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3 Tres ESTUDOS DOCUMENTAIS (Como podemos estudar as paisagens sonoras que existiram antes {a invengdo dos gravadores edosinstrumentos demedida? EmA afi nagdo do mundo, faei do valor das deserigdes de testemunhas auditi- vasfeitas porindividuos que ouviam cuidadosamenteo ambiente em we viviam, Embora possafaltar acuidade técnica a essas descrigées, isso €compensado pelo fato deelas nos ofereceremopinides pessoais « teflexdes a respeito dos sons descritos — que € algo que os micro- fones nunca farao. As seguintes trés vinhetas de paisagens sonoras umplamente variadas feitas por um pintor e dois autores sdo exemn- pplos da espécie de pesquisa que estou propondo. Elas exemplificam \ipos muito diferentes de paisagens sonoras, como os titulossugerem. A paisagem sonora dialética Nao ha som na fragio de segundo em que imagens pictéricas ivem, Mas 0 som pode ser sugerido pelo movimento, e quanto ‘nui for sua variedade e energia, mais ressonante a superficie pict- rica se tora, Entre os pintores da Renascenga, um cujas telas vibram thio apenas com sons, mas também, e muitas vezes, com cheiros € (a.comida esta frequentemente presente), é Pieter Brueghel 58 R. MURRAY SCHAFER e, assim, onde todos os outros documentos falham, podemos perce- ber alguma coisa da vida actistica das cidadezinhas e dos campos fla- ‘mengos do século XVI, fazendo listas de eventos sonoros sugeridos por suas pinturas. EmA Batalha entre o Camaval e a Quaresma (1559), somos apre- sentados as transformagies da paisagem sonora que ocorriam no Carnaval (os trés dias que precedem a Quarta-feira de Cinzas). Duas procissées se confrontam, a primeira delas formada por barulhentos seguidores do Carnaval, fantasiados e tocando instrumentos musi- cais feitos artesanalmente. A outra, uma procissao de Quaresma, com criangas, freiras, padres e mendigos, embora mais austera, nfo é de modo algum silenciosa, Fonte: Kunsthistoriche Muscur, Viena. Utilizada com autorizaio. vozespamRania 59 Dois edificios simbélicos ordenam a pintura: a Taverna Navio Azul,! Aesquerda, ea igreja, adireita, Outrascasas formamofundo, As casas ndo so muito altas; as ruas so amplas, a grande praca da cidade nao € pavimentada e tudo sugere um espaco seco e nao res sonante, condizente, portanto, com a grande vatiedade de eventos conflitantes, 08 quais povoam a cidadezinha. Todas as constru- ses parecem ser feitas de tijolo e madeira, exceto a igreja, que é de pedra, Os sons da praga parecem ter perfurado as construgdes wculares, atraindo os espectadores (ouvintes) para as janelas aber- (as. Nenhum dos espagos internos dessas construgées apresenta qualquer identidade. O caso da igreja é diferente. As portas esto abertas ea escuridao interior sugere uma poderosa ressondncia que parece brotar do edificio, aderindo as roupas pretas dos peniten- tes que se vao. Figura Ve Blue Ship Tae no original. (N.T.) 60 R MURRAY SCHAFER ‘A praca contém bem mais do que cem pessoas, de todas as ida- des, algumas felizes, outras tristes e outras, ainda, silenciosas. Aque- les comas bocas mais abertas sio os mendigos e aleijados, ea pintura contém um bom niimero deles. Estranhamente, hé poucos animais presentes. Contei apenas dois: um porco atrs do poco, no centro, ¢ ‘um péssaro em uma gaiola pendurada do lado de fora de uma casa, na parte superior esquerda da pintura (circulada na pagina 64). Nao ha cies, gatos ou algum passaro voando, Sem diivida trata-se de uma paisagem sonora humana, © Espirito do Carnaval esté montado em um barril de vinho, apoiado sobre patins, empurrado por seus seguidores. Seu pé este ‘uma panela conectada a uma corda, de modo que pode chuti-lacon- tra o barril. Seus seguidores, vestidos com fantasias