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FILO auténtica Judith Butler Relatar a si mesmo: critica da violéncia ética Tradicao Rogério Bettoni Postécio Maadimir Safatle Copia ©2005 Fordham Unisys Copy ©2015 Aurea Eda “Tuo gna: Ging an Account of Ones Todos co dros revvados pla Auntie tora. Nenhuma porte desta pubicaao dea ext repro, sn pot ees Metarico, aetricos, ea va cons rear, fom utr preva a Estos Siten ann (ala Maries Gikon ani (UFOF datas Cassin Bago Braschi ats lao Ofer (UP; Do ee Marcondes PUC-Re), man’ Chaves ie Sober TUFPaR Giiherme Caste Branco URE ‘oo Cars Sls (UF), Monigae ee ‘ana a) Ole Penta "UFO; Pc Sse T, Rageio SAR ptt loper{VENG):Aoaigo Cue uruG, Aero Btencour Gabe oo anes Aes fran UF02) Sinn) Zee ren Auk Mito ece CVO) ‘bluray Vd sae (USP sxscio ere Jake Alarergs Fonseca gare Des _ados Iternacionas de Catalogaae na Pubilacio (CP) (Camara Grasita co vee, SP, Bras!) Telarc cove ten ath Ber ado "sign vgn Ant Oma 1 es 2, Condi vi, St esta 08 Sv rsoseze cov) Ines pare ato stematico ‘often flea mer 170 @couroavrennics Belo Horizonte Rio do Jane ‘0 Foulo ua Aimer, 981, 8°andar Rua Dee 23,04 A014 Paulista, 2073, Fonds. 30140-071 Centr, 20030080 Conta Nacional Her feloHornte. MG Ro dea.) 29 andor Cen} 2301 Tek (653032145700 e(6521)3179 1975 Cerquare César 07311-940, So Palos? Weer: 28112 Te) 65 13036 46 wr arupoauttia corr Conas de interpelacio Comezames com soma respasta, uma pergunta gue responde a um ride, e 0 fazemes ne escuro— fazer sem exatamente saber, contentar-se com a fla, Quent est 1d, ow aqui, ou quem se foi? ‘Thomas Keenan, Fables of Responsibility Por ota deixarci de lado a discussio sobre Adorno, ‘mas retornarei a ele para falar no da relagio do sujeito com @ moral, mas de uma relacio anterior: a forca da moral na 20 rus produgio do sujeito. A primeira questio é crucial, ¢ainves- tigagdo que se segue no a ignora, pois um sujeito produzido, pela moral deve descobrir sua relagio com cla, Por mais que se queira, nio & possivel se livrar dessa condigio paradoxal da deliberagio moral e da tarefa de relatar a si mesmo. Mes ‘mo que a moral fornega um conjunto de regras que produz um sijeito em sua inteligibilidade, ele nio deixa de ser um conjunto de normas e regras que tum sujeito deve negociar de maneira vital c reflexiva Em Genealogia da moral, Nietzsche oferece um relato contraverso de como € possfvel nos tornarmos refiexivos sobre hossas ages e de como nos colocamos em posigdo de relatar 0 ‘que temos feito, Observa que s6 tomamos consciéncia de nés ‘mesmos depois que certos danos sio infligidos. Como conse- quéncia, uma pessoa sofre, e essa pessoa, ou melhor, alguém ‘que age cm sta defesa em um sistema de justia busca encontrar a causa do softimento e nos pergunta se nio poderiamos é-la. Com © propésito de impor um castigo justo a0 responsivel pela ago injuriosa, a questio é posta, eo sujeito em questio se interroga, “Castigo”, diz-nos Nietesche, € 4 “criagio de uma ‘memiria" A pergunta pée o si-mesmo como forga causativa © tam2ém configura tim modo especifico de responsabilidade. ‘Ao perguntarmos se somos 0s catsadores do sofrimento, uma autoridade estabelerida nos pede nio sé para admitir a exis ‘éncia de uma ligagio causal entre nossas ages ¢ 0 softimento resullante, mas também para assumir a responsabilidad por essas apes e seus efeitos. Nesse contexto, encontramo-nos na posiggo de termos de dar um relato de nés mesmos. “NIBTZSCHE, Friedrich. On the Genealogy of Morals, Tradugdo para 0 ‘inglés de Walter Kaufinana. Nova York: Random House, 1969. p. 80; Zar Geneslie der Mora. In: Kaitsshe Studinsurgabe. Organizasio de Giorgio Colli e Mazzino Montinavi. Bertin: de Gruyter, 1967-1977, ¥. 5, p. 245-412, [EdicZo brasileira: Geneaogia de moral uma polemics Tradogio de Paulo César de Souza, Sio Paulo: Companhia das Letras, 1999)] Doravante citado no texto como GM, coun a paginagao relerin- o-se edi brasileira, Relatamos a nés mesmos simplesmente porque somos interpelados como seres que foram obrigados a fazer um relato de si mesmos por um sistema de justiga e castigo. Esse sistema ndo existe desde sempre; é insticuido com 0 tempo e com um grande custo para os instintos humanos. Nietzsche escteve que, sob tais condigdes, os seres huumanos sentiam-se canhestros para as flingéies mais simples, nesse novo mundo nio mais possuiam os seus velhos guias, os impulsos reguladores e inconscientemente certeiros ~ estavam reduzidos, os infelizes, a pensar, inferir, calcula, combinar causas e efeitos, reduzidos 4 sua “conscigncia’, a0 seu Orgio mais frdgil e mais falivell (GM, p. 72-72). Se Nietasche est correto, comego entio a fazer um relato de mim porque alguém me pediu, e esse alguém tem um poder delegado por um sistema de justiga estabelecido. Alguém me interpelou, talver até atribuiu um ato a mim, ¢ eterminada ameaga de castigo dé suporte a