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RESUMO A corrente de suspense na Literatura Infan- til e Juvenil Brasileira é bastante fértil, tendo em Jogo Carlos Marinho um de seus representantes ‘mais importantes. © presente ensaio volta-se para oestudo de sua obra, O génio do crime, mostrando ‘como e por que se pode considerd-lo uma narrati- va de suspense — opeao intermediaria entre 0 ro- mance policial clissico, de enigma, ¢ 0 romance, “série negra’. O estudo se propde, ainda, 2 mos- trar como o romance, atrds do suspense que prende © jovem leitor, vai promover uma eritica irénica e bem humorada a questdes de nossa realidade so- cial. 1. O Género Policial O género policial pode ser sub- dividido em espécies diferentes de narrativa. © romance policial classico € também conhecido por romance de enigma. Denominag4o bastante apro- priada, uma vez que seu ponto de par- tida € sempre um enigma que vai atuar como desencadeador da narrativa que s6 vai atingir seu desfecho com a so- lugdo deste enigma inicial. Tzvetan Todorov argumenta em seu artigo, “Tipologia do romance policial’’, so- bre a existéncia de uma dualidade na base do romance de enigma, em outras * Professora Adjunto do Dept? de Letras/ICHL. Mestre em Teoria da Literatura ~ Especialista em Literatura Infantil ¢ Juvenil. Professora de Teoria da Literatura ¢ Literatura [nfanto-Juve~ nil. ‘Signdtica 2:107-122, jam./dez. 1990 palayras, este romance nao contém uma, mas duas historias: a historia do crime € a histéria do inquérito. “A primeira, a do crime, é de fato a histé- ria de uma auséncia: sua caracteristica mais justa € que ela nao pode estar imediatamente presente no livro. (. . .) O estatuto da segunda é, como vimos, igualmente excessive: € uma histéria que nao tem nenhuma importancia em si mesma, que serve somente de me- diadora entre 0 leitor e a histéria do crim A narrativa policial cléssica se constréi, portanto, nesse espago de ambigiiidade entre o real ausente — 0 crime — e a presenca do insignificante 0 inquérito —, insignificante por no *, mas em funcéo de um determinado crime. O género policial tem em Edgar Allan Poe (1809-1849) seu criador, sendo suas narrativas exemplo expres- sivo do tipo policial de enigma. Poe argumenta em seu artigo, “Método de composicao”, que, em literatura, nada € criado por acaso, tudo deve cami- nhar rigorosamente para a solugio de- sejada. Com esta idéia de precisio e rigor l6gico na criagao de um texto e sob a influéncia do Positivismo vigen- te, Poe cria seu famoso detetive Du- 1. TODOROV, Tzyetan. As estruturas narratives. Sao Paulo, Perspectiva, 1979. p. 97. pin, uma verdadeira maquina de ra- ciocinar, capaz de inferéncias e ra- ciocinios rigorosos e brilhantes que levam as investigagdes a bom termo. Como j4 dissemos, a narrativa policial clissica € composta de duas histérias: a do crime ¢ a do inquérito. As investigages comegam apés 0 crime; 0 detetive procura desvendar, portanto, uma agdo passada e a con- seqiiéncia bésica dessa estrutura € a imunidade do detetive. Através de vestigios, indicios, pistas cle consegue reconstruir uma histéria passada ¢ as- sim descobrir 0 culpado. E o que acontece com Dupin que se langa na tarefa de investigagio depois de o crime ter acontecido, conservando sempre sua imunidade. Além disso, essas narrativas séo organizadas em forma de meméria e, geralmente, nar- radas por um amigo ou auxiliar do de- tetive, nunca por ele préprio, permi- tindo, assim, 0 aparecimento de so- lugées surpreendentes, tanto para o Ieitor como para o narrador. Grande parte dos detetives do romance de enigma clissico vao ter suas aventuras narradas por outros personagens do texto. Muitas vezes esses personagens-narradores sao fi- xos e se mantém em todas as narrati- vas, funcionando como memorialistas desses detetives. As vezes pode ocor- rer a visio de um narrador impessoal, mas nunca de um narrador totalmente onisciente, capaz de revelar tudo, o que € inadequado ao género que deve manter a expectativa. Outra caracterfs- tica que j4 aparece em Poe e perdura por toda a evolucao do romance poli- cial ¢ a utilizacdo de jogos intertex- tuais: momentos em que a narrativa se 108 refere a narrativas anteriores, seja pa- ra elogiar, criticar, parodiar ou avan- ar noutra diregao. Caminhando no tempo, vamos encontrar Conan Doyle (1859-1930) com seu célebre detetive Sherlock Holmes. “Se o método de agaio de Dupin podia ser caracterizado, em til- tima andlise, como uma leitura de in- dices via intelecto, em Holmes, esse método encontraré a seu servigo pro- cedimentos técnicos cientfficos: co- Iheita ¢ andlise de impressées digitais, andlise de tipo sangiifneo, testes de tempo de coagulacdo, pesquisa de ras- tros, marcas, vestigios etc.’’? Sherlock Holmes € dotado de forte personalida- de e Conan Doyle 0 apresenta como detetive (méquina de raciocinar), mas também como homem (com habitos pesoais e vicios), tudo isto faz com que Holmes atinja enorme popularida- de © se torne, com sua capa e seu chapéu, 0 protétipo do detetive. Ainda na linha da classica narra- tiva policial de enigma estéo os ro- mances de Agatha — Christie (1891-1976), a maioria deles protago- nizados pelo detetive Hercule Poirot e narrados por um personagem fixo: Capitéo Hastings. “Se em Poe temos um caso real reconstrufdo na criagéo literdria, lentamente, na evolugio do romance de enigma, a criagao literria vai-se descolando do real, e até mes- mo do campo do verossfmil, para en- veredar na esfera dos possiveis. Re- corre-se a sofisticadfssimos métodos de assassinar: venenos orientais des- 2. REIMAO, cial. Si Sandra Luicia. O que é romance poli- Paulo, Brasiliense, 1983. p. 39. Signética 2:107- 122, jan./dez. 1990 conhecidos pelos cientistas, armas