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1 A LIRICA GREGA ARCAICA E SAFO A lirica grega arcaica: problemas de definicao e de abordagem Como definir a palavra lirica enquanto designagao hoje dada a um género da poesia grega diverso do épico ¢ do dramatico, que abarca varios subgéneros ¢ conta com representantes tao diferentes entre si? O que distingue um poeta e um poema liricos? Como abordar hoje a com- posigéo de um lirico grego arcaico? Essas sdo algumas indagagées que a lirica grega da Grécia arcaica {c. 800-480 a.C.) suscita, e a lista poderia ainda estender-se por esta € outras paginas. Porém, duas questdes sobressaem entre as mais deba- tidas nos estudos classicos: a primeira diz respeito as dificuldades de definigao da liricas a segunda, ao uso nela abundante da primeira pessoa do singular, diferentemente do que ocorre na épica. que define a lirica grega arcaica? Sera o tipo de instrumento musical ao qual se destinava, a sua ocasiao de performance, 0 scu con- tetido ou, ainda, a sua variedade métrica? E como entender a recorréncia da primeira pessoa do singular nessa pocsia? Nao hé respostas faceis para essas perguntas que se originam, entre outras coisas, do fato de a lirica arcaica pertencer a uma cultura emi- nentemente oral; de sua edigio ter sido tardia, num contexto em que a escrita jé se sobrepunha & oralidade; e do proprio modo pelo qual os poetas liticos foram editados pelos alexandrinos — segundo a tradigao, por Arist6fanes de Bizancio (c. 255-180 a.C.) — a partir do século II] GIULIANA RAGUSA a.C.,! modo este que obedeceu a critérios variados ¢ arbitrarios: cré-se que os poemas de Safo foram compilados segundo umn critério métrico,” enquanto para as composigbes dos poetas Pindaro (¢, 522/518-438 aC.) ‘¢ Baquilides (c. 520/510-450 a.C.) foi adotado 0 problematico critério de edigdo por géneros, cujas definicdes costumam ser discutiveis.” (Os questionamentos ¢ as indagagbes acerca da lirica grega arcaica se relacionam, em boa medida, ao préprio termo “lirico” (AupIKés, lurikds), que “faz sua primeira aparigio importante em Alexandria." Eis aqui um primeiro problema da denominacao lirica grega antiga, nas palavras de Albin Lesky, em sua Histéria da literatura grega: “[.~] 0 conceito antigo de Iirica compreendia dois tipos importantes: a lirica coral ¢ 0 canto individual, sem que esta separagio, to essencial para és, se tivesse manifestado na antiga teoria da arte, Mas, ao mesmo tempo, reparamos que nio estavam incluidos dois tipos que hoje em dia consideramos Iiricos: a elegia e 0 jambo” (1995, p. 134). Note-se que 0 chamado cinone alexandrino dos “nove poetas liricos” (évvéa AupiKot, ‘ennéa lurikof) traz apenas poctas monédicos ou corais.* Uma vez que na Antigitidade as composigées dos poetas liricos — nao raro, 0 tinico testemunho de sua existéncia — cram. lidas como biogréficas, 0 termo ganhou, desde muito cedo, a conotagio de poesia autobiografica, pessoal — um rétulo conveniente, em especial no caso sobreviveu um extenso de Safo, a tinica mulher da Grécia arcaica da q ¢ significativo corpus de cangées e cuja “biografia” foi bastante ro- manceada ao longo dos tempos.* Até hoje, a designagio “poesia lirica” revela-se impregnada de tal conotagio, 0 que se nota em textos de teoria e critica literdrias ¢ mesmo em diciondrios especializados. Cito dois exemplos. 0 primeiro 6 0 livro de Anatol Rosenfeld O teatro épico, no qual o-eritico procura distinguir duas acepgdes do termo a fim de esclarecer a definigiio do género lirico. Uma acepgao seria a “substantiva”, ou seja, lirica, designando um género literdrio com caracteristicas especificas: Pertencerd & Lirica todo poema de extensio menor, na medida em que nele ndo se cristalizarem personagens nitidos ¢ em que, 20 contrério, uma ‘A LIRICA GREGA ARCAICA E SAFO vor central —quase sempre um “Eu” —nele exprimir seu préprio estado de alma (..}. Notamos que se trata de um poema lirico (Lirica) quando uma vor central sente um estado de alma ¢ o traduz por meio de um discurso mais ou menos ritmico (1965, pp. 5-6). A outra acepgao seria a “adjetiva”, ou seja, 0 termo nomeando “tragos estilisticos” préprios ao género, tais como a “brevidade”, a “intensidade expressiva”, a “concentragio”, o “carater imediato” ¢ a “musicalidade”. Por isso, essa acepcao seria mais eldstica, estendendo- se a contextos extraliterdrios, pensa Rosenfeld (pp. 7-12). ‘Veja-se que em ambas as acepgGes 0 critico frisa 0 subjetivismo, © individualismo e o sentimentalismo da poesia lirica e de tudo 0 que venhaa ser lirico. Além disso, sua tentativa de definir 0 género mostra quao drdua é essa tarefa; pode-se questionar, por exemple, o critério do tamanho: afinal, de quantos versos se compde um “poema de ex- tensfio menor”? segundo exemplo é 0 verbete lirica do dicionério especializado de Chris Baldick, The concise Oxford dictionary of literary terms: lirica, no sentido moderno, qualquer poema razoavelmente curto ex- pressando um tom pessoal, sentimento ou meditagio de um tinico cantor (que pode ser, as vezes, uma personagem inventada, nao 0 poeta). Na Grécia antiga, uma lirica era uma cangao para o acompanhamento da lira, e podia ser uma lirica coral cantada por um grupo [...