esse interroga- tério, Desse modo, numa reagio temerose, ofere¢o-me como um “eu” © tento reconstruir minhas ag6es, mostrando que aquela atribuida a mim estava ou nio entre elas, Com isso confessomme como causa de tal ago, qualificando minha con- tribuigao causativa, ou defendo-me contra a atribuigio, talvez Tocatizando a causa em outro lugar. E dentro desses parimetros ue 0 sujeito faz um relato de si mesmo, Para Nictasche, a necessidade de fazer um relato de sis6 surge depois de uma acusagio, ou no minimo de uma alegacio, feita por alguém em posigao de aplicar um castigo se for possivel estabelecer a causalidade. Consequentemente, comegamos a refletir sobre 'n6s mesmos pelo medo e pelo tertor. Com efeito, io o medo © 0 terror que nos tornam moralmente responsives. Consideremos, nao obstante, que o fato de sermos inter~ ppelados pelo outro tenha outros valores além do medo. Pode ‘muito bem haver um desejo de conhecer ¢ entender que nao sejaalimentado pelo desejo de punir, eum desejo de explicar e 2 rua >. Nietasche acertou muito bem quando disse que s6 comegamos a contar nnarrar que no seja propelido pelo terror da punica tuma historia de nés mesmos frente a um “tu” que nos pede que 0 fecamos. & somente frente a essa pergunta ou atribui- 40 do outro ~ “Foste tu?” — que formecemos uma narrativa de nds mesmos ou descobrimos que, por razdes urgentes, devemes nos tornar seres autonarrativos. E sempre possivel, obviamente, permanecer calado diante de uma pergunta desse tipo; neise caso, o silencio articula uma resisténcia em relagio 4 perguata: “Voce nfo tem direito de fazer uma pergunta desse tipo”, ou “Essa alegacio nfo é digna de resposta’, ou ainda “"Mesmo que tivesse sido en, nao caberia a vocé saber disso” ‘O silencio, nesses exemplos, pe em questio a legitimidade da antoridade evocada pela questio e pelo questionador ou tenta circunserever um dominio de autonomia que no pode, ou nao deve, ser imposto pelo questionador. A recusa de narrar no deixa fer uma relagio com a narrativa e com a cena de interpelago. Como narrativa negada, ela recusa a relagio pressuposta pelo interrogador ou a modifica, de modo que 0 questionado rechaga 0 questionador. Contar uma hist6ria sobre sino é 0 mesmo que dar tum relazo de si. Contudo, vemos no exemplo anterior que 0 ‘ipo de narrativa exigido quando fazemos um relato de nds mesmor parte do pressuposto de que o si-mesmo tem uma asal com o sofrimento dos outros (¢, por fim, pela mi consciéncia, consigo mesmo). Decerto, nem toda narra- selagi ‘iva assume essa forma, mas uma narrativa que responde & alegacio deve, desde o inicio, admitira possibilidade de que o si-mestro tenha agéneia causal, mesmo que, em dada situago, -mesmo nio tena sido causa do sofximento, ato de relatar a si mesmo, portanto, adquire uma forma rarrativa, que no apenas depende da capacidade de transmis uma série de eventos em sequiéncia com transigdes ‘oz ¢ autoridade narrati~ plausiveis, mas também recor ‘vas, direcionadas a um pitblico com o objetivo de persuadir. ‘A narraciva, portanto, deve estabelecer se o si-mesmo foi ou Juba BUTLER ELA ASI HESHO a io foi a causa do sofrimento, ¢ assim propotcionar um micio persuasivo em virtude do qual é possivel entender a agio cau- sal do si-mesmo, A natrativa nao surge posteriormente a essa ado causal, mas constitui o pré-requisito de qualquer relato que possamos dar da ago moral. Nesse sentido, a capacidade narrativa é a precondicZo para fazermos um relato de nds ‘mesmos ¢ assumizmos a responsabilidade por nossas a¢Ses através desse meio, Claro, é possivel apenas “assentir com a cabera ou usar outro gesto expressiva para reconhecer que Se € 0 autor da aglo de que se fala, © “assentir coma cabega’” funciona como precondigio expressiva do reconhecimento, ‘Um tipo de forca expressiva semelhante coloca-se em jogo quando nos mantemos em siléncio frente a pergunta “Voed tem algo a dizer em sua defesa?”, Nos dois exemplos, no en. tanto, 0 gesto de reconhecimento s6 faz sentido em relagio 8 uma trama implicita: “Sim, eu ocupava a posigao de agente causal na sequéncia de eventos a que voce se refere” A conce} conta a cena de interpelacao pela qual a responsabilidade € questionada depois accita ou negada, Ele assume que a indagaydo € feita a partir de um quadro de referéncia legal, em que se ameaga efetuat uma puniggo que provoque uma injfria equivalente aquela cometida em primeiro lugar. Mas nem todas as formas de interpela cio de Nietasche nio leva totalmente em originam-se desse sistema © por esta raza. O sistema de punicao que ele descreve tem base na vinganga, inesmo quando valorizada como “justia” Este sistema nio reconhece que a vida implica certo grau de sofrimento e de injéria que nio podem ser totalmente explicados pelo recurso ao sujeito como agente causal. Com efBito, para Nietesche a agressio coexiste com a vida, de