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A formagao do habitus econdmico* Pierre Bourdieu Resumo: Durante @ guerra de libertagio nacional, a Argélia fomecia uma situag¥o quase laboratorial para analisar o desfasamento entre as disposiges econdmicas formadas ‘numa economia pré-capitalista, imersa em relagées de honra grupal, © © cosmos econémico importado ¢ imposto pela colonizagio. A observaglo ctnogrifica deste desfasamento revelou que em vez de serem naturais ou dados, os comportamentos ‘econémicos mais elementares (trabalho assalariade, poupanca, crédito, controle de nascimentos, etc.) tfm condigSes econémicas sociais de possibilidade definidas que {quer a teoria econdmica quer a "nova sociologia econémica” ignoram. Adquiir 0 espi ‘ito de cdlculo exigido pela moderna economia envolve uma verdadeira conversdo através da recusa das crengas incorporadas que subjazem & troca na sociedade Cabila tradicional. A ‘economia espontinea’ de um cozinheiro de Argel permite-nos captar 0 sentido pritico econémico que orienta @ classe opeririaargelina emergente no limiar da independéncia do Pais Palavras-chavi teabalhadores ‘Argélia, economia, troca, habitus, camponeses, racionalidade, Assisti, nos an essenta, na Argélia, ao que, retrospectivamente, se me depara como uma verdadeira experimentagdo social. Este pais, no qual certas populagdes de montanha retraidas e isoladas, como as que pude estudar na * O presente texto foi originalmente publicado, com o titulo "Making the economic habitus: Algerian workers revisited’, na revista Ethnography, volume 1, nimero 1, de Julho de 2000, ppiginas 17 a 41. A tradugdo para portugués tomou como referéncia uma segunda versio com ligeiras alteragBes introduzidas por Pierre Bourdieu antes da respectiva publicagao em francés na revista Actes de la recherche en sciences sociales, nimero 150, de Dezembro de 2003, com oti- lo «La fabrique de habitus économique». No entanto, algumas solugGes de tradugio do texto tiveram em conta as opgdes adoptadas pelos tradutores (Richard Nice e Loic Wacquant) da ver- ‘do em inglés publicada na Ethnography. Esta foi soguida, por outro lado, no resumo que agora se apresenta, A revista Sociologia agradece vivamente a Jéréme Bourdieu a autorizagio para a publicagio em portugués deste importante texto de Pierre Bourdieu. Pieste Bourdieu Cabilia, tinham conseguido conser uma economia pré-capitalista comy conheceu, com a guerra de libertag ca militar de repressio, tais como pelo exéreito francés, uma espécie (ou telescoparem-se), sob 0 olhar separadas por um intervalo de vari géncias contraditérias'. Gostaria de evocar aqui breve ji publicadas © dando prioridade meus cademnos de terreno, 0 que 1 nesta espécie de situago de labora némicas formadas numa economi ar, praticamente intactas, as tradigbes de letamente estranha légica do mercado, io, ¢ com algumas das medidas da politi- is reagrupamentos de populagao operados le aceleragao histérica que fez coexistirem lo observador, duas formas, normalmente istema econdmico com exi- is séculos, de s jente, sem voltar ao pormenor das anilises informagées inéditas, conservadas nos foi dado perceber com grande clareza rio: a discordancia entre disposigdes eco- pré-capitalista © © cosmos econémico importado ¢ imposto, por vezes d maneira mais brutal, pela colonizagio, obrigava a descobrir que 0 acesso at mentares (trabalho assalariado, pou etc.) de nenhum modo surge por “racional” & 0 produto de condigd precisamente ratifica sob a designagdo de "teorial habitus econémico historicamente interrogar sobre as condig como evidente), quer pela "nova s so que é ignorado, econ de uma verdadeira teoria do agente Os lugares, condiges ¢ objectivos da «estdo especificadas em pormenor em dois lv s comportamentos econémicos mais ele- anga, crédito, regulagdo dos nascimentos, mesmo € que o agente econémico dito 's histéricas inteiramente particulares. juer pela teoria econdmica, que regista e da acgdo racional” um caso particular de ituado e datado sem minimamente se micas € sociais (de tal forma isso surge iologia econémica" que, ao nao dispor c Feontmiso, retoma por defeito a Rational Investigagdes sobre as quais este artigo se debruga 0s surgidos