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achelar Os PensadoréS Bachelard “ara 0 clentista, « conhecimento sai da ignorincia tal como a Ine sii des trevas. © clentistr ndo v8 que as trevas expirituais tm ura estrutura e que,_nessas candigées, torla experitn cla objetiva cometa deve implicar sem- pr a cocregao de um erro subjelivo: Mas ndo 4 facil destruir ox eros um a um. Fles sio conrlenados. © espirito clentifico sé se pode construir destuin- do 0 espirita nde ctertifico, Muitas ve 2es 0 clentiste entrega-se a uma peda gogia fracionada enquanto 0 espirito Gntifico deveria ter em vista uma. re> forma subjetiva total. Todo pragresso real na pensamento cientifico necessi- ta de uma conversio.” BACHELARD: A Filosofia do Nae. "Se guiséssemos retragar a histo= i do Determinismo, seria. preciso rex tomar toda a histéria da Astronomia, £ da profundeza dos Céus que se dell- neia 9 Odjetive puro que corresponde @um Visual puro. € scbre @ movimen- to regular dos astros que se regra 0 Destino. Se alguma coisa 6 fatal em nossa vida, € porque primwito uma es tela nos domina e@ nos arrasta, Hit por- tanto uma filoscia do Ce esttelado Hla ensina ao homem a lei fisica nos seus caracteres de abjetividade e& de deigrminisme absolute. Sem essa gran- de ligéo de matemdtica astrondmica, 2 keometia © 0 numer mio estariam provavelmente Ue esteitamente asso- clades ao pensamento experimental; o fendmeno terrestre tem uma diversida- dec uma mobilidade imediatas dema- siado manilestas para que se passa en- canter nelas, sem preparagio psicald- fica, uma doutrina da Objefividade & Uo Deteminismo, G_ Determinismo descou do Céu sobre a Terra BACHELARD: O Novo Espirito Cioatiti- €. ‘As grandes Imagens ttm ag mes- mo tempo uma histéria @ uma pré-his- téria. Sao sempre lembranga © lenda au mesmo tempo.” BACHELARD: A Podtica do Espace. Os PensadoréS CIP-Brasil. CatalogseSo-na-Publi ‘Amara Brasileise do Livro, SP anor Qed. 83-1662 Buchelard. Gaston, 1884-1962 A filosofia do nie: O now expitine eientifion ; A postica vo espage / Gaston Bachelard ; sclegan’ ue textos uke Jose América Motta Pessantie 5 tratugoes de Joaytim Jost Moura Ramos... (ct al). — 2. ed. — Sin Palo = Abril Cultural. 1984 (Os pemsadores) ul vida Bibliografia 1, Bacheland, Gaston, 1884-1962 2, Cigneia Fityofia 3, Cid ~ Metodologia 4. Espago (Arte) 5. Inaginagio 6. Poesia 1. Pessa- ha, Joss América Mota. 1932. IL Tituke A tilosofia do nio. HL. Ti (ulv; © novo espirito eientitico, IV. Titulo: A poéticn do espaco. V. Sénw. obra de Hachelard, eDb-Si1 153.3 -134 018 -700.1 BOL 2. Espago = Ames 700.1 3. Filosofia francesa 194 4 Filisoios franceses | Ring 5. Irmaginagio = Pricologia 133.3 6, Metodologia cientifica SO1.8 7, Pogsia ; Histéria ¢ exitica 809.1 BACHELARD A FILOSOFIA DO NAO ~ ONOVO, ESPIRITO CIENTIFICO A POETICA DO ESPACO stos de José Américo Motta Pessanha jim José Moura Rames, Remberto Francisco da Costa Leal ¢ Lidia do Valle Santos Leal EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titalos originais: La Philosophie du Non Le Nouvel Esprit Seientifagan La Pottique de 'Emace © Copyright dosta edicho, Avril S.A. Cahural, ‘Sao Paulo, 1979, — 2 edigio, 1984. ‘Textos publicados sob licence de Presses Usiversitaines de France, Paris, e Editenal Presenea Lida., Lisboa (A Filosofia do Nao); Prosses Universitaires de France, Paris (C Nosw Expiriie Clenifica ©A Postica da Rpg), ‘Tradugdes publicadas sob liccnga de Euitoniat Preven Lute, Lisboa (A IWosofla do Nao) ¢ da Liviaria Ehlorade Tajuca Lida... Rio de Janeiro 4A Poettea do Espapy), Dincitos exclusives sobre a traducio de O Novy Espirito Cienaifien Abrit $A. Cultural, So Panis Dincitos exchusivos sobre ‘“Bavluslard — Vide e Obra”, Abril S.A. Cultural, Séo Pak, BACHELARD VIDA E OBRA Jose Américo Motta Pessanha o dia 16 de outubro de 1962 morreu em Paris Gaston Bache- lard, membro da Academia de Ciéncias Morais © Politicas da Franga, laureado com o Prémio Nacional de Letras, autor de vasta © inovadora obra filoséfica, renomado professor da Sorbonne, Cujos Cursos eram acompanhados por uma multidao de jovens entusiasma- dos com a profundidade ¢ a originalidade de seu pensamento ¢ com sua personalidade vibrante, acelhedora; inconvencional. Ao longo de suas obras ¢ de sous cursos insistira freqdentemente numa tese: “A fix losafia cientifica deve ser exsencialmente uma pedagogia cientifica’ . Sua preacupagdo com os fundamentos @ os requisitos para o desenvol- vimento de um “novo espirito cientifico” levaramno a combater as formas tradiclonais de ensino e a propor pata a ciincia nova uma pe> dagogia nova. Vinculanddo estreilamente o progresso da pesquisa cien- fifica A libertagao das mentes jovens, eserevera numa de suas obras mais importantes (O Racionalisme Aplicada): “Freqgentemente os pais abusam ainda mais de seu saber do que do seu pader. A oniscién- cia doc pais, logo sequida em todos os niveis de instrugie pela onis- ciéncia dos professores, instala um doxmatisma que é a negayao da cultura. Quando atacado pela loucas esperancas da juventude, torna- se profético, Pretende se apoiar sobre uma experiéincia de vida para prever a experiencia da vida, Ora, as candigées do progressa so do- favante tio méveis que a experiéncia da vida passada — se 6 que uma sabedoria pode resumi-la — é quase fatalmente um obstaéculo a ultrapassar, desde que se queira dirigir a vida presente’. © prdprio Bachelard, numa demonstragdo de permanente joviali- dade espiritual, nao se deixara jamais prender as ortodexias das esco- las filos6ticas. Talvez par isso mesmo suas idéias repercutem nos mais diversos campos de investigacie, demolindo velhas concepgies cristalizadas © propondo. novas ¢ as vezes surpreendentes solugdes pas fa 08 problemas. Apoiado numa interpretagso