mado que se procurissemos proscrevé-, estarfamos efetivamente tentando proscrever a pr6pria vida, Escreve ele: “na medida fem que essenciabmente, isto &, em suas fungdes bisicas, a vida atua ofendendo, violentando, explorando, destruindo, no pode sequer ser concebida sem esse cariter” (CM, p. 65). “Os estados de direito”, continua cle logo depois, io “restricdes 24 up parciais da vontade de vida”, uma vontade definida pela luca ( esforgo legal para acabar coma luta seria, em suas palavras, “um atentado ao futuro do homem!” (GM, p. 65), Para Nietzsche, 0 que esti em jogo no é apenas o predominio ds ordem moral e legal 4 qual ele se opie, mas sim uma consrugdo forgada do “humano” em oposigio 4 propria vida. Sua concepeio de vida, no entanto, supée que 4 agressio seja mais primal que a generosidade, ¢ que 0 in teresse por justiga surja de uma ética da vinganga. Nietzsche do considera a cena interlocutéria na qual se pergunta o que fizemos, ou a stuagio em que tentamos elucidar, para quem quet saber, 0 que fizemos e por qual razio. Para Nie:zsche, 0 si-mesmo como “causa” de uma aio injuriosa é atribuido sempre de maneira retroativa ~o agente s6 se associa @ ago tardiamente, Na verdade, ele se torna agente causal da agio apenas por meio de uma atribuigio retroativa que busca ajustar-se a uma ontologia moral estipulada por um sistema legal, sistema que estabelece responsabilizagdes e ofen- sas puniveis localizando um si-mesmo relevante como fonte causal de sofrimento. Para Nietésche, 0 sofrimento excede qualquer efeito causado por um ou outro si-mesmo, ¢ embora existam exemplos claros em que exteriorizamos a agressio contra outra pessoa, provocando injiria ou destruigio, esse softimento tem algo de "justificavel” na medida em que faz parte da vida e constitui a “sedugZo" ea “vitalidade” da propria vida. Hi muitas razdes para discordar dessa explicacao, ¢ nos parigrafos seguintes esbocarei algumas das minhas objegdes. B importante destacar que Nietzsche restringe seu en- tendimento de responsabilizagio a essa atribuicio juridica- ‘mente mediada c tarda. Ao que parece, ele no compreende as outras condigdes de interlocucao em que nos é solicitado fazer um relato de nds mesmios, concentrando-se, a0 contra rio, numa agressio origindria que, segundo ele, faz parte de todo ser humano ¢, com efeito, coexiste com a prépria vida. Para Nietzsche, condenar essa agressio sob um sistema de uniges erradivaria essa verdade sobre a vida. A instituiga0 wom BUTLER FLT A) MESH 25 da lei obriga um ser humano originariamente agressivo @ voltar essa agressdo “para dentro”, a construit um mundo interno composto de uma conseiéncia culpada ¢ a expressar essa agressio contra si mesmo em nome da moral: “hi uma espécie de loucura da vontade, nessa crueldade psiquica, que é simplesmente sem igual: a vontade do homem de sentit-se cul- pado e desprezivel, até serimpossivel a expiagi0” (GM, p. 81), Essa agressio, que Nietzsche considera inerente a todo ser humano ¢ a propria vida, volta-se contra a vontade e assu- ‘me uma segunda vida, até que implode para construir uma consciéneia que gera a reflexividade seguindo o modelo de antocensura, Essa reflexividade & 0 precipitado do sujeito, entendido como ser reflexivo, um ser que pode tomar e toma asi mesmo como objeto de reflexio, Como mencionei anteriormente, Nietesche nfo con sidera outras dimensbes linguisticas dessa situagio. Se sou responsabilizada por meio de um quadro de referencias moral, esse quadro dirige-se primeiro a mim, comega a agir sobre mim, pela interpelagio e pelo questionamento do outro. Na verdade, é somente dessa maneira que chego a conhecer esse quadro. Se dow um relato de mim mesma em resposta a tal questionamento, estou implicada numa relagio coin 0 outro diante de quem falo e para quem falo. Desse modo, passo a existir como sujeito reflexivo no contexto da geragio de um relato narrative de mim mesma quainlu alyuém fala comigo © quando estou disposta a interpelar quem me interpela, Em The Psychic Life of Power [A vida psiquica do poder]? talvez eu tenha aceitado muito apressadamente essa cena Punitiva de instauraeio para o sujeito. De acordo com esse ponto de vista, a instituicao da punic¢go me vincula ao meu ato, quando sou punida por ter feito isto ou aquilo, apareco como sujeito dotado de consciéncia e, portanto, como sujeito que reflete sobre si mesmo de alguma maneira. A visio da * BUTLER, judith. The Phi fof Power Stanford Stanford Universiey Press, 1993, 26 ru formagio do sujeito depende do relato de um sujeito que in- terioriza ai ou, no minimo, a corrente causal que o une a0 feito pelo qual a instituicao da punigdo busca compensacio. Poderiamos dizer que essa explicagio nietaschiana do castigo foi fundamental para a explicago foucaultiana do poder disciplinar na prisio. Com certeza foi, mas Foucault difere explcitamente de