simultaneamente no inicio dos anos ses- senta: Travail et travailleurs en Algérie (Pierre Bourdieu, avec Alain Darbel, Jean-Pierre Rivet et Claude Seibel, Paris-La Haye, Mouton, 1963), sobre a transforma das disposigdes econémi- as e das estruturassociais que acompanharam a difusto da emigrago, da urbanizagao e do tra- batho assalariado através da Argélia e Le déracinement. La erise de l agriculture traditionnelle en Algérie (Pierre Bourdieu et Abdelmalck Sayad, Paris, Minuit, 1964), sobre as perturbagSes da sociedade rural, principalmente na Cabilia, esultante da colonizagio e sobretuda da politica de eslocacio forgada, dita de "reagrupamento”, pela qual o exéreito francés procurou destruir as bases sociais da ala armada do movimento nacionalista. Os principais resultados desta investiga ‘eo estio ecapitulados de maneira sucinta no primeito capitulo de Algérie 60 (P. Bourdieu, Pars, Minuit, 1977), "Le désenchantement du monde" * Para uma amosta representativa desta corrente da sociologia norte-americana, que provém dda reapropriagdo de Polanyi e de Weber ¢ do desenvolvimento da anilise de redes visando rom- per com uma concepeio atomizada dos agentes econémicos, ver Richard Swedberg (ed.), Explorations in Economic Sociology, New York, Russell Sage Foundation, 1993; © Mark Granovetter, "The Old and the New Economic Sociology: a History and an Agenda", in Roger 10 ‘A formagao do habitus evonémico Action Theory ¢ omite a historicizago das disposigdes que, tal como 0 campo econdmico, tém uma génese social. Foi, sem divida, porque me vi colocado numa situagdo em que podia observar de visu a perturbagio ou a angiistia de agentes econémicos desprovidos das disposigdes tacitas exigidas por uma ordem econémica para nés inteiramente familiar, onde, sendo uma estrutura incorporada, e portanto naturalizada, elas surgem como allant de soi, naturais, que pude ter a ideia de analisar estatisticamente as condigdes de destas disposigdes historicamente constituidas. e universai ocorrénci Algumas propriedades da economia pré-capitalista Todas as grandes propriedades das priticas econdmicas pré-capitalistas podem ser relacionadas com o facto de os comportamentos que nés considera- mos como econémicos no serem autonomizados constituidos como tais, isto &, como dizendo respeito a uma ordem especitica, regida por leis irredutiveis as que regem as relacdes sociais correntes, nomeadamente entre parentes. Na sociedade cabila do fim da era colonial, as trocas entre parentes ou entre vizinhos obedecem & légica do dom e do contra-dom. As pessoas res- peitaveis no vendem leite ("Queres crer que ele vendeu leite?!"), nem man- teiga ou queijo, nem ainda legumes ou fruta, mas faz-se de maneira a que “os vizinhos deles possam aproveitar”... © moleiro que tem um excedente de fari- nha no admitiria vender um produto que, como a farinha, & a base da ali- ‘mentagto. A Iégica da troca de dons combina-se com a légica mftico-ritual para impedir que se entregue um utensilio vazio: 0 que se entrega chama-se el fel, ou seja, "o que traz felicidade", como 0 que se dé ao pedreiro, ovos ou galinhas, quando vai trabalhar fora da aldeia. O mesmo para os servigos, regi- dos por regras estritas de reciprocidade e gratuitidade; ¢ ainda para os emprés- timos. Assim, a charka do boi (pela qual um camponés empresta um boi durante um periodo determinado contra umas tantas medidas de semente) niio pode estabelecer-se a nao ser entre quase-estranhos (ou seja, em caso de falta Friedland eA. F. Robertson (eds.), Beyond the Marketplace, New York, Aldine De Gruyter, 1990, p. 89-112; "Economie Institutions as Social Constructions: a Framework for Analysis", Acta Sociologica, 35-1, 1993, p. 3-12. Para uma abordagem visando reinscrever a sociologia ceond- ‘mica na "teoria da escotha racional" estritamente definida que revela a Filosofia da acgao utilita- rista e individualista que thes ¢ comum, pode lerse James Coleman, "A Rational Choice Perspective on Economic Sociology", in Neil J. Smelser e Richard Swedberg (eds.), The Handbook of Economie Sociology, New York, Russell Sage Foundation, 1994, p. 166-180. Para ‘© contraste com a mesma problemitica colocada em termos etnol6gicos, ver Stuart Plattner (ed) Economic