pré-regulaveis, etc.”"3 Agatha Christie escolhe seguir por este caminho e é, sem dtivida, a representante do género policial que mais se distancia do cam- po do verossfmil. Em oposiciio ao romance policial de enigma, surge outro tipo de narra- tiva, 0 romance “Série Noire”, ou romance da “Série negra”’, ou “ro- mance negro”. Comega por abolir o enigma inicial e romper com a estrutu- ra da dupla histéria (a do crime e a do inquérito). A narrativa perde 0 tom memorialista ¢ passa a ser construfda no presente, uma vez que nao se trata de desvendar um crime passado, mas de atuar lado a lado com o criminoso. Esta nova situagdo narrativa tem como conseqiiéncia a nao garantia de imu- nidade fisica do detetive, que passa a atuar in loco, na convivéncia direta com © crime € com os criminosos en- volvidos. . Enquanto 0 romance de enigma atua na esfera do raciocinio matemati- co que o detetive realiza para cami- nhar do efeito a causa, ou seja, um cadaver e certos indfcios que vao le- var ao culpado, o romance negro é sustentado pela espera do que vai acontecer € a diregéo que ele toma € da causa ao efeito.4 As ac6es sfio bas- tante exploradas e detalhadas, pois séo elas que criam as situagdes de suspense que vao prender 0 leitor. O romance policial “Série Ne- gra” tem como criador Dashiel Ham- mett (1894-1961) e como um dos mais expressivos seguidores Raymond 3. Idem, ibidem. p. 47. 4. Cf. TODOROY, Tzvetan. Op. cit. p. 99. Chandler (1896-1959). Os detetives protagonistas de suas histérias, res- pectivamente Sam Spade e Philip Marlowe, sao completamente diferen- tes dos detetives do romance classico. Além de ndo terem sua imunidade ga- rantida, nem sempre resolvem os mistérios. O detetive elegante, fino, perfeita méquina pensante € substitui- do pelo rude, vulgar, deselegante, que usa gfrias e palavrées, capaz de paixdes e ddio e sempre com um hu- mor caustico. Como podemos ver, 0 romance negro vai efetuar uma paré- dia por inversio do romance de enig- ma. Dessas duas formas tao diferen- tes surge uma terceira que combina suas propriedades: 0 romance de sus- pense. “Do romance de enigma, ele conserva 0 mistério € as duas histé- rias, a do passado e a do presente; mas recusa-se a reduzir a segunda a uma simples detecgio da verdade. Como no romance negro, € essa se- gunda histéria que toma aqui o lugar central. (. . ..) existe a curiosidade de saber como se explicam os aconteci- mentos j4 passados; e ha também o suspense: que vai acontecer as perso- nagens principais?”’5 O enigma passa, desta forma, a ser um ponto de partida para a narrativa que vai desenrolar-se no presente, fazendo com que as per- sonagens n4o conservem a imunidade fisica e arrisquem constantemente a vida. 2. O Suspense em O Génio do Cri- me Na literatura infanto-juvenil bra- sileira, vamos encontrar intimeros ro- 5. Idem, ibidem. p. 102. TURCHI, Maria Zafra. O génio do crime: do suspense a critica social 109 mances que podem ser inclufdos no género policial, constituindo-se numa importante corrente na atualidade. O génio do crime, de Joo Carlos Ma- rinho, romance juvenil que tem alcan- cado enorme sucesso, basta verificar as repetidas edicGes (27), € uma narra- tiva do tipo policial de suspense, uma vez que combina elementos préprios dos romances de enigma e dos roman- ces negros e, avanca mais ainda, no sentido de que vai parodiando tudo com muito humor. Tentaremos argu- mentar por que o romance de Jodo Carlos Marinho € policial de sespen- se, apontando as caracterfsticas desta modalidade do génecro nos elementos que estruturam a narrativa, tais como: aco, tempo, espago, personagens, fo- co narrativo, e tentaremos ainda mos- trar de que forma a parédia ao género policial é feita a partir de um discurso irdnico e bem humorado. HA um enigma inicial que suscita © mistério — a falsificagao das figuri- nhas de futebol —, estabelecido logo nas primeiras pAginas: “existe por ai uma fabrica clandestina falsificando minhas figurinhas diffcies” (p. 15). Este enigma, como nos romances clas- sicos de enigma, torna-se a mola pro- pulsora da narrativa que s6 atinge seu desfecho com o desvendamento do mistério. O romance, no entanto, nao se estrutura na ambigiiidade das duas hist6rias: um inquérito sobre um crime 4 ocorrido, ou a apreensao do deteti- ve sobre uma ago passada. Em O gé- nio do crime a narrativa € construfda no presente, caracterfstica dos roman- ces negros, ¢ os detetives atuam lado a lado com o criminoso, Nao hd a re- construcdo ¢ 0 desvendamento de um 110 crime passado, mas a exploracao e 0 detalhamento de agSes presentes que levam ao desvendamento do enigma inicial. Os detetives nao tém sua imu- nidade ffsica garantida, correndo até mesmo perigo de vida e é da pergunta sobre 0 que vai acontecer as persona- gens principais que nasce 0 suspense. Em O génio do crime a narrativa € estruturada pela légica da causalida- de ¢ vai montando, pista por pista, a historia de um grupo de meninos-dete- tives em competigao com um detetive escocés invicto, na descoberta de uma fabrica clandestina. Jogo narrativo semelhante a um quebra-cabega, onde se vo encaixando as varias pecas até surgir a figura completa. Assim, a nar- Tativa vai sendo construida a partir de observagées e dedugGes que levam a uma pista; ao segui-la, os herdis se véem diante de complicagdes que pro- yocam © retardamento do resultado esperado, até que, por fim, uma ctapa € vencida que vai levar a nova pista, com novas complicagdes e retarda- mento da acio, e mais outra etapa vencida em direg&o ao objetivo prin- cipal que é desvendar 0 enigma. O lei- tor fica preso neste jogo narrativo que vai revelando devagar fragmento por fragmento, avangando e recuando, in- do e vindo, criando, assim, o suspen- se. A expectativa do prdéximo