do desenvolvimento histérico das doutrinas cientificas, Bachelard formulou seu tema de in- conformismo. intelectual através do que denominau de “filosofia do nao". Para ele, a histOrta das idéias nao se faz por evolugao ou conti- nuismo, mas através de rupturas, revolucdes, “cortes epistemoldgi- cos", Num de seus livros escroveu; “A verdade ¢ filha da discussao, vill BACHELARD nao da simpatia’'. Aplicando ele prépric: esse precelty, revestiu toda sua obra de cardter polémice, fazendo reiteradas criticas & nociva in- Hluéncia da metatisica tradicional (particularmente a carteciana) sobre © desenvalvimenta da epistemologia. Também nao poupou eriticas se- veras a alguns dos principais pensadores que marcam o sécttle KX, co- mo Freud, Bergson, Sartre. Por outro lado, contraria aus esterilizantes sistemas fechados, fez uso bastante pessoal de varias nocoes, como. “psicanalise”, “fenomenologia’, “dialética’”, “materialisms', a0 mesmo tempe que defendeu uma nava concepgdo de racionalismo; 0 tacionalismo setorial e aberto, A dupla fenomenologia do imaginario A vida de Bachelard parece marcada pela descontinuidade, da qual ele se tornou um dos tedricos no pensamento filosdfica contem- porines. Nascid> em 1881, em Champagne (Bar-sur-Aubel, (raba- Ihou nos Correios enquanto cstudava matemitica, pretendendo for mar-se engenheiro. A guerra de 1914/18 corta-lhe 6 projeta: inicia en- tio carreira no magistério secundsrio, ensinando quémica fisica em sua cidade natal. Aos 35 anos, outro corte em sua vida: comeca no- vos estudos, agora de filosofia, que também passa a lecionar. Em 1928 publica as duas teses que havia apresentando no ano anleriar: Essai sur la Connaissance Appraché (Ensaio Sobre 0 Conhecimento Aproximado) e Etude sur I'Fvalution d’un Probleme de Physique: a Propagation Thermique dans les Solides (Estudo Sobre a Evolucéo de um Problema de Fisica: a Propagacao Térmica nos Sdlidos), Na pri- meira jd aparece uma das teses centrais de sua epistemologia — o “aproximacionalismo", ou seja, a idéia de que a abordagem do obje- to cientifico deve ser feita através do uso sucessivo de diversos méto- dos, j4 que cada um deles seria destinado a se tornar primeito absole- to, depais nocivo. A partir dessa época o nome de Bachelard comeca a se projetar. fm 1930 € convidado para lecionar ma Faculdade de Dijon. Le Nou- vel Esprit Scientifique (O Nove Espirito Cientifica) surge anos mals tar- de (1934), como sintese de sua epistemulogia ndo-cartesiana ¢ em consonancia com as grandes revolugdes cientificas do século XX, co- mo a teoria da relatividade generalizada e a fisica quantica, De 1935 € LIntuition de Mnstant (A tntuicéo do tnsiante} e de 1936 La Dialecti- que de la Durée (A Dialética da Deragéo), ambas versando sobre a descontinuidade temporal, A Gltima, além de propor uma nogdo de duragao ndo-bergsoniana, adota a nogio de “ritmanalise”, que Ba- chelard declara ter encontrado na obra ‘du philosophe brésilien”” Lu- cio Alberta Pinheiro dos Samtos. £m 1938 Bachelard publica uma de suas obras mais importantes, La Formation de I’Esprit Scientifique (A Formagao do Espinta Cienti ce), na qual analisa os mais diversos “obstaculos epistemoldgicos que devem ser superadas para que se estabeleca e se desenvolva uma mentalidade yerdadciramente cientitica. Nessa obra trata também da “alquimia poética’’, que encara ainda como um entrave a ciéncia, A partir dessa épaca, mas sobretudo com a publicagde de La Psyeha- VIDAL OBRA Ix nalyse du Feu (A Psicanalise do Fogo), também em 1934, e de Lau- irgament, cm 1940, manifestam-se sobre © pensamento de Bachelard duas importantes influéncias, que perdurarao ao longo de sua obra, embora manipuladas e transfiguradas: a do surrealismo © a da psica- nélise. Esta, Bachelard aplicard a psicologia coletiva, buscando fazer nao apenas a “psicandlise do conhecimento objetivo’, como tam- bém a “psicanalise dos elementos’ (terra, ar, dgua € fogo), fontes dos arquétipas do imagindrio poético. Em La Formation de |'Fsprit Scientifique, ciéncia e poesia apare- lam como dois mundos distintos, que deverian sor mantidos scpara- dos para benelicio da objetividads do comhecimento cientifico, Um dos obsticulos que Bachelard identifica na construgao da ciéncta — talvez o mals dificil de superar — diz respeito 4 propria linguagem Gentifica, na medida em que ela abriga, com freqtiéncia, a impreci- sao 2 as ciladas das metéforas. Uma tal “poesia” espuria, inconscien- te de si mesma e fora de lugar, compromete a tarefa do cientista: panga a ser retirada, para deixar brilhar a claridade da explicacgo ra- clonal, © ouro da cientiticidade. Dai a necessidade de uma psicandli- se da razdo c do discurso cientifico. Bachelard afirma; “Uma que aceila a5 imagens ¢, mais que qualquer outra, vitima das metiio- ras. © espitito cientitico deve lutar incessantemente contra as. ima- gens, contra as analogias, contra as metiloras’. O impéria das ima gens Constituiria justamente a caracteristica do pensamenta pré-cienti- fico, Mas Bachelard reconhece lambém que o mais perigasa para o pensamento cientifico € que as metiforas exercem fortisima sedu- ao; "Nao se pode confinar as metaforas, tao facilmente quanto se pretende, apenas no reing da exprossie. Quer s¢ queita Gu no, as metiforas seduzem a razao"’. Esse fascinio das metaforas, na verdade, ja se exercia sobre o proprio espirite de Bachelard. E o que pudera pa~ recer, do panto de vista do pensamento cientllica, a ganga impura a ser alijada do universo da racionalidade, acaba se tornando a maté- ria-prima com que ele, nessa época, definitivamente seduzide, come ga a trabalhar nas obras dedicadas ao imagindria poético @ artistico em geral. A esse tema, depois de La Psychanalyse du Fou, dedica uma série de obras; L'Eau