bizarras, estio fazendo barulho com um conjunto de instrumentos. Podemos dis ‘tinguir uma mulher com um tambor de friegdo, um homem batendo dduas canecas (de lata?) uma na outra, uma mulher raspando uma faca em uma grelha, um tocador de alatile com uma panela de metal sobre aacabega, e uma figura mascarada com o que parece ser uma matraca, Dois outros personagens, o andoem frente ea mulher atrés, tém, res- pectivamente, uma colher e uma panela presas a artefatos de cabeca «que poderiam ser produtores de ruido. (© Espirito da Quaresma € uma velha bruxa magra em um carti- rho, arrastada por um padre e uma mulher (esse é um dos dois car- tinhos com todas de madeira na pintura). Note-se que a Quaresma esté calgando tamancos de madeira. Atrés dela, muitas criangas car- regam o que parecem ser batedores ou blocos de madeira ~ wood blocks. Lembramos que, durante a Quaresma, nenhum sino de igreja toca; seu som é substituido por matracas de madeira. Nenhum sino esté em evidéncia na pintura, tampouco ha qualquer produtor de ruidos de metal na procissio da Quaresma. Mencionei a resso- naincia que as freiras parecem estar carregando para fora da igreja, ‘mas, naturalmente, isso uma ilusio; as freiras nao estio cantando. © tinico som real associado a igreja 60 das preces de muitas figuras ajoethadas, que tomaram posigao sob os arcos para que seus pedidos pudessem ter amplificagao favoravel. VOZES DATRANA 6 62 R MURRAY scHAFER Figura 6 Hi duas pegas de teatro de rua sendo encenadas. Defronte da ‘Taverna Navio Azul, um grupo esta representando um esquete, que {foi identificado como De vuile Bruid [A noiva suja]. Nesse grupo, ‘notamos um homem com uma guitarra falsa, feita com uma pa de carvao e uma faca. Fora da casa, acima, no canto & esquerda, outro grupo de atores esti representandoamascarada de Ourson and Valentin, vistade den tro da casa por um grupo de espectadores. ‘Muitos grupos de criangas brincam. Na parte superior direita, ‘um grupo esta brincando com tampas. Ha sete tampas na pintura, «e quatro delas esto em movimento, Embora todas sejam ativadas por cordas, ha trés formas distintas, que fornecem (presumimos) 20 ‘menos trés tonalidades diferentes quando giradas. VOZESDATRANA 63 A esquerda, um grupo de criangas mais velhas esta brincando de Jangar 0 pote. Um pote de barro estd despedacado no chao, ¢ outro parece ir pelo mesmo caminho. 64° R MuRRay scHAFER Atras deste, outro grupo est pulando em uma toda. Provavel- ‘mente, uma cangao ritmica acompanha sua danca. Figura 8 Hi outros grupos de pessoas na pintura, e um dos mais notaveis deles é um de aleijados com muletas de madeira (ecom a boca aberta) no centro da praca, Os sons precisos de outras atividades sao incer- tos, exceto.os dos misicos. Um tocador de gaitade fole€ visto (acima, ‘ao centro) e, na parte central mais distante, no fundo, um homem toca uma flauta transversal, acompanhado por um tocador de tam- bor, embora isso seja quase imperceptivel ‘Toda a pintura ¢ avivada com sons, ¢ cada um dos instrumentis- tas que lideram tem seu proprio produtor de rufdos identificado. E, apesar disso, embora haja conflito, nao ha desordem, Ninguém esta protestando contra o ruido, e nenhum som tinico domina ou parece dominar a cena, pois ela tem tantos centros actisticos quantas sao as VozEsDATIRANA 65, atividades. Nada aqui € hi-fi” Cada som é ouvido na presenca dos outros. A vitalidade essencial esta na dialética dos sons, e 0 entu- siasmo ea satisfagio dos ouvintes estio tanto na sobreposicio de sons quanto na escuta deles. Hi zonas silenciosas na pintura. Os quatro cantos sio silentes; mas também é assim no centro, em que um personagem fantasiado le bobo pode ser visto distraindo um casal (cujas costas esta volta- «das para