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Usos da Memoria e do Esquecimento na Historia Enrique Serra Pads ‘UFRGS Quem controlao passade controle o futuro; quan control a presente ctrl o passat, George Orwell - 1984 A produgio significativa de reflexées sobre a complexidade e diversidade das questies pertinentes & medina mosteam que esta é uma temitica cada vez mais recostente numa Sociedade marcada pela acclerseao do instantineo, pelo efémero € pela creseonte © notivel diminuicio de densidade temporal encre os acontecimentas e a sua percepsio. O universo de possibilidades na sua abordagem & extenso, como demonstram as obras de Lowenthal ¢ Schacter’. Esta discussio pauta-se sobre 0s usos da meméria e do esquecimento, denteo da perspectiva da Desremeria (cujo sindnimo talvez seja 0 de “apagemento”9, ou da idéia de rmoniria cofiscada, na pontual referéacia de Baczko A realidade polonesa do pés-Segunda verrat, O intuito de tais reflexdes € 0 de pensar, numa primeiza aproximacio, 0 confronto memeria-esquecimento coloeado por diversos atores sociais € politicos nos paises latino- ameticanos que, no passado recente, sofreram ditaduras de Seguranca Nacional. Os usos da meméria A palavra meméria, de origem Ietina, deriva de menare ons, ¢ significa “o que lembra”, ligando-se, assim, 20 passado; portanco, 20 jé vividot. Ao nivel individual, a memoria é a capacidade de um conjunto de fangSes psiguicss que possibiliam conservne certas Tetras W 2D Lheratara © Auoniarmo nm informacdes, “gracas as quais o homem pode atusliza impressdes ou informagées passadas, (ou que ele representa como passadas” 5 Schacter usa uma expressio muito interessante para referir-se & meméria “um teleseépio GLa 20 tempo”. Mais do que isso, a0 lembrar, 0 dembrader (expresso do autor citado) scaliza uma viagem mental pelo tempo, tevivendo algo jd sucedidlo. Ao Fazer isso, 0 lembrader pode libertarse dos imperativos imediatos do tempo e do espaco, percebendo de novo 0 passado, e imaginando o fururo & vontade’. Als, isto no & novo, Neste sentido, Lowenthal artola autores e obras que escrevem e descrevern diante das possibilidades que as viagens no tempo tém coloeado para a memériajinetusive, com 0 “lembrar o faturo”, esse paradoxo instigante com o qual © género da cientifica, tanto através da literatura quanto do cinema, fertliza o imaginério contemporaneo. Quando Schacter diz que a meméria € 0 meio de transporte mental que permite a qualquer homem vigjar ao tempo cotidianamente, redimensiona, 20 nivel do senso comum, uma vontade imanente ao género humano ¢, ainda, tum tanto futurista Fntretanto, deixando de lado a ficgio cientifiea, em termos concretos s meméria laciona-se com a dimensio do tempo passado, estabelocendo uma necesséria interagdo entee © eaquccimento {apagamento) ¢ « preservacio integral do passado" (na verdade, preservasio impossivel). Imaginar que exista alguém como Flaws, ¢ memorire, de Borges (personage que retém 2 totalidade do que viveu) é tio inconcebivel quanto outro, citado por Galesno, que “possula Go mé meméria que um din se esqueceu de que tinha mi meméria ¢ se lembrou de tudo”? Sem divida, expesiéacia tio improvivel quanto apavorante. No plano individual, através de critétios diversos, a memdei@ tem a capacidade de sclecionas, organizar ¢ sistomatizar lembrancas daquilo que ji foi vivenciado. A agio subjetiva de lembrar o passado acaba sendo tio rotincira no cotidiano de cada am que sc perde a nogio da necessidade de aferir a veracidade dessa rememoracio. Mas, até onde a iluminagio gerada pelo projetor que focaliza certos acontecimentos nio acorda imagens, sons ¢ emogdes que em realidade io sio proprias do armazém de Tembrangas do individuo? Até onde essas Tembrangas sio de fatos lembrangas proprias ou até onde podem ser “importadas"? Em realidade, hé muito tempo que esti superada a perspectiva de que a meméria & um yuto somente individual, Estados de diverse origem disciplinar coincidem na experiéncia compartida da meméria, ou seja, nn sua natureza social, Mesmo quando envoivem cexperiéncias pessoais, as lembrangas resultam da interagio com outras pessoas (sejam na forma de objctos, palaveas, ete). Nao 36 isso, 2 meméria passa a ser um faior fundamental de identidade e de suporte dos sujeitos eoletivas como desempenha, também, uma fungio imporsarissima, tenea na preservagio