You are on page 1of 45
Studies in Sophoclean Tragedy; Word and Action: Essays on the Ancient Theater; Essays Ancient and Modern (ganhador do prémio Pen/Spievogel-Diamonstein de 1989); The Oldest Dead White European Males and Other Reflections on the Classics e Backing into the Future: The Classical Tradition and its Renewal. Knox foi também o editor responsavel pelo The Norton Book of Classical Literature e colaborou com Robert Fagles em sua traducdo para o inglés da Iiada, da Trilogia tebana de Séfocles e da Eneida de Virgilio. Morreu em julho de 2010, aos 95 anos. HOMERO Odisseia Traducao e preficio de FREDERICO LOURENGO Introdugao e notas de BERNARD KNOX PENGUIN ComPannia Das Letras Canto xvir Canto xvii Canto xxr Canto xxi Canto xxi Canto xxiv Notas Genealogias Referéncias bibliogréficas 493 436 442 463 477 493 sur 524 543 563 567 Introdugdo BERNAED KNOX “Odisseia” é uma palavra comum a varias linguas, com suas respectivas variagSes, ¢ significa, em uma definigio de aventuras ¢ eventos inesperados”. J a palavra grega Odusseia, a forma da qual o termo deriva, significa meramente “a historia de Odisseu” fem latim, Ulisses], heréi grego da guerra de Troia que levou dez anos para regressar ao seu lar na ilha de ftaca, ao largo da costa oeste da Grécia continental. A Odisseia de Home- ro de fato nos apresenta “uma longa jornada” e inesperados”, mas é também narrativa épica do retorno de um herdi que encontra em sua casa uma situagdo mais pe- rigosa do que qualquer outra que tenha enfrentado nas pla- nicies de Troia ou em suas viagens por mares inexplorados. 0 filosofo grego Aristoteles, escrevendo no século 1v a.C., apresenta-nos, em seu tratado conhecido como Poética, ‘0 que considera a esséncia da trama. “Um homem encontra- ‘se no estrangeiro h4 muitos anos; est sozinho e o deus Po- séidon o mantém sob vigildncia hostil. Em casa, os preten- dentes de sua mulher estio esgotando os recursos da familia genérica, “uma longa jornada chei -ventos ¢ conspirando para matar seu filho. Entdo, apés enfrentar tempestades e sofrer um nau‘régio, ele volta para casa, dé- -se a conhecer ¢ ataca os pretendentes: ele sobrevive ¢ os pretendentes sao exterminados.” Esse resumo conciso é 0 esqueleto de um poema épico que consiste em 12 109 versos hexdmetros, escritos, provavelmente, em fins do século vii 8 ODISSEIA u inicio do vit a.C., por um poeta conhecido nas geracées posteriores como Homero, de quem nao nos chegaram in- formagées confidveis a respeito de sua vida e atividades. Em outras palavras, 0 poema tem cerca de 2700 anos. Como, 0 leitor pode muito bem perguntar, a obra sobreviveu tanto ‘tempo? Por quem, para quem, como e em que circunstancias foi composta? Talvez a melhor maneira de iniciar a explora~ cao de tais questdes (ninguém pode prometer uma resposta completa ¢ indiscutivel) seja uma abordagem retrospectiva — ou seja, a partir do texto deste livro. Trata-se de uma tradugao do texto grego. A primeira edi- ao impressa de Homero, publicada em Florenga em 1488, era composta em uma tipologia que imitava a caligrafia grega da época, com todos os seus ligamentos e suas abreviagdes complicadas. Os antigos tipégrafos tentavam assemelhar seus livros a manuscritos escritos & mao, pois nos circulos eruditos 105 livros impressos eram considerados produtos vulgares e in- feriores — brochuras baratas, por assim dizer. Desde 1488, portanto, ha uma historia ininterrupta do texto impresso de Homero, que difere um pouco de um editor para outro, mas é essencialmente inalteravel. Antes disso, sua poesia existia apenas como livro escrito & mao. ‘Tais exemplares manuscritos permaneceram em circulagao na Itélia por cerca de cem anos antes da primeira edigao impressa. Petrarca tentou aprender grego, mas desistius Boccaccio conseguiu e