nés). Os tons claros do chao onde esta esse trio tornam esses personagens o ponto central da pintura; as atividades mais frenéti- cas sto desviadas de um centro mudo, mais uma evidéncia de que, embora estejamos testemunhando uma paisagem sonora repleta, 0 pintor ndo sugere que ela seja barulhenta. Ha ainda, por assim dizer, uma tonalidade fundamental para wa paisagem sonora. Além da atividade vocal humana, ha outra, sracterizada por seu principal material: a madeira. Nosso inventa- rio revelou tampas de madeira, rodas e patins de madeira, barris de ‘madeira, portas e janelas de madeira, uma escada de madeira, mule- lus de madeira, mesas e cadeiras de madeira, matracas de madeira, hualdes de madeira e até mesmo uma fogueira de madeira, Toda pai- em sonora caracteriza-se por seus materiais predominantes, mas va avaliagdo real dessa afirmativa teria de aguardar ma compara- ‘slo da pintura de Brueghel com outro documento, que fosse, subs. incialmente, muito diferente. A paisagem sonora fechada NolivroVI da sessao “Cosette” de Os miseréveis, Victor Hugonos |i uma boa descrigao do que poderiamos chamar de uma paisagem inora fechada, aquela voltada para si mesma e que nao admite dis- {vagSes estranhas, como uma composigao musical. A cena éa comu- nidade das Bernardinas da Obe: ia de Martin Verga, uma ordem 11: fc abveviagzo de alta fideldade. Usado por Schafer para significar uma pai ferhuitos sons predominam sobre outros. Ver A afnazo do ) 7.365. (N. 66 R MURRAY SCHAFER rigida de freiras, abrigadas entre paredes de aproximadamente seis metros, no nimero 62 da Petite Rue Picpus, no centro de Paris. A data € 1815, Desenhei um quadro da clausura (pégina 67) a partir da extensa descrigao de Victor Hugo. Nao é necessaio que nos dete- nhamos & histéria de como Jean Valjean e Cosette passaram a viver no convento. Hugo dramatiza a impenetrabilidade do lugar, contando-nos que, sem conhecer a senha, nenhuma entrada além da portaria era permitida. Apés repetir a senha, tinha-se permisséo para subi uma estreita excada em diresdo a uma pequena sala, De um lado, havia ‘uma grade e uma fita presa a um sino, Ao puxar a fita, 0 sino soava e uma vor se ouvia, muito préxima, assustadora: “Quem estd af?”, perguntava. Erauma vor demulher, uma voz suave, tanto que chegavaa ser triste. Aqui, novamente, ha uma palavra magica que é preciso conhe cer. Caso contrario, a voz nfo mais seré ouvida, ea parede mais uma vez silenciaré, como se a selvagem obscuridade do sepulero estivesse do outro lado, Supondo que voeé soubesse a palavra magica e tivesse permis sao para entrar, descobriria um complexo de edificios em torno de ‘um jardim central, cada qual com seus préprios sons caracteristicos, Em uma das esquinas estava a capela do velho convento, na qual as freiras observavam as sete horas candnicas da Igreja, comegando com as matinas, tomadas diariamente, entre 1h00 e 3h00. As freiras cantavam os oficios em um “puro cantochao, sempre com voz forte, por toda a duracio do oficio [...]. Para ooficio da morte, elas adotam ‘um tom tao grave, que é dificil para vozes femininas o alcangarem, O efeito ¢ emocionante e tragico". Ocasionalmente, havia servigos piiblicos na capela. Quando isso acontecia, as freiras ficavam escon- didas detrés de uma cortina de cerca de dois metrose meio. “Quando as freiras vinham aos oficios nos quais as regras recomendavam silén- cio, o piblico era advertido de sua presenca unicamente pelo som de evantare sentar de seus acentos.” YOZESDATRANIA 67 ‘As Bernardinas de Martin Verga observavam as regras de silén- cio toda sexta-feira, “Essa regra de siléncio tinha o seguinte efeito: em todo oconvento, a fala era retirada das criaturas humanase dada ‘objetos inanimados. As vezes, erao sino da