et fes Réves (A Agua e os Sonhos}!, de 1942; L'Air et les Songes (O Ar e os Sombos), de 1943; La Terre et les Réveries de la Volonté (A Tera e os Devaneias da Vontade), de 1948; e La Terre et les Réveries de Repas {A Terra & os Devaneias do Repouso), também de 1948. Na fase final de sua obra, Bachelard continua trilhando os dois sendeiros paralelos da ciéncia e da poesia, desdobrando sirtultanea- mente uma dupla fenomenologia do imagindrio, Nos dais campos de- senvolve a tema do materialisma: a manipulagao da materia, a de- miurgia, em ampla acepcao (artesanal ou onirica, racional ow cienti ca}, torna-se @ ponto onde se cruzam ciéncia ¢ poesia, razdo © deva- neio. Os dltimos livros de Bachelard revelam essa dupla vida de um espirito aberto, insacidvel e, per isso, sempre jovem: Le Rationalisme Appliqué (OQ Racionalisma Aplicado), 1949; L’Activité Rationaliste de ta Physique Contemporaine iA Atividade Ractanallsta da Fisica Con- fempordneal, 1951; Le Maiérialisme Rationel (O Maieriatisma Racio- nal), 1952; La Postique de "Espace (A Podtica do Espace), 1957; La Poetique de la Reverie (A Poetica do Devaneio), e La Hamme dune x BACHELARD Chandelle (A Chanta de uma Vela), ambas de 1961. Artigos © ensaios de Bachelard, publicados esparsamente, foram reunidos depois de sua morte, em coletineas que os editares denominaram de: Fruces (Es tudasi, 1970; Le Droit de Réver (QO Lireite de Sonhar) também de 1970; © 1’Engagement Rationaliste (O Engajamento Racionalists), de 1972. O “idealismo militante’’ de um filésofo do no Examinando as grandes. conquistas da cléncia a partir do final da século XIX @ sabretuda no decorrer da sécule XX, Bachelard assinala hos campos da matemitica, da fisica ¢ da quimica nao apenas. um avango, mas a instauragio de um “nove espinie cientifice”, que par te de novos pressupostos epistemoldgicos ¢ exercita-os numa. ativida- de que é mais do que uma simples descoberta: & antes criagdo, Na fi- si¢a, reconhece que “com a ciéncia einsteiniana comega uma siste- matica revolugao das nagées de base”. € acrescenta: “A ciéneia exp Fimenta entio aquilo que Nietzsche chama de ‘tremor de conceitos , somo s¢ a Terra, 0 Mundo, as coisa’ adquirissem uma oulra estrutura desde que se coleca a explicagao sobre novas bases”. No mesmo tox- to (La Dialectique Philesophique des Notions de fa Relativite, in L’En= gagement Ravionaliste), Bachelard esclarece que o que corre, a par tir das tearias de Finstein, ¢ que ‘ino detalhe mesmo das nogoes est belecesse um relativismo de racional edo empirico”, Do lade da qu mica, Bachelard assinala também profundas mudangas: a quimica no & mais uma “ciéncia da memdéria, uma pesada citncla de momd- ria”; na _quimica, também “as primeiras experiéncias so. ape Preambulos”; jd se pode falar de “uma quimica matematica no mes- mo estilo em que, hd um século © meg, fala-se de urna fisica matend- ica’. Eis por que Bachelard vé na nova quimica a manitestacio de um “materialism racional’, Por outro lado, “as préprias. matomati= €as, as ciéncias mais estdvels, as ciéncias de desenvolvimento mais ro- gular, foram levadas a reconsiderar as elementos de base ¢, carter to- talmente modemo, a multiplicar os sistemas de base”. Em particular 4 revalugao operada na gcometria por Lobatchevski (1792-1856) sur- ge fundamental ans olhos de Bachelards Lobaicheyski “criou © humor geométrico aplicanda esptrito de finura aa espirito genmétrico; pro- Moveu a razdo polémica a condigdo uk: raze constituinte; fundou a fiberdade da razio em relacda a cla mesma, tornando flexivel a apli- cagio do principio de contradigao". Essas e¢ outras conquistas de no- vo espitito cientifico permitem a Bachelard prapor, em lugar das clis- sicas formulagoes dos empiristas © racianalistas. uma nova interpreta- ga0 do conhecimento cientilico, na qual a criatividade de espirite (de- monstrata, por exemplo, pela criagdo, por via da imaginagao Cientifi- ca, de novas genmetrias) assacia-se 4 experiéncia, numa dialética mo- vida pela continua retificagae dos conceitos (“Eu sou o limite de mix nhas jlusdes perdidas'’) ¢ pela remacio dos. obstéculos epistemoldgi- £05 (COMO a Valarizagao & o apego a experiéncia primeira). Bachelard caracteriza sua posigga coma um “idvalisma militate’, como um “racionalismo engajado” que se modula diame de cada tipo de obje- fo, tornando-se essencisimente “progressive”, “aberto’” "'sctorial” MIDAEOBRA = XL Esse racionalismo, Condizente com o novo espirito cientifice, ¢ neces- sariamente uma fuptura com as premissas da-epistemologia tradicio- nal: em nome de uma quimica nao-lavoisieriana, dié nde ae substan- cialismo; em nome das descabertas da mecanica ondulatéria, diz néo 2 analiticidade-na matomdtica © na om nome de carater dtaléti- co do pensamento cienlifico, diz nao a logica aristotélica € 4 cancep- Gao de evidéncia ¢ ao intuicionismo cartesianos, Em nome desse racionalismo, Bachelard prepa a necessidade de una nova fazao, dotada de liberdade analogs 4 que o surrealismo ins- faurou na criagdo arlistica. Descreve o que entende par esse sturracio- nalismo: “E preciso restituir A razdo human i cla ¢ de agressividade. Assim &€ que se contribuird para a fundacae de um surrealisme, que multiplicara as oportunidades de pensar. Quane do esse surracionalisno houver encontrado sua deuttina, poder bostv em relacao com o surtealisme, pois a sensibilidade © a raza te- fo recuperado, juntas, sua fluider. O mundo fisica sers entao experi- mentado por meio de novas vias. Compreendet-se-4 de mento diferen- te € sentirse-d de modo diferente. Estabelecer-se-4 uma razao exper mental suseetivel de organizar surracionalmwnte © real, assim, come sonte experimental de Tristan Tzara organiza surrealisticamente a te berdade poética”. Mas, par outro