instituiu, além disso, em 1360, uma cdtedra de grego em Florenga. Mas antes de Petrarca, Dan- te, embora tenha situado Homero em seu limbo de poetas nao cristdos, nunca 0 havia lido, e ndo poderia té-lo feito mesmo que houvesse visto o texto. Durante quase mil anos, a partir da queda do Império Romano, o conhecimento do grego praticamente se perdeu na Europa ocidental. No sé- culo x1v, ele foi reintroduzido na Itélia a partir de Bizan- cio, onde um império cristdo de lingua grega manteve-se desde que Constantino fez da cidade a capital da metade oriental do Império Romano. INTRODUGAO ° O conhecimento do grego e os manuscritos dos classicos gregos, Homero inclusive, chegaram a Italia no momento mais oportuno; em maio de 1453, BizAncio foi tomada pe- los turcos otomanos, e o predominio grego sobre o Orien- te chegou ao fim depois de mil anos. Durante sua longa existéncia, preservou-se, cop.ou-se e recopiou-se um seleto niimero de obras-primas gregas da era pré-crista, tendo Homero um lugar de destaque entre elas. Os precursores diretos da edicao impressa de Florenca foram os livros ma- nuscritos atados, escritos em velino ou papel, em letra cur- siva mimiscula, que incluia acentos e pausas para respira- gio. Esses livros representaram a fase final do processo de cépia 4 mao que remonta ao mundo antigo. A nova escrita miniiscula fora adotada no século 1x; por incluir espagos entre as palavras, era mais facil de ler do que sua ante- cessora, uma caligrafia que consistia em letras maitisculas separadas, sem divisio entre as palavras — a escrita padrio do mundo antigo. Do século 11 ao século v, 0 formato € 0 material dos livros mudaram: o pergaminho, de vida mais longa, substituiu o papiro, e 0 cédice, o formato do nosso livro — cadernos de papel costurados na parte de tras —, subst io mundo antigo, a Iliada consistia em varios rolos de papiro, com o texto escrito em colunas na face interna. Os rolos nao podiam ser muito grandes (ou se quebrariam quando abertos para serem lidos); um longo poema como a Odisseia podia consumir até 24 rolos — na realidade, é possivel que os assim chamados cantos da versio atual do texto representem a divisao original em rolos de papiro. Nesse formato, o poema tornou-se conhecido de es- tudiosos, que o editaram e comentaram em Alexandria, cidade fundada por Alexandre, antes que este se pusesse ‘a caminho de sua épica marcha rumo a {ndia em fins do século 1V a.C. E foi nesse formato — ainda que, antes, os estudiosos de Alexandria tenham produzido uma edigio padro, com muitas variagGes de um texto para outro — tuin o rolo. que surgiram varios exemplares da obra em todo o mundo grego dos séculos rv e v a.C. Também devia haver textos em circulacéo no século v1 a.C., pois temos conhecimen- to de recitagdes oficiais em Atenas ¢ encontramos ecos de Homero nos poetas da época. Por volta do século vit a.C., voltamos & escuridao. Nos poetas desse século (cuja obra sobrevive apenas em fragmentos), ha epitetos, expresses até mesmo fragmentos de versos comuns a Homero, Em- bora tais poetas — Tirteu, Calino, Aleman e Arquiloco — pudessem estar apenas usando expressdes comuns a uma tradigio épica como um todo, parece mais provavel que esses ecos revelem o conhecimento da obra que conhece- mos como pertencente a Homero. Além disso, hd um vaso, descoberto na ilha de {squia, ao largo da costa de Napoles, datado de antes de 700 a.C., que possui uma inscri¢ao que parece se referir 4 famosa taga de Nestor descrita na Ilfada. Ecos como esse também sao encontrados na arte do inicio do século vir a.C. — ilustragdes de cenas da Odisseia, por exemplo, em vasos datados da década de 670 a.C. Mas nao podemos recuar para além de cerca de 700 a.C. Provas materiais referentes a esse periodo sio raras; na realidade, sabemos