da experiéncia hisvirien acumolada, de valores o de tradigies, como, em muitas situagdes, pretende ser a depositiria da prdpria histéria (por cexemplo, 0 caso dos griatrafticanos e das sociedades sem escrita, ou 0 das comunidades rurais ‘matcadas pela manutencio de forte tradicio ora). E inegivel que, representando interesses de certos setores ou da comunidade como um todo, ¢ meméria, tansformada em senso comum, é uma referéncia de coesio identitéria ¢ faz paste da cultura politica de uma determinada sociedad Sendeiima construgio ativa, dinémica, a meméria munca é a repeti¢io exata de algo passado, Trata-se, em tealidade, de uma reconstrugio que cada um realiza dependendo da sua Fistéria, do momento ¢ do lugar em que se encontra, Mas cada um constréi a sua meméria em ativa interagio com os demais®, ou seja, ligada as lembrancas das experiéncias e aos lagos afetivos de percencimento a.um determinado coletivo sega laos produzem, induzem e reforcam lembrancas comuns; ou seja, geram ume meméfi@bocial. Desse modo, os diversos grupos sociais marcam a diferenciacio entre si reforcando a consciéneia de fronteiras socioculturais vinculadas ao reconhecimento do pertencimento, por sua vez, ctiadores da ca Frogana de Pos Gradhagao em Lets OSM ‘dentidade™, De fato, a meméria é uma constragio, Como ta, ela € perpassada, veladamente, por mediagdes que expressam relagdes de poder que hierarquizam, segundo os interesses dominantes, aspectos de classe, politicos, cultoras, ete. Isto nio € produto de wcaso} & sien, resultado da relacio ¢ interagio entre os diversos atores histéricos em um detcrminado momento conjuntural EY ‘Apesar do sendomum predominante, petsstem, dentro da memériacoletiva elementos que constituem uma espécic de resistencia e contrapdffP] Tal fato caractesiza a meméria como um espaco de disputa entre os atores historicos, MMhedica em que o senso comum nio é a realidade cm si (quer dizer, a verdade objetiva, como de fato ovorreu). Por jes, a memoria, 20 ser mais ou menos idealizads, exige a intervencio dos historiadoces para revelat o real possivel de ser alcangaddf5] hi interesses parciais definiado uma meméria colocada como comum 2 toda uma lade, & evidente que elementos de tensio ¢ ‘questionsimento certamente resultario da acio do historiador sobte cla ‘A meméria, na unedida que se relaciona com o passado, constitu um elo indiseutivel entre © presente ¢ aquele passado (que pode ter, inclusive, uma tomporilidade dificil de precisa). Trata-se de uma espécie de ponte que conecta, articula, relaciona clementos temporais, espaciais, identicarios e, sambém, histoNp B, deve-se salientar que, assim como a histcxia nio é noutra, também alo hé nentrlidade-ms repistros da memdcia. As lembrangas no sio registtos passivos ou aleatérios da relidade, Elas nao sio mieros registros fotograficos dispostas num album mental; “aio arquivamos instantineas objetivas dos fatos acoatecidos, senio que captamos © significado, o sentido e as emocdes As quais se associaram tals experiéncia Por odbelato, diecenement do que se pean a pa seni comm ea ds petspectivas de algumas disciplinas, a meméria no é sindnimo de historia ow de realidade histdtica passada (0 que realmente foi). As contribuigdes de Hlalbwachs ¢ depois de Nora, apontaram para isso hi tempo. Entretanto, a impostincia da meméria para a histérin no € pequena pois ela constitu significstiva fonte para o trabalho dos historiadores; as lembrancas fe reminiscéncias da meméria coletiva susiliam ao historiador que, com o rigor da sua metodologia de trabalho as teansforma em valiosas fontes para a producéo do coahecimento cientifey, Ou scja, a histéria identifica, coneextualiza e analisa as memérias como Fonte; cottdaa, elas também podem ser 0 seu objeto de estudo. A esse respeito convém observar 0 aque diz Peter Burke, Pata cc, a meméria tanto € fonte historice, através da qual o historiador analisa a confiabilace do que & lembsado (pelo cruzamento com outras fontes ¢ da contribuigio da historia oral), quanto desperta 0 seu interesse como fendmeno histiico, o Sea, uma “histora social do lebeae” como objeto (ientificando © analisandy # vasiagio dos principios de selecio no tempo e mn espago assim como suas corteias de :ransmissio)." para Giron, a memoria € fundamentalmente matétia-pritia presente, tanto no trabalho ocente quanto no de