lado, insiste na importancia a va da experiéncia na consinucae cientifica: “A situagie da atual nado poderia ser esclarecida pelas utopias da simplicidade {lose fica. Eis por que prapusemus como nome dessa filasotia mista, que hos parece corresponder 4 sitiagde epistomoldgica atual, © nome de ravionalismo aplicado. Condo ¢ vo simples nivel day yeneralidudes que ¢ preciso colocar essa filosofia essencialmente mista, E sobre da valor de racionalidade que € necessario extrait um valor de aplica- Gao. Aqui mostrar o real ndo & suficiente, € precisa demonsiid-lo, Eb, rectprocamente, as demonstragoes puramente formats devem ser san- cionadas por uma realizagao precisa, Nay cidncias fisicas, organiza ‘¢d0 racional e experiéncia esta em canstante cooperagaa” O direito ao sonho e ao devaneio Mesmo nas obras dedicadas & epistemologia, Gaston Bachelard {reqientemente alude ao “vicio de pcularidade” que caracteriza a cultura ocidental, tendente a privilegiar a causa formal em detrimento da causa material na explicagéo dus fendmenus, © propria vacabuld- rio clentifico @ filoséfico ("idéia”. “evidéncia’’, “teoria", “visio de mundo” etc.) revelaria esse preconveito que faz do conhecimento uma exlensao da otica, um desdobramento da imaginagao formal. E supae © mundo como um espeticule dado a conternplacdo, um pano- rama oferecido a visdu, um leatro para o seu espectador, No terreno da poesia, do devaneio, do onirisme @ que se manifestaria a imagiea- (0 material, dlesenrolada a partir das sugestios dos elementos que ja Empédocles de Agrigento tsé¢. V a-C.) considerava as "raizes" do tea- liduuke (agua, ar, terra e (ogo), Esses quatro elementos, alimentary o imaginario postico, permitem classificd-lo em quatro tipos fundamen- fais, decorrentes de “‘Temperamentos’ artisticos (aquatica, aéreo, ter reste e (gneo} que se desdobram em multiples “complexos"’ (de Of lia, de Atlas, de Prameteu ete.), xil BACHELARD Bachelard insiste em distinguir.a imaginacdo enquanto simples ce gistro passivo de experiéneias, da imaginayae que, aliada 4 vontade, € poder e criagdo. Afirma: “A imagem percebida e a imagem criada so duas instincias psiquicas muito diferentes e seria necessaria uma palavra especial para designar a imagem imaginada. Tudo o que é di- to nos manuais sobre 4 imaginaghe reprodutora deve ser creditado a percepcdo © A meméria. A imaginagao criadora tem fungdes comple- tamente diferentes da imaginagao reprodutora’ (A Terra e os Deva- neios da Vontade). Essa {uncao tipica da imaginacao material ¢ 0 que Bachelard designa de “funcaa do irreal”. Issa porque, para ele, “a imaginagdo nao ¢, come o sugere a etimologia, a faculdade de for- mar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. Ela é uma faculda- de de sobre-humanidade’” (4 Agua ¢ as Sonhos), Essa imaginacao ctiadora “é um principio de multiplicagao dos atributos da intimida- de das substincias. Ela ¢ também vontade de mais ser, nao evasiva, mas prédiga, nao contraditéria, antes ébria de opasicdo. A imagina- Gao € 0 ser que se diferencia para estar seguro de tomar-se””. Essa con- cepgao de imaginacao material come atividade (‘as imagens mate- fiais — aquelas que fazemos da matéria — sao eminentemente ati- vas") @ como atividade essencialmente tansiormadora, movida pela “vontade de trabalho", usté na base de eriticas que Bachelard endere- gaa Freud ¢ a Sartre. Em A Terra ¢ os Devaneios de Vontade afirma: “A psicanalise, nascida em meio burgués, negligencia frequentemen- te o aspecto materialista da vontade humana. O trabalho sobre os ob- jetos, contra a matéria, ¢ uma espécie de psicandlise natural, Oferece oportunidades de cura répida porque a matéria no permite que nos enganemos a respeito de nassas prdprias forgas”. A psicandlise, se gundo Bachelad, peca na medida em que tenta geralmente “tradu- zir’ as imagens materiais, nao levando em conta a autonomia do sim= bolismo: “Sob a imagem a psicanalise procura a realidade; esquece a pesquisa inversa: sobre a realidade buscar a positividade da ima gem’, Também €m relacdo A concepgae sartriana do ima; lard axsinala o que considera equivecos fundamentais: desconhecen- do a peculiaridade da imaginagéo material ¢ dindmeca, Sartre redux toda a imaginagao as caracteristicas da imaginacdo formal. Marcade também pelo “vicio da ocularidade”, Sartre tenderia a traduzir em ter- mos racionais as imagens que seriam, na verdade, origindrias de ou- tra fonte: do contato corpo-a-corpo com @ matéria. Por isso € gue ima- Rens Como @ pastose ou O viscoso podem simbolizar, para Sartre, a ir racionalidade que suscita a ndusea, Ao contraria, Bacholard reivindi- ca a legitimicade ¢ a imedutibilidade das imagens que a mao recalhe na matéria: “A mo: ociosa’e acariciadora que percorre linhas bem fei- tas, que inspeciona um trabalho jd coneluide, pode se encantar com uma geometria facil, Ela conduz 4 filosofia de um filésofo que vé o trabalhador trabalhar. No reino da estética essa visualizacao do traba- tho acabado conduz naturalmente & supremacia da imaginacao for- mal. Ao contrério, a mao trabalhadora © imperiosa apreende a dina- mogenia especial da realidade, ao trabalhar ima matéria que, ae mes- mo tempo, resiste e cede como uma came amante e rebelde” nario, Bache- Cronologia Bibliografia VIDAEOBRA — XIII 1884 — Nasce Bachelatd! ent Bar-sur-Aube, Champagne (Franca). 1912 — Einstein recebe o Prémia Nobel de Fisica. 1914 — Tem inicio a Primeira Guerra Mundial 1926 — fachelarct publica suis teses- Essai sur.li Connaissance Approché & Etude sur "Evolution d'un Probleme de Physique: la Propagation Thermi- que dans les Solieles 1930 — Bacholard é convidade pars leecinnar os Faculdade dle Dijon. 1934 — Publica Le Nouvel Esprit Scientifique. 1935 — Publica Uintuition de Finstant, 1936 — €editadta Ca Dialectique de la Durée. 1938 — Publica La Formatinn de Esprit Scientifique La Peychanalyso du Feu 1940 — dita Lauircamont. Toma-se professor na Surburine, Publi¢ed La Phi- Josophie du Non. 1942 — Publica L'Eau et les Réves. 1943 — Publica \Air et les Sanpes, 1948 — Publica Lo Tere et les Réveries de la Volonté e La Terre et hes Réve= ries du Repos. 1949 — Publica Le Raticnalisme Apptique. 1951 — Publica L’Activité Rationaliste de la Physique Contemporaine. 1952 — Publica Le Matéialisme Rationel. 1955 — Marre Einsten. Buchelard ein pat @ Acudcrnia das Chéncras Mao tais ¢ Pasiticas da Franca 1961 — Bachelaret & laureadde com 9 Grande Prémio Nacianal de Letras. Pus hlica La Poétique de la Riverie e La Flamme d'une Chandelie. 1962 — Bachelard morre. Lacon. CaNCuLMin. Hyiroutt, Anuacia® @ Oulton: Iniraduction a Rachelard, Edis clones Caldén, Buenos Aires, 1973 Cacunum, Gz tudes d'Histoire et de Philosophie des Sciences, |. 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A utilizagdo dos sistemas filosdficos em dominios afastados da sua origem espiritual é sempre uma operagdo deticada, muitas vezes uma operacdo falaciosa, Assim transplantados, os sistemas filoséficos tornam-se estéreis ou enganadores; perdem a sua eficdcia de coeréncia espiritual, eficdcia tio senstvel quando sao revividos na sua originalidade real con a fidelidade eserupulosa de historlador, @ perde-se também a satisfacéa de pensar 0 que nunca sera pensado duas vezes. Seré pois necessdrio concluir que um sistema filosdfico nao deve ser utiticade para outros fins para além dos que ele se atribui, Dita isto, 0 maior erra contra 0 espirita filostifica seria precisamense o de ndo ter em conta esta finalidade inti- ma, esta finalidade espiritual que dé vida, farga ¢ clareza @ um sistema filosdfico. Em pariieular, se se pretende eselarecer os problemas da ciéneia através da refle- xdo metafisica, se se pretende misturar os teoremas ¢ os filosafemas, surge imediatamente a necessidade de aplicar uma filosofia necessariamente finalista @ fechada a wn pensamento cientifico eberto. Corre-se 0 risco de ndo agradar a ninguém; nem aos clentistas, nem aos fildsofos, nem aos historiadores. Com eeito, os cientistas consideram intitil uma preparacéa metaffsica: declaram aceitar, em primeiro lugar, as ligdes da experiéncia se trabalham nas ciéncias experimentais, ou os prineipios da evidénela racional se wabalham nas ciéneias matematicas. Para eles, a hora da filosofia sé chega depois do trebalha efetivo; eoneebem pois a filosofia des ciéneias como um reswmo dos resultados gerals do pensamento cienufico, como wma colegao de fates importanies. Dado que a ciéncia esté sempre inacabada, a filosofia dos cientistas permanece sempre mais ou menos eclética, sempre aberta, sempre precaria. Mesmo se os resultados positivos permunecerem, em alguns aspecios, deficientemente coordenados, estes resultados poder ser assim tansmitidos, como estados do espirite cientifico, em detrimento da unidade que caracteriza 0 pensamento filosdfico. Para o cientista, a filosofia das ciéncias est ainda no reino dos fatos, Par seu lado, os filbsofos, justamente conscientes do poder de coordenacao das funcées espirituals, consideram suficiente uma meditacdo deste pensamento coordenado, sem se preacyparem muito com o pluralismo ea variedade dos fatos, Os filésofos podem divergir entre si acerca da razdv desta coordenagdo, acerca dos.principios da hierarquia experimental. Alguns poderdo ievar suficientemente Jonge & empirismo para pensarem que a experiéncia objetiva normal baste para 4 BACHELARD explicar a coeréncia subjetive. Mas ndo se é fildsofo se ndo se tomar conseiéneia, num determinade momento da reftexite, da cocréncia ¢ da unidade do pensa- mento, se ndo se formularem as condicdes da sintese do saber. E é sempre em fun- edo desta unidade, desta coeréncia, desta siniese. que o _fildsefo coloca o pro blema geral do conhecimento. A ciénzia oferece the entdo como que wma recothe particularmente rica de conkecimentos beim erticuladas. Por outras palavras, 0 fildsofo pede apenas d ciéncia exemplus para provar a atividade harmvnivse dus fangées espirituais, mas pensa ter sem a ciéneia, antes da ciéncia, o poder de ana lisar esta atividade harmaniosa, Deste modo, os exemplos cientificos sdo sempre evacudos ¢ nutica desenvolvidas. Acoutece mesmo os exemplos cientificos serem comentados de averda cont princivios que itdo sie principio civniificos: susel- tai metdfovas, analogias, generalizacées. E assim que, no discurse do fildsofo, a Relatividade devenera muitas vezes ent relativismo, a hipdiese degenera em supo- sigdo, 0 axioma em verdade primeira, Por outras palavras, mantenide se fora do ospirita eientifiea, o fildsofa pensa que a filosnfia das eiéncias pade limitar-se aos principios das ciéneias, avy iemas gerats, ow entde, limitande-se estritamente aos principios, o fildsofe pensa que a filosofia das ciéncias tem por missdo articular os principies das ciénciay cam as principios de um persamento puro, desinte- ressado das problemas da aplicacde efetiva, Para o Mlésofo. a Filosofia da ciénecia nunca esta totalmente no reino dos fatos, Assim a filosofia das ciéneias fica muttas Vezes aeantonada nas duas extre- midades do saber: no esiude, felio pelos fldsofos, dos principios muito gerats, € no estiudo, realizado pelos eiuntistas, dos resultados particularcs. Enfraquece-se contra os dais obstéculos epistemoatigicos contrartos que limita todo @ pensamenta; o gerai ¢ 0 tmedtare. Ora vatoriza o a priori. era 0 a posteriori, abstraindo das transmutagdes de valores epistemoldgicos que o pen- Samentd cieniifice contempordned permanentemente opera entre a 4 priori eo.a posteriori, enire as valores experimentais e os valares