muito pouco a respeito da Grécia do século viii a.C., menos ainda, se € que isso é possivel, a respeito da Grécia do século 1x a.C. Possuimos apenas re~ gistros arqueolégicos — vasos geométricos, sepulturas, al- gumas armas, Em virtude da nossa quase total ignorancia a seu respeito, esse periodo da hist6ria grega é conhecido como Idade das Trevas. Tudo que possuimos é a tradic&o, o que os gregos dos tempos hist6ricos acreditavam saber a respeito de Homero. Herddoto achava que ele havia vivido quatrocentos anos antes, nio mais, de sua propria época; isso 0 situaria no sé- culo 1x a.C. Aristarco de Alexandria, grande estudioso de Homero, acreditava que o poeta havia vivido cerca de 140 anos depois da guerra de Troia; considerando que a guerra de Troia era em geral datada (em nossos termos) por volta INTRODUGAO u de 1200 a.C., o Homero de Aristarco foi muito anterior a0 Homero de Herédoto. Apesar das discordancias quanto & data em que ele viveu, todos acreditavam que ele era cego ¢, embora alguns o considerassem natural de Quios (um suposto hino homérico menciona um cantor cego oriundo de Quios), outros associam suas origens a Esmirna. Tam- bém € geralmente aceito que Homero, embora mencionas- se 0 canto ¢ provavelmente cantasse nas apresentagées, foi um poeta que empregou os mesmos meios de composigao que seus sucessores do século v a.C. — isto é, a escrita. Mesmo aqueles que achavam que seus poemas fundiram- -se para assumir a forma atual apenas muito depois de sua morte (que, por exemplo, a tltima parte da Odisseia é um actéscimo posterior), mesmo aqueles que acreditavam que poetas distintos escreveram a Iliada e a Odisseia, os assim chamados separatistas — todos aceitavam que Homero foi um poeta que compés como todos os poetas subsequentes: com 0 auxilio da escrita. E essim ocorreu em todos os sé- culos posteriores até o século xvitt. Pope, cuja tradugio da jada é a melhor ja realizada para o inglés, fala de Homero como se este fosse um poeta como Milton, Shakespeare ou cle mesmo. “E universalmente aceito” — assim comega seu Prologo — “que HOMERO teve a Imaginagdo mais notavel do que qualquer Escritor.” Homero, ¢ isto é um fato consu- mado, escreven. Houve apenas um cético no mundo antigo que pensava de forma diferente. Nao era grego ¢ sim judeu, Yosef ben Ma- tityahu. Escreveu em grego (para 0 que, como admite, teve uma pequena ajuda) uma historia da rebeliao judaica contra o dominio romano no século 1 ¢ sua violenta repress por parte do imperador Tito — azontecimentos nos quais havia desempenhado importante papel. Mas também escreveu tum panfleto que contrariava a afirmagao do escritor grego Api6n, de que os judeus nao possuiam historia para contar, visto que as obras dos historiadores gregos mal os mencio- navam. Além de defender a aistoricidade das Crénicas do Antigo Testamento, Josefo (para chamé-lo por seu nome sgrego) contra-atacou ao assinalar que os gregos aprenderam a escrever de forma tardia em termos historicos. Os herdis da guerra de Troia “ignoravam 0 modo atual de escrever”, declarou, e mesmo Homero “no deixou seus poemas por escrito”; suas cangées foram “transmitidas de memoria” in- dividualmente e “unificadas apenas muito mais tarde”. E verdade (com uma excegao importante, que sera dis- cutida mais adiante) que ninguém na Iliada ou na Odisseia sabe ler ou escrever. Os escribas de Micenas haviam usado 6 complexo silabario Linear B — 87 sinais para diferentes combinagdes de consoantes € vogais. Era um sistema com 0 qual apenas os escribas profissionais conseguiam lidar; de qualquer forma, todos os vestigios dessa espécie de escrita se perderam com a destrui¢ao dos centros de estudos de Micenas no século x11 a.C. Os gregos s6 reaprenderam a escrever muito mais tarde. Dessa vez, apoderaram-se do