pesquisa, Pars a autora, cla deve ser percebida e trabalhada como rmatéria-prima € 90 como produto finall!, De qualquer forma, a bistdria se alimenta da memoria ¢, evidentemente, pode tomicla como objeto, matéria-prima ou ponto de partida; porém, no pode constrair conhecimento exclusivamente a partir dela pois corre o isco de ‘io avaliae corretamente o rau de parcialidade, subjetividade, superticialidade ¢ deformacio que pode conter, o que, é aro, pode comprometer o seu trabalho dentro da perspectiva do que sejam os patimetros accitiveis na producio de conhecimento histéticopmbjertando para esse fato, Lowrwenthal diz que a meméria produz a revisio das proptias lenis, fazendo uma esnécie de depuracio do que pode ser compreendido como inconvenient: “(.) & meméria transforma 0 passado experimentado no que mais tarde pensamos que dovia ter sido, climinando as cenas nio descjadas © adequando as predileras”. Por isso, « matésia-prima ‘meméria presta um grande servico & historia sempre ¢ quando ests se debrugar sobre aquela, Tetras aR reac AuRorTSRHO et com @ rigor metodoligico adequado, Nessa perspectiva Hallbachs conclui que “io acabar a tmeméria, comeca a hisiéria (histria-conhecimento)””, no sentido de que ela, 20 ter inteligbifidade explicativa, constitui-se, ensio, como conhecimenta histérico, A memécia, tendo relacio direta com 0 passedo, manifesta-se, uumbém, @ partir das vicissitudes do presente, que ativa aqucle ou o reconstedi a partir das suas nocessidades indagacdes. Eatreranto, como ber lembra Lowenthal, sabemos que nio podemos conhecer tanto a respeito do passado como conhecemos 2 respeito do presente, Pot isso, sempre mansém um relative catiter de indecifrivel, o que reforca a idéia de Hartley: “O passado é 0 pais estranho onde as coisas sio feitas de forma diferentf=] © que significa reconhecer que 0 passado coahecido como tal nanca fol presente e sim e€@hsirucko parcial do mesmo (0 que do significa negar 4 possibilidade de, cientifcamente, recoasteui, da forma mais proxima possivel, o realmente acontecido} Pore pasar gue hun Wh angie ma rai cae ais « 4 mem, resultaate do fato de que as duas vinculam-se, por sue vez, com o passado; inclusive, pode até se infer, as veres, que ha certa sobzeposicao entre as duas jf que se a meméria conta com infosmes de segunda mlo sobre o pastado, oferecidos pela bistria, esta, pot sua ver, conta com testemuntios visuals ¢ ourras lembraneas (produtos do exereieio da memoria). Porém, a8 diferengas sio rigorosas c devem estat permancntemente presentes para o historiador, que tem pretenses de produzir um conhecimento ciendif Segundo Lowenthal, « histéria se distingue da memnéria pela forma de aquisicio, transHiio, conservacio, alteragdo e validacio €o conhecimenio que ela produz sobte o passado", Enquanto a Histéria conta com 0 ctivo das fontes empiricas pata aferir, mensurer e avaliar a sua anilise sobre 0 passado, a memoria aio tem como realizar esse cantinho, A histéria, ao objetivar « compreensio de situacdes de nnaturcza coletiva e a0 explicar racionalmente © que © senso comum presente de superficial e emotive, afasta se da memdria, Mas, catretanto, no a nega, até porque, como ji foi visto, cla constinui_uma matéria-prima bisica sobre a qual se debruce ma sua operagio de anilise © reflesi ‘conan iin eats psoas tena + acon coletiva, Mais, enquanto 0 conhecimento histérico apresenta significativa resistencia 4 passagem do tempo (uma das principals razies da histdria & conservat 0 conhecimento do passado), a maioria das lembeangas morrem com seus possuidores. Lowwenthal acrescenti, ainda, que a hist6ria diz coisas a respeito do passado que aqueles que 0 viveram nio as e}conheceram como sev presente; 2 meméria nio consegue fazer isso. Por outto lado, se & verdade que tanto a histiria quanto a meméria focalizam © sea olhar retrospective sobre o pasado» partir do presente, suiucute u histGria o faz de forma consctente. Lagquanto 0 produto dessa sua revisitagio do passado pode constituie novos conhecimentos cieaifcos, a5 lembrangas da meméria no tempo inventam e descobrem novos fatos sem condigses de cnfrentar a afetigio logiea dos mesmf™=]Quer dizer, “anto a historia como a meméria geram Sn ovo continent, mes somes pop atl se ree eso > Neste sentido, Le Goff coloca que hi duas historias. Uma, a produzida pela meméria coletva, que