passo € © desejo intenso de desvendar o enig- ma fazem com que 0 leitor devore p4- ginas e paginas, sem conseguir des- pregar os olhos do texto. O romance policial conserva uma semelhanga com a estrutura das faébulas e contos populares. Vladimir Propp, estudando as fabulas do folclo- re russo, acabou por determinar-lhes Signtica 2:107-122, jan/dez. 1990 os elementos invariantes, as funcées que englobam as esferas de agao das personagens, ¢ os elementos variantes — os atributos dos seres narrativos. A personagem pode ser qualificada co- mo heréi, falso her6i, agressor, doa- dor, mandante, auxiliar ou pessoa procurada, dependendo das fungées especfficas que ela desempenhar na intriga. Gianni Rodari menciona a possibilidade de aplicar as histérias de 007, 0 mesmo método esquematizado por Propp, conservando as fung6es até na mesma ordem em que aparecem na fabula, “‘téo viva e insistentemente presente est4 a estrutura fabulfstica na nossa cultura’’.® Claude Bremond, ao voltar-se para a narrativa em geral, verifica que a descrigdo de um género literdrio po- de ser precedida do mapa das possibi- lidades I6gicas de qualquer narrativa. A seqiiéncia clementar obrigatéria a todo processo narrativo € formada por trés fungGes basicas: ‘a) uma fungao que abra a possibilidade do processo sob forma de conduta a conservar ou de acontecimento a prever; b) uma fungéo que realize esta virtualidade sob forma de conduta ou de aconteci- mento em agao; c) uma agao que fecha © processo sob forma de resultado es- perado’’.7 Simplificando, hé um obje- tivo, uma agdo e um resultado. Esta seqgiiéncia basica abre para novo es- quema ampliado: sujeito (persona- gens), melhoramento a obter (objeti- 6, RODARI, Gianni. Gramética da fantasia. $30 Paulo, Summus, 1982. p. 67 7, BREMOND, Claude. “A I6gica dos possfveis narrativos”. In: Andlise estrutural da narrati- va. Vores, Petrépolis, 1971. p. 110. vo), obstéculo a eliminar (problema), meios possiveis (recursos), organi- zagao dos meios (agio), sucesso ou fracasso (resultado). As esferas da aco podem-se organizar da perspec- tiva de um sujeito ou de outro, do pro- tagonista ou do antagonista, do heréi ‘ou do bandido. Organizando a acio em O génio do crime da perspectiva dos herdis, vamos poder dividir 0 romance em trés partes distintas. Na primeira delas aparecem os meninos (Gordo, Pituca Edmundo) como sujeitos da histéria. Eles sao os detetives que tém como objetivo descobrir a fabrica clandesti- na. Portanto, os meninos querem re- solver 0 problema da falsificagio das figurinhas, descobrindo, assim, a fé- brica (objetivo). Valem-se, inicial- mente, do tinico recurso que possuem: seguir o cambista do Largo de Sao Bento. Como esta é a tinica pista, os heréis seguem 0 cambista — agdo que vai ter como resultado o fracasso da investigagdo, uma vez que o cambista consegue despisté-los. Toda esta seqiiéncia poderia ser vista pela perspectiva do vildo. Da mesma forma que as criangas tém co- mo objetivo descobrir a fabrica, 0 cambista deseja ocultar a fabrica, ndo deixando que seu caminho seja desco- berto. A técnica utilizada € a da dis- simulag%o, por isto o antagonista toma varios 6nibus, anda a pé por rua con- tra-méo, toma taxi e vai zigue-za- gueando pela cidade para disfarcar seu caminho. A trapaga € a operagdo que vai orientar a aco dos vildes ao longo de O génio do crime. “Trapa- cear € ao mesmo tempo dissimular o que 6, simular 0 que nao é, e substi TURCHI, Maria Zaira, O génio do crime: do suspense a critica social WW tuir 0 que nao é pelo que ¢ em um pa- recer ao qual a vitima reage como a um ser verdadeiro.”"* E exatamente isto que faz o cambista, conseguindo dissimular tio bem que Gordo, Pituca e Edmundo fracassam novamente numa segunda tentativa de seguir o seu trajeto, de- pois que sai do Largo de Sao Bento com 0 pedido de figurinhas dificeis. Bolacha, outro apelido do Gordo, sai, entio, com a brilhante idéia de seguir © cambista pelo avesso até descobrir sua casa: Esperamos 0 cambi: ta antes das duas horas no Largo de Sao Bento, ve- mos ele chegar e marca- mos o lugar de onde veio. No dia seguinte um pouco mais cedo ficamos no lu- gar que apareceu na vés- pera e marcamos o lugar de onde veio para chegar ali ¢ assim vamos fazendo, marcando os pontos de onde vem, e no fim damos no lugar de onde partiu. Ta? Isto se chama seguir pelo avesso ao revés ao contrério de trds pra dian- te inversamente do..." (p. 33) revira- Alcangam 0 objetivo com suces- so: chegam a casa do cambista, Esta pega se encaixa perfeitamente no jogo do enigma a ser desvendado; mas o 8. Idem, ibidem. p. 124. 12 suspense chegaria ao fim e a narrativa também, se bastasse os detetives mi- rins seguirem 0 cambista na saida da casa para chegarem até a f4brica clan- destina. Dificuldades e complicagdes aparecem para retardar a aga man- ter o suspense. Acabam por descobrir que a cada dia o cambista vem de um ponto diferente da cidade, 0 que quer dizer que ele nao entra em contato com a fabrica depois dos trajetos des- pistantes. Concluem, entéo, que o contato deve ser antes das dez para a uma, quando 0 cambista sai de c: ‘ou depois das seis e meia da tarde, quando chega. E assim os fragmentos vao-se juntando ¢ a cada etapa inves- tigadores e leitores se apossam de in- formagées importantes. Tudo parece caminhar bem até que no capitulo 13 surge a figura do detetive escocés, Mister John Smith Peter Tony, contratado pelo gerente da fAbrica de seu Tomé para resolver © problema. Se os sujeitos da ago an- tes eram os meninos, agora sao eles € © detetive escocés; se antes 0 objetivo era descobrir a fabrica clandestina, agora € descobrir primeiro. A acio passa a seguir dois caminhos, as vezes paralclos, as vezes diferentes, pois hd a investigagao dos meninos