Anthropology, Stanford, Stanford University Press, 1989. u Pierre Bourdieu de apoio dos mais préximos) ¢ é envolvida por toda a espécie de simulagdes © eufemizacdes destinadas a mascarar ou recalcar as respectivas potencialida- des mercantis: na maior parte das vezes, os dois “outorgantes" preferem escondé-la por comum acordo, procurando aquele que pede emprestado dis- simular a sua pentiria ¢ fazer crer que o boi € propriedade sua, prestando-se aquele que empresta ao jogo ja que o melhor é manter escondida uma tran- sacgio que ndo é estritamente conforme ao sentimento de equidade, nunca podendo 0 capital ser percebido ¢ tratado como tal. Tudo se passa como se a transacgdo se reduzisse cada vez mais a sua "verdade" econémica & medida que a relagao entre os agentes envolvidos na troca se torna mais afastada, logo mais neutra ¢ impessoal, decrescendo ent&o continuamente, nestas relagdes estruturalmente ambiguas, o peso relativo da generosidade e do sentimento de equidade em beneficio do interesse do calculo’ io con- cebidas como relagdes de guerra, que s6 entre estranhos podem ser acciona- das. O lugar por exceléncia da guerra econémica é 0 mercado, menos o mer- As relagées reduzidas a sua dimensdo puramente “econémica" cado da aldeia ou da tribo, onde se encontram ainda familiares, do que os grandes mercados das pequenas cidades afastadas (Bordj bou Arreridj, Akbou ou Maison-Carrée, segundo os informadores), em que o confronto se faz com desconhecidos, e com o mais temido de todos, o negociante de gado, e em que se est exposto, ao mesmo tempo, a todas as manhas e fraudes da guerra sem piedade. Podem retirar-se dos inimeros relatos sobre os infortinios do mer- cado algumas regras de prudéncia: quando o objecto da transacgdo é bem conhecido, sem equivocos, como uma terra, uma relagdo de troca andnima & possivel e a escolha incide prioritariamente, quando no de modo exclusivo, sobre a coisa comprada; quando é mal conhecida, equivoca ¢ pode dar lugar a falcatruas (como um macho que pode revelar-se teimoso ou um boi que pode ser engordado “artificialmente” ou dar cornadas), a escolha incide prio titariamente no vendedor, e, em qualquer caso, ha um esforco para substituir ‘uma relago pessoal por uma relagdo impessoal e anénima, tomando toda a espécie de garantias e mobilizando "fiadores" e testemunhas, que de algum modo visam envolver a relagdo do comprador ¢ do vendedor numa rede de intermediatios'. ? Mostrei noutro lugar que uma repressio do interesseestritamente "econdmico” semelhan- te a esta tende a governar 0 campo da producio artistica & medida que se processa a sua consti- tuigdo histriea (P. Bourdieu, Les régies de l'art. Genése et structure du champ littéraire, Pati, Seuil, 1992) * Para uma anélise convergente a partir do ponto de vista da teoria da informagdo, ver a dis- secago do funcionamento do bazar de Sefrou em Marrocos operada por Clifford Geert ("The 12 ‘A formagio do habitus econémico [As estratégias de honra que regem as trocas habituais (ordinaires) nfo assim, tal como se faz na altura dos casamentos, o vendedor, apés as trocas verbais que se concluem com a fixagdo do prego, entrega ostensivamente ao comprador uma parte relativamente importante do montante "para ele comprar carne para as criangas". E contam-se numerosos casos de compras de terras determina- das pela preocupagao de proteger um parente ou uma parente contra a priva- do da posse em beneficio de um estranho ou, noutra légica, para afirmar ado mercado, isto é, da guerra, nunca & verdadeiramente aceite e reconhecida enquanto tal e aqueles que se The acomodam, o negociante de gado, o colec- tor de direitos do mercado ou 0 usuririo, so votados ao desprezo’. Um breve paréntese sobre as relagdes entre os camponeses € 0s artestos, designadamente os ferreiros e os moleiros, e sobre as suas transformagées, correlativas da aparigdio de verdadeiros oficios de comércio, permitira verifi- car que a légica propriamente econdmica nio é independente da légica das relagdes sociais nas quais est gia de Polanyi‘, ‘Assim, na Cabilia dos anos 1950, o trabalho dos ferreiros era objecto de uma transac¢do ndo monetiria regulada a maior parte das vezes pelo direito consuetudinario, devendo