ele considera como seado essenciaimente temitica, deformada, anacrdnica, mas na qual a relagio entre o presente € o pasado nunca esti acabada. A outra, é a historia cientiica, Ow seja, mesmo niio dissociando ltctamente memoria histétia, o far indiretamemte através do seu produto, Por isso, conclama para que o conhecimento histérico produzido pelos histotiadores de ofieio, se posicione contra csta histéria tradicional falseada de meiméria coletiva, Portanto, conch, a histitia (€ aqui, paca deixar bem claro, ele fala em conttaposigio Amemdria) deve dar intlgibilidads a memésia,ajudando-a a rtficar seus cxtos tl Lembrar 0 passado € um clemento essencial na conformagio da idextidade A@Widual ow coletiva. A necessidade da lembrar , talvez, a principal atribuigio da meméria. Sem meméria 2 Programa de Pos Gaidingio em Letras USN rio cxistsiom referencias ou experiéncias. A meméria individual que interage com a de outsos individuos, vincula-se & memoria do grupo, formando parte dessa. memoria cole lembranga individual tomar-se de dominio coletivo, sssumindo os valores, a lingua, osteteos cculturis ¢ as vivéncias que passem a ser comuns, assim como a elaboracio da meméria c das novas lembrangas! Sio os individuos que lembram, mas sio os grupos socials que determinarn o que deve ser lembrado € como deve sé-lo. Vale a mengio da provocativa interrogagio: “quem quer que quem: dobre 9 qué ¢ por qué?” Na medida em que os individuos se pautam pelos elementos que os identificam ¢ vincalam a um determinado grupo, acabam assumindo para si “lembrancas” que, em reelidade, ao viveram ciretamente? ‘Assim, nio 6 0s individuos possuer meméria individual), como as sobi@hdes também, Os valores, as atitudes, os cédigos compartihados, resulkantes de determinada intezagiv, implicam em continvidades e ruptoras com tradigdcs e com a cultura transmitidas por outras etagdes. Lembrancas, simbolas ¢ valores identificam 0 coletivo no espago € no tempor, Sto elementos eartegados de meméria, Meméria colefE5].A meméria coletiva se coneretiza como tal quando as mesmas lembrancas, vividas ou Qfsmicidas, voltam de mania ecpesitiva, sistematica, com poucas vatiacdes, e quando sio apresentadas ¢ assumidas como propriedade specifica da comunidade. A maior parte do tempo esse meméria decepciona o historiado, jé que constituer registros de acontecimentos e rotinas singolas desprovicas de glamour de um sensacionalisto explosive’. Ainda, a “recordagio hist6xica” expressa na memoria eoletiva que egtima uma comunidade e sua idlentidade, muitas vezes, pode ser seasivelmente simplifcedora, na medida em que ordena tudo cm fungio da confitmacio ¢ reafiemacio da centtalidade do acontecimento fundador (direcionando, neste sentido, os fatos anteriores © posteriores). Por sua vez, 0 acontecimento fundador define o que deve ser assimilado, cesquecido ¢ terpiversado pela comida Apesar dessas dificuldades para OMffabalho do historiedar, Le Goff destaca as conttibuigdes e avangos que a histiria tem realizada na andlise ds meméria coletiva. Pata ele, (8 historiadores assumiram 0 compromisso ¢ 2 responsabilidade que Ihes cortesponde ceaquanto especialstas de uma ‘tea especitica do conhecimento, e preocupados com todas as problematizagées que a memézia coloca 4 propria historia, Inclusive, através ce um fecundo diilogo com as interrogagdes colocadas desde outeas disciplnas. Segundo cle, as justificativas para tal énfase se dio em tomo de alguns eixos fundamentais: “ama problematica sbertamente ‘contemporinca, uma iniciativa decididamente retrospectiva ¢ a reniacia a uma temporalidade lineat em proveito de tempos vividos mikiplos nos niveis em que o individual se entafza no social ¢ n0 coletive”.