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A “AQUARELA DO BRASIL”: REFLEXOES PRELIMINARES SOBRE A CONSTRUCAO NACIONAL DO SAMBA E DA CAPOEIRA Leticia Vidor de Souza Reis RESUMO: Considerando-se a nitida associago entre o mestigo e 0 nacional na construgdo da identidade brasileira, 0 texto propde algumas hipéteses de trabalho para a averiguagao de que modo o tema da mestigagem conforma a claboragio de alguns simbolos étnicos negros - especialmente 0 samba e a capoeira - quando estes se transformam em simbolos nacionais e qual o significado politico e cultural diss. UNTTERMOS: Mestigagem - Simbolos Etnios - Simbolos Nacionais dade Nacional ‘O samba é pai do prazer. O samba 6 filho da dor. O grande poder transformador”. (Caetano Veloso} Introdugio! A representagdo simbélica da mestiga- gem associada & idéia de nacionalidade apare- ce, claramente, num dos chamados “pratos tipicos” da culiniria brasileira: a feijoada. As cores que 0 compéem sao: o branco, o preto, 0 verde ¢ 0 amarelo. O feijdo preto © 0 arroz |. Para a elaboragio desse artigo, recorr és inguictantes discussdes realizadas durante 0 curso de pos-graduagio “Uma Historia da Antropologia Brasileira”, ministrado pela Profa, Dra Lilia Katri Moritz Schwarez, no segundo semestre de 1993. A ela e aos meus colegas de curso agradego aqui especialmente, Também quero resgistrar a importincia do incentive intelectual da Profa, Dra. Paula Montero e da Profa. Dra. Maria Licia Montes, cujas sugstdes sempre me instivam a ousar ir além do que a prudéncia me aconsetharia Capoeira - Samba - Democracia Racial - Identi- branco (que nos remetem metaforicamente aos elementos branco € negro da populagao brasi- leira), ingredientes principais, misturam-se (‘mestigam-se”) irremediavelmente em meio aos acompanhamentos, a couve (verde como as matas de nossa bandeira) ¢ & laranja (amarela como as riquezas representadas por esta cor na bandeira nacional) Considerando-se a nitida associagao entre o mestigo e 0 nacional na constituigao da identidade brasileira, 0 objetivo desse artigo é, mais do que apresentar idéias concludentes, sugerir algumas hipéteses de trabalho (com as quais venho trabalhando) a fim de averiguar a naneira pela qual o tema da mestigagem con- forma a elaborago de alguns simbolos étnicos negros - mais especificamente 0 samba ¢ a capoeira - quando estes se transmutam em Cadernos de Campo, n° 3, 1993, simbolos nacionais e qual o significado politi- coe cultural disso. No periodo que medeia entre o final do século XIX e as décadas de 30 e 40 deste sécu- lo, inicia-se uma lenta operagio que consiste em metamorfosear determinados _simbolos étnicos negros em simbolos nacionais, Entre- tanto, tal processo de transformagio ¢ comple- xo porque envolve diferentes niveis de nacio nalizagdo no que respeita aos jtens culturais. Por isso, a anilise comparativa do samba e da capoeira talvez nos ajude a compreender me- Ihor tal conversio de simbolos étnicos em nacionais, Hoje em dia, certas manifestagties culturais de origem negra, como 0 samba, 80 mais representativas da brasilidade do que ou- tras, como a capoeira. A meu ver, tal distingio relaciona-se diretamente com o passado destas priticas. Embora sempre perseguido ao longo do século passado, 0 samba nunca foi visto como um crime, 0 que, no entanto, nao é ver dadeiro para a capoeira, incluida no Cédigo Penal de 1890. Ou seja: graus distintos de na- cionalidade no século XX nos indicam graus de periculosidade diferenciados no século XIX. Observemos mais de perto esse meta- morfoseamento da capoeira e do samba em emblemas de nacionalidade. Entre a condenagio e