igreja que falava, as vezes «rao do jardineiro,” O sino do jardineiro ficava preso em seu joelhoe soava por todo lugar aonde ele ia, avisando as freiras de sua presenca, © Conventinho, também situado num canto do espago, era habi- ‘ado por freiras mais velhas de varias ordens, cujos conventos tinham ido destruidos durante a Revolugdo. Hugo as considera uma comu- widade “heterogénea” quando comparadas com as Bernardinas, que 'habitavam as celas do Velho Convento, ao longo das paredes opostas "0 complexo, ecujas vidas eram reguladas por rigidas formalidades. las vivem em celas abertas. Quando se encontram, uma delas ‘lz: "Gragas e adoragio ao Santissimo Sacramento do altar”. A outra ‘esponde: “Para sempre!". O mesmo ritual é epetido quando uma Inte porta daoutra, Mala porta étocada, uma vor suave éouvidado ‘vst lado, dizendo, precipitadamente, “Para sempre!” Como todos Ws do Convento das Bernardinas na 62 Petite Rue Picpus, Paris, por Ie 1815, deaeordo com a descrigdo do Livro VI, “Cosette”, de Os miseré- Hh le Victor Hugo, 68 R MURRAY SCHAFER os rituals, isso se torna mecanico pelo habito e, as vezes, alguem diz, “para sempre” antes que a outra tena tido tempo de dizer “Grasas e adoragdo ao Santissimo Sacramento no altar!", que é, na verdade, muito comprido. ‘A mesma frase € repetida por toda a comunidade depois que 0s trés sinos sinalizam cada hora do dia (O internato de meninas, na outra esquina do complexo, tem caracteristicas muito diferentes. Durante o recesso, las tém permis- siio para entrar no jardin, Depois dos cantos, do toque dos sinos, dos dobres de finados e dos oficios, todos de uma vez, esses sons das mocinhas irrompiam, fortemente, mais doces do que o zunir das abelhas. A colmeia de alegria estava aberta, e cada uma trazia o seu mel. Blas brincavam, chamavam-se umas As outras, formavam grupos, corriam; lindos dentinhos brancos tagarelando nos cantos, véus vigiavam a alegria ‘a uma distancia, sombras espiando o pér do sol, mas o que importal Elas brilhavam e riam. Essas quatro paredes tristes tinham seus ‘momentos de perplexidade. (O calendério da comunidade das Bernardinas era pontuado com absoluta regularidade por uma galixia de sinos, Vamos fazer um inventério deles (vide niimeros no mapa). 1. sino da porta na porte cochére, ji mencionada. 2. O sino “muito sonoro” de convocacio de Portress, “uma espécie de telégrafo acistico” pelo qual as pessoas podiam ser chamadas a0 ocutério. “Cada pessoa e cada coisa tinha seu toque especial. O da superiora era um e um; a subsuperiora tinha um ¢ dois. Seis-cinco anunciava os rectativos, de modo que as alunas munca diziam ir a0 recitativo, mas ir a0 seis-cinco, Quatro-quatro era osinal de Made- moiselle Genlis. Era ouvido muito frequentemente[...]. Dezenove Em francés no original. Trata-se de uma porta larga das cocheiras de animais, largas o bastante para por cla passarem carruagens. (N.T.) vozEsoATRANA 69 batidas anunciavam um grande evento. Era a abertura da porta Jechada, uma desagradvel placa de fero erigada com parafusos que girava sobre suas dobradicas somente ante o arcebispo.” 3. O sino de joelho do jardineiro, “Parecia vagamente o soar de sinos dle vacas no pasto,& noite [...]o som do sino seguia cada movimento do homem. Quando o homem se aproximava, o som se aproximava, ‘quando ele se ia, 0 som se ia; se ele fazia algum movimento brusco, um tinir acompanhava 0 movimento; quando ele parava, 0 barulho cessava,” Depois de Jean Valjean ter se tornado assistente de jardi- neiro, “dois sininhos eram ouvidos tilintando no canto do jardim [..J: Grande evento!” 