# A eapacidade de lembrar possiilita a preservagio dessa base comura de elementos (de ‘ordem politica, sociale cultural) tansformados em referéncia ¢ identidade nas relacdes socais, de cada um dos coletivos, Portage lembrar presceva as vivencias da coletvidede, do grupo sect Tembar pcs, pal nows qaaies 4 conpioa expec he acumulida, ¢ isso coloca um outro desafio para o tecido social, o da immperiosa rransmissé0 esse legado; assim, esta € outra necessidade vinculada 4 memoria (Seja através dos smecanismos da tradigio oral, dos materais esctitas ou dos denominados vestgio tl Contemporaneamente, diante da ldgica des necessidades geradas pelo Felumeno que ‘Nora denomina “aceleragio histrica” do tempo presente, e da impossiblidade dos indivichios segistrarem tado o que passa frencticamente na frente dos seus ofhos, configuram-se, com a legitimagio da socicdade, 08 denominados “hugares da mem]. Sio lugares espaciais, ratetiais ¢ simbolicos que registram essa memoria que o tecid@beial tem dificuldade de absorver e transmitir~ em funcio da esplosio de informagao e da sua sapidez de circulagio, caracteristcas da revolucio tecnol6gica nos meios de comunieagio, fato particular do século XN. No caso conereto, aém dos arquivas, bibliotecas e museus, os espacns de agio daqueles Tetrar W22~ Lheratuta » AvOrIAaTO 8 ‘que continuam lutando pela recuperacio da meméria confiscada ou apegada, também se configuram, sc transformam, om lugares da memétia. Este é 0 easo bem excmplar da Plaza de ‘Mayo, em Buenos Aires, onde, além de se 0 espago onde acontecem boa parte das rmanifestagBes polities, também continua sendo, aps mais de quinze anos de “zecemoctatiangao”, paleo do ritual semanal das madre, abuelare hjas de desapaecidos ¢ lugar dos vestigios constituidos pelos desenhos de contornos de silhuetas € lengos que, espalhados 0 redor do monumento central, simbotizam, respectivamente, os desaparecidas € a Tota dos ‘grupos de direitos humanos. FE um exemplo coneteio de lugar onde, com uma forte carga de poder politico c simbélico, sc reafirma 0 voluntatismo coletive de “aio esqueccr”, Neste sentido, no caso citado, querer resgatar a meméria coletiva passa a ter uma funcio pedagogica no sentido de evitar a repeticio das experiéncias histOricas que propiciaram o tertor de Festado Pele Burker 2 diseorrer sobre as funcdes da meméria social mostra a diversidade de possibilidades © de usos existentes. Coloca questdes interessantes como a contraposigio entre meméria social ¢ amnésia estrutural (historieizando a respeito desta), a relagio eatee lugar ¢ meméria (implicitos na construpio da identidade nacional), ou a idéia de “comunidades de meméria”. E, finaiza, introduzindo a problemarica que envolve a desteuicto de documentos, dda memoria ¢, consequentemente, do conhecimento hist6rico”, Fim tese, na medida em que toda consciéncia do passado bascia-se na meméria, esta é a sgarantia de que experimentamos tm passado’, mas sem esquecer, mais uma vez, que a ‘meméria também é wm Tugst de dispora; a referéncia orwelliana imbriea-se com as formas de controle, manipulacio e deformacio da mesma. Aqui, nio hé muita diferenga eom as foxnsas de console, manipulagio ¢ deformagio que softe o proprio conhecimento histfZ™p. Se hi suma meméria que pode see confiscada, também se confisca o produto ciemtifico™M acto da historia sobre falsas memérias ov memérias reciclavels, como primeiro passo para, logo a seguir, recilar a propria historia, A meméria é lugar e objeto de dispuca nas relagics de poder cm confronto ma realidade social. Le Goff, mais uma vex, € esclarecedor quando afirma que: “Toacem-se senhores da meméria e do esquecimento € ume das grandes preocupagdes das classes, dos grupos, dos individios que dominaram ¢ dominam 2s sociedades historicas. Os esquecimentos ¢ os siléncios da histéria sio reveladores desses mecanismos de manipulagao da memoria coletiv Lembrat esqutetl sio ages que implicam em selecio de informacées, 0 que significa dizer que, assim como ako hi possibilidades de om Fis, também nfo hi memona sem esquecimento. Sendo « meméria coletiva urna construgio social ¢ um fator de identidade de uma comunidade, entio, como viver com esquecimentos impostos? Como lembsar ou esquecer 0 que mio s¢ permite coabeefE ono conviver diame do. “apagamento” (desmomiri)? Para uma dada coletividade, os prejuizos implicitos esse acesso 20 (des}eonhecido passado bloqueado? Os scsponsiveis pelos aor de chimbo Intino-americanos sabem que © desconheeimenta impede o posicionamento coasciente; sabem, também, do potencial de inérciz que possui o esquecimento conor Usos do esquecimento: 0 confisco da meméria A anilise da temitica da meméria implica em reconhecer que Ii, por outra parte, 0 esquecimento, os siléncios ¢ os icvditos. © esquceimemo pode sex uma opeao de restringir a0 essencial ou, difereatemente, de octltar. Diante dessa possibilidade, pode ser atl a proposta de Burke de “caaminar a organizagio social do esquecer, as regras da exclusio, supressio ou