o ferreiro da aldeia assegurar a cada camponés as reparagdes necessdrias & manutengdo do seu material em troca de um adian- tamento anual de uma parte da colheita proporcional ao nimero de parelhas de bois possuidas. O caso dos moinhos de agua de Aghbala, que estudei com Abdelmalek Sayad, permite captar a interpenetragiio das relagdes sociais e das relagdes econémicas: pelo facto de, diferentemente dos ferreiros, muito forte- mente estigmatizados, os moleiros nao serem excluidos da comunidade, ainda que se contassem entre os mais deserdados, cada moinho fixava, pelo jogo das trocas de servigos e pelo entrecruzar de relagdes ¢ de aliangas, uma clientela estavel, tratada com atengdes especiais, um pouco como héspedes, e cobrava uma parte (um décimo) dos cereais tratados em troca do servigo prestado. estio totalmente ausentes das trocas extra-ordinarias do merca ponto de honra de um grupo em face de um grupo rival. Em suma, a li imersa, ou "embedded", para usar a terminolo- Bazaar Economy: Information and Search in Peasant Marketing”, American Economic Review, 68, mai 1968, p. 28-32). Um mesmo mecanismo de reduedo da incerteza envolvendo a troca eco rnémica & descrito por Charles W. Smith na sua etnografia das vendas em leilio (Auetions: The Social Construction of Value, Berkeley, University of California Press, 1990), * Encontrar-se-4 uma anilise similar dos factores que impedem que a terra se torne pura mer- cadoria nos campos do Béarn (que, na altura, me permitiu deciftar melhor a logica da economia, ccamponesa argelina) em "Célibat et condition paysanne" (Etudes rurales, -6, avril 1963, p. 32 136, retomado in Le bal des célibataies, Paris, Seu, coll. "Points", 2002), “Nota da traduedo: a referencia a Polanyi no surge na versio Francesa 13 Pierre Bourdiew Com o declinio da agricultura ligado introdugio de novas actividades (artesanato, comércio, ete.) e ao surgimento de recursos nao agricolas ligados & emigragao’, 0 recurso aos moinhos de Agua tradicionais regride (0 aprovi- sionamento é feito directamente em sémula em vez de se mandar moer o cereal cultivado) € 0 moinho a motor toma o seu lugar, arruinando, como que por magi colectiva no caso da moagem tradicional. , todo o sistema das convengdes que regia o jogo da solidariedade Assim, por exemplo, fazia parte da tradi¢ao tratar gratuita ¢ prioritaria- ‘mente qualquer carga de cereais que nio tivesse sido transportada em animal; no podia tratar-se seniio da pequena reserva de um pobre, proveniente da res- piga, dos dons da Aid, da dizima por conta das colheitas, da ajuda de um parente mais rico ou ainda da mendicidade junto das éreas a bater, quantida- de em todo 0 caso demasiado reduzida para poder ser amputada de mais um décimo ¢ esperada com demasiada impaciéncia para que se pudesse adiar a transformagio. Através do moinho a motor, adquirido a maior parte das vezes a custa de economias (em vez de ser simplesmente um bem de uso herdado), € encarado ¢ tratado como um simples meio de produgo (no sentido da eco- nomia), introduz-se a légica do investimento e do célculo de custos e prov tos, em substituigdo das satisfagdes da realizagio autércica que o facto de moer 0 seu proprio gro podia conferir a0 camponés proprietirio da totalida- de ou parte de um moinho: um velho féllat* recorda-se de ter utilizado 0 moi- nho de que possui trés quartos durante trinta e cinco dias seguidos, ou seja durante um quarto do periodo de actividade; o utilizador do moinho mecéni- 0, por mais pobre que seja, fica convertido em cliente e 0 moleiro comporta- se em relagdo a cle como comerciante preocupado com a recuperagiio do seu io das actividades "artesanais" - subordinadas sempre, até entio, a actividade agricola e 0 mais das vezes exercidas por categorias estigmatizadas, como os Negros, ou pelos mais pobres, a titulo de comple- mento do khammessat (forma tradicional de arrendamento ao quinto) ou do arrendamento a meias - em actividades plenas, em verdadeiros “oficios", tem © seu equivalente na ordem do comércio, que outrora niio podia ser sendo uma actividade complementar, associada & agricultura (ter-se-ia considerado "pre- guicoso" todo aquele que permanecesse "sentado numa cadeira", "dias intei- ros", "a