a exaltagiio da cultura negra No alvorecer do século XX, estabelece- se um duplo movimento em relagdo a cultura negra. Deparamo-nos com uma condenagao de praticas consideradas “barbaras” e, simultane- amente, com um enaltecimento das mesmas, exaltadas como produtos da “heranga cultural nacional”. Por um lado, a cultura negra é apreen- dida pelo critério da falta: as dangas e os rit- mos negros nao tém “estética nem arte”, (Freitas, 1921/1985:153), nao possuem “tom nem som” € tampouco gozam de “espirito e gosto” (apud Rodrigues, 1933/1977:157). Os instrumentos musicais dos negros sio “rudes”. “barbaros” ¢ fazem uma “algazarra infernal”. Contudo, de outro lado, esboga-se uma visdo que, a0 contririo do cariter privativo, tende a conceber a cultura negra como dotada de con- tetido, sendo que alguns itens culturais negros sero, pouco a pouco, representados como nacionais. A coroagdo desse processo de naci- onalizagdo se dari nos anos 30 e 40 quando, por exemplo, o “samba de pretos” das paginas policiais de principios do século, sera louvado como o “samba da minha terra” que “quando se canta todo mundo bole”. Com efeito, alguns intelectuais brasi- leiros de finais do século passado € principios deste, imbuidos da responsabilidade de cons- truir uma identidade para a nag&o - cuja pro- pria viabilidade, segundo as teorias raciais entéo em voga, parecia ameagada devido a presenga massiva de negros e mestigos no cémputo geral de sua populagaio - ¢ dota-la de simbolos que a particularizassem em relagiio as demais, tendem a apropriar-se de determinadas manifestagdes culturais negras, ¢, deli- beradamente buscam desafricanizé-las, em- branquecendo-as simbolicamente. Tal embranquecimento simbélico & produzido através da associagéio entre alguns simbolos étnicos negros e a nacionalidade. Como a construgao de um Brasil “modern ‘civilizado”, implicava, necessariamente, a eliminago do “peso” secular da heranga afti- cana, tenta-se suprimir 0 passado africano, substituindo-o por um passado mestigo. A mestigagem, vale dizer, constituia-se numa grande incégnita para a intelectualidade da virada do século?, Renato Ortiz (1985) 2. © mestigo, intermedidrio entre negros e brancos, talvez seja uma categoria “boa para pensar” as relagdes interétnicas no Brasil. Como mostrou Lévi-Strauss, os animais considerados tabus em determinadas culturas, podem ser bons para pensar sobre elas porque, nos ressalta 9 carter ambiguo do “mito das és ragas”, forjado em finais do século XIX, o qual relata a origem mesti¢a do moderno Estado Tal ambigiiidade do mito, segundo © autor, advinha do impasse vivido pela intelectualidade brasileira da época que, in~ formada pela teoria darwinista social, havia elaborado uma determinada interpretagio da realidade brasileira, a qual, no entanto, nao Ihe permitia modificd-la (pp.38,39). Dessa forma, nao € apenas a constatag’o da inviabilidade de um Brasil mestigo que se nota no pensamento racial da época, Embora fosse geralmente considerada como fator de instabilidade politi- © social, a miscigenagdo cra interpretada mbém como marca da singularidade nacional ¢ possivel solugao para o futuro do pais. Afirmando que a “mestigagem & um fato”, Silvio Romero (1888/1949), intelectual da chamada “geragao de 70° do séeulo passa do, & pionciro no que poderiamos chamar de “elogio ao mestigo”, ao eoncebé-lo como o- clemento fundante da identidade nacional, responsiivel inclusive pela autonomizagio da historia do Brasil em relagio & ex-metropole brasileiro. sistenmas de classifieagdo desta culturas, ocupam em yar assustadoramente intermediario, que pa tem riseo 0 senso batsica