1. O sino da capela. “A cada hora do dia, trés batidas suplementa- res soavam do sino da igreja do convento, A esse sinal, a superiora, as mies, as freiras professadas, as irmis serventes, novigas, postu: lantes, todas interrompiam o que estavam falando, fazendo ou pen- sando e diziam, a uma 96 voz, se, por exemplo, fossem cinco horas: As cinco horas, ¢ em todas as horas, gragas e adorago ao Santis- imo Sacramento do Altar!”. Se fossem oito horas, “As oito horas, € «cm todas as horas” ete., assim por diante, de acordo com qualquer hhora que fosse”. 5, Uma morte no convento é anunciada por um sino especial. “Uma ‘unica batida de um sino foi ouvida. ‘A freira morreu’, ele dia, ‘Ha um dobre de finados.’ ele fez sinal para que Jean Valjean ouvisse. (Osino soou uma segunda vez{...]. Osino vai batera cada minuto por vintee quatro horas, até que o corpo saia da igreja.” (6 Havia outros sinos: um para dizer ao porteiro para chamar 0 Iédico; outro quando o médico partia; ainda outro, “um compli- ‘culo soae [.] para as maes, Sempre que alguém morre, érealizada ‘uma reunido dos membros da comunidade de freiras. © material sonoro predominante do Convento da Obedién- Jy de Martin Verga era o bronze. Ele soava dia e noite o ano todo, velo durante a Quaresma, quando, como na época de Brueghel, s\n substituido pelo som de matracas de madeira, com efeitos sur- jpivendentes, como se pode imaginar. Hugo nao menciona isso, mas 70 R.muRRay scHAFER aceitamos sua descrigdo, tao distante quanto for ela, pois ele era um cronista com uma audigdo bastante agucada, mesmo quando seus ‘ouvidos pareciam o iludir. Para provar isso, passamos a seu tiltimo romance Ninity-three, no qual encontramos um senhor idoso (pode- ria ser 0 proprio Hugo) em pé em uma praia da Bretanha a0 creptis, culo, quando sua atengao € atraida por uma visio incomum. Eleclhava para atorre do campanitio de Cormeray, diretamente na frente dele, além da planicie. Na verdade, algo extraordinério acontecia na torre © contorno dessa torre era claramente definido; ela podia ser vista encimada pelo pindculo, e entre a torre ¢ 0 pinéculo estava o campanério, quadrado, sem anteparo e aberto para todos os quatro lados, de acordo com o estilo bretio das torres de sino. ‘Mas esse campansrio parecia alternadamente aberto e fechado a intervalos regulates; sua janela alta mostrava tudo branco e, entéo, tudo preto; o céu podia ser visto através dela, em seguida, nlo podia ‘mais se visto; havia luz e, entfo, ela se eclipsava, eo abrir eo fechar seguiam-se um ao outro, um segundo depois, com a regularidade de ‘um martelo em uma bigorna, Essa torre em Cotmeray estavaa cerca de duas éguas de distan- cia,em frenteao senhoridoso. Quase tao longe, sua dieita, no hori- zonte, ele viu o campanério de Baguer-Pican, que se abria efechava cdo mesmo modo que em Cotmeray. Ele olhou para a sua esquerda, para a torre de Tanis. O campa- nirio da torre em Tanis estava abrindo e fechando, justamente do ‘mesmo modo que em Baguer-Pican. O que significava isso? Sighificava que todos os sinos estavam tocando, Para aparecer e desaparecer desse jeto, eles precisavam ser puxa- dos com muita forg. O que era isso, entio? Evidentemente, o toque de alarme. Eles estavam tocando o alarme, fazendo-o soat freneticamente em todos os lugares, em todos os campanérios, em cada paréquia, em cada vilarejo, e nenhum som chegava a seus ouvides [..] VozESDATIRANIA. 