundo» como referente pré- -linguistico: os homens «estdo profundamente mergulhados nas ilusdes € nos sonhos, 0 seu olho no faz sendo deslizar na superficie das coisas onde vé ‘formas’, a sua sensacéio nao conduz de forma alguma 4 verdade, contenta-se apenas em receber excitagdes e em jogar como num teclado sobre as costas das coisas» (Nietzsche, 1969, 173). E 4 concepedio heracli- tiana do mundo como jogo, do curso permanente das coisas, que Nietzs- che recorre, bellum omnium contra omnes que obriga os homens, para terem alguma paz, a fixago de uma verdade utilitaria: «encontrou-se uma designacao das coisas uniformemente valida e obrigatéria» (ibid., 175). Es- tamos, obviamente, em pleno mito sobre as origens da linguagem, como Crdtilo recorreu ao de um «legislador» dos nomes: «ndo é logicamente que procede o nascimento da linguagem», o qual «ndo provém, em todo ‘0 caso, da esséncia das coisas» (Ibid., 179). Utilizando 0 mesmo argumento de Hermégenes e de Saussure para es- tabelecer 0 arbitrdrio do signo, a saber, a existéncia de linguas diferen- tes ", Nietzsche vai mais longe, porém: a sua concepgiio do mundo (e da linguagem) como jogo permitir-Ihe-d estabelecer também o arbitrério da relagdo saussuriana de significante/significado, que Benveniste contestara mais tarde. Eis 0 texto, frequentemente citado: Que é uma palavra (Wort, mot)? A representacdo sonora de uma excitag4o nervosa. Mas concluir de uma excitacdo nervosa a uma causa exterior a nds é ja o resultado de um aplicagao falsa e injus- tificada do principio de razao. [J/bid., 177.] Ha um duplo momento, para Nietzsche, nesta «genealogian da pala- vra. Evocando Kant: A «coisa em si» (seria justamente a pura verdade sem conse- quéncias), mesmo para aquele que dé forma a lingua ®, & comple- tamente inapanhavel e ndo vale os esforcos que ela exigiria. Ele de- signa somente as relagdes das coisas aos homens e aproveita para a sua expresso as metéforas mais audaciosas! Transpor primeiro 18 bid., 179. Este argumento invalida a afirmacdo de Margat-Berberis (1977, 47) se- gundo a qual «Nietzsche nao pe um arbitrério do signo, mas do significado». De facto, le prope ambos: ignorando embora a diferenea saussuriana, num ponto ele vai mais longe que Soussurre, que o seu referente ndo € neutro & historia ¢ aos desejos. 1 wAquele que d4 forma a linguan pode ser entendido como o legislador do Crdtilo, mas também como o poeta, figura central deste texto. 3 33 cosa numa imagem! Primeira metéfora. A ima- mada num som articulado! Segunda metafora, pleto numa esfera completamente ou- uma excitagao nerv' gem de novo transfo1 E, de cada vez, um salto com| tra e nova. [/bid., 179.) E este salto, este «transporte» no sentido literal, que é aqui chamado «metafora». Nietzsche situa-se também, como Saussure, numa economia tradicional do signo, mas para a despoletar. O «il6gico» do nascimento da linguagem suporia, com efeito, uma Idgica da adequaco dos nomes as coisas como definicéo de verdade. Este movimento, transporte, metd- fora, entre esferas diferentes (da excitagdo nervosa 4 imagem, desta ao som da linguagem oral), esté na origem da concepedo nietzschiana de que na lingua nao ha, «originalmente» (no acto novo de falar), senado metafo- ras: os «conceitos» (quer no sentido do «significado» do Saussure, quer no sentido cientifico e filoséfico) * nao sao sendo metaforas geladas, es- quecidas de que sao metdforas: Qualquer conceito nasce da identificagéo do nao-idéntico. Tao certamente como uma folha nunca é completamente idéntica a ou- tra, também o conceito «folha» [aqui no sentido de Saussure] foi formado gracas ao abandono deliberado dessas diferencas indivi- duais ¢ apela entdo a representagio, como