de ordem que nos orienta (Lévi- Strauss, 1970), No comego do século 0 mestige era considerado um problema pelos braneos pois, devido a instabilidade dos “produtos do eruzamento entre negros © brancos”, poderia “en cham ro” também o considera um problema, ou porque ¢ dificil classified-lo racialmente (certos setores do “movimento m m-se 10 momento de fer que decidir pela inclusio ow nao de u ‘mulato em seu seio, devido a dificuldade de definigao dos tributes fisicos que o diferenciam, de fato, do branco) ou enti condena-se 0 negro que, ao easar-se branes fithos —mestigos que ro a Ou seja, 0 mestigo & sempre a que € um “impuro”, talvez porque ambos, tanto aqucles cientistas de principios do séeutlo quanto os militantes negros deste final de século, 1 naturalizada da cultura que © um dado hioligico © mio srecer a raga”. Hoje, © 9 "movimento supic a identidade A Aquarela do Brasil lo, o elemento mestigo, necessirio”, revela-se como um agente transformador, ja que Silvio Romero tem nele se nfo um presente (ja que © povo brasileiro estaria ainda em formagio), pelo menos um projeto futuro (Schwarez, 1993) Assim a capoeira, a0 mesmo tempo em que sofre uma intensificagdo da perseguigao policial, a qual culminart com a sua incluso como um crime previsto pelo Cédigo Penal de 18905, comegard também a ser descrita por alguns literatos cariocas, ndo apenas pelo que m de mau e barbaro” mas também como uma “excellente gymnastica”, surgindo aqui uma nova representagao social para essa priti- vista agora como “heranga da mesti conftito das ragas” ¢, portanto, “nacional” (Moraes Filho, 1893/1979:257). Esse enaltecimento do elemento mesti- go na formagio cultural brasileira pode ser observado, por exemplo, no artigo “A Capoei- ~ publicado em 1906, cujo autor nas com as iniciais L.C. A linha de argumenta- gio seguida por 1.C. é de que a brasilidade da capoeira relaciona-se a origem mestiga da mesma: “(...) Creotea [A capoeira] o espirito ventivo do mestigo porque a capoeira nde & port a. nem € negra, € mulata, € eat: ‘mameluca, isto & - € cruzada: & mestiga, tendo-the ‘© mestigo annexado, por principios atavieos e com adaplag20 intelligent, a navatha do fadista da isbdeta, alguns movimentos sambados © escos do alficano, ¢, sobretudo, a agilidade, levipede felina © pasmosa do indio nos. saltos ripidos, leves € imprevistos pat para vante €, surprehendentemente, como um ia ape um lado e outro, 3. A Feroz perseguiglio que os republicans, novos donos do poder, fardo aos capoeiras, reveste-se de wm er politico em virtude da imbricagao das malas de capoeira cariocas com neste caso, além do “intuito eivilizatérie” qu les republicanas a repress havia a questio da ada estabilidade politica da frigil repablica recém. forte ea fordem monarquica, Caddernos de Campo, n° 3, 1993 tigrino real, pat inimigo” (grifos meus) (L.C., 1906). Dessa forma, essa “capoeira cruzada”, de que fala o jornalista, fruto da fusto das trés ragas (branca negra ¢ india), original do mestigo brasileiro, Contrariamente aos vaticinios pessimistas de importantes ci- entis s da época, que viam na mestigagem a principal fonte dos males bras leiros, 0 texto acima, embora também se inspi- re no determinismo racial (foi por “principios * que © mestigo criou ¢ transmitiu a capoeira), nao s6 valoriza o elemento mestigo como faz dele o principal responsivel pela elaborago de um dos simbolos distintives do pais, a nossa “lucta nacional”. Evidencia aqui uma aproximagio positiva entre a nog: de nacionalidade e a de mestigagem, a qual constituira a matéria-prima da elaboragio dos simbolos nacionais, particularmente ao longo das