alfabeto de pouco menos de 25 letras dos fenicios, um povo semitico cujos navios mercantes, navegando a partir das cidades de Tiro e Sidon, na costa palestina, alcangavam todas as ilhas ¢ portos do mar Mediterraneo. O alfabeto fenicio possuia sinais apenas para as consoantes. Os gregos apropriaram-se de seus simbolos (alfa e beta eram palavras sem sentido em grego, mas seus equivalentes fenicios, alef ¢ bet, significavam “boi” e “casa”), ¢ ao atribuir algumas letras as vogais criaram o primeito alfabeto eficaz, um sis- tema de letras que fornecia um, ¢ apenas um, signo para cada som da lingua. Exatamente quando essa adaptagao criativa ocorreu 6 objeto de controvérsia académica, Alguns dos formatos das letras das primeiras inscrigdes gregas parecem ter sido copiados de escritos fenicios de data tao remota quanto 0 século x11 a.C. Por outro lado, os primeiros exemplos de escrita alfabética grega, riscados ou pintados em cerami- ca quebrada ¢ encontrados em todo o mundo grego, desde Rodes, a leste, até {squia, a0 largo da costa napolitana, a INTRODUGKO 5B este, datam, segundo estimativas arqueoldgicas, da iilti- ma metade do século vit a.C. Apenas no século xviit 2 possibilidade do analfabe- tismo de Homero foi proposta novamente. O viajante in- glés Robert Wood, em seu Essay on the Original Genius of Homer {Ensaio sobre o génio original de Homero} (1769), sugeriu que 0 poeta era tio analfabeto quanto seus per- sonagens Aquiles e Ulisses. O académico alemao F. A. Wolf desenvolveu a teoria era um discurso erudito intitu- lado Prolegomena ad Homerum, ¢ assim teve inicio a ex- tensa e complexa Questo Homérica. Pois se Homero era analfabeto, declarou Wolf, nio poderia ter escrito poemas tao longos quanto a Iliada ¢ a Odisseia; devia ter deixa- do poemas mais curtos que, preservados pela meméria, foram mais tarde (muito mais tarde, na opinio de Wolf) reunidos em algo parecido com a forma que hoje conhe- cemos. A tese de Wolf foi quase universalmente aceita tio logo foi publicada. Surgiu na hora certa. Quase um século antes disso, 0 fil6sofo napolitano Giambattista Vico ale- gara que 0s poemas homéricos eram a criagio nao de um tinico homem, mas de todo o povo grego. O espirito da época agora tentava encontrar obras de talentos incultos, cangdes ¢ baladas, expressdes da imaginacdo conjunta de um povo — um contraste com a cultura e literatura artifi ciais da Idade da Razio. A rebelido romantica estava prd- xima. Em toda a Europa, estudiosos comecaram a reunir, gravar e editar cancdes populares, baladas e épicos — a Nibelungentied alema, a Kaievala finlandesa, as Reliques of Ancient English Poetry de Percy. E foi essa a época que viu a popularidade, sobretudo na Alemanha e na Franga, de um falso épico poético coletivo: a histéria de Ossian, heréi galés, traduzido do gaélico original e recolhido nas Highlands por James Macpherson, Apesar do fato de Ma- cpherson nunca ter sido capaz de apresentar os originais, “Ossian” foi elogiado por Goethe e Schiller; era o livro fa- vorito de Napoledo Bonaparte. Eles deveriam ter ouvido 4 opisseia Samuel Johnson, que descreveu o livro como “a fraude mais grosseira com que o mundo jé se inquietou”. Em tal atmosfera de entusiasmo pela poesia popular, a descoberta de um Homero primitivo foi mais do que bem- -vinda. E os estudiosos, convencidos de que a Iiada e a Odisseia consistiam em antigos poemas mais curtos reu- nidos mais tarde por compiladores ¢ editores, voltavam- -se com prazer 8 tarefa de desconstrucao, de reconhecer os alinhavos ¢ isolar as “canges” ou “baladas” em sua beleza primitiva, pura. Essa pratica manteve-se durante todo o sé culo xix e adentrou o século xx. E prosseguiui porque, naturalmente, os estudiosos ja- mais concordavam no que diz respeito & divisdo dos poe- mas. Isso