e ha a in- vestigagao de Mister John Os meninos, que esto na frente do detetive invicto, j4 sabem que de- vem observar © cambistd das seis € meia da tarde, quando ele chega em casa, até as 12:50 do dia seguinte, quando ele sai de casa. Edmundo, Pi- tuca e Bolacha dividem entre si o tem- po em que cada um deve ficar acorda- do, vigiando. Sao momentos de tens Jo © expectativa, pois as criangas podem Signética 2:107-122, jan.fdez, 1990 dormir, algo pode Ihes acontecer. Im- pressao que o narrador faz questo de manter, basta lembrar a cena em que 0 Gordo deveria voltar & barraca_no horério combinado e passar a obri- gagdo a Edmundo e no aparece, nem estd na tocaia. A tensio logo se desfaz quando Edmundo o encontra, obser- vando a casa do cambista de um angu- lo melhor. As situages de risco e a frag- mentagio das informagdes vao man- tendo o suspense. Podemos observar isto muito bem no trecho em que Bo- lachdo descobre 0 local onde o bandi- do se esconde para, com um binéculo, copiar a lista de figurinhas que o filho do cambista coloca sobre a carteira na escola. Os capitulos 25, 26, 27, 28 ¢ 29 sao bastante tensos; Bolacha esté 86 deve seguir na investigagéo sem pedir auxflio a ninguém. O suspense também é maior porque leitor sabe que o Gordo est4 na reta final; se ele tiver sucesso, logo mais 0 culpado seré conhecido. No entanto, se surgir qualquer complicagdo sua vida estara em risco e a descoberta seré retardada. E. interessante observar esta mesma seqiiéncia narrativa sob 0 pon- to de vista do bandido. O objetivo de Bolacha € seguir o vilao e descobrir a fabrica clandestina. Este tltimo, por sua vez, tem 0 objetivo de dissimular suas ages para que a fabrica nao seja descoberta. Suas varias manobras di simulam 0 que é e simulam 0 que ndo é: olha no bindéculo, copia a lista e faz as encomendas por telefone, anun- ciando-se por uma senha; sei num Volks bord6; troca de automével num determinado ponto do trajeto e toma um Aero-Willys creme; passa a mao na cabega ¢ arranca a cabeleira branca € tira 0 nariz pontudo e pée no bolso; fica moreno e de nariz pequeno; de- pois de muito rodar pela cidade péra na porta de uma casa que deve ser a fabrica. Voltando a acompanhar a agao da perspectiva do Gordo, vamos ver que niimero da fabrica ele j4 desco- briu: 959. Se ele conseguisse sair dali com facilidade, estava desvendado 0 enigma e 0 romance encerrado. Mas a narrativa vai-se prolongar devido as complicagdes. Quando anoitece, Bo- lacha pensa que € hora de fugir. Sur- ge, porém, a primeira complicacao: “Que azar, o porteiro ainda nao saiu” (p. 85). Resolve, entdo, procurar um telefone na casa e encontra um com facilidade, encontrando também o en- derego completo da fabrica, Assim tu- do parece caminhar_perfeitamente, quando surge a segunda complicacao: “Nisso 0 gordo ouviu 0 ronco dum automdvel que entrava no jardim” (p. 86).Assim mesmo consegue discar. A demora em atender 0 telefone € 0 fa- lat6rio de seu Tomé, retardam a dentincia de Bolacha e isto aumenta a tensfo e acelera o ritmo narrativo. Quando ele consegue falar, os bandi- dos j4 esto dentro da sala (terceira complicacao). Ainda assim cle conse- gue dizer 0 enderego a seu Tomé. No- va complicagao: 0 chefe dos bandidos, © génio do crime, consegue imitar a voz do Gordo com perfeicio e muda o enderego, duas vezes, valendo-se de nomes parecidos, também uma técnica de trapacear, e confunde seu Tomé. Outras complicagées: prendem © Gor- do no pordo da casa, onde est escon- dida a fabrica clandestina e avisam que ele vai morrer. TURCHI, Maria Zaira. O génio do crime: do suspense & critica social 13 Para 0 leitor, nao hé mais o enigma. J& se sabe quem € 0 bandido e onde esté localizada a fabrica de fi- gurinhas falsas. O foco de interesse muda para outra investigagio: a que vai levar a descoberta do Gordo. Nes- te momento, a narrativa se divide na sua terceira parte. O objetivo agora nao & mais encontrar a fabrica clan destina, mas sim encontrar Bolachao que j4 descobriu a fabrica. Se na parte anterior os meninos € o detetive invic- to se apresentavam como adversérios, agora sdo aliados e perseguem juntos ‘© mesmo objetivo. Acompanhando o fio do suspen- se, vamos ver que a técnica € a mesma dos capitulos anteriores: uma idéia ou uma pista, tentativas com compli- cagées ¢ retardamento e, por fim, mui- tas vezes no Ultimo minuto, uma etapa solucionada. O modelo vai-se repetin- do até as informagées e os fragmentos se juntarem num todo final. O Gordo, preso no porao, andando de um lado para © outro, acaba por ter uma boa idéia: “O verso das figuras tudo em letras mitidas ex- plicando o regulamento do concurso. Se conseguir mudar os tipos de presséo, poderei_mandar um recado. Mas preciso fi- car sozinho. Ah, dtimo, 0 chefe deu lanche para a uma e meia.”” (104) im- Bolacha fica s6 e pode desen- volver sua boa idéia.Tudo parece ca- minhar com perfeicao, o recado j4 esté composto, quando, na parte final dos 14 enderegos, 0 Gordo se precipita, ma- chuca o dedo e deixa a letra s cair na caixa de tipos. Nosso heréi sabe que os bandidos esto para voltar e procu- ra se apressar para resolver o proble- ma, solucionando-o no tiltimo minuto: “nao dava mais tempo para arrumar melhor porque o pilar de ago j4 levan- tava a maquina 14 em cima” (p. 107). Do lado de fora, o detetive in- victo, Edmundo, Pituca e Berenice armam uma verdadeira paraferndlia na busca de Bolachio. Acionam jornais, televisdo, dio busca em todas as ruas com nome semelhante ao que seu Tomé ouviu, entram em todas as casas cujo ntimero inclui o nove. Chegam, desta forma, ao enderego da fabrica clandestina e até conversam com o Ano, 0 chefe dos bandidos. Neste momento a narrativa pode ter seu des- fecho, mas néo é isto 0 que acontece, nem