décadas de 30 ¢ 40. Porém essa “capoeira eruzada”, produ- to da contribuigaio das trés ragas, aponta tam- bém para uma certa representagdo das relagdes raciais brasileiras a qual, paulatinamente, ten- deri a se tornar dominante: a da harmonia ra ial. Conforme Lilia Schwarez (1993), em principios do século XX, convivem no pais dois diseursos paralelos acerca das relagies, raciais . De um lado, 0 do apartheid racial, presente nas proposigdes de alguns cientistas da época, como 0 médico Nina Rodrigues, que 2a a promulzacao de cédizos pei tintos para negros ¢ brancos, © que levaria a uma institucionalizagio da diferenga; ou Von Inhering, diretor do Museu Paulista, que, em I911 defende exterminio dos indios Kain- ng em nome do progresso ¢ da civilizagao: ‘ou ainda © médico cugenista Renato Khel, qu na década de 20, fala abertamente na esterili- zagio de negros © mestigos (op.cit.:82.83.234). De outro lado, hii o discurso da demo- cracia racial, que faz. a apologia da suposta convivéncia pacifica entre brancos ¢ ni Brasil, sendo que © contraponto dos arautos fa traz, dando sempre a frente 20 a0 ‘0s no dessa idéia & 0 modelo vigente na sociedade norte-americana, tide por eles como segrega- cionista. Os chamados “tedricos do branquea- mento”, como Oliveira Vianna ¢ Jodo Baptista Lacerda, diretor do Museu Nacional, imbuides da certeza da “superioridade ariana” (Vianna, 1918/1938), produzem uma historia naturali- zada que supde 0 desaparecimento de negros, indios © mestigos através do branqueamento Para estes tedricos, a miscigena forma ambigua: consideram-na um bem, na medida em que garante um futuro branqueado © a harmonia racial brasileira (em oposi arreiras de cor” da sociedade norte- cana) mas a véem também como um mal ja que. em virtude do “excesso de mestigagem”. a heranga africana teria mareado indelevelmente os destinos do pais (Seyferth, s/d), Embora a “teoria do branqueamento”, ao que tudo indica uma criagio brasileira, nao tenha tido maiores repercussdes na comunidade _cientifica internacional e nem mesmo nae da representagio ela foi vitoriosa no pais (Schwarez, 1993), Também em relagao a samba, obser- vamos esse duplo movimento de repress: exaltagdio entre finais do sGculo XIX e princi pios do século XX. Se hoje samba e capoeira so priticas auténomas, no pasado cram quase indissociaveis. Embora ndo Fosse crimi- nalizado como a capoeira, 0 samba esteve sempre sob constante vigilincia e controle policial, Varios participantes das rodas de amba realizadas nas casas das lendarias “tias” baianas (Ciata, Bebiana de lansa, Carmem do Xibuea, Perciliana do Santo Amaro. dentre outras), estabelecidas na cidade do Rio de Ja- neiro no periodo a do, testemunham a proximidade entre samba e capocira. O de- poimento de Jodo da Baiana, famoso sambista caridca daquela época, mostra como tal pro- ximidade podia causar problemas a seus prati- cantes: “A policia cismou que era eapoeiragem, por causa desse negcio de dar umbi: € vista de al, ao nivel De na ci adda |o depo: cente refere-se aqui ao samba de umbigadal. As hossas mies - minha e do Dongat, nés fomos criados juntos - davam muito samba, Mas tinham de tirar licenga no distrito porque fazia muito baru Iho” (citado por Salvadori,1990:186). Entretanto, se havia esse samba que para acontecer necessitava de autorizagao po- licial, no comego do séeulo atual ficaria eéle- bre nos salées do Rio de Janeiro o maxixe, uma danga que misturava elementos musicais africanos ¢ europeus, configurando-se, portan- to, como um ritmo mestigo, Surgido nas gafi ciras dos bairros negros da cidade (Saiide, Gamboa, Cidade Nova), 0 maxixe parece