71 ‘Todos esses sinos soando loucamente de todos os lados, e, a0 mesmo tempo, siléncio; nada podia ser mais estranho. (O velho homem olhava e tentava ouvir. ‘Nao escutou o alarme, mas o viu. O alarme, o sino de alarme da Revolugio Francesa, ficou mudo com 0 vento maritimo da noite. O alarme, que logo silenciaria os sinos de todas as igrejas e monastérios, devolvendo-os as fundicées, para serem fundidos em canhées. © alarme, bizarramente introdu rido pelo escritor genial como —siléncio, A paisagem sonora aberta O romance A estepe, de Anton Tehekov, € 0 relato ficcional de vuma viagem feita pelo autor, quando crianga, pelas estepes da Ucra- nia churante uma onda de calor, em julho. Ricoem detalhesactisticos, \unto descritos quanto implicitos, exemplifica uma paisagem sonora \ue 4 foi familiar para muitos, mas atualmente é bastante exética para a maior parte das pessoas. A viagem, que durou varios dias, é ‘onstruida sobre duas recorrentes notas fundamentais, como se fos- wma ténica e a dominante de uma composi¢ao musical. A ténica é \razida pelos sons da natureza, ea dominante, pelo vagio barulhento ue transporta os viajantes. Blesacudia erangia a cada movimento; obalde, pendurado atrés, hadalava grosseiramente e, somente por esses sons ¢ pelas tiras de ‘couro surradas soltas sobre seu corpo descascado, era possivel ima: tuinar que era muito velho, pronto para cair aos pedagos.* Aqui esta um som ou, para ser mais preciso, uma vibracdo que ivompanhara 08 viajantes a cada dia, afetando sua fala do mesmo Tica as eitagdes so da tradusio de Constance Garnett de The Steppe, do v7 le The Tales of Chew (Nova York, 1988). 72 R. murray scHAFER jeito que as roupas ditam o comportamento: 0s comentarios sio agi tados; os pensamentos, desordenados; e as observagées, aleatorias ‘Quando o vagio para, 0 acompanhamento estridente se eleva para uma paisagem sonora natural de amplas dimensdes, as vezes arran- jada pelo autor em camadas: préxima, a meia distincia, longe. Por exemplo: ‘A quietude reinava. Nao havia nenhum som, exceto 0 mastigar € oresfolegar dos cavalos e oronco dos que dormiam; em algum lugar, 0 longe, um quero-quero gritava e, de tempos em tempos, soavam 8 gritos estridentes das narcejas nas érvores, que tinham voado para ver se seus visitantes nio convidados tinham ido embora; 0 riacho balbuciava, murmurando levemente, mas todos esses sons no quebravam a quietude, ndo agitavam a estagnagao, Ao contré- rio, embalavam toda a natureza para dormir. (p.176) Como o vagio, a paisagem sonora da estepe é, também, solto- -articulada, o tinico som sineronizado é 0 de uma fila de cottadores, com suas foices mavendo-se juntas, em unissono: “vali, vziil”, Os cachorros latem intermitentemente, anunciando a aproximacio de desconhecidos de uma maneira familiar aos moradores do campo em. todo o mundo. F uma paisagem sonora de perto ¢ longe, enquanto ‘0 vagio passa, o que esta longe vai ficando mais perto, e 0 que esta perto vai recuando em uma flutuagéo nebulosa, Em qualquer pai- sagem sonora havera sons estacionérios, sons que se movem e sons que vio junto com os participantes; mas no relato de Tchekov tudo parece estar subindo para o céu sem limites. Quando uma mulher cantaaolonge, a fonte sonora no pode ser localizada devido ao feito das ondas quentes do ar estagnado do meio-dia. Em algum lugar distante, uma mulher cantava, e era dificil dizer de que lugar e em qual diregdo. A cangao era controlada, monétona cemelancélica, como um canto triste edificilmente audivel, eparecia vi primeiro da direita, depois da esquerda, entio de cima e logo de baixo, como se um espirito invisfvelestivesse pairando e cantando vozesDATRANA 73 sobre a estepe. Yegorushka procurou e ndo pode compreender de conde vinha a estranha cangao. Entao, enquanto a ouvia, comesou a imaginar que a grama estava cantando [...] comegou a parecer que essa cangio triste e melancélica deixava o ar mais quente, mais sufo. cante e mais estagnado [...].