se existisse na Natureza, fora das folhas, qualquer coisa que seria «a folha», uma espécie de forma original segundo a qual todas as folhas seriam tecidas, desenhadas, aproximadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por maos indbeis, a0 ponto de nenhum exemplar ter sido conseguido t&o correcta e seguramente como a forma original. [Jbid., 181.) Que € entdo a verdade? Uma multidao movedica de metaforas, de metonimias, de antropomorfismos, em resumo, uma soma de relagées humanas que foram poética e retoricamente elevadas, trans- postas, ornadas, ¢ que, apds um longo uso, parecem a um povo firmes, canénicas e constrangedoras: as verdades sao ilus6es que se esqueceram de que o so, metdforas que foram usadas e que per- deram a sua forca sensivel, pecas de moeda que perderam a sua marca e que entram apés em consideraciio, j ndo como pegas de moeda, mas como metal. [Ibid., 181-183.] 20 g{....] dificilmente acreditard que 0 conceito, em 0ss0 € octogonal como um dado «, como este, amovivel, ndo é senio o residuo de uma metdfora e que a ilusio da transposi sfo artistica de uma excitagdo nervosa em imagens, se nao é a mae, é, em todo 0 caso, a avd de qualquer conceito.» (Ibid., 185.) 2 34 Nesta metdfora da moeda usada, Derrida encontra uma velha cumpli- cidade entre a teoria filoséfica da metdfora e a economia, que Saussure utilizard, Por seu lado, para estabelecer 0 conceito de valor. O que o leva a concluir que «a questo da metéfora releva aqui de uma teoria do va- lor, € nio apenas de uma teoria da significagion (Derrida, 1972 b, 259). Saussuriano avant la lettre, Nietzsche revela-se assim mais saussuriano do que o proprio Saussure, pelo cuidado que teve em minar o terreno episte- molégico sobre que 0 Curso constréi o conceito de signo. A sua «reali- dade extralingufstica» releva dos noumenos de Kant, é incognoscivel en- quanto tal ao discurso, que mais nao faz que a «fenomenizarn, se se pode dizer, adentro do préprio discurso, mas na sua efemeridade de discurso nico, poético, irrepetivel, incapaz de gerar uma lingua sendo ao nivel do «tratado de paz» que é, para Nietzsche, a «comunicagdo» linguistica cor- rente. Minar assim, fazer explodir, o referente neutro da metafisica s6 € pos- sivel se também saltar o seu correlato, o sujeito (0 pensamento) como pré- vio A linguagem, como se sabe que Nietzsche faz em seu filosofar Quem é 0 autor de tal explosao, desta genealogia da linguagem? E o de- sejo, a que Nietzsche chamar4 «vontade de poténcia», numa terminologia bizarra em que se marca uma concepgao do desejo estranha @ tradi¢o metafisica que liga Freud a Platéo ”. Uma filosofia da linguagem que queira assim fazer jus 4 perturbacdo que a metéfora introduz nos fend- menos linguisticos nado pode evitar a consideracdo do desejo como deci- siva. O postulado do mundo como jogo e da linguagem como fazendo parte do jogo do mundo implica um nivel prévio & comunicagdo (entre sujeitos que se entendam a falar das coisas) em que tudo é metaforizagao e so os desejos que esto a obra, Uma filosofia da poesia, que assigne © lugar da linguagem da comunicacao corrente, torna-se entéo possivel. 3—A gramatologia de Derrida Introduzir aqui uma referéncia ao pensamento de Derrida sobre a ar- quiescritura ou diferancia é um risco. E certo que um texto que se limite a citar em algumas paginas um grande filésofo corre sempre 0 risco de a atencdo ao citado ser dobrada pela inaten¢ao a outros aspectos nao adu- zidos desse pensamento, em correlagéo com os que forem retidos. Mas, sendo Derrida, a meu ver, 0 filésofo que, na desconstrugao do epistema 21 Cf, Deleuze, 1962. 2 Y., adiante, os §§ 36 ¢ 37. 35

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