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Fa ri ‘Machado de Assis Quando os jornais anunciaram para o dia 12 deste més uma parede de agougueiros, a sensa¢So que te fol muito diversa da de todos os meus concidadéos. Vos ficastes aterrados; eu agradeci 0 acontecimento 20 Céu. Boa ocasiso para converter esta cidade ao vegetarismo. Nao sei se sabem que eu era carnivoro por educaclo e vegetariano por principio. Ciaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre care. Quando cheguel 20 uso da razdo e organizei o meu cédigo de principios, inclui nele o vegetarismo; mas era tarde para a execugdo.Fiquel carnivoro. Era a sorte humana; foi a minha. Certo, a arte disfarga a hediondes da matéria.O cozinheiro corrige o talho.Pelo que respeita 20 bol, a auséncia do vultointeiro faz esquecer que a gente come um pedaco de animal. Nao importa, o homem é carnivor. Deus, ap contriri, ¢ vegetariano. Para mim, 2 questo do paraiso terrestre explca-se clara e singelamente pelo vegetarismo, Deus ciou o homem para os vegetals, eos vegetais para o homem; fez o paraiso cheio de amores efrutos, e pbs 0 hhomem nele. Comei de tudo, disseshe, menos do fruto desta drvore. Ora, essa chamada érvore era simplesmente carne, um pedaco 4e boi, talver um bol inteiro. Se eu soubesse hebraico, explicara isto muito melhor. Vede o nobre cavalol o paciente burro! o incomparével jumento! Vede 0 préprio boi! Contentam-se todos com 2 ena € 0 mitho. A came, t30 saborosa 8 onga, — e 20 gato, seu parente pobre, — ndo diz coisa nenhuma aos animals amigos do homem, salvo 0 cio, exceglo misteriosa, que néo chego a entender. Talver, por mais amigo que todos, comesse o resto do primeico almogo ‘de Addo, de onde Ihe veio igual castigo. : Enfim, chegou 0 dia 22 de margo; quase todos os acougues amanheceram sem came. Chamel a familia; com um dlscurso mostre-Ihe que a superioridade do vegetal sobre o animal era tio grande, que deviamos aproveitar a ocasiéo e adotar o so e fecundo principio vegetariano. Nada de oves, nem leite, que fediam a came. Ervas,ervas santas, puras, em que no ha sangue, tds as variedades das plantas, que no berrar nem esperneiam, quando Ihestiram a vida. Conwenci a todos; no tivernos almogo ‘nem jantar, mas dois banquetes. Nos outros dias a mesms coisa NN3o desmaieis, retalhistas, nesta forte empreso. Dizia um grande filésofo que era preciso recomecar o entendimento humano. Eu ereio que 0 estémago também, porque nao ha bom raciocinio sem boa digestéo, e n3o ha boa digestio com a maldigdo da carne. Morre-se de porco. Quem ja morreu de alface? Retalhistas, meus amigos, por amor daquele flésofo, por amor de mim, continuel a resistencia. Os vegetarians vos serdo gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas e arbustos, No & Preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no cemitério; plantar é conosco; nés cercaremos as vossas campas de salgueiros tristes e saudosos. Que ¢ nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, serd a grande reconstitulgdo da humanidade. Que o Senhor vo-la dé suave e pronta. Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina & prética, pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, alls, so flhos da carne. Sim, o vegetarismo & pai dos simples. Os vegetarianos no se batem; tém horror 20 sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multid3o, na noite do desastre do Liceu de Artes e Oficios,atirou-se ao interior do edifiio para salvar 0 que pudesse; € aco prépria da carne, que avigora o &nimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas, quando li que, de envotta com ela, entraram alguns homens, no para despejar a casa, mas para despejar as algbeiras dos que despejavam 2 casa, reconheci também ai o sinal do carivoro. Porque 0 vegetariano no cobiga as coisas alheias; mal chega a amar 2s prépras, Reconstituindo segundo o plano divino, anterior & desobediénci, ele toma 3s idlas simples e desambiciosas que o Crador incutiy no primeiro homem. Se no praticao furto, é claro que o vegetariano detesta afraude e no conhece 2 vaidade. Dai um eloglo a mim mesmo. €u ‘ndo me dou por apéstolo tinico desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular aproximaciol — ‘no préprio conselho municipal. S6 assim explico a nota jovial que entra em alguns debates sobre assuntos graves gravissimos. ‘Suponhamas a instrucdo publica, Aqui esté um discurso,saido esta semana, mas proferido muito antes do dia 1° de margo; discurso meditado, estudado, cheio de circunspeczo (que o vegetariano nao repele, 20 contrério) e de muitas pontuagées alegres, aque so da ess8ncia da nossa doutrina, Tatava-se dos Jardins da inféncia, 0 Sr. Capeli notava que tase tantos s8o os dotes exigidos nas jardineiras, beleza,carinho, idade’ inferior atrinta anos, boa vo2, canto, que dficlmente se poderdo achar neste pals mogas em aquantidade precisa "Nao conheso o Sr. Maia Lacerda, mas conhego o mundo e os seus sentimentos de justiga, para me no admirar do cordial ‘no apoiado com que ele repel a asseveracio do Sr. Capel. N3o contava com 0 orador, que aparou o golpe galhardamente: “Vou fesponder a0 se ndo apoiado, disse ele. As que encontramos, remetendo-as para la, recelo, que, bonitas como soem ser as brasileira, cram 0risco de néo voltar mais, esejam apreendidas como belos espécimens do tipo americano,” Outro ponto alegre do discurso & 0 que trata da necessidade de ensinar 2 lingua italiana, fundando-se em que a colénia italiana aqui € numerosa e crescente, e espalha-se por todo 0 interior. Parece que a concluséo devia ser o contrétio; ndo ensinar italiano 20 povo, ante ensinar 8 nossa lingua aos italianos. Mas, posto que isto no tenha nada com o vegetarismo, desde que faz ‘com que o pove possa ouvi as 6peras sem libreto na mao, é um progresso. 05/03/1893 IN: ASSIS, Machado de. Crénicas escolhidas de Machado de Assis. Coleco Folha ~ No dé pra no ler. Sio Paulo: Atica, 1994, pig. 157-160.

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