era compreensivel, uma vez que os critérios que empregavam — inconsisténcia do personagem, desequili- brio da estrutura, irrelevancia do tema ou incidente, im- pericia da transic3o — eram notoriamente subjetivos. A principio 0 assunto gerou um vale-tudo indiscriminado; parecia haver quase uma competi¢ao para ver quem desco- bria o maior niimero de baladas distintas. Karl Lachmann, em meados do século x1x, apés afirmar que suas recém- -descobertas Nibelungenlied eram um mosaico de bala- das breves (teoria na qual hoje ninguém acredita), passou a dividir a Iliada em dezoito cangdes heroicas originais. Teoria semelhante sobre a origem da Chanson de Roland foi popular por volta da mesma época. A ideia no era t3o impossivel quanto hoje parece; de fato, um contempora- neo de Lachmann, o poeta ¢ estudioso finlandés Lonnrot, compilou baladas finlandesas em suas viagens como mé- dico rural as partes mais remotas do pais e reuniu-as para formar o grande épico finlandés, a Kelevala, poema que, desde entio, tem sido o alicerce da consciéncia nacional finlandesa. Mas os métodos analiticos de Lachmann nio produziram nenhum consenso, apenas disputas académi- cas, conduzidas com o veneno habitual, a respeito da ex- tenso dos fragmentos e de onde exatamente passar a faca. RODUGKO 45 A Iliada, na qual a ago confina-se a Troia e a planicie troiana e nao dura mais que algumas semanas, prestava-se com menos facilidade a tais operagdes cirdrgicas do que a Odisseia, que abrange dez anos e vastos espacos. Nao foi dificil para os empolgados analistas detectar épicos ori- ginalmente separados ¢ baladas curtas. Havia uma Tele- maquia (Cantos 1-1v), a nartativa do desenvolvimento do timido jovem principe até seu total estabelecimento como homem e guerreiro. Continha o que a principio eram trés baladas distintas do tipo conhecido como Nostoi (Retor- 1nos) — as viagens e o regresso a patria de Nestor, Menelau ¢ Agamémnon. Havia a longa narrativa da viagem de um heréi através de mares lendérios e distantes, como a saga da nau de Jasio, 0 Argo, um canto, alias, mencionado na Odisseia (x11.70). Incorporado a essa narrativa de viagem havia um canto breve, porém brilhante, a respeito de um escindalo sexual no Olimpo — Ares e Afrodite surpreendi das in flagrante delicto por seu furioso marido, Hefesto. E um dos cantos do bardo cego Demédoco, que, na corte de Esquéria, narra também a hist6ria da contenda entre Aqui- les e Ulisses e outra de Ulisses e do cavalo de madeira que provocou a queda de Troia. Havia, além disso, um Nostos integral, o regresso de Ulisses, a acolhida que recebeu e sua vinganga contra os pretendentes. ‘As dimensées exatas desses componentes supostamente distintos e os estagios do processo que conduziu a sua com- icos eminentes ainda sio) matéria de especulagdo e controvérsia, Haveria cia do épi- co (as andangas e o regresso de Ulisses), outro que cantou a chegada 4 maioridade ¢ as viagens de Telémaco, e um terceiro que uniu os dois e forjou os vinculos que os uni- ram? Ou haveria apenas dois — o poeta das viagens e do regresso para casa, € 0 outro que acrescentou a Telemaquia € 0 Canto xx1v (que, seja como for, muitos estudiosos con- sideram um acréscimo posterior)? binagdo foram (e nos escritos de muitos ci trés poetas principais — um que compés a ess 16 opisseta ‘A fraqueza mais evidente dessa linha de argumentagéo 6 0 fato de a historia de Telémaco nao ser tema compativel com um canto heroico; nela nada ha de heroico até Telémaco assumir seu lugar, de langa na mao, ao lado do pai no pa- licio de ftaca. Como poema épico distinto, o material dos Cantos r-1v é algo dificil de conceber no contexto histérico — um Bildungsroman, a histéria de um jovem oriundo de ‘uma ilha pobre atrasada que se impde em casa e visita a corte