depois da intuicéo de Berenice, nada € descoberto. A fabrica de figu- rinhas falsas est4 bem dissimulada em fabrica de tecidos. © Gordo s6 vai ser descoberto se a sua boa idéia funcionar. No en- tanto, surge nova complicagdo que pode impedir © sucesso da agao: as fi- gurinhas impressas durante a noite nao foram entregues nem em Santos, nem em lugar algum, como havia sido previsto. no final ele vai ser descober- to porque um dos auxiliares do Ando leva um pouco de figurinhas de pre- sente para o filho que lé 0 recado do Gordo no verso e leva-o até seu Tomé. Mas o suspense € mantido até 0 iltimo instante, e um truque narrativo faz crer ao leitor que 0 Gordo esta sendo jogado na banheira para ser dis- solvido, quando, na verdade, é a ex- Signética 2:107-122, jan.fdez, 1990 plosao do Mister, arrebentando o teto que provoca o barulho: Podemos jogé-lo, chefe? = Joguem e pulem para trds, atengéo aos respin- gos! Uma gota dessas dé para cegar ou fazer quei- madura muito grave. —Lé vai, chefe! Pum! Escapum! Pum! Voou pedacinho de pe- drinha para todo lado e a sala se encheu duma poei- ra fina de cimento esmiga- lhado e pé de estuque. Era uma exploséo que tinha aberto um buraco no teto; todos cocaram os olhos e Bolachdo viu a cabecona amarela espiando ld de cima.” (p. 118) Pum! Jofo Carlos Marinho constréi, com humor e ironia, personagens vi- vas e dinamicas, muitas delas verda- deira parddia a personagens dos ro- mances de enigma e dos romances ne- gros. As criangas: Edmundo, Gordo, Pituca e Berenice so os protagonistas em O génio do crime, formando um conjunto fixo de personagens que res- surgem dois anos depois em O Cane- no de prata e, mais tarde, em Sangue fresco. Como afirmam Regina Zilber- man e Marisa Lajolo, o que identifica certos livros policiais como infantis € a presenga de criancas como detetives, sendo 0 papel do viléo sempre reser- vado a adultos.? O Gordo, her6i de todas as hist6rias, usa sua inteligéncia como arma principal nas estratégias que o levam e a sua turma ao sucesso final. Bolacha parece mesmo uma maquina de raciocinar, capaz de inferéncias 16- gicas brilhantes, no melhor estilo dos detetives dos cléssicos romances poli- ciais do enigma. Basta lembrar Dupin, Sherlock Holmes, Hercule Poirot, mentes dedutivas que através de vestigios, pistas, ind{cios, conseguem reconstruir um fato passado ¢ desco- brir o culpado, muitas vezes sem pre- cisar sair de seus domicflios. No capf- tulo 7, por exemplo, vemos que 0 Gordo nao precisou comparecer ao primeiro encontro, nem seguir 0 cam- bista para entender o sistema de des- pistamento; bastou o relato de Ed- mundo e Pituca. Como ja foi dito, a revitalizagéo do género policial € feita com muito humor; € bastante cémica a cena em que o narrador descreve a tostadeira automatica que nao para de fazer tor- radas e a cabeca do Gordo que nao paré de funcionar. Para ter uma boa idéia, a mente de Bolacha entra em funcionamento como uma méquina, ¢ isto na narrativa € materializado e to- mado ao pé da letra, concretizando a metéfora: “OQ Bolachéo quieto como costume, ocu- pado nas torradas.(. . .) ouvia 9. Cf. LAJOLO, Marisa& Zilberman, Regina. Li- teratura infantil brasileira. Historia & histé~ rias. So Paulo, Atica, 1984. p. 141. ‘TURCHI, Maria Za‘ra. O genio do crime: do suspense & critica social 1s Tem idéia mexando na minha cabega, parece boa. Ela vai, volia, mas ndo consi- go pegar, foge logo. Estava com cara dife- rente de quem esta inspi- rado e comegou a andar daqui prali; ia até o trem elétrico, dava meia volta, passava no posto de gaso- lina, no aviaozinho, na ambuldncia, parava no au- torama e voltava de novo. Gd — Peguei-te! — gritou 0 gordo e deu uma palmada na testa. ~ Vamos seguir 0 cambista ao avesso.”" (p. 32, 33) - Pera at. uma O génio do crime, como ja dis. semos, apresenta caracteristicas do romance de suspense, modalidade que est4 entre o romance de enigma ¢ o romance negro. O Gordo é uma mé- quina de raciocinar e, por isto conse- gue desvendar 0 enigma. Todavia, como a segunda histéria — a investi- gacao — ocorre no presente, o detetive nao tem sua imunidade garantida. Bo- lacha sofre torturas e corre até mesmo perigo de vida ao ser preso pelo ban- dido. As outras criangas também, par- ticipando da investigagao, nao estao livres de risco, Edmundo chega a apa- nhar do cambista quando tenta segui- lo. Seu Tomé, dono da fabrica de figurinhas Escanteio, € o responsdvel pelo envolvimento da turma de meni- nos no caso policial. Na narrativa, ele € 0 adulto que consegue estabelecer 116 uma relagio de igualdade com as ctiangas, respeitando-as e confiando nelas. Seu Tomé entra no jogo e parti- cipa da fantasia infantil, transgredindo até mesmo aquilo que é valorizado pe- los adultos como: obediéncia, verda- de, bom comportamento. Esta situa pode ser vista no capitulo 14, quando seu Tomé ajuda os meninos a inventa- rem desculpas na escola ¢ em casa, para poderem ficar um tempo fora ¢ investigarem 0 caso. © gerente da fabrica, por sua vez, vai ocupar lugar oposto ao de seu Tomé. Nao confia nas criangas, acha que elas ndo so capazes de realizar a investigagao e € por isto que as afasta do caso, convidando um detetive es- cocés Mister John Smith Peter Tony. A sétira, 0 deboche estado presentes até nos nomes que, traduzindo para o Portugués, nada tém de pomposo, pelo contrério séo nomes absolutamente comuns, Embora 0 texto diga que 0 detetive € escocés, sua caricatura é muito mais a de um norte-americano. Mister John, 0 detetive invicto, da mesma forma que o detetive mais famoso dos romances de enigma — Sherlock Holmes — utiliza, como mé- todo de agao, recursos técnicos cient{- ficos sofisticadfssimos. Enquanto os meninos descobrem a casa do cambis- ta com inteligéncia e argticia, mas