repressio © a questio de guew quer gue queon exgnica 0 qué « por qué” (invertendo, agora, « formula usada anteriormente sobre “o lembrae”). Essa é a fSrmula, para cle, da a —Progeana de Bos Gaadingao om Levas OTST sianésia social, dos atos de esquccimenpaly Na dispata pelo 0 qué lembras, € possivel pensar em entries eubomineas, que surgem e saa) niet nos interstiios dos espagos compreendicos centre o esuecimento € a memoria social, Elas expressam as memérias dos exclios, dos esquecides da meméria ofc TLowwenthal apontou qu passado 6, em pane, produto do presents, endo que, permanentemente 0 individeos ¢ 0s grupos socas, do nova forma 4 memviia,reconstroem-na, asim: como reserevem a historia ¢ utazem as xlguias. Segundo ele, es so 0s motivos bisios que estio por dettis das fabificagies hisénias desse passf] melkosilo; melhorar as Cireunstancias presentes (esveriando os motivos que levaram a ela assogura 2 extablidade do prs sn (pron) opt etd mere Som Enidentemente que se hi usos da meméria, hi também, usos do coa@@imento, Isto aponta para a possbilidade de até intrumentalzar 0s esquecimentos: “hi esquecimentos que Sho usados ou cue sio usiveis pata ceetas ffE=]Esquecer (algo) pode set uma opezo, uma conveniénca. Neste caso, & diferente do rio'tbrar, pois hi, ag, uma agio consciente de aiguém (4 alguém interessa que io se lembee quc.. }; Aa historia tis sinagdes so recorrentes Tevetan Hetorow afirma que os regimes tonlittios do séeulo XX, detarn 4 meméria wm estatuto inédivo na medida em que perseuiram com afino a sua supressio, Fniretanto, politics diversi de censuea ocorteram muito ans, aurea & demas lembrar 6 exemplar trabalho da Ingusicio, Mes no século XX, 0 dominio sobre a informatio c 2 comenicicio redimensionod a spropriagio da momdria num nivel quase abs4{T™. Com sucesso diverso, hi insmeros masts da climinagio de vestigios do passado; dee crnsfoemagio, manipulacio ou magtiamens do (que exist. Sio iavengcs © ments que ceupam © lugar da teadade simultanearaente & proibigio da procura e difisio da verdade®. E isto ocore independentemense de matiz ‘eokigico. Sea sob dtaduras de dieita ou de esquerda, sea soba ditadura do capital, « memria 1 histéria sf0 vias constantes dessa domimaciopterntise recente na (r}eonstrugio de wm ppensamento nico vinculado aos intcxsses da glothllc%o neoliberal mostra a vigéncia desta ciscussio e a permanence Iora pelo controle das formas ausdaumas ¢ centieas do pensamento, reatuizando o ceniio orwelian. Fim relagio isso, insere-se, também, a problematizacio da nostalgia, Os mecanismos que 2 stimula, igulmente, podem excreralguma infiéacia ra disputa em rorno da selacdo de conservar ow esquecer 0 passido, até porque induz qual © passado que deve serlembrado, o1 0 qué do passado deve set reviciefin]Nam presente mazcado por complevidades to indecifveis, 2 profusio da nostalgia sagere nfl wma sensacéo de perda de um tempo sem probiesmas, como capresia, também, a alenacio em rclacio a0 propio presente Assim, a nostalgia pode ser rarc6tco eficiome de pardisia. Por que aio pensar que o sea fomento pode ter implicito 0 cesvariamento das tensBes sociais, desmobiizando, desarmando cers fougas socials © poeas? Seja para nip calientar os dilemas do presente, sca para resgatr um pussado reciclado © “perfeits”, 0 fito & que desempenks um eftta alienador, até porque, a0 visat uma cera compensasio das incertezas do presente ¢ do passado recente, serve de porto seguro, com seus apegos 4 lugares © rostos conheidos, © simacbes previsivels, confortiveis «, literlmente, ‘congelada des Petia no endo do denomiad scialimo el” roi Bas i 4 exprestho “confisco da meméria". Para ele, € uma ida Sinwese que caracteiza a tentatva de espropnagio do passado ¢ a imposicio de um novo eoepo de valores ¢ idlas que se colocam, coniltvamente, conta a meméria ea inerpeetagio do passido anteriormente existent, com © sentido de purgélos, manipulé-los, em bereticio do novo poder estabelecdo. No caso por ele csradado, eis renttiva de contol mosta-se, erospectivamente,insuficiete, apesse de sex uma politica de Estado que ado escamoteow exforgos c meios de controle © manipalagio. Para ele, & Tetrat W2F= [iene © Auton aaRS as memétia coletiva mostrou-se muito mais eocsa do que se poderia imayinar, o que evidenciouse na fase final de desesteururagio do dominio do PC, desde 0 inicio