sofisticada de dois reinos ricos poderosos para voltar para casa homem feito. Um tema como esse esta a léguas de distancia das cangdes apresentadas pelos bardos na Odisseia ena Iliada, Demédoco, na corte de Esquéria, narra a histéria da disputa entre Ulisses e Aquiles e, mais tarde, a pedido de Ulisses, a do cavalo de madeira que ocasionou a queda de Troia. Fémio, no palacio de fraca, canta o retorno dos aqueus de Troia eas catastrofes que Ihes foram impostas por Atena, ¢ quando Penélope pede-the que escolha outro tema menciona 6 conhecimento que possui das “faganhas de homens e deu- ses, como as celebram os aedos” (1.338). E na Iliada, quando 5 embaixadores de Agamémnon pleiteiam com Aquiles que se junte a eles na linha de combate, encontram-no tocando a lira, “cantando os feitos gloriosos! dos homens” (1x.189- -90). Nao ¢ facil inserir um canto exaltando as viagens de Telémaco no contexto de um piblico masculino acostumado a narrativas de aventura ¢ feitos de armas. Como come o bardo? “Fala-me, Musa, da entrada de Telémaco na maiori- dade...”? Parece muito mais provavel que a Telemaquia tenha sido uma criagio do poeta, que decidiu unir uma narrativa de aventuras em mares lendarios — uma viagem ocidental nos moldes saga da viagem do Argo para o Oriente — com um Nostos, 0 regresso & patria do her6i proveniente de Troia, neste caso para defrontar-se com uma situacdo téo perigosa quanto a que aguardava Agamémnon, Essa decisio 0 obrigou a um desvio radical do processo tradicional de narrativa do canto heroico, ¢ trouxe & tona um problema para o qual a Telemaquia era uma solugio magistral. ia inTRODUGAO y ‘A narrativa épica em geral anuncia o ponto da hist6- ria em que ela comega e prossegue em ordem cronol6gi- ca até o fim. A Iliada princigia com o pedido do poeta a Musa: “Canta, 6 deusa, a célera de Aquiles, o filho de Pe- Jeu” ele entio Ihe diz por onde comegar: “desde 0 momen- to em que primeiro se desentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, ¢ o divino Aquiles” (1.1-7). Ela assim faz, ¢ a historia é contada em rigorosa ordem cronolégica até o f- nal: “E assim foi o funeral de Heitor, domador de cavalos” (xx1v.804). Na Odisseia, quando Ulisses pede a Demédo- co, bardo de Esquéria: “Mas muda agora de tema e canta- -nos a formosura do cavalo/ de madeira, que Epeu fabricou com a ajuda de Atena” (vi.492-3), 0 bardo, [...] incitado, comegou por preludiar 0 deus, revelando depois o seu canto, Tomou como ponto de partida (© momento em que tinham embarcado nas naus bem construidas iniciado a navegacio (depois de queimadas as tendas) os Aqueus. (vitt.499-503) E da prosseguimento & hist6ria até a queda de Troia. Mas o prélogo & Odisseia renuncia ao tradicional pedi- do a Musa ou ao poeta para que inicie em determina- do ponto. Ela comega, como a Iliada, com um pedido a Musa para que toque um tema — a ira de Aquiles, as andancas de Ulisses, mas em lugar de the dizer onde comecar — “desde 0 momento em que primeiro se de- sentenderam/ o Atrida, soberano dos homens, ¢ o divino Aquiles” — deixa a escolha a seu cargo. “Destas coisas fala-nos agora, 6 deusa, filha de Zeus” (1.10). E ela assim © faz. Comeca nao com a partida de Ulisses de Troia (que € onde ele inicia quando conta sua histdria aos fedcios), mas no vigésimo ano de sua auséncia de casa, quando Atena compele Telémaco a empreender viagem a Pilos ¢ 8 ODISSELA Esparta e promove a fuga de Ulisses de seu cativeiro de sete anos na ilha de Calipso. ‘A razdo para esse afastamento surpreendente da tradi- gio nao é dificil de encontrar. Se o poeta tivesse comegado do principio e observado uma cronologia rigida, teria sido forcado a interromper a sequéncia da narrativa assim que seu herdi houvesse voltado a ftaca, a fim de explicar a si- tuagao extremamente