ter aleangaco algum sucesso para além destes redutos. Na deserigdo de Mario de Andrade (1928/1979; 1934/1976), em seus estudos sobre a maisica popular brasileira, 0 maxixe conligura-se como um género musical misto, originatio da “fusto da habanera [ritmo afro- bana) pela rithmica, e da polka pela andadura, com adaptagdo da syncopa africana Tal mescla de elementos culturais braneos e negros faz com que o maxixe chegue a ser sinalizado como uma “manifestagdo da cultura nacional”, particularmente apds 0 su. cesso do dangarino brasileiro Duque em Paris. Todavia a danga do maxixe, considerada por alguns “excessivamente” afficana e também demasiado libidinosa, por exigir corpos cola- dos um go outro para sua execuedo, paulati- namente desaparecera. No entanto, esse ritmo mestigo seré incorporado pelo samba earioe particularmente com @ compositor Sinbd, que criara o samba maxixado, sendo que também podemos perceber sua presenga no trabalho 4. Outeo célebre sambista do Rio de Janeiro, tendo ficado conhecide por ter sravado 0 primeira samba de sucesso, chamado “Pelo Telefone”, no ano de 1916 5. Vale lembrar que a preocupagéo de Mario de Andrade com a mestigagem como uma particularidade dda formagdo brasileira esté ja presente no herbi mestigo Macunaima (o liveo 6 publicado em 1928), desprovide de om canter definid (°o heed sem nenbum earater”) filho de uma india, nase negro e, apés se banhar em gua benta, torna-se branco. { Aquarela do Brastt musical de Donga, Pixinguinha € Heitor dos Prazeres, dentre outros (Moura, 1983:54-35). Esse cuplo mavimento de detrag3o enaltecimento da cultura negra, que detecta- mos no pais entre finais do século passado principios deste, insere-se, como vimos, no amplo debate que se trava naquele momento sobre o imponderavel da mestigagem racial. Frente ao dilema de ter que apresentar algum devir para um pais que, de acordo com as previsoes de eminentes cientistas da época, parecia fadado a “barbarie”, parte da intelec~ qualidade da época apresenta 0 argumente da miscigenagde como uma saida local ¢ negoci- ada para o “problema racial brasileiro” (Schwarez, 1993) condenagdo dos eruzamentos raciais, ja se delineava e, mais ainda, até mesmo se louvava a idéia de que a originalidade da cultura brasi- leira residia precisamente no filo de ser mesti- ga. Porém, como sabemos,.a representagdo da positividade do mestigo sé se tornari he- geménica com o predominio da interpretagao culturalista, a partir das décadas de 30 ¢ 40 deste século, quando entio conformari a pro- pria nogiio de identidade nacional brasileira Nese momento, as manifestagdes culturais negras, como © samba e a capoeira, ganhardo detinitivamente contetdo e serao, em maior ou menor grau, apropriadas como simbolos na onais, De fato, com 0 abandono das teorias raciais a partir do final dos anos 20 aproxima- damente, a miscigenago deixa de ser um es pecito e transmuta-se, paulatinamente, em categoria explicativa da singularidade nacio- nal, Deseartando © determinismo racial ¢ grafico que informaya grande parte da produ: a0 da intelectualidade brasileira até entéo, Gilberto Freyre publica em 1933 0 livro Casa Grande & Senzata, oferecendo uma “nova racionalidade” para a sociedade multivracial brasileira (Skidmon 1976:211). Sua obra. embasada teoricamente no culturalismo de 0: impo, 1° 3, 1993, Franz Boas, ao invés de detratar © mestiga, © celebraré como a principal marca da originali- dade nacional e, ao fazé-lo, permitird a0 brasi leiro “se pensar positivamente a si préprio” (Ontiz, 1985:43). Assim, conforme Ortiz, (1985), sera apenas nas décadas de 30 e 40, quando a negatividade do