dos anos Py Dois motivos, segundo cle, explicam essa derrote do projeto de confisco: primeiro, a bumlea de que as representagdes coletvas sio indefinidamente maledveis e, se cficientemente afroniadas pela pressio politco-estata, se prestam 2 qualquer tipo de manipulaslo; segundo, © menosprez gera pela populacio ¢ peto senso comum da sua dindmica social: “Pode-sc lhes dizer qualquer coisa que acabatio por acteditar, com a condicio de conservar 0 monopélio da palavra, 0 coniole tal da informasio, de dispor de modemnos meios de comunicacao de massas e dos mcios totatsios de pentch T) Uma off experitncia semelhante, € a do Terecito Reich, sempre paradigmitice. Porém, aqui nos interessa uma simagio diferemte, a de restrturacio da sociedade no pésgucem € 0 significado da fracassada desnazificagio, no que dia respeito & reconstrugio desse passado € insereio da memria nessa experiéncia. O distanciamento do pés-gucera, nos diz Mommsen, no iminuiu a difcukdade da opinizo pabliea em colocarse diante da realidade e da dinimica do periodo naff} De fato, apd queda do nazismo, a sociedad alomi procuzou esvasias aspectos essenciis i, visando seduzir as responsabilidades do mesmo a um pequeno grupo encasteiado no poder, dssociando assim, dessa experiénca, as elves administativas no navificadas, desresponsebilizadas e dispostis a accitar a politica de revisio dos tratados de expansio ingugurada por HitlerYpstyclusive, ocorcram esforgos para recichar histrias locais, como magniicamente retratou Mie Verhoeven no seu filme, Uma Cidade Sen Pastas (sobro fatos veridicos eavolvendo uma fururahistoracora). Dorante tum bom rempo, 0s historiadores do contemporinco trabalharam a histéria recente semi desde @ perspectva do corte radical instaurado pela “ditudura tol”. Enweraato, @ interpretacio paatada pelo enterdimento de que a Alemanha teria sido primeira visina da ‘cupagio do nazismo, esvaziou-se com as pesquisas istSricas sealizadas a partir dos antos tese que responsabiliza Hitler e seu banido reduzindo 0 estudo do Terceito Reich a meia dizi de Diogratias, também foi rejitada, A revolts estudantl do final dos anos 60, aumentou a pressio puta conhecer a csséncia do envolvimento das relagdts da sociedade alemi com o nazismo, durante o entreguerras. Partin de uma gorco mais jovem o questionamento dos seus pais, imputando thes terem filhado ¢/ou mostrado indiferenga e oportanismo politica, diante dos desafios daguele tempo. O esquecimento que parte da sociedade tentou realizar, voltox, repetidamente, através de novas feridas expostas € novos stores socials questionadores, configutando 0 “passado que no quer desaparccee” de Emst Nolte?. Enquanto nio sc encara 0 passado de frente, a ferida aiio termina de ciatf@N] As novas geragées, por varios motives, querem pascar a’ limpo as responsnbilidadcs, éBhciro, porquc io accitam cxpiar uma culpabildde que consideram de outsas geragées. Segundo, porque zejcitam compactuas com a posturs de anestesiamento, Tercera, porque repelem qualquer postura conivente com aquela ‘experiencia histotica. Tratase de um c1so tipico em que abrir o armazém das lembrangas pode set dolomoso ¢ delicado mas acaba sendo necessirio para realizar a reflexio que peamita resolve, definitivamente, “.. a relagdo dos alemies com a sua histéria; é um proceso de longo filego € somente no seu final, € nfo no sex comego, pode aascee o esquecinento”.# Ou seja, esquecer apés conhecer, csqueces, como opeio, apds refletir para amadurecer um esquecimento de consenso, coletvo. Tudo isto é bem diferente de um esquecimento que oculta 0 passado e deixa feridas permanentemente aberts uum confisco tito de memoria desde @ pritia de uma polica de Estado, como a Sockcher Bacako, ou como a que se vineula aos regimes latin: sinericanos ou mesmo & prdptia dominagio nazista nz Alemanha. Mesmo assim, nio deixa de realizar 0 ocultamento ¢ sus efeitos sto deformacdores, além de distibuir sobre outos a suspeita € a responsabilidade de uma geracio especiica, © silencio, © nfo eselarecimento dessas quests, o desconhecimento desse passado, nan colocam uma outta problemitica, @ de servis de fermento para as arpumentagdes que negam os scontecimentos falém da perda do potencial pedagdgico que implictamente possut 0 ato de mat). Ecsta linha, que se colnea 0 clissico debate de VidalNaquet com as sexes egacionists (fevisionistas} do holocaust. Em primero lugar, toma emprestado de Yerushalii 0 rermo “assassinos da meméra”, erado pars identificar os revsionistas, Depois, coloca aaumas consideragdes a respeito da meméria e da historia que interessam para esta discussio, principalmene por trstarse de casos limites onde hi uma intencionalidade de apagar a histca Seu ponto de partia é de deixar ber claro que a memoria ¢a histria diferem entre si pelo modo de selegio do passado, Por isso, memiria ¢ histérla podem dispucar entre i e ypur-se em relacio fo que Se quet preservar, enquanto conheciznento legitimo. De forma enfitica, mostra com que armas concretas deve colocar-se 0 historiador diante dos “assassinos da meméra”, da entra: {.) mio me proponho responder a essa acustcio global situando-me no terreno da afetvidade. Aqui aio se trata de sentimentos sento da verdade. Esta palavra, que antes pesava, hoje tem uroa tendéncia a dissolverse. Esta & uma das impostunis do aosso século, sumamente rico neste temcno”, Esgrime entio, 0 argumento mais sélido e, por sua vez, radical para enfrentar 08 detratores negacionistas: “Que fique entendido, de uma ver por todas, que niio texpondo aos scusadores, que m0 dialogo com ees sub nenhum aspec. Ur diogy eure dois otter, cembor sejam adversirios, supie um terreno comum, um comum respeito ~ no encontto ~ pela verdade. Mas esse terreno nio existe com os revisionist claro que a verdads absoluta é inaleangivel. Poucos fatos, entretanco, sto tio inquestiona¥€® quanto tado aguilo que se insexe no holocausto, firtamente decumentado, testemuchado ¢ lembrado. A veeméncia do posicionamento’ de Vidal-Naquet, foremente engajado contra o esquecimento, sem chivida alguma, nfo se distancia em nenhum instante de justiicaivas pautadas pelo conhecimento Centfico (histérico) e essas sio as armas que the permite desconsiderat os negacionistss, como Jnterlocutores 4 respeito da revisto histérca da Segunda Guerra Mundial. Ou seja, a0 accita debater com quem baseia seus angumentos 2 parts Ue pressupostos histérioos ceconbecidamente falsos (constatado na volumosa producio historice existente), fora da Kigica cienifica e através de 1uma meméria pata por premissas ise: Em hima instincia, a sonegacio "& informagio, da cxperiéncia © a imposigio do esquecimento, io mecanismos nevessitios para consolidar 0 ancstesiamento getal ¢ a desrsponsabibegdo histérica, Tais mecanismos contaibuem para a implemtacio de uma memétia “reciclada” que interessa 20 poser dominante © que, evidentemente, se afista ainda mais do (passado histéiico} rea ‘Comparativamente, © problema da permanéacia de um “esquecimento velado” ou de siléncius sulne « capetizuvis histiica, fovsin une atiuale mais ou menos gencralizada em larga camadas da populagio alemi e, provavelmente, estimulad pot interesses coneretos de algumas instiuigdes ¢ de alguns setores soins especi—auy © que pode ser explicado por vitios motives. Primeiro, pela resignacio e acetagio dalplpulacio em gerl, diante das scusagdes ¢ sesponsebillzagdes de todas as culpas possives,cificultando 6 othar retoxpectivo sobre o passado imediato. Segundo, pela necessidade dos grupos — intemos — derotidos pelo nazismo, ow daqueles profundamente marcados pela tagédia da guerra, de elaborar um esquccimento que afistasse 0 terror da repressio do Reich, assim como os horrotes do conflio. Terccto, pela questéo de sobrevivéncia de serores nazistas ou mais ou menos prOximos das ctculos do poder, que precisavam prescrvar-se ¢ reintegrar-se numa Alemanha diferente, demineritica ¢ com todas as mazelas de um debicado pos-guerra. Quarto, pela tentativa de convencimento de que 0 peso do nazismo havia diminuido sensivelmente ¢ justfiando, portanto, o fim da desnaziticagio ou seu abrandamento, © que, evidentement, dizia respeito, concretaments, a detesminados interesses econdmicas € setores sociais. Quinto, pela conjunturs de pos-guerta € 0 affouxamento dos aludos ocidentals no peocesso de desnazificagio, na medida em que precisavam de novos aliados Tetra jerrura 6 Aa ‘arm a7 pin enfenat 0 novo inimigo, a UPS Porant, ves que a suagio desc par o cso alemiio pOs-narismo, mostra pes ignificaive da popubagio quetendo esquccer (embors pressdes interas especificas ¢ da comunidade internacional sempre eviaram constrangimentos €

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