complicada com a qual ele teria de lidar na propria casa. A Telemaquia o habilita a preparar o terreno para o retorno do herdi e apresentar os protago- nistas das cenas finais — Atena, Telémaco, Penélope, Euri- cleia, Antino, Eurimaco —, bem como um grupo de atores secundarios: Madon, o criado que ajudou a educar Teléma- co; Dolio, 0 criado de Laertes; Haliterses ¢ Mentor, dois ancidos de ftaca que desaprovavam os pretendentes; o pre- tendente Lidcrito e Fémio, o bardo de fraca. E as deseri das viagens de Telémaco fazem mais do que mapear seu avango, sob a orientagio de Atena, da timidez provinciana a autoconfianga principesca nas suas interagdes com r. clas também nos oferecem duas visdes ideais do regresso do heréi, muito diferentes do destino reservado a Ulisses — Nestor entre seus filhos, Menelau com a mulher ¢ a filha, ambos governando reinos abastados e siiditos leais. ‘A divisio em cantos separados de poetas distintos nao foi a tinica abordagem usada para dissecar 0 corpo da Odisseia. O século x1x foi o periodo que testemunhou © nascimento do espirito cientifico histérico. E também o da histéria da lingua — as disciplinas da linguistica, Tudo isso teve influéncia na questo. Se de fato algumas segdes da Odisseia fossem mais antigas que outras, deveriam conter atributos linguisticos caracteristicos de um estagio anterior do idioma, e nao aqueles encontrados em acréscimos mais recentes. Da mesma forma, as partes mais novas do poema deveriam conter alusdes a costumes, leis, objetos ¢ ideias pertencentes a0 periodo hist6rico mais recente, ¢ vice-versa. No fim do século, surgiu um novo critério para aferir a an- ITRoDUGao 9 tiguidade das diferentes segdes do poema — o critério ar- queolégico. Com as escavagées de Heinrich Schliemann em Troia e Micenas e as de Sir Arthur Evans em Cnossos, uma civilizagdo até entao desconhecida foi revelada. Se havia al- guma historicidade nas descrigées de Homero do mundo aqueu que organizou o ataque a Troia, devia ser uma re- feréncia a esse mundo — um mundo de mascaras de ouro, armas de bronze, palacios e fortificagées —, nao a Grécia arqueologicamente atingida pela pobreza da Idade das Tre- vas. Ora, ao encontrar nas descrigdes de Homero objetos correspondentes a algo escavado em um lugar da Idade do Bronze, o pesquisador poderia datar uma passagem, pois estava claro que com a destruicao dos palicios miceniano € minoano todos os vestigios daquele perfodo haviam desa- parecido da Grécia. Schliemann e Evans descobriram coisas das quais Herddoto e Tucidides nao faziam ideia, Dentre essas trés abordagens, a linguistica parecia a mais promissora, a mais propensa a gerar critérios obje- tivos. Estudos sobre as origens do grego na familia indo- -uropeia de linguas haviam progredido segundo critérios geralmente aceitos e cientificos: a historia da lingua grega e dos dialetos gregos tornara-se uma disciplina exata. A ané- lise linguistica do texto certamente confirmaria ou refuta- ria teorias de estratos anteriores e posteriores nos poemas. A LINGUA DE HOMERO A lingua de Homero é, naturalmente, um problema em |. Uma coisa é certa: trata-se de uma lingua que ninguém nunca falou. f uma lingua artificial, poética — como pro- poe o estudioso alemao Witte, “a lingua dos poemas ho- méricos é uma criagao de versos épicos”. Era também uma lingua dificil. Para os gregos da era dourada, 0 século v a.C., no qual inevitavelmente pensamos quando dizemos “os gregos”, 0 idioma de Homero estava longe de ser claro ao ODIssEIA (eles precisavam aprender o significado de longas listas de palavras obscuras na escola), ¢ era repleto de arcaismos — no vocabulério, na sintaxe e na gramética — ¢ incongruén- cias: palavras e formas extraidas de diferentes dialetos e estagios distintos de desenvolvimento da lingua. Na