mestigo torna-se positividade, que o “mito das trés ragas” pode- ra se ritualizar (op.cit.:41-43). No entanto, ainda segundo Ortiz, ndo ha ruptura entre a abordagem dos pensadores do comego do século ¢ a de Gilherto Freyre, posto que este apenas reedita a temética racial, estendendo a nogao de miscigenagao racial a de miscigenagio cultural. A nogao de sincre- tismo pressupde uma reciprocidade cultural que tem como ponto de partida a igualdade de condigdes entre negros, brancos e indios. Ha, portanto, uma dissociagao entre a cultura e politica que acaba por exchuir do debate o tema da dominasao. Essa énfase na miscigenagao cultural pode ser percebida na leitura culturalista que Arthur Ramos - médico baiano, diseipulo de Nina Rodrigues - apresenta sobre o samba. Em, O folk-lore negro no Brasil, publicado em 1935, Ramos analisa o “lento processo de sin- cretismo” que conduz & formagao da danga negro-brasileira. Nesse proceso, segundo 0 autor, as “formas primitivas” das dangas ne- gras foram “distorcidas” ¢ “adaptadas” pelos brancos e, inversamente, as “dangas chamadas civilizadas”, sofreram uma “distorgdo” sob a influéncia negra (p.142). Assim, neste ‘cadinho apurador”, distinguem-se 1rés fases consecutivas: a do batuque, danga de roda ofiginaria dos negros angola-conguenses: a maxixe, danga brasileira oriunda da fusdo do batugue negro com a misica hispano-ameri- cana (a habanera) e européia (a polea); a do samba atual, amélgama ainda indefinido de “elementos musicais, melddicos, graficos, onde intervém 0 negro africano ¢ 0 negro de todas as Américas © dangas européias adapta- das” (p.147). ftmicos e coreo- 10 Como assinala Peter Fry (1982), & pre- cisamente desta “troca aparentemente livre de tragos culturais entre varios grupos (p.52), que decorre a interpretagdo harmonica das relagdes raciais. Ao longo de meu projeto de pesquisa (baseado no qual eserevo esse artigo), tendo por fio condutor a andlise da incorporagdo do samba e da capoeira como simbolos de brasilidade, tenciono contribuir para a compreens&o da maneira pela qual se realiza a celebragiio do “mito das trés ragas” ¢ se efetiva a vitéria do discurso da democracia racial no pais. nicos”™ A metamorfose de simbolos étnicos em simbolos nacionais “Branca é branea Preta é preta Mas a mulata é.a tal (Braguinha) © samba carioca, do modo como 6 conhecemos atualmente, consagrado de norte a sul do pais (¢ mesmo no exterior) come um dos “itens tradicionais de nossa cultura”, na. verdade parece ter se constituido enguanto tal muito recentemente, Embora hoje seja impen- sivel carnaval sem samba, essa unio se fez ha pouco tempo. Ao longo do século passado, as diversas modalidades de samba (batuques. cucumbis, afoxés, ete) eram cantadas ¢ dan das apenas por ocasitio das festas religiosas, como a famosa festa da Penha (domingos de outubro, Rio de Janeiro), a festa de Reis (6 de janeiro) € a festa de Bom Jesus de Pirapora (3 26 de agosto, em Sao Paulo). Na cultura musical negra, os atabaques fazem dangar ao mesmo tempo os deuses ¢ 05 homens, quer dizer, ha uma indissociagzio entre as dangas profanas e sagradas. Isso, no entanto, provocard protests por parte das autoridades cat6licas que reclamarao da “profanagio” de suas festas religiosas (até hoje a lavagem das escadarias da Igreja de Bonfim pelas mies de santo baianas & motivo de polémica com o arcebispo de Salvador). Devido as queixas, os festejos negros foram deslocados para o periodo do Carnaval Dessa forma, foi apenas em prineipios deste século que os primeiros ranchos negros cariocas, sambando ao som co. “compasso sincopado afro-brasileiro”, passaram a desfilar