Nietzsche ao se recusar a generalizar «cena de castigo para explicar como s¢ dao sujeito reflexivo, (© voltar-se contra si mesmo que tipifica o surgimento da ma consciéncia nietaschiana nio explica 0 surgimento da reflexi- vvidade em Foucault. Em O uso dos prazeres, segundo volume cde Histiria da sexualidade* Foucault examina as condigdes em {que o si-mesmo toma-se como objeto de reflexio ¢ cultivagio, concentrando-se nas formagdes pré-modernas do sujeito, En= quanto Nietzsche pensa que a ética pode derivar de uma cena storizante de punigio, Foucault, afastando-se das reflexdes finais de Genealogia da moral, concentra-se na criatividade peculiar nz qual se envolve a moral e como, em particular, a mi consciéncia se torna um meio para a criacio de valores. Para Nietzsche, a moral surge como resposta aterrorizada a0 castigo. Mas esse terror resulta ser estranhamente fecundo; a moral e seus preceitos (alma, consciéncia, ma consciéncia, consciénci de si mesmo, antorreflexto e razio instrumental) esto impregnados na crueldade ¢ na agressio voleadas contra si mesmas. A elaboragio de uma moral ~ um conjunto de regras ¢ equivaléncias ~ € 0 efeito sublimado (¢ invertido) dessa agressio primiria voltada contra n6s mesmos, a conse- quéncia idealizada de um ataque contra nossa destruicdo e, para Nietzsche, contra nossos impulsos de vida FOUCAULT, Michel. The Use of Please: The Hisar of Sexuality, Volume Top, Nova York: Random Howse, 1985; Hist de a sexualié 2; U'Urage plait, Paris: Gallimaed, 1984, [Fcto brasileira: Hla da exuaidde 2: cusp dos pazees, Tradugso de Maria Theres cs Costa Albuquerque: 13. ed, Rio de Jonsito: Edigdes Grail, 2009] Doravante citado no texto como UP, som a paginagio referindo-se 4 edigio brasileira uTLERRELAAK ASI NESNO 27 Na verdade, enquanto Nietzsche considera a forga do em relago a esses cédigos, 0 que nem sempre se baseia na vVioléncia da proibigio e seus efeitos interiorizadores. O relato com os eédigos morais, mas ela nao se baseia em um relato da Son pln ALAS oA Adc notar o quanto Foucault queria se distanciar especificamente desse modelo ¢ dessa conclusio quando, no inicio da década de 1980, decidiu repensar a esfera da ética, Seu interesse foi ele trate 0 sujeito como um “efeito” do discurso, nos esctitos ie ru cédigos, preserigées on normas eo faz de maneiras que nio s6 (a) revelam a constituigao de si como um tipo de poiesis, mas também ‘B) estabelecem a criagSo de si como parte de uma operagio de critica mais ampla, Como argumentel alhures,?a realizagio ética de si mesmo em Foucault nfo é uma criagio radical do sismesmo ex nihilo, mas sim o que ele chama de ‘circunscrigio daquela parte de si que constitu 0 objeto dessa pritica moral” (UP, p. 37). Esse trabalho sobre si mesmo, esse ato de circunscrigio, acontece no contexto de um conjunto cde normas que precede e excede o sujeito. Investidas de poder ¢ obstinazio, essas normas estabelecem os limites do quie ers considerada uma formagao inteligivel do sujeito dentro de determinado esquema historico das coisas, Nao hi ctiagao de si (poiesis) fora de um modo de subjetivagto (assjettisement) e, portanto, ndo hi criagio de si fora das normas que orquestram as formas passiveis que o sujeito deve assumir. A pritica da critica, entio, expde 0s limites do esquema hist6rico das coi- sas, o horizonte epistemol6gico e ontologico dentro do qual ‘ sujeitos podem surgir, Criar-se de tal modo a expor esses limites é precisamente se envolver numa estética do si-mesmo que man-ém uma relagao critica com as normas existentes. Numa conferéncia de 1978 intitulada “What Is Critique [0 que &a Critica?], Foucault esereve: “A critica asseguraria © desassu citamento no curso do que poderiamos chamar, em toma palavra, de politica da verdade””!” Naintrodugio de O uso des prazeres, Foucault especifica essa pritisa da estilizagio de si mesmo em relacZo is normas quando ceixa claro que a conduta moral néo é uma questo "Ver BUTLER, Judith. O que &a critica? Unt ensaio sobre avirtude em Foucault, Tradugio de Gustavo Hessmann Dalagus. Caderts de Eis e Flosfie Poca. n. 22, p, 159-179, 2013. "FOUCAULT, Michel, What Is Critique? In: The Poical p. 191-211, aqui p. 194, Esse ensaio foi escrito como conferéncia proferida na So ‘edie Francesa de Filoofia emi 27 de mato de 1978 e posteriormente pblicade em Ballot de a Sotté Puaise de a Pilsopie, v.84. n. 2 5-63, 1990, de se conformar as prescriges estabelecidas por determinado <6digo, tampouco de interiorizar uma proibigao ou interdico Primirias. Escreve ele para ser dita “moral” uma agio no deve se reduzir @ tm ato ou a uma série de atos conformes a uma regra, lei ou valor. F verdade que toda aco moral comporta uma relapio ao real em que se efetua [., © também uma certa relagio a si; essa relagio nao 6 simplesmente “consciéncia de si", mas constituigio de si enquanto “sujeito