ractonais, HW Parece-nos, pois, clary que nao dispomos de uma filosofia das cidneias que nos mastre em que condicces — simullaneamente subjetivas e objetivas — os principios gerais conduzem a resultados particudares, a flutuagdes diversas; em que condigses os resultados partieulares sugorem generalizagses que os comple- ren, dialétieas que produzam naves princ!pios. Se pudéssemos entéo waduzir filosoficamente 6 duple movimento que atual- mente anima 0 pensamento eientifieo, aperceber-nos-famas de que a alternéncia do a priori edo a posteriori ¢ obrigatdria, que o empirismo eo racionalisme esto ligados, no pensaments cicntifica, por um estranha aca, tdo forte camo 0 que wie 0 prazer & dorsCom efeito, um deles triunfa dando rario a0 outro: 0 empirisma precisa de ser compreendida; o racionalisma precisa de sev aplicado. Um empi- rismo sem (eis claras, sem leis coordenadas, sem ieis dedutivas nao pode ser pen- A FILOSOFIA DO NAO sado nem ensinado; un ractonalismo sei proves paipéveis, sem aplicacde & rea lidede imediata ndo pode convencer plenamente. O valor de wana lei empiriea prova-se fazendo dela a base de um raciocinio. Legitima-se um raciecinio fazen- do dele a buse de unie experiinclu, A ciéncia, soma de proves ¢ de experiéncias, soma de regras e de leis, soma de evidéncias ¢ de fats, tem pois necessidade de um fitosofia con dois polos. Mais cxatamente ela tem necessidade de wm desen volvimento dialético, porque cada node se eselarece de uma Jorma comple mentar segundo dois pantos de vista flasdficos diferentes. Compreender-nos-iam mal sc visser isto umn simples recowhecimento de duaiisino. Polo contrério, a polaridade epistemologica 6 para nds a prova de que cada wim das doutrinas fliosificas que esquematizamos pelos names de empi- rismo ¢ racionalisme ¢ 0 complemenio efetiva da outea. Unn acaba a outra. Pen- sar cientificamente é colocar-se no campo epistemoldgica intermedidrio entre teo- ria € prdtica, entre matemética e experiéncia. Conhecer civatifieamente wma lei natural, é conhecé-la simultaneamente como fendmeno e come mimero. Aliés, como neste capitulo pretiminar pretendemos definir t@o claramente quanta possivel a nossa posicde & o nosso objetivo filosdficos. dovemos aeres- ceittar gue em nossa opinido uma das dias direcdes melafisicas deve ser sobreva- lorizada: a@ que vai de racionalismo a experiéncia. E através deste movimento epistemaligico que tentaremos caracterizar a filosafia da eiéncia fisica contem- pordned. Interpretaremos pois, no sentido de um ractonaltsm, @ recente supre- macia da Fisica matemitica, Este racionalismo aplicado, esie racionalisme gue retoma as ensinamentos Jornecidos pela réalidade para os traduzir ém programa de realizagdo, goza alta segundo pensamos, de um privilégio recente. Para este racionalismo prospetor, muito diferente por isso do recionalismo tradicional, « aplicagio ndo é wma nuuti- lacdo; a acde cientifiea guiada pelo racionalismo matematico néo é uma transi- géncia aos principios. A realizagio de unt prograna racional de experiéneia determina uma realidade experimental sem irracionalidade. Teremos acasio de provar que fenmeno ordenado é prais rico que 0 fendmeno natural. Basta-nos por agora ter afastado do wspirito do lettor a idéia comum segundo a qual a reali- dade é uma quantidade inesgotavel de irracionalidade, A eiéncia fisica contempa- rénea é uma construgao racional: ela elimina a irractonalidade dos seus matertais de consirugao. O fendmeno realizado deve ser protegide contra tada a perturba au irracional. O racionalismo que ads defendemos fara assim face & polémiea que se apéia no irracionalismo insanddvel do fenGmeno para afirmar uma reali dade, Para ovacionalismo cientifieo, a aplicagdo ndo é wma derrota, um compro: misso. Ele quer aplicar-se. Se se aplica mai, modifica-se. Ndo nega por isso as seus principios, dialetizu-os, Finwimente, a filosofia du ciéneia jisica é talvez a tinica fllosofia que se aplica determinande uma superagao dos seus prineipios, Em suma, ela é @ inica filosofia aberta. Qualquer oulra filosofia coloca os seus principios como intocdveis, as suas verdades primeiras como totais e acabadas. Quatquer ouira filosofia se glonifica pelo sew cardter fechado 6 BACHELARD it Como pode entio deixar de se ver que uma flosofia que pretenda ser verda- deiramente adequada ao pensamento cientifico em evolucde constante deve enea- rar o efeita reative des conhecimentas cientificos sabre a estrutura espiritual? E E assim que, desde o inicio das nossas reflexdes sobre o papel de uma filosofia das ciéneias, enfrentamos com wm problema que nos parece mal colocado tania pelos cientistas como pelos filésafos. Trata-se de problema di estrutura e da evolucao do espirito. Também aqui surge a mesma oposigda: o cientista pensa partir de um espirito Sent estrutura, sem conhecimento; 0 filésafo apresenta a maior parte das vezes um espirito constitutdo, dotado de todas as categorias indispensdveis para a compreenstio do real. Para 0 cientista, 0 conhecimento sai da ignoréncta tal como a luz sai das tre- vas. O cientixta ndo vé que a ignordncia 6 um tecido de erros Positivos, tenazes, soliddrios, Nao vé que as trevas espirituais tém uma estrutura € que, mestas condi- des, toda experiéncia objetiva correta deve implicar sempre a corregaa de um erro subjetive. Mas nda 6 fieil destruir os erros um a um, Eles séo coordenados O espirito cientifico sé se pode eonstruir destruinde « espiriza nda cientifico. Mui- fas veces 0 cientista entrega-se a wma pedagogia fracionada enquanto 0 espirito cientifice deveria ter em vista uma reforma subjetive total, Todo o Progresso real no pensamento ctentifico necessita de wna conversdo. Os Progressos de pensa- mento cientifico contempordneo determinaram: transformagées nos préprios prin- cipios do conhecimento. Para o fildsofo que, por profissda, enconsra em si Verdades primeiras, 0 obje- fo tomado em bloca ndo tem dificuldade em confirmar principios gerais. As perturbagdes, as fuutuagées, as variacdes também nao perturbam 0 filésofo. Ow ele as despreza como pormenares imiteis, ou as amontoa para se convencer dla irracionalidade fundamental do daito, Em qualquer dos casos, o flissofo estd pre- parado para desenvotver, a prapdsito da ciéncia, uma filosofia clara, rdpid, fécil, mas que continua a ser uma filosofia de fildsafo. Neste caso, basta uma verdade Para sair da chivida, da ignordneia, do irracionatisme; cla é suftetense para ilumi- nar uma alma. A sua evidéncia refiete-se em reflexos sem fim. Esta evidéneia & uma luz tinieas nao tem espécies nem variedades. O espirito vive uma tiniea evldléncia. Nao tenia eriar para si outras evidéncias. A idensidade do espirito no Cu penso € tiio clara que a cidncta desta consciéncia clara é imediatamente a cons- siéncia de uma ciéncia, a certeza de fundar uma filosofia do saber. A conseiéncia da identidade do espirito nestes contecimnentas diversos dé-the, a elu e s6 a ela, a Sarantia de wm método permanente, fundamentai, definitive. Perante um tal Sucesso, como colocar a necessidade de modificar a espirito e de ir em busca de noves conhecimentos? Para a filésofo, as metodologias, téa diversas, tdo méveis nas diferentes ciéncias, dependem apesar disso de. um mérode inicial, de um méto do geral que deve dar forma a todo 0 saber, que dove tratar da mesma forma todos 05 objetos. Senda assim, uma tese como a riossa que considera o conhect. Menta COMO Wma evolucdo do espirite, gue aecita variacdes, respeitantes d unica- de ¢d perenidade do en penso, deve perturbar 0 filésofo. A FILOSOFIA DO NAO 7 E no entanto é a essu conclusdo que devemos chegar se quisermas definir a filosofia do conkecimento cieniffico como wma filasofia aberta, como @ cons- ciéneia de um espirito que se funda wabaihando sobre o desconhecida, pracu- rando no real aquila que contradic couhectmentos anteriores. Antes de mais, € preciso tomar consciéncia da Jato de que a experiéncia nova diz nao a experiéncia antiga; se isso ndo acontecer, ndo se trata, evidentemente, de uma experténcta nova, Mas este nao munca é definitive para uma espirito que sube dialetizar os seus principios, constituir em si novas espécies de evidéneia, enriquecer a seu corpe de explicacda sem dar nenhum privilégio dquilo que seria um corpo de explicagao natural preparado para explicar tudo. Este livro dard bastantes exempias deste enriquecimento. Mas, para esclare- cer bem o nosso ponto de vista, ndo vamos esperar ¢ daremos, no dominio mais desfavordvel d nossa tese, no proprio campy dv empirismo, um exempto desta Iranscendéncia experimental. Com eftito, pensamos que esta expressdv nao é exa- gerada para definir a ciéncia instrumentada como uma transcendéncia da ciétcia de observacdo natural. Existe rotura entre 0 conhecimento senstvel © 0 cankeci- mento clentifico. Lemos a temperature num termémetro; nde a sentimos. Sem teoria nunca saberiamos se aquilo que vemos ¢ aquila que sentimos corres- pondem ao mesmo fendmene. Ao longo de todo o nese livro responderemos a objegdo que impde ume leitura necessariamente sensivel do conheeimento cient. fico, 4 objegdo que pretende reduzir a experimentagde a uma série de leituras de indice. De fato, a objetividade da verificagao numa leitura de indice designa como objetivo 0 pensamenta que se verifica. O reatismo da funcdo matemidtica substi- tul-se rapidamente G realidade da curva experimental. Allés, para 9 caso de nio sermos compreendidos nesta rese que coloca jé 0 instrumento como um elém do drgdo, reservamos uma sérle de argumentos pelos quais provaremos que a microfisica postula um objeto para além dos objetos usuais, Existe pois, pelo menos, uma rotura na objetividade e é por isso que temos razGes para dizer que a experiéncia nas ciéncias fisicas tem um além, uma trass- cendéncia, que ela néo esta fechada sobre si prdpria. Portanio ¢ racionalismo gue informa esta experiéncia deve accitar uma abertura correlativa desta transcen dénevia empirica, A filosofia critivista, de que sublinkaremos a solidez, deve ser madifieada em fungdo desta abertura. Mais simplesmente, dado que os quadros do entendimento dever ser tornados flexiveis e aiargados, a psicologia do espi- rito cientifico deve ser construida em noves haves. A cultura cientifiea deve deter- minar madificagoes profundas do pensamento, vw Maz se 0 dominio da filosofia das ciéncias é ido dificil de delimisar, gostarta- mas, neste ensalo, de pedir concessdes a toda-a gente. Acs filésofos veclamaremos o direito de nos servirmas de elementas filosé- ficos desligados dos sistemas onde eles naseeram. A forga filoséfica de wm siste- ma esta por vezes concentrada numa funcdo particular. Por que heésitar em pro- § BACHELARD Bor esta funedo particular ao pensamenta cientifico que tanta necessidade tem de informagda filoséfica? Haveré par exemiplo sacriiégio em tomar um aparctho epistemolégico to maravilkoso camo a categoria kantiana e em demonstrar 0 interosse deste para « organizagde do pensamente clentifico? Se tades os sistemas Sdo indevidamente penctrados por um ecletisnro dos fins, parece no enlanto que wn ecletisma dos meios poderd ser edmissivel para uma fitosofia das ciéncias que Pretenda fazer face a todas as tarefas do pensamento cientifico, qiie pretenia dar conta dos diferentes tipas de toric, que pretenda medir 0 ateance das suas aplica ees, que pretenda, antes de mats, sublinhar os variadisstmos pracessos da deseo- berta, mesmo os mais arriscados. Pediremos também aos filésofos que acabern cont a ambigdo de encontear