durante © Carnaval, porém, ainda assim limi tados ao espago da Praga Onze, permanecendo bem distantes, portanto, dos suntuosos présti. tos carnavalescos da Avenida Central, ritmados pelas marchas de Operas famosas’ (Queiroz, 1992:163). Com efeito, sera apenas por volta dos anos 30, com o sucesso crescente das chamadas “escolas de samba”, que o samba carioca, ou melhor, um certo tipo de samba produzido na cidade do Rio de Janeiro, se nacionalizara, Por sua vez a capoeira baiana, também representada e exportada como uma radigaio brasileira”, apenas tomard uma feigo nacional hha cerea de meio século, quando a capoeira seri descriminalizada © divulgada como um esporte, Destacam-se neste empreendimento dois mesires baianos, Bimba e Pastinha, con- siderados pelos capoeiristas atuais como os “herdis culturais” dessa luta. A metamorfose de simbolos étnicos em simbolos de brasilidade ja foi indicada por al- guns autores (Ortiz, 1985; Fry, 1982; Oliven, 1983), Fry (1982), num breve artigo, analisa a mancira pela qual o samba e o candomblé. dois itens originalmente elaborados pelos negros sob dominagio, foram _posteriormente apropriados pelos produtores de simbolos na- cionais ¢ da cultura de massas. O autor inter- preta essa conversio de simbolos étnicos em simbolos nacionais como uma estratégia poli- tica para acobertar © mascarar a dominagao cial, dificultando inclusive a sua propria de- nniincia (pp.52-53). Embora concordando em linhas gerais com essa proposigdo de Fry, penso ser neces- A Aquarela do Brasil e io que a relativizemos um pouco. Tal abor- dagem, ao enfatizar demais o aspecto da coop- ago, ignora ou minimiza a importincia da resisténcia. Penso que 0 metamorfoseamento de simbolos étnicos em nacionais ¢ um pro- cesso complexo ¢ gradual, que supée, inclusive graus diversos de nacionalizagio, 0 que parece indicar maior ou menor sucesso de negros & brancos. Como procurei mostrar em minha pesquisa anterior (Reis, 1993), a capoeira que se esportiza e se nacionaliza, embora seja uma luta mestiga®, ndio & aquela das elites cariocas que tinham para ela um projeto nacional, mas a capoeira popular baiana, alicergada num. projeto étnico, Indubitavelmente, a discussie politica para a interpretagiio da metamorfose de simbo- los de negritude em simbolos de brasilidade é fundamental. Porém penso que € preciso tam- bem fazermos uma outra discussio de cunho mais cultural Talvez, como 0 proprio autor coloca € depois refuta, a apropriagao nacional de sim- bolos éinicos no pais serve também como su- porte para a elaboragio de sinais diacriticos que sinalizam a identidade brasileira em rela- go ao resto do mundo. Nesse sentido, no tocante a esta pesquisa, cabe investigar se o samba e a capoeira so de fato simbolos na onais para nés de dentro do pais, ou se sio, outrossim, simbolos vendidos para fora, con- formando assim uma identidade que nos vem do exterior. Porém, se admitimos que 0 samba e a capoeira sdo simbolos nacionais reconhecidos internamente como tais, resta saber como foi possivel a construgdo ¢ a difusdo destas repre- sentagdes. 