sombra"). Assim, fazia-se por no abrir a loja a na ser de manha, *P. Bourdieu e A. Sayad, Le Déracinement, op. cit * Nota da tradugo: Fellah termo drabe para camponds, 4 A formagio do habitus econémico antes da partida para os campos, ¢ & tarde no regresso do trabalho, na altura do bom tempo. O local reservado ao comércio fazia parte da residéncia e os familiares (ou, quando nao se tinha direito a tal intimidade, a velha da casa) no hesitavam em chamar ou em entrar na casa para Ihes ser servido um paco- tede por um dos rapazes preparados para esse feito). Tudo acaba por mudar quando, nos anos 1960, surge 0 comerciante a tempo inteiro que jd ndo quer exer café ou agiicar (quer pelo dono da casa, quer por uma das mulheres, quer er 0 oficio de camponés, deixando as suas terras, quando as tem, ao filho, ao irmao ou a um khammeés. Presente em per- manéncia na loja, desde entio distinta da casa, durante periodos de abertura bem definidos, muitas vezes vestido de forma diferente de fellah, ele tem 0 sentimento de fazer qualquer coisa montando loja (¢ nao de perder tempo), ‘mesmo quando, nos reagrupamentos, produtos da falsa urbanizago operada pelo exército, a sua actividade € na verdade muito reduzida (com a loja a transformar-se de facto em lugar de reunio onde se vai para cavaquear sem consumir). Esta “ascer ligados antigo, como explica um informante do reagrupamento de Ain Aghbel «Agora, até 0s talhantes fazem troca dos agricultores. Basta-lhes ter wma io" dos comerciantes é, para os velhos camponeses ‘economia da boa fé (niya), um dos signos do desmoronar do mundo loja, uma camisa especial para o trabalho, mudarem de roupa, terem empre- gados que esfolam (os animais), que limpam, que vendem nos mercados, para deixarem de ser tathantes [oficio tradicionalmente desprezado, como o de fer- reiro] e tornarem-se "ricos”. Tornow-se um "métier" [em francés]. Hoje, é tudo "métier". O que se pergunta é "qual é 0 teu "métier"?E cada um trata de arranjar um"métier". E é quem mais, por ter armazenado trés caixas de acti- car e dois pacotes de café num sitio, ja se diz comerciante; e que, por saber pregar quatro tabuas ja se acha carpinteiro; e jd nem se contam os motoris- tas, mesmo ndo havendo automéveis, basta terem a carta no bolso. Dard isto para comer? Foi um pouco o exército (francés) que fez isto, que deu um métier ds pessoas [...]. A principio, foi a auto-defesa, foi o primeiro métier [...]-Houve a seguir os harkis, os goumiers, os moukhazni, os sardjan [sar- gento], kabran (cabo), para ndo falar do presidente de cémara (el mit) e seus conselheiros (iqounsayan-is). Depois disto, basta que o tenente saiba que este ou aquele sabe fazer isto ou aquilo, para o indicar como tendo um métier, pouco a pouco toda a gente acabou por esquecer que hd o trabalho da terra que se esté a descuidar. No recenseamento, ouvi o Mohand L. protestar por- que 0 puseram como agricultor, enquanto para todos os outros inscritos arranjaram um verdadeiro métier. "Voc despreza-me; para os verdadeiros 15 Pierre Bourdieu agricultores, arranjow um métier, jé para mim, porque no sou dono de uma Jeira (thamtirth), faz de mim um fellah, Temos entao agricultores, da terra, que thes chega até & porta, e no entanto um é motorista, outro comerciante. Jé nem falo de Hocine M., que, esse, é elkhodja gel biro (khodja no escrit6- rio). Também eu tenho um métier!"» E continua a contar como este personagem se tornou de repente comer- ciante de gado (‘adjar) e intermediério e como, ganhando a comissio, conse- gue vender madeira ou fornecer a aldeia de palha ou outro bem qualquer: «Hé também o trabalho em Franca que nos valeu soldadores, estofado- res, trabathadores de maquinas. A mina deu picadores, entivadores, cofrado- res, Sé faltam os engenheiros, Toda essa gente deixou de trabalhar ha muito, ‘mas mantém o métier, principalmente se no bithete de identidade estiver 0 métier; é a prova irrefutdvel. Para os que ndo tém métier, resta a possibiida- de de serem aniriti [reformados, na reforma] ou anfaliditi [com invalidez].» As condiges econémicas do acesso as praticas econdmica: Este longo ¢ colorido mondlogo evoca desordenadamente alguns dos fac- tores, tais como a emigragio ou a actividade