moral”, na qual o individuo circunscreve a parte dele mesmo que constitui 6 ob. Jeto dessa pritica moral, define sua posicio em rela- si ao preceito que respeita, estabelece para si uni certo modo de ser que valees comio realizagio moral dele mesmo; e, para tal, age sobre si mesmo, procura conhecer-se, controla-se, pée-se i prova, aperiicoa-se, ‘ransforma-se. Nio existe ago moral particular que aio se refira3 unidade de uma conduta moral; nem conduta moral que nfo implique a constituicto de mesmo como sujeito moral; nem tampouco consti. {uiglo do sujeito moral sem “‘modos de subjetivacio”, sem uma “ascética” ou sem “priticas de si” que as apoiem, A afi0 moral €indisciveldegas fe de atividades sobre i (UP, 37), Para Foucault, tanto como para Nietzsche, a moral Feorganiza um impulso criativo, Nietzsche lamenta que a interiorizagio da moral aconteca pela debilitacio da vontade, ‘mesmo que, para ele, essa intetiorizagio constitua “o ventre die acontecimentos ideas ¢ imaginosos” (GM, p. 76), 0 que incluiria, presumivelmente, seus prdprios escitosfilos6ficos, inclusive essa mesma descrigai Para Foucault, a moral é invent i iva, requer inventivi— dade, © além disso, como veremos adiante, tem umn custo. No entanto, 0 “'si-mesmo" engendrado pela moral nio é concebido como agente psiquico de autocensura. Desde o 20 principio, a relagio que o “eu” vai assumir consigo mesmo, como vai se engendrat em resposta a uma injuncio, como vai se formar e que trabalho vai realizar sobre si mesmo ~ tudo isso € um desafio, quic4 uma pergunta em aberto. A injungio forca o ato de ctiar a si mesmo ou engendrar a si mestno, ‘ow seja, sla ndo age de maneira unilateral ou deterministica sobre 0 sujeito. Ela prepara o ambiente para a autocriagao do sujeito, que sempre acontece em relagio a um conjunto de normas :mpostas, A norma nio produz 0 sujeito como seu efeico necessirio, tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura sua reflexividade; 0 sujeito Juta invatiavelmente com condigdes de vida que nio poderia ter escolhido. Se nessa luta a capacidade de a¢io, ou melhor, a liberdade, funciona de alguma maneira, € dentro de um ‘campo facilitador e limitante de restrigbes. Essa agi ética do € totalmente determinada nem radicalmente livre, Sua luta ou dilema primario devem ser produzidos por um mundo, mesmo que tenhamos de produzi-lo de alguma maneira, Essa lta com as condigdes nao escolhidas da vida — uma agio ~ também é possivel, paradoxalmente, gragas 3 persisténcia dessa condigdo priméria de falta de liberdade. Enbora muitos criticos tenham afirmado que a visio sobre 0 sujeito proferida por Foucault — ¢ por outros pos-es- teuturalistas ~ solapa a capacidade de realizar deliberagdes éticas ¢ de fundamentar a aga humana, em seus escritos éticos Foucault recorre & agio e a deliberacio, a partir de outras perspectivas, © oferece uma reformulaggo das duas {que merece séria consideracao. No iiltimo capitulo, analisaret com mais detalhes sua tentativa de fazer um rclato de si mes ‘mo, Por ora, gostaria de propor uma pergunta mais geral: a postulagio de um sujeito que nfo fanda a si mesmo, ou seja, ‘cujas condicbes de surgimento jamais poderio ser totalmente explicadas, destr6i a possibilidade de responsabilidade e, em particular, ce relatar a si mesmo? Se for de fato verdade que somos, por assim dizer, di- vididos, infandados ou incoerentes desde 0 principio, seri or wuTLes ELAR AI WESHO a1 ‘impossivel encontrar fandamentos para uma nogio de res- ponsabilidade pessoal ou social? Argumentarei 0 contririo, ‘mostrando como uma teoria da formagio do sujito, que re~ conhece os limites do conhecimento de si, pode sustentar uma concepeio da ética e, na verdade, da responsabilidade. Se 0 sujeito € opaco para si mesmo, nao totalmente transhicido e conhecivel para si mesmo, ele nio esti autorizado a fizer o que quer ou a ignorar suas obrigagdes para com os outros, Decerto © contritio também é verdade, A opacidade do sujeito pode ser uma consequéncia do fato de se conceber como ser relacional, cujas relagées primeiras © primérias nem sempre podem ser apreendidas pelo conhecimento consciente. Momentos de des- conhecimento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relagdes com os outros, sugerindo que essas relagdes apelam a formas priméias de telacionalidade que nem sempre podem ser tematizadas de maneira explicitae reflexiva, Se somos formados: no contexto de relagdes que para nés se tornam parcialmente ‘irrecuperiveis, entio essa opacidade parece estar embutida na nossa formagio e € consequéncia da nossa condigio de sexes formados em relagdes de dependéncia. Essa postulagio de uma opacidade primaria a0 si-mesmo {que decorre de relagbes formativas tem uma implicagao espe cifica para uma atitude ética para com o outro. Com efeito, se é justamente em virtude das relagdes para com os outros que 0 