um pono de viste nico e fixe para ajuizar do con- Junto de uma ciéneia téo vasta ¢ tio evoluiva como éa Fisica, Para caracierizar @ fllosofia das ciéncias seremos endo condizidos a um pluralism filosivico, 6 uinico capa: de informar os elementos tao diversos da experiéncia ¢ da tewia, ele- mentos estes ido diferentes no seu grau de maturidade filoséfica. Deflairemos a losafia das ciéneias coma uma filosofia dispersa, come uma filosofia distri- huida. Inversamente, 0 pensamento cientifico surgir- nas d como wn métode de dispersdo bem ordenado, como um inétodo de andlise aprofidada, para os diver 408 filosofemas macteamenie agrtipacos nos sistemas filoséficos. Aos cientistas, reciamaremoas o direita de desviar por um instante # elénela da seu trabatho positive, de sua vantade de objetividade, para descobrir 0 que pormanece de subjetivo nos métodes mais severos. Comecaremos por cologar aos clentistas quesides de cardter apareniemente psicoldgico e. a poucn ¢ poueo. provar thes-emos que toda @ psicologia & soliddria le postelados metaffsicos: O espirito pode mudar de metafisica: 0 que ndo pode é passar sem a metaffsica. Pergunteremos pois wos cientistas: como pensats, quais sd0 as yossas tentativas, 98 vassos ensaios, as vossos errs? Quais sdo as motivacdes que vos levam a mudar de opinido? Por que razéo vocés se exprimem tdo sucintamente quando alam das condigses psicolégicas de wma nova investigaedo? Transmiti-nos sobretudo av vossas idéias vagas, ay vosxas contradigdes, us vossas idéias fixas, ay vossas conviegdes nao confirmadas. Dizem que sois realistas. Sera certo que esta fllosofia maciga, sem articulagces, scm dualicade, sem hierarguia, corres- ponde é variedade de vosse pensamento, a liberdade das vassas hipdteses? Dizei- 0S 0 que pensais, Ado go sair do leboratirio. mas sim nes horas em que deixals a vida comum para entrar na vida clensifier. Dai-nos ndo 0 vosso empirismo da farde, mas sim a vasso vierose ractonalismo da manka, 0 8 priori do vossa sonho maiemético, a entusiavmo dos vassas projets, as vossas trtuigdes incon Jfessadas, Se pudéssemos assim alargar a nossa pesquisa psicaldgica, parece-nos quase evidente que o espirito cientifico surgiria também nama verdadeira disper- Sd0 psicologica ¢ conseqientemente numa verdadeira dispersdo flasdfica, dado que toda a vatz fllosifica nasce num pensamento, Os diferentes problemas do pensamenta cieniifice deveriam pois receber diferentes coeficientes filasdficos. £m particular, 0 grew de realismo @ de racionalismo néo seria 9 mesma para todas ax nagées, E pots ao nivel de cada nagdo que, em nossa opinido, se coloca- A FILOSOFIA DO NAO 9 riam as tarefas precisas da filosofia das ciéneias, Cada hipétese, cada problema, cada experiéneta, cada equacdo reclamaria sua filosafia, Dever-se-ia ertar uma Jilosofia do pormenor epistemoldgico, uma filosafia ciensifica diferencial que contrabalacaria ¢ filosofia integral dos fildsofos. Esta filosofia diferencial esta- tla entcarregada de anatisar o devir de um pensamenio, Em tinhas gerais, 0 devir de um pensamento cientifice corresponderia a wna normalizagao, @ iransfor- macéo da forma realista em forma racionalista. Esta transformacao nunca é total. Nem todas us nocdes estiv no mesmo esiddiv das suas tranyformacdes metafisicas. Meditanda filosoficamente sabre cada nacio, ver-se-ia também mais claramenie 0 cardter polémico da definigdo adotada, tudo o que esta definigao aistingue, delimita, recuse. As condigdes dialéticas de uma definigao cienafica diferente da definicde usual surgiriam entdo mais claramente e compreender-se- ta, ne pormenor das nogaes, aqitilo a que chamaremes a filosafia do nao. Eis enti 0 nosso plant Para flustrar as observagoes precedentes, obscuras na sua generalidade, daremos ja no primeira capititin um exemplo desta fiiosofia dispersa que é, segur- do pensamos, a iinica fitosofia capaz de anativar a prodigtosa complexidade do pensamento cientifico moderao. Depois dos dois primeiros capitulos que desenvolvem um problema episte- moligico preciso, estudaremos os esforcos de abortura do pensamente cientifico em trés dominios tao diferentes quanto passtvel, Em primeira lugar, ao nivel de uma categoria fundamental: & substdacia, teremos acaside de mostrar o esboga de um ndo-kantismo, quer dicer, de wma Afllosofia de insptragdo Kantiane que ultrapassa a seoria clissica, Urilizaremos assim wna nogdo filosdfica que funcionou eorretamente na cléncia newtoniana & que, em nosso entender, é necessdrio abrir para traduzir a sua funcdo correta na cléncia quimtca de amanhd. Neste cupitulo encontruremos correlativamente argue mentos para wn nao -realismo, para wm néo-materialisme, quer dizer, para uma abertura do realisimo, do materialismo. A substineia guimica sera emtao represen- tada como uma pega — ume simples pega — de um proceso de distingdo, 0 reat sera representado coma um instante de uma realizagao bem eonduzida. O nao reatismno (que é um realismo) ¢ 0 ndo-kantisme (que € win racionalismo) trasades simultancamente @ propésita da nacdo de substincia surgirdo, na sua oposi¢ao bem ordenada, como espiritualmente coordeaados, Entre os dois pilos do rea- lismo e do kamismo elissicos nasceré wm campo epistemaligica intermediirio particularmente ative. A filasofia do nao surgird pois no como sina atitude de recusa, mas como unt aiitude de conciliagde. De wna forma mais precisa, a nogao de substéncia, téo duramente contraditéria quando coptade na sua infor- macdo reatista por ume lado € vet sua informacdo kantiana por outro, sera clara- mente transitiva na nova doutrina do néo-substancialisme, A filosofia do ndo permitira resumir, simultaneantente, toda a experiéucia e tada o pensamento da

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