(p.178-9) COcasionalmente, pequenos eventos so ampliados a curta dis- tincia, como quando a crianga, Yegorushka (Tchekov), pega um afanhoto e o segura por bastante tempo entre as maos em concha, ‘ouvindo a criatura tocar seu instrumento”. Grilos, gafanhotos ¢ jpissaros so como notas dos instrumentos de sopro de madeira da orquestragao de Tchekov. (Os petréis do Artico voavam por sobre a estrada, dando gri- tos de alegria, marmotas chamavam-se umas as outras na grama Em algum lugar, longe, & esquerda, os quero-queros pronuncia~ vam seus tons queixosos. Um bando de perdizes, assustadas com ‘o cabriolé, agitou-se e, com seu leve “trrr!", voou para as colinas. Na grama, grilos e gafanhotos mantinham sua miisia chilreante e monétona. (p.166) Outras vozes na orquestragdo: quero-queros, gralhas, codor~ vives, abetardas, um falcdo. Tchekov mostra 0 conhecimento do hhomem do campo a respeito do canto dos pasaros. (Codornizes e codornasndo cantam nas noitesdejulho; orouxinol no canta no pintano da floresta, (p.210) \ mudanga circadiana dos sons da noite é dramética na estepe. Um alegre e jovial burburinho ascende durante a noite, de uma forma quendo se ouve durante odia; chilreando, piando, assobiando, raspando, os baixos, tenores e sopranos da estepe, todos misturados 1m um incessantee monétono rumor desons, no qual édoce meditar vobrelembrangase tristezas. O monstono piado acalma para dormir, TAR MURRAY SCHAFER ‘como uma cangao de ninar; voc dirige e sente que est pegando no sono, mas, de repente, lé vern 0 abrupto e agitado grito de um pés- saro acordado, ou um som remoto, como uma vor que grita com admiragio “A-ah, a-ah!”,¢0 sono fecha suas palpebras de novo. Ou ‘voc’ dirge até o lado de um pequeno riacho onde ha arbustos eouve ‘grasnar o passaro que os habitantes da estepe chamam de “odormi- nihoco”: “Asleep, asleep, asleep!”,* enquanto outro passaro ri ou se ‘quebra em trinados de choro histérico—€ a coruia. (p.210) Por causa da escuridao na qual todos os sons sao inesperados, os sons ouvidos & noite afetam o ouvinte de um modo muito mais emo- ional do que aqueles ouvidos de dia. No zumbir dos insetos [...] no voo dos pissaros noturnos, em tudo que se vé e ouve, beleza triunfante, juventude, a plenitude do poder ea apaixonada sede pela vida comecam a aparecer; alma res- ponde ao chamado de sua amavel eaustera patria, eanseia voar sobre as estepes com o péssaro da noite. E no triunfo da beleza, na exube- riincia da felicidade, fica-se consciente do anseio e pesar, como sea estepe soubesse que era solitria, que sua riqueza e inspiragao foram desperdigadas para o mundo, no sendo glorificadas em cangio nem, desejadas por ninguém; e através do alegre clamor ouve-se seu triste edesesperansado chamado aos cantores, aos cantores!(p.212) HA sempre uma qualidade infinita nas descrigdes da natureza de Tchekov, levando os primeiros criticos russos a chamé-lo de “impressionista”. Assim é que a agua entra no conto discretamente, apenas como insinuagZo, embora, no final, ela forme oclimax da his- tria, No primeiro dia ao a livre, os viajantes param ao lado do ria cho. Como qualquer som continuo, ele parece retardar a passagem do tempo. “O riacho borbulhava monotonamente, os cavalos mas- tigavam eo tempo se arrastava infinitamente [...]" (p.181). Muitos dias se passam antes que se encontre agua novamente; dessa vez, 5 Asleep significa “dormie", 0 que justifca onome“Dorminhoco”.(N.T) VozesDaTRANA 75 um “quieto e modesto riozinho” que ressoa com “bufos e espirros” enquanto os viajantes mergulham para nadar. O terceiro evento com igua € uma tempestade violenta, que ocupa seis paginas de vivida desericZo, na qual osom, pela primeira vez nanarrativa, torna-se vio- lento. O evento é anunciado pelo trovao distante. Havia um som como se alguém de muito longe estivesse cami- nhando sobre um telhado de ferro, provavelmente descaleo, pois 0 ferro fazia um som ressonante. (p.272) (O vento entra e surge pela frente. (© vento se arremessa, assobiando sobre a estepe, girando em desordem elevantando tanta turbuléncia da grama quenem o trovao ‘nem o rangido das rodas podiam ser ouvidos. (p.273) Depois vem a chuva, a principio como “um som calmo e regu- lar” e, entio, comegando a tagarelar “como duas pegas”. Trovo ¢ rao se seguem: De repente, bem acima de sua cabega, 0 céu rachou com um barulho ensurdecedor de dar medo,[.] 