6. A modalidade de capoeira mais praticada hoje em todo o pais (e mesmo no exterior) & a chamada “cypocira Regional”, criada_por mestre Bimba na dgcada de 30. Neste estilo, mesclam-se movimentos de capoeira com os de lutas ocidentais e orientais © até mesmo de ginastica olimpica, Cadernos de Campo, n° 3, 1993 A criagio de simbolos nacionais ¢ a manipulagio do imagindrio social durante a chamada Republica Velha (1889-1930) foram analisados por José Murilo de Carvalho (1990). Embora conelua pelo fracasso da im- plantagdo de uma simbologia republicana, 0 autor realga que as duas inicas tentativas bem sucedidas foram aquelas em que as autoridades souberam ceder lugar a tradiga0: no caso do hino (“inica vitéria popular no novo regime”), herdado do Império, ¢ da bandeira, também inspirada em sua antecessora monarquica. Ou seja, 0 hino © a bandeira vingaram como simbolos republicanos enquanto reelaboragio de simbolos monarquicos (pp.109-128). Assim também 0 auto-proclamado “Estado Novo” (1937-1945), procurando de- limitar sua diferenga em relagio a “Repiiblica Velha”, nao obstante mantenha determinados simbolos nacionais (como o hino e a bandeira), elegera outros, com vistas a elaboragao de novos valores sociais e politicos. Certas co- memoragdes civicas silo entio introduzidas como o Dia do Trabalho (1° de maio), o ani- versirio do presidente Getilio Vargas (19 de abril) € 0 aniversirio do Estado Novo (10 de novembro) - trés ocasides onde se procurava evidenciar a aproximagio entre poder piblico @ povo - , € 0 “Dia da Raga” - eriado para de- monstrar a pretensa postura de tolerdncia racial do governo (Gomes, 1988:235-237). Getilio Vargas se fard retratar em moedas, sels ¢ comemorativos, enquanto sua voz s lares através de programas de radio como “A Hora do Brasil”, transmitido diariamente desde 1934, ‘A maquina de propaganda montada pelo Estado Novo constituiu-se num impor- tante instrumento de dominagio, cabendo a0 Departamento. de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1937, 0 exercicio do “marketing politico” do regime e o controle da censura. O DIP, subordinado diretamente A presidéncia da Republica, dividia-se em seis segdes: propaganda, radiodifusio, cinema ¢ teatro, turismo, imprensa ¢ servigos auxiliares. Como comenta Lenharo (1986), 0 ridio, que facilitava sobremaneira a tarefa de dissemina- ao da imagem onipresente do ditador, além de personalizar a relagdo entre este ¢ 0 cidadio comum, constituiu-se no principal dispositive propagandistico do poder (pp.40-43). De acordo com Lenharo (1986), a po- litica de dominagdo do Estado Novo combi- nar estratégias de ambito institucional com aquelas que incidem sobre as micropoliticas do cotidiano. governo Vargas sera pioneiro na promogao de uma “politica do corpo”, datando de finais dos anos 30 a publicagao oficial de revistas especializadas em saiide. higiene educagao fisica, Nesses textos, destaca-se um enfoque eugénico que prescreve a “higiene da raga’ (leia-se o seu branqueamento) através da ginastica. © mesmo intento branqueador transparece na politica. de imigragio do periodo, que favorece a entrada de brancos em detrimento de negros e asidticos (op.cit.)7 Nesse momento, certas manifest culturais negras, até entio desconsideradas ou mesmo severamente reprimidas pelas autori- dades até principios da década de 30, ganhardio legitimidade, chegando mesmo a serem repre- sentadas como simbolos de nacionalidade. capoeira, ilegal hi cerca de meio século, torna- se entdo uma modalidade esportiva (1937), as escolas de samba cariocas passam a contar com subvengdes oficiais para seus desfiles (1935) e os candomblés podem agora bater seus atabaques sem interferéneia policial (1938). O samba, a capocira, o candomblé, 0 “malandro carioca”, a “mulata sensual” € “o mulato faceiro” sero entio, em diferentes graus de intensidade, sinalizados interna ¢ ex- ternamente como icones brasileiros. 7. Essa orientagdo eugénica pode ser percebida também em algumas medidas de saiide publica do governo Vargas, como a campanh nica levada pela prefeitura de S30 Bemardo, SP, em 1937 (Schwarez, 1993:237),

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