snjeitn # apace para si mesmo, e se essas elag3es pata om os outros sio o cenario da responsabilidade écica do su: Jeito, entio se pode deduzir que é justamente em virtude da ‘opacidade do sujeito para consigo que ele contrai e sustenta alguns de seus vinculos éticos mais importantes. No que resta deste capitulo, examinarei a teoria do iil- timo Foucault a respeito da formagio do sujcito e considerarei a TimitagSes encontradas quando se tenta usé-la para pensar © outro. Depois passarei para um relato pés-hegeliano do re~ ‘conhecimento que busca estabcleceras bases sociais para 0 ato de relatar a si mesmo. Nese contexto, consideratei a critica de um modelo hegeliano do reconhecimento proposta por 2 rus Adriana Cavarero, fl6sofa feminista que se baseia na obra de Lévinas e Arendt." No capitulo 2, falarei da psicanilise e dos limites que o inconsciente impde na reconstrucio natrativa de uma vida. Embora sejamos forcados a dar um relato de nossos vvirios sicmesmos, as condigdes estruturais em que 0 fizemos acabario impossibilitando uma tarefa t20 completa. © corpo singular a que se reféte uma marrativa nao pode ser capturado por uma narrativa completa, nfo s6 porque 0 corpo tem uma historia formativa que ¢ irrecupervel para reflexio, mas tan bém porque os modos em que se formam as relagSes primirias produzem uma opacidade necessiria no nosso entendimento de nds mesmos. O sujelto sempre fiz um relato de si mesmo para © outro, sejt inventado, seja existente, e © outro estabelece a cena de interpelagio como uma relagio ética mais primaria do que o esforgo reflexivo que o sujeito faz para relatara si mesmo. Além disso. 05 termos usados para darmos um relato de nds mesmos, para nos fazer inteligivels para n6s ¢ para os outros, nio sio criedos por nds: cles tém carater social e estabelecem normas socais, um dominio de falta de liberdade e de substi~ ‘uibilidade em que nossas histOrias “singulares” sio contadas [Nessa investigagio, uso de maneira eclética varios fi- lésofbs e te6ricos criticos. Nem todos seus pontos de vista slo compativeis entre si, ¢ nio pretendo sintetizi-los aqui. NCAVARERO, Adsiana, Relating Narttioer: Stortling and Solfo Tradusio para inglés de Paol A. Kottman, Londres: Routledge, 2000; Th che mi.qurd, eu che mi ricont, Milo: Giagiacomo Feltinelli, 1997 Vale comporaro texto de Cavarero nio s6 com Word af Seles, de Riley, ‘mas também com Oneraf ae Ansthor, de Paul Ricacut (Cradugio pars 6 inglés do Kathleen Blamey. Chicago: University of Chicago Press, 1992}; So- me come wy atte (Pais Seusl, 1990) [Edigzo brasileir: mesmo coo outro, Sio Paulo: WME Martins Fontes, 2014), Riceeus, Aefende tanto a saciabilidade constitutiva do si-miesmo mas osdoiso fazem cde manoias diferentes, Riley tsa ca poesi liriea edo nso da ingwagem cordinira, sigerindo um problema io natetivo de referencialidade ‘como Cavan ‘quanto sa crpacidade de se apretentarna narra grado pel strutara formal des convengSes linguistics, wor BUTLER LATAR A 8 ESHO 33 Por mais que a sintese nio seja meu objetivo, devo dizer que cada teoria sugere algo de importineia ética que deriva dos limites que condicionam qualquer esforgo que se faga para dar tum relato de si mesmo. Partindo desse pressuposto, acredito ‘que 0 que geralmente consideramos como uma “falha” ética ;possa muito bem ter uma importincia ¢ um valor évico que ainda nio foram corretamente determinados por aqueles que Saati de nites nee « yor srumlions com 0 niilismo moral No capitulo 3, considero os esforgos diacrdnicos e sin= crOnicos de estabelecer o surgimento do sujeito, ineluindo as implicagdes Eticas dessas descrigaes da formacio do sujeito, Também estudo a contribuicio de Adormo para a teoria da responsabilidade que pode conciliar as chamadas dimensdes hhumanas e inumanas das disposigBes éticas, examinando como a politica critica relaciona-se com a ética e, com efeito, com a moral que por vezes exige que o sujeito faga tum relato de si mesmo em primeira pessoa. Espero mostrar que @ moral no é um sintoma de suas condigdes sociais, tampouco um lugar de transcendéncia dessas condicées, mas que € essencial para determinar a agZo e a possibilidade de esperanga. Com a ajuda da autocritica de Foucault, talvez seja possivel mostrar que a questio da ética surge precisa- mente nos limites de nossos esquemas de inteligibilidade, lugar onde nos perguntamos o que significaria continuar um. iélogo em que nao se pode assumir nenhuma base comum, ‘onde nos encontramos, por assim dizer, nos limites do que conhecemos, mas onde ainda nos é exigido dar e receber reconhecimento: a alguém que esta ali para ser interpelado € cuja interpelagio deve ser acolhida. Sujeitos foucaultianos No relato foucaultiano da constituigao de si, questio central em sua obra na década de 1980, os termos que possi bilicam o reconhecimento de si sio dados por um regime de