classificatoria do exército fran- cés, grande fomentador de falsas actividades, que, com a generalizagdo das trocas monetarias ¢ a introdugo de inovagdes técnicas, introduziram, até no mundo rural, a lgica da economia monetéria e do cAleulo econémico dito racional. Conduzir em meio rural o estudo das transformagées das priticas econdmicas permite ver melhor, € mais completamente, o que elas poem em Jogo, isto é, todo um estilo de vida ou, methor, todo um sistema de erengas. De tal forma que, para as descrever, importa falar, nao em adaptago, mas em conversio’. Para fazer entender a leitores - que, como os nossos economistas e socid- logos da economia, se sentem na economia dita racional como peixes na agua ~ que a palavra conversao no ¢ demasiado forte, e para provocar neles a con- versio de espirito que é necesséria para romper com o universo de pressupos- tos profundamente incorporados que nos levam a considerar como evidentes, naturais ¢ necessirios, portanto racionais, os comportamentos em uso no n0ss0 * Na auséncia de uma tal conversio, € 0 conjunto das esteatégias de reproduydo que se encontra travado e ao limite bloqueado, e a reconversio toma-se impossivel, levando 0 grupo desmoralizagdo, ou mesmo a extingdo, como bem se pode ver no caso do campesinato francés (cf. Sylvain Maresea, Les Dirigeants paysans, Paris, Minuit, 1983), 16 A formacio do habitus econémico mundo econémico, seria necessério que aqui pudesse evocar a longa série de experiéneias tantas vezes infimas que me permitiram apreender (éprouver) de maneira sensivel e concreta 0 caricter contingente e arbitrario desses compor- tamentos correntes, marcados com a marca do natural, que realizamos todos os dias na rotina das nossas praticas econdmicas. Como, por exemplo, o facto de se receber troco numa loja, em vez de chegar a casa do "comerciante", como na Cabilia, levando na mao © montante minuciosamente contado correspon- dente exactamente ao prego do objecto que se vem comprar. ‘Ainda me lembro de ter ficado durante muitas horas a fazer perguntas a um camponés cabila que tentava explicar-me uma forma tradicional de empréstimo de gado, 86 por nfo me ter ocorrido que aquele que empresta pudesse, contra toda a racionalidade “econémica”, sentir-se devedor do que pediu emprestado, com o fundamento de que este Ultimo assegurava 0 sus~ tento do animal que, em qualquer caso, teria de ser alimentado. Lembro-me também da quantidade de observagdes fortuitas e de constatagdes estatisticas que tive de acumular antes de compreender a filosofia implicita sobre o tra- batho, fundada na equivaléncia entre trabalho e remunerago em dinheiro, que mobilizava na minha interpretagdo espontanea sobre este mundo e que me impedia de compreender completamente certos comportamentos ou certas reacgdes de espanto dos meus informantes (como a do velho Cabila desco- brindo a proliferagao dos “oficios" atrés citados): 0 comportamento, conside- rado altamente escandaloso, do pedreiro que, ao voltar de uma longa estadia em Franga, pedi que se acrescentasse ao seu salério um valor corresponden- te a0 prego da refeigdo oferecida no fim dos trabalhos na qual, com inaudita falta de cortesia, tinha recusado participar; ou o facto de que, para um mime- ro de horas ou de dias de trabalho objectivamente idénticos, os camponeses das regides do sul da Argélia, menos afectados pela emigracao (¢ pela politi- ca de enquadramento do exército), se dissessem mais frequentemente ocupa- dos, como camponeses, do que os Cabilas, mais inclinados a atribuirem a si proprios um "métier" ou a considerarem-se desempregados. Tinha esta filoso- fia de tal modo assumida que no me apercebia que ela me dissimulava o tra- balho de invengdo ¢ de converso que aqueles que eu observava tinham de cefectuar para se libertarem de uma visio, para mim muito dificil de conceber, de actividade como ocupagao social socialmente reconhecida, independente de qualquer sangio material, e podendo, no limite, reduzir-se & concretizagao da fungdo propria de homem, que ndo esta a perder o seu tempo, quando fala com outros homens na assembleia ou quando distribui trabalho aos membros do agregado doméstico. 17

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