demorando um tempo maior, Mister John descobre o local rapidamente com 0 auxilio de uma lente gigante que ele tem no seu helicéptero parti- cular. Embora seus métodos de acio sejam ao estilo de Sherlock Holmes, ele nao tem nada da‘ figura sutil ¢ fina dos detetives dos romances de enig- ma. Pelo contrério, € rude, vulgar ¢ Signética 2:107-122, jan./dez. 1990 esta sempre bebendo, o que faz lem- brar Sam Spade, detetive dos livros de Dashiel Hammett, criador da “Série negra”. Em O génio do crime € possfvel estabelecer entre as personagens uma série de oposigées e ligd-las por pares, sendo Bolacha a figura que se mantém em quase todos os pares. Podemos comegar por Bolachio X Detetive in- victo —temos af uma relagéo de dispu- ta, Bolachdo usa a inteligéncia para resolver os problemas, Mister John tem conhecimentos aprendidos ¢ acu- mulados na vida de investigador ¢ esta de posse da mais moderna ¢ sofistica- da tecnologia. Este par nos leva a ou- tro mais amplo: técnica X razio. No final do romance vence a razao € a in- teligéncia do Gordo que, junto com seus amigos, desvenda 0 mistério. Outro par possfvel existe na li- gacfo entre Bolacha X os dois amigos (Edmundo e Pituca). Enquanto os dois ltimos se interessam logo pelo caso policial, Bolachao, paradoxalmente, no inicio, até despreza a idéia de par- ticipar da aventura, tornando-se de- pois o verdadeiro herdi. Enquanto Edmundo e Pituca sao mais falantes e esto sempre ligados e em movimento, © Gordo € de poucas palavras, parece sempre desligado, mas é sua mente que esté sempre em funcionamento. Nos romances classicos de enigma nao hé lugar para o amor e a frase de Pituca parece ironizar esta si- tuagéo: “— Berenice Berenice — brincou Pituca. — O fede- goso quer ficar perfumado para a moreninha. As mu- theres influem negativa- mente sobre a capacidade de percepcao dos deteti- ves, perturbam-lhes a in- tuigdo e modificam-lhes 0 ritmo cerebral.” (p. 78) Nos romances da série negra, porém, hd lugar até para paixdes e ddio. Co- mo O génio do crime est4 situado en- tre as duas modalidades do género, temos a relagéo amorosa que € estabe- lecida no romance através do par Bo- lachio X Berenice. Ele que parece descuidar-se das matérias do coragio, nfo se preocupando nem mesmo com sua aparéncia fisica, modifica este comportamento quando se confronta com a “moreninha muito bonitinha, de olho grande e cabelo lisinho” (p. 61). O Gordo desvenda os enigmas pela razo ¢ Berenice pela intuicao. A oposigio entre Bolacha X Ando, ou entio, entre 0 herdi X o fal- so herdi, constitui-se no par mais im- portante do romance. O momento de maior tensdo na narrativa € aquele em que eles se confrontam numa luta dura e desleal, uma vez que o Ando est equipado com os mais sofisticados re- cursos técnicos para atuar no crime, ¢ Bolachio s6 tem em seu auxilio a prépria inteligéncia. Desse confronto, Bolacha sai vitorioso e € confirmado como heréi. Vit6ria que nao se deve & atuagio de algum poder tecnolégico nem a esperteza ou & experiéncia, mas a forca da razdo e da inteligéncia. Lu- dibriando tanto o génio do crime, 0 Ando, como 0 génio do desvendamen- to dos crimes, 0 detetive escocés, Bo- lacha se torna o verdadeiro génio do crime, nao a servigo do Mal, mas a TURCHI, Maria Zafra. © génio do crime: do suspense 2 critica social 117 servigo do Bem. Nisto reside a am- bigiiidade do tftulo do romance, que deixa em aberto, sugerindo apenas, as varias possibilidades interpretativas. E importante lembrar que “‘o desvenda- mento do mistério por um protagonista crianga representa uma espécie de confronto entre 0 universo adulto e¢ o infantil; e a vit6ria da crianga sublinha sua argiicia frente ao mundo dos grandes, © que sem diivida € gr: cante para os leitores que se identifi- cam com os heréis dessas histérias””.10 Outro ponto de identificagio est no fato de os protagonistas (Bo- lacha, Pituca, Edmundo e Berenice) serem criangas comuns, classe média, que freqiientam escola, namoram, gos- tam de futebol, enganam os pais e se sentem fascinados por aventuras no- vas. O carater inovador na construgao do tempo e do espaco em O génio do crime propicia uma_verossimilhanga que também o aproxima da vivéncia das criangas. O fato nao se passa nas férias, numa ilha, praia ou fazenda — tempo ¢ espagos meio miticos, propi- cios A expansao da fantasia. Ao con- trério, as aventuras se misturam a0 co- tidiano das criangas, na cidade gran- de, no meio do perfodo escolar: “Era um més de outubro em Sao Paulo” (p. 9), tempo © espaco mencionados com preciso logo no infcio do romance. Caracteristica que permaneceré ao longo de toda a narrativa que mencio- na sempre lugares reais de Sao Paulo © até fornece explicagdes do tipo — “(.. .) seguir automével em S40 Paulo nao é facil” (p. 28). — que s6 reforcam 10. Idem, ibidem. p. 142. 118, a verossimilhanga que 0 texto quer criar. A escolha do foco narrativo exerce também papel fundamental na aproximagao que se quer estabelecer entre leitor € texto. O narrador impes- soal escolhido inicialmente para narrar a hist6ria, cede, muitas vezes, lugar a um narrador que se intromete na nar- rativa como se ele fosse um persona- gem que estivesse recontando 0 fato, € fala diretamente ao leitor: ‘Nao vou contar os detalhes todos de como con- seguiram sair de casa sem ninguém desconfiar; dou 0 resumido’* (p. 47). O processo de enunciacao € revelado no préprio texto pelo narrador: “Esta fazegio de cartas ¢ telefones daria cingiienta e sete capitulos de novela de televisao, (.. .) por isto eu j4 po- nho os trés meninos andando na Mar- ginal as cinco da tarde” (p. 47). Do capitulo 25, quando 0 Gordo descobre 0 bandido ¢ comega a segui- lo até o desfecho, o narrador vai-se utilizar da técnica de acompanhar ora a