verdade. Esses termos estio fora do sujeito até certo ponto, 34 up mas também so apresentados como as normas disponiveis, plas quis 0 reconhecimento de si acontece, de modo que ‘© que posso “ser”, de maneira bem literal, é limitado de an- temio por um regime de verdade que decide quais formas de scr sevio reconheciveis nao reconheciveis. Embora esse zegime decida de antemio qual forma o reconhecimento pode assumir, sle nfo a restringe. Na verdad, “decidir” talvez seja uma palavra muito forte, pois o regime de verdade fornece uum quadto para.a cena de reconhecimento, detineando quem sera classficado como sujeito de reconhecimento e oferece do normas disponiveis para 0 ato de reconhecimento. Para Foucault, sempre havera uma relagio com esse regime, um modo de engendramento de si que acontece no contexto das normas em questio ¢, especificamente, clabora uma resposta para a pergunta sobre quem seri © “eu” em relagio a essas normas. Nesse cenrio, nossas decisdes nfo sio determinadas ppelas normas, embora as normas apresentem o quadro © 0 ponto de referéncia para quaisquer decisSes que venhamos a tomar, Iso nio significa que dado regime de verdade estabe~ Jeca um quadro invariavel para o reconhecimento; significa apenas que ¢ em relagio a esse quadro que o reconhecimento acontece ou que as ormas que governam o reconhecimento so contestadas ¢ transformads, Nc entanto, Foucault nao defende apenas que exista ‘uma relago com essas normas, mas também que qualquer relagio com o regime de verdade seri 20 mesmo tempo uma relago comigo mesma, Uma operacio critica nao pode acon- tecer ser: essa dimensio reflexive, P6r em questio um regime de verdade, quando é o regime que governa a subjetivacio, é por em questio a verdade de mim mesma e, com efeito, minha cepacidade de dizer a verdade sobre mim mesma, de fazer um relato de mim mesma. Desse modo, se questiono 0 regime de verdade, ques~ tiono também o regime pelo qual se atribuem o ser ¢ minha prépria condigao ontolégica. A critica nfo diz respeito ape: nas a uma pritica social determinada ou a certo horizonte wom BUTLER RELA ASL MESHO 35 de inteligibilidade em que surgem as priticas ¢ instituigdes; cla também significa que sou questionada por mim mesma, Para Foucault, o questionamento de si torna-se consequénc ética da critica, como ele deixa claro em “O que € a Critica Também resulta que esse tipo de questionamento de si envolve colocar-se em risco, colocar em perigo a propria possibilidade de reconhecimento por parte dos outros, uma vez que ques- tionar as normas de reconhecimento que governam 0 que eu poderia ser, perguntar 0 que elas deixam de fora e © que poderiam ser forgadas a abrigar, 6 0 mesmo que, em relagio 40 regime atual, correr 6 risco de nao ser reconhecido como stjeito, ou pelo menos suscitar as perguntas sobre quem sou (ou posso ser) ou se sou ou nao reconhecivel. Essas questdes implicam pelo menos dois tipos de per- sgunta para a filosofia étiea. Primeiro, quais sio essas normas 4s quais se entrega meu proprio ser, que tém o poder de me estabelecer ou, com eftito, desestabelecer-me como sujeito reconhecivel? Segurido, onde esté'e quem 6 esse outro? A no- (fo de ontro pode inciuir o quadro de referéncia eo horizonte normative que sustentam e conférem meu potencial de me tomar sujeito reconhecivel? Parece correto criticar Foucault por nao ter explicitamente dado mais espaco para o outro na sua consideragio sobre a ética. Talvez isso se deva ao fato de a cena difdica do si-mesmo e do outro nao poder descrever adequadamente 0 funcionamento social da normatividade que condiciona tanto a produgio do sujeito como a troea intersubje~ tiva concluirmos que o fato de Foucault nio pensar o outro é decisivo, provavelmente teremos negligenciado o fato de que © proprio ser do si-mesmo & dependente nio s6 da existéncia do outro em sua singularidade (como teria dito Lévinas), mas também da dimensio social da normatividade que governa a cena de reconhecimento,"* Esse dimensio social da normativi~ ‘Ver LEVINAS, Emimannel, Oren than Beit or beyond Even, Teadusio para inglésde Alphonso Lings. aia: Martinus Nijhoff, 1981; Aurement 36 oy dade precede e condiciona qualquer troca diddica, mesmo que pparesa que fagamos contato com essa esfera da normatividade precisamente no contexto dessa trocas imediatas ‘As normas pelas quais en reconheco o ontro ou a mim mesma no sio $6 minbas. Elas funcionam uma vez que sio sociais © excedem cada troca difdica que condicionam. Sua sociabilidade, no entanto, nao pode ser entendida como totalidade estruturalista, tampouco como invariabilidade transcendental ou quase-transcendental. Sem ckivida, alguns argumentariam que pata o reconhecimento ser possivel as nornas jé devem existir, e de fato hi alguma verdade nessa afirmagio, Também é verdade que certas priticas de reco- nhesimento, als, certasfalhas na