0 céu agora nio estava ros- nando e retumbando, mas pronunciando pequenos sons percutidos, como o estalar de madeira seca. “Trrah tah! tah! tah!", 0 trovao tocou dlistintamente, rolou no céu, pareceu tropecar, e em algum lugar perto dos primeiros vagées, ou bem atras, caits com um abrupto raivoso “Trrra! (...] Trrah! tah! tah!", flutuou sobre sua cabega, rolow ‘ob 08 vagbes e explodiu “Kral”. (p.275-6) Os trés eventos com agua esto amplamente separados na his- (ora, mas qualquer um que tenha viajado por uma drida paisagem \Jurante muitos dias sentiré sua importéncia, nfo apenas como pon- \ aces refrescantes da jornada, mas como pontos focais modelando (oul historia, 76 R.MURRAY SCHAFER Introdugio Riaeho Aviagem Rio Aviagem Tempestade Conclusto paginas consis ceatinua 24 paginas Soppasinas “ mm) Chegando ao destino final, uma pequena cidade onde Yego- rushka deve ir escola, a fala ¢ normalizada, as vozes cessam de gri- tare ficam quase caladas, pois o menino pegou um resfriado durante a tempestade e ficou de cama. A chegada é uma coda; o verdadeiro climax é a tempestade, Somos lembrados de que, em todos os luga- res, em ambientes parcamente habitados, as vozes mais autoritérias so as da natureza, e 0s humanos sfo reduzidos a ouvintes,filtrando ainformagao dos elementos para determinar como eles podem afetar seu bem-estar. Essas vozes vém de perto € de longe, especialmente de longe; ¢€ assim que a paisagem sonora aberta se distingue da pai- sagem sonora fechada do morador urbano, em que tudo é fechado, denso e, as vezes, confuso. Hoje, todos os sons precisam ter “pre~ senga” para serem ouvidos, e os microfones usados na miisica, na radiodifusio e nos telefones intensificam essa presenca. A visio foi alterada, do mesmo modo que arranha-céus cada vez mais altos iso- lam o horizonte. Perdemos o habito de escuta distante e entramos em uma nova era na histéria da consciéncia sensorial. Aproxima- damente no mesmo momento em que T'chekov estava escrevendo, sir Richard Burton, pesquisando 0 deserto pr6ximo ao Cairo, falow sobre a eloquéncia dos “sons adogados pela distancia”. A poesia de tais sons é 0 que distingue A estepe das crdnicas sonoras dos autores ‘urbanos mais contempordneos. 4 TrES REFLEXOES A paisagem sonora iluséria Em um dos perfodos menos estimulantes de minha vida, passei Jois anos vivendo em uma casinha nos fundos de uma propriedade, nna Warren Road, em Toronto, em uma area da cidade que seus ha- bitantes chamavam, um pouco melancolicamente, de Lower Forest [ill -embora as verdadeiras mansdes de Forest Hill comecassem a0 norte da avenida Saint Clair. Todavia, aquele era ainda considerado uum bairro muito bem localizado pelas pessoas que conheciam To- rontoetinham um respeito verdadeiro por aquelas éreas financiadas jor familias tradicionais. [uma vizinhanga de casas grandes, vastos jardins e velhos pléta- hosebelaseenormes castanheiras. Nos arredores ficaa Casa Loma, a Neuschwanstein' de Toronto, construida por um milionario da cidade ho inicio do século XX, infelizmente nao em homenagem a um | Newsehuansten —castelo construido por Ludwig II na Bavéria, Alemanha, no ‘inal do sécalo XIX, nas ruinas de ur velhocastelo, em homenagem a Richard Wagner. Hojecle Gabertod vistas pblica, A Casa Loma, em Toronto, éuma residéneia enorme, também aberta a vstario pablia.(N.T.)

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