reali- dade, ninguém nem sonharia em empregar a linguagem de Homero, a excegao dos bardos épicos, sacerdotes oracula- res e parodistas eruditos. Isso nao significa que Homero fosse um poeta conhe- cido apenas de eruditos ¢ estudantes; pelo contrario, os épicos homéricos eram familiares como as palavras do cotidiano na boca dos gregos comuns, Conservaram sua influéncia na lingua e imaginagao dos gregos por sua ex- celente qualidade literaria — a simplicidade, rapidez ¢ ob- jetividade da técnica narrativa, a genialidade e emogao da acdo, a grandeza ¢ a tocante humanidade dos personagens —e por conceder aos gregos, de forma memoravel, ima- gens de seus deuses ¢ do saber ético, politico e pratico de sua tradigao cultural. A contextura dos épicos homéricos foi para 0 periodo clissico na Grécia 0 que a dos Mar- mores de Elgin representou para nés — desgastada pelo tempo, mas falando-nos diretamente: majestosa, impositi- va, uma visdo da vida para sempre gravada nas formas que parecem ter sido moldadas por deuses ¢ no por homens. ‘A lingua de Homero é também a “criagdo do verso épico” em sentido estrito: foi criada, adaptada e moldada para ajustar-se 4 métrica épica, o hexametro. Este éum verso, como aponta o nome, de seis unidades métricas, que podem, grosso modo, tanto ser dactilos (um longo ¢ dois curtos) como espondeus (dois longos) nas quatro primeiras posigdes, mas deve ser dactilo e espondeu, nessa ordem, nas tiltimas duas (raras vezes espondeu e espondeu, nunca espondeu seguido de dactilo). As silabas sio literalmente longas e curtas; a métrica é baseada no tempo de pronin- cia, e ndo na entonagdo. Mas a métrica nao permite des- vios das normas basicas — fendmenos como as variagdes INTRODUGKO a shakespearianas no verso branco, menos ainda as sutilezas de Eliot na prosédia em The Waste Land. Ainda que metricamente sempre regular, ele nunca se torna monétono; sua variedade interna é uma garantia disso. Essa regularidade imposta a variedade € o grande segredo da métrica de Homero, a arma mais poderosa de seu arsenal poético. Independentemente do quanto varie na abertura eno meio, o verso longo termina da mesma forma, estabelece seu efeito hipndtico canto apés canto, impondo a objetos, homens ¢ deuses 0 mesmo padrao da faria de Aquiles e das viagens de Ulisses, de todos os fend- menos naturais e de todos os destinos humanos. ‘A métrica propriamente dita exige um vocabulério es- pecial pois muitas combinagbes de silabas longas ¢ cur- tas, comuns a lingua falada, ndo sao admitidas no verso — quaisquer palavras com trés silabas curtas consecutivas, por exemplo, quaisquer palavras com uma silaba curta en- tre duas longas. Esta dificuldade foi solucionada por meio da livre escolha entre as muitas variagdes de proniincia e prosédia proporcionadas pelas diferencas dialetais gregass a linguagem épica é uma mistura de dialetos. Sob a leve patina das formas dticas (facilmente removiveis e, claro, em virtude da importancia de Atenas como centro litera rio e, a seguir, no comércio de livros), hd uma combinagéo indissolivel de dois dialetos distintos, 0 e6lico e o jénico. Mas as tentativas dos linguistas de usar tal critério para os primeiros (e6licos) € os mais tardios (jénicos) esbarraram no dilema de as formas eélicas e jOnicas por vezes surgirem inextricavelmente enredadas no mesmo verso ou meio verso. As tentativas de dissecar a Odisseia em termos hist6- ricos ndo foram mais satisfatdrias (a nfo ser, é claro, para seus autores). Havia de fato passagens que pareciam indi- car diferentes origens historicas, mas ndo so reconheciveis como anteriores ou posteriores pelo critério da diferenca linguistica ou da andlise estrutural. Ao longo de todo 0 poema, as armas e armaduras sao confeccionadas em bron-

You might also like