pratica de reconhecimento, ‘marcam um Ingar de ruptura no hortzonte da normatividade implicitamente pedem pela instituigio de novas norms, pondo em questio o cariter dado do horizonte normative prevalecente. O horizonte normativo no qual eu vejo 0 outro ¢, com eftito, no qual o outro me vé, me escuta, me conhece me reconhece também é alvo de uma abertura critica, Seri indtil, portanto, diluira nogio do ontro na socia~ bilidade das normas eafirmar que o outro esté implicitamente presente nas normas pelas quais se confere o reconhecimento, ‘As vezes a propria falta de reconhecimento do outro provoca ‘uma crise nas normas que governam o reconhecimento, Se ¢ quando, na tentativa de conceder ou receber um reconheci mento que é frustrado repeticas vezes, en ponho em questio © horizonte normativo em que o reconhecimento acontece, esse questionamento faz parte do desejo de reconhecimento, desejo que pode nao ser satisteito e cuja insatisfabilidade es- tabelece um ponto critico de partida para 0 questionamento das normas disponiveis, Na visio de Foncault, essa abertura poe em questfo ‘0 limites dos regimés de verdade estabelecidos, e, com i330, giv au-dl de sence, Haas Mactinos Niko, 1978, Dorwante cade 4 edipio em inglés na texto coma OB, com a paginasio referindo: {oa wuriee RTA I 7 por em risco o si-mesmo torna-se sinal de virtude.* O que le nao diz é que, algumas vezes, por em questio o regime de verdade pelo qual se estabelece minha propria verdade é tum ato motivado pelo desejo de reconhecer o outro ou de ser reconhecido pelo outro, A impossibilidade de faz8-lo de acordo com as normas disponfveis me obriga a adotar uma relagéo critica com essas normas. Para Foucault, 0 regime de verdade € posto em questio porque “et” néo posso ou rio vou me reconhecer nos termos que me s40 disponiveis. Emi um esforgo para evitar ou superar os termos pelos quais 4 subjetivagao acontece, minha lata com as normas é minha’ propria luta. Com efeito, 2 pergunta de Foucault continua sendo “Quem eu posso ser, dado o regime de verdade que determina qual é minha ontologia?”. Ele nao pergunta "Quem é5 tu?” nem traga um caminho no qual se poderia elaborar uma perspectiva eritica sobre as normas partindo de uma dessas questdes. Antes de considerarmos as consequéncias dessa oclusio, quero propor uma questio final sobre Foucault, ainda que mais adiante eu retorne a el. Ao fizera pergunta ética “Como devo trataro outro?”, prendo-me imediatamente em um campo de normatividade social, uma ver que o outro s6 aparece para mim, s6 funciona para mim como outro, se hi um quadro de referéncia dentro, do qual cu posto vé-lo ¢ apreendé-lo em sua separabilidade ¢ exterioridade, Desse modo, ainda que eu pense na rela~ io ética como difdica ou pré-social, fico presa na esfera da normatividade e na problemitica do poder quando coloco a questio ética em sua objetividade e simplicidade: “Como devo tratar-te?”, Se 0 “eu” c o “tu” devem existir previamente, ¢ se é necessirio um quadro normativo para esse surgimento ¢ encontro, entio a funglo das normas nao é s6 direcionar mi- nnha conduta, mas também condicionar o possivel surgimento de um encontro entre mim mesmo € 0 outro, "FOUCAULT, What ls Critigue?,p. 192, 38 A perspectiva de primeira pessoa assumida pela questio ica, em como a interpelacio diret2 a um “tu”, é desorientada por esa dependéncia fundamental da esfera ética a respeito do ‘cial. Quer 0 outro seja ou no singular, ele é reconhecidlo ofesece reconhecimento através de um conjuunta de normas sue governain a reconhecibilidade. Portanto, considerando que c outro pode ser singular, talvez até radicalmente pessoal, vs normias sio, até certo ponto, impessoais ¢ indiferentes, ¢ introduzem uma desorientacio de perspectiva para 0 sujeito, no meio do reconhecimento como encontro. Se entendo que ¢stou te conferindo reconhecimento, por exemplo, tomo com seriedade 6 fato de que esse reconhecimento ver de mim. Mas ‘no momento em que pereebo que os termos pelos quais confiro recoahecimento nio sio sé meus, que nfo fui eu quem os cron ov osarquitetou sozinha, sou, por assim dizer, despossuida pela Jinguagem que ofereco. Em certo sentido, submeto-me a uma norma de reconhecimento quando te oferego reconhecimento, ‘ou sca, 0 “eu” no ofetece o reeonhecimento por conta propria, Na verdad, parece que o “ei” est sujeito a norma no momento em cue fi a oferta, de modo que se torna instrament da a¢io ddaquels norma, Assim, 0 “eu” parece invariavelmentevsado pela norma na medida ein que tenta usi-la, Embora eu pense que estivesse tendo uta relagdo com 0 “tu, descubro que estou presi em uma luta com as normas. Mas poderia também set vverdade que ew nfo estarig envolvida munya uta com as normas se nio fosse pelo desejo de oferecer reconhecimento a um tu? Como entendemos esse desejo?

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