acdo do Gordo, preso na fabrica, ora a acdo dos que esto do lado de fora, procurando-o, sem antecipar nenhuma informagao ao leitor. Este jogo tempo- ral ¢ espacial leva a um grande sus- pense no final, justamente porque o narrador vai acompanhando o que acontece na fAbrica clandestina e dei- xa de narrar a parte em que o menino leva 0 recado do Gordo até seu Tomé. Esta parte s6 é sintetizada no final pa- ra que 0 leitor saiba como o detetive invicto © as criangas conseguiram chegar ao local na hora exata. Desta forma, 0 suspense sobre 0 que vai acontecer ao herdi é mantido até o fi- nal. Signética 2:107-122, jan./dez. 1990 3. Do Suspense a Critica Social em O Génio do Crime J& vimos por que O génio do crime & um romance infantil que se enquadra no género policial de sus- pense. Interessa-nos, agora, mostrar que é através da ironia e do non sense que ele incorpora e parodia os ele- mentos mais tradicionais do género, promovendo, em tltima andlise, uma critica & realidade brasileira, em que aparecem quest6es sociais e existen- ciais complexas. © tom bem humorado, que di- namiza a narrativa, manifesta-se desde a escolha dos apelidos do heréi, de quem nem sabemos 0 nome: Gordo, Bolacha, Bolachdo, prolongando-se na caricatura do detetive escocés e seu ajuntamento de nomes: Mister John Smith Peter Tony, até chegar no ban- dido, Ando, estabelecendo uma dife- renga cOmica entre a sua pequena es- tatura fisica e sua grande esperteza no mundo do crime. Outro elemento intensificador do humor é a linguagem solta, moldada pela oralidade, cheia de girias e capaz de criar um ritmo cénico acelerado na hora das confus6es e atrapalhadas; basta ler a batalha final: “0 dinamite do Mister es- tragou a luz vermelha que disparou pisando forte sem parar vermelhando 0 pega € 86 faltava o diabo descer ali de corpo presente pra- quilo virar o inferno intei- rado. O gordo ativou-se e pegou do chéo um fio ve- lho da impressoro que ti- nha sido trocado e jogado no chao, e como estava descascado na ponta, Bo- lachao ligou na tomada e botou-se no meio da sala, segurando a ponta de cd, pertinho do descascado. O Mister jd estava com qua- tro cachos do Almeidinha na mao e despejou um so- papo no Atlas que veio de rodopoio, cai nao cai, der- rapou capotou e pranchou no chdo junto do gordo. O gordo tuchou 0 fio no tinel da oretha do grandao e 0 fio escorregou bem que ti- nha muita cera e deu lé no fundo o relémpago dum curto-circuito que alumiou de amarelo o gigante todo e os pelos dele ficaram re- tos de pé igual porco-espi- nho. Mas era wn grandéo resistente porque ainda se levantou largando fumaca pelas orelhas e continuou a brigar com o Mister.”” (p. 118, 119) A linguagem préxima da reali- dade cotidiana parece ser 0 objetivo de Joao Carlos Marinho. E interessan- te © engragado acompanhar a conversa que Pituca tem com o cambista, logo no infcio do livro, quando o menino faz uma lista de encomendas. A esper- teza do malandro esta registrada na conversa atrapalhada dos dois. O cambista se vale de um discurso cheio de palavras e vazio de sentido, mas o fato € que consegue impressionar tuca e conyencé-lo a comprar mai: gurinhas do que as que ele pretendia: TURCHI, Maria Zaira, O génio do crime: do suspense a critica social 9 Dez figurinhas difé- ceis, hein, meu chapa. Custa muito, sabe? ~ Sei e quero para ama- nha sem falta. — Jé que,por hipdtese, vou the contar um motivo: © seguinte & esse, em vez de dez, leva quinze. Te vendo esses da lista e mais © Rildo, 0 Carlos Alberto, o Ademir, 0 Leivinha e o Téia. — Tenho dinheiro sé pa- ra dez. ~Estou dizendo que leva quinze mas ndo paga quin- ze. Paga so quatorze, faco wm abatimento. Leva quin- ze © morre com quatorze, uma de graca, pelo certo, de ponta a ponta.”’ (p. 22) A imagem caricatural do detetive escocés € também intensificada pela linguagem: a troca dos géneros, a uti- lizagao dos verbos no infinitivo, 0 uso inadequado do pronome pessoal, tudo isto contribui para o tom de humor em volta deste personagem. O autor se aproveita de Mister John para brincar com a Lingua Portuguesa, fazendo trocadilhos do tipo: “(...) 0 senhor esta magando comigo! — Non mango e non ja- butico.”” (p. 113) A parédia aos romances policiais se da, também, através dos jogos in- tertextuais comuns desde os romances classicos de enigma. 120 crime a reteréncia geralmente é teita de maneira ir6nica, bem humorada ¢ irreverente. Os exemplos sao muitos, poderfamos mencionar alguns como este que se refere a Sherlock Holmes: “Me desculpe seu sherloque mas € proibido virar a esquerda”’ (p. 24); ou mesmo este que ironiza a descrigéo dos famosos detetives que 0 romance policial faz: “um detetive, por mais que disfarce, carrega seu detetivismo até na maneira especial de soar o na- riz” (p. 63). Ha também a critica aos esquemas repetitivos utilizados na descoberta do criminoso, de forma que um assfduo leitor de romances po- licial consegue intuir o culpado, mes- mo antes da narrativa anuncid-I “(...) Quem seria o emissdrio da fabrica clan- destina?’ Um aluno, professor, 0 zelador, o fa~ xineiro, 0 proprio diretor, devia desconfiar de todo mundo, a histéria dos cri- mes mostra que 0 menos suspeito costuma culpado e, pelo revirado, tem vez que nao é, e muito detetive jd se desmoralizou porque comecou logo a desconfiar do menos sus- peito e vai ver que o cri- minoso era mesmo aquele que todo mundo achava que era.” (p. 62). um sero No meio do suspense, das si- tuages cémicas ¢ das aventuras apa- rentemente inconsegiientes, a narrati- va apresenta problemas sociais exis- tenciais que retratam a realidade brasi- Signtica 2:107- 122, jan/dez. 1990 leira, “pautada pelo consumo e pela violéncia”’.!! Em O génio do crime a crftica ao consumo no Brasil é feita através da figura do detetive escocés e sua vinda para resolver 0 caso — ex- pressdo clara da mentalidade generali- zada no pafs de valorizar 0 que vem de fora, em detrimento do nacional. A fala do gerente da fbrica exemplifica bem esta situacdo: “— Realmente, meu jo- vem amigo, comuns fracassaram. A fé= brica clandestina é chefia- da por um génio do crime, cérebro fora do comum, pensa em todos os deta- thes; para enfrenté-lo é preciso um génio da altura dele e aqui no Brasil nao tem; nossos detetives sao primdrios, subdesenvolvi- dos. Vai, resolvi contratar © maior detetive do mun- do: Mister John Smith Pe- ter Tony — 0 detetive invic- to.” (p. 40) os detetives Esta mesma critica 8 mentalidade brasileira de consumir 0 que vem de fora, sem questionar sua importancia ou valor, esté representada na passa- gem em que Mister John & apresenta- do aos alunos como professor catedra- tico de geografia. Evidentemente, tra- ta-se de uma farsa, apenas para permi- tir ao detetive acesso a sala de aula, um importante local para a investi- 11, LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina Op. cit., p. 142 gagao. No entanto, todos reverenciam o “lustre” estrangeiro, que é imedia- tamente acreditado e aplaudido de pé. A critica ao consumo transpare- ce também no uso exagerado de recur- sos técnicos altamente sofisticados. O bandido, o Ando, tem a seu poder equipamentos técnicos que conseguem ocultar com perfeigao a fabrica clan- destina. contraditério € irénico que num pafs subdesenvolvido, como ja foi dito no exemplo anterior, onde nao se encontra ninguém capaz de des- vendar este enigma, haja um génio do crime, dotado de inteligéncia privile- giada e auxiliado pela mais avancada tecnologia, que 0 torna quase invencf- vel. E contraditério como séo con- tradit6rias outras situagdes: um dono de uma fabrica de figurinhas, que na- da tem das grandes multinacionais, est4 em vias de ir a faléncia por causa da falsificagao, no entanto, suporta o 6nus de contratar um detetive estran- geiro para resolver 0 caso. E 0 absur- do da prépria situagéo brasileira em que grande parte da populacio mal se equilibra num salério minguado, e, ainda assim, tem que pagar por so- lug6es carfssimas, buscadas no exte- rior. A violéncia, embora atenuada pelo humor, est presente em O génio do crime e se manifesta em varias passagens. H4, por exemplo, o trecho em que o bandido, para arrancar con- fiss6es do Gordo, se vale de torturas, descritas com minticia no texto. E bom lembrar que o romance de Joao Carlos Marinho teve sua primeira edico em 1969, plena época do regi- me militar cujo sistema, para arrancar TURCHI, Maria Zaira, O génio do crime: do suspense a critica social 121 confiss6es, era mesmo a tortura cruel, desumana e sem limites. Outra forma de violéncia, talvez apresentada de mancira mais jocosa no texto, € a humilhagao a que o Gor- do deve-se submeter para matar a fo- me. E se sujeitar por migalhas, ou re- sistir e morrer de fome. H4 toda uma critica na idéia que 0 Gordo expressa ao longo da narativa, de que com fo- me no se pensa: “‘Estou tonto de fo- me, nao consigo pensar direito” (p. 86); ou entdo: “A fome nao me deixa pensar; de barriga estofada a cabeca funciona e preciso inventar um plano de escapulir” (p. 100). Como se pode pretender do povo brasileiro que pen- se, estude, seja consciente, se a barri: ga esta vazia? Esta necessidade basica deve ser suprida, antes de qualquer outra coisa. Além da critica a situagdes polt- tico-sociais especfficas, Joao Carlos Marinho envereda também por questées de caréter filos6fico ¢ exis- tencial. Uma reflexao que nos parece muito boa para encerrar a andlise de O génio do crime € a que se pode extrair da frase: “(.. .) deixou o pensamento solto porque idéia boa nao sai forga- da” (p. 103). Embora este trecho possa ser in- terpretado de varios Angulos, podemos ver af uma critica ao préprio sistema escolar que obriga 0 aluno a escrever, mas nao Ihe dé condig6es adequadas para soltar a imaginagao — primeiro Passo para o ato de escrever, que € um ato criativo. Como ter boas idéias se nao hé boas discussdes € o pensamen- to encontra-se limitado, O ato de re- flexdo livre, momento em que © suj to se diz de dentro para fora, nfo pode 122 estar condicionado a tempo, nem a padrées e modelos fixos. E por isto que © Gordo vai deixando seu pensa- mento solto, pulando de um fato para outro, reconstruindo a sua histéria, conseguindo, assim, ter uma boa idéia que Ihe vai permitir um projeto de fu- turo. Como podemos ver, O génio do crime extrapola o jogo infantil, © sus- pense e envereda pela critica ético- politico-social, tudo isto num discurso irdnico € bem humorado. ABSTRACT ‘The suspense trend in the Brazilian Litera- ture for Youth is largely used and Joao Carlos Ma- rinho is one of its most important representatives. ‘The present essay deals with the study of his work O génio do crime, showing how and why this no: vel can be considered a narrative of suspense, pla- ced between the classical mistery novel. and the so called “black series” novel. This study intends al- so to reveal that behind the suspense that touches the young reader, the novel makes as well ironical and good humoured eriticism of aspects of our so- cial reality, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BARTHES, Roland et alii. Andiise estrtural da narrativa, Petr6polis, Vozes,1971. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Lite- ratura infantil brasileira, Historia e hist6rias. Sao Paulo, Atica, 1984, MARINHO, Jodo Carlos. O génio do crime. 27° ed., Sao Paulo, Global. 1986. PALO, Maria José& OLIVEIRA, Maria Rosa. Li- teratura infantil voz de crianca. Paulo, Atica, 1986. PROPP, Viadimir. 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