}. 0 sentido mo- derno, corrente desde a Renascenga, com freqiiéncia sugere uma qualidade de cangio nos poemas aos quais se refere. Poesia lirica é a categoria de verso mais extensiva, especialmente depois do declinio — desde 0 século XIX no Ocidente — dos outros tipos principais: narrativa e verso dra~ ‘mitico. A lirica pode ser composta em quase todos os metros esobre quase todos os temas, apesar de as emosdes mais usualmente apresentadas serem ado amor e 2 do sofrimento (1991, pp. 125-26). Esse verbete se vale de critétios imprecisos ¢ questiondveis de de- finigdo da poesia lirica, tais como a extensio do poema, seu “tom pes- soal”, a expressio subjetiva da alma é dos sentimentos como seu con- teido, Prevalecem aqui, como em Rosenfeld, conceitos originados na Se eee Antigtiidade, mas reavivados e potencializados pelo Romantismo ale- mio. Ademais, pelo percurso hist6rico que traga, 0 verbete aponta para © proceso de acumulagao de significados, acepgoes e sentidos varios, softido pelo termo lirica, que o tornou um signo fortemente carregado, Por isso, muitos poetas ¢ criticos manifestaram e manifestam descon- forto diante dele, chegando a recusé-lo, como T. S. Eliot, que diz, em “The three voices of poetry”: “O préprio termo ‘lirica’ nao é satis- fatério. [..] Preferirei dizer ‘verso meditativo’ (a ‘poesia lirica’)” (1957, p. 36) Uma vez que Safo se insere entre os liricos gregos arcaicos cuja producio chegou aos nossos tempos e sua poesia foi associada, quase sempre, a uma idéia de lirica “romantica” ou “hegeliana”, é preciso desembaracar, tanto quanto possivel, essa designagdo — tornada si- nénimo de emocional, subjetivo, confessional, pessoal — da pesada carga semantica que lhe foi langada as costas para que estejamos aptos 4 considerar a lirica séfica com olhos menos comprometidos e suges- istanciados e cénscios de conceitos em nés tionados, mais limpos, introjetados e que podem levar a uma visio redutora, deslocada ou até equivocada da lirica grega arcaica. Nio pensamos como os antigos, nem devemos fazé-lo. Justamente Por isso € necessdria, no minimo, a consciéncia de que até mesmo 0 conceito de “literatura”, tao natural para nés, somente se especializa a partir no século XVII ele nem sempre existiu e, quando existiu, nem sempre foi nico.” Assim, esclareco desde j4 que 0 uso aqui feito de Palavras como “literatura”, “literdrio” ¢ “poema” em referéncia as das num contexto histérico composigdes da lirica grega arcaica — ger em que prevaleciam a cultura oral e audigao sobre a escrita ea leitura — pretende expressar apenas que tais composigies tém propriedades es- pecificas de forma c de linguagem que as diferenciam irremediavelmente de outros textos. No caso especifico do termo Iirica, os embaracos ndo puderam ser de todo evitados. Helenistas intelectualmente formados por conceitos, teorias ¢ tendéncias em voga num dado momento histérico produziram Ieituras modernizantes dos poctas liricos arcaicos presentemente consi- A LIRICA GREGA ARCAICA E SABO deradas equivocadas, ultrapassadas, embora algumas delas, feitas certas ressalvas e revises, ainda sejam respeitadas. Dentre as abordagens que mais marcaram os estudos da lirica grega arcaica, destaca-se a romantica, cijos conceitos levam a Hegel, o pilar do Romantismo alemao. Breves passagens de oua Estética® podem dar @ compreender, em linhas gerais, a sua concepcao de poesia lirica: * O objecto verdadeiro da poesia 6 0 reino infinito do espirito (p. 31); + L.-]4 principal missio da poesia consiste em evocar a consciéncia a oténcia da vida espiritual, e tudo aquilo que, nas paixdes e sentimentos humanos, nos estimula e nos comove ou desfila trangiiilamente diante do nosso olhar meditative (p. 32}; +0 discurso do poeta, como expresso dos sentimentos da alma, representa qualquer coisa de novo que suscita a admirasao, pois revela mediante nova criag4o o que até entdo permanecera oculto (p. 83) Hegel define a litica como um género cujo contetido é 0 “subjectivo, © mundo interior, a alma agitada por sentimentos, alma que, em vez de agit, persiste na sua interioridade e ndo pode por conseqiiéncia ter por forma ¢ por fim senio a expansio do sujeito, a sua expresso” (p- 120). Dominio da subjetividade, a poesia lirica deve, segundo o pensador, “libertar o espirito, nio do sentimento, mas no sentimento” (p. 218). Nessa visio, portanto, ela é concebida como produto da subjetividade eda “individualidade criadora” (p. 39) do poeta, em que se exprime “a totalidade da vida interior do individuo” (p. 244), Pautada por conceitos ja bastante discutidos e relativizados, como a subjetividade, a individualidade e a originalidade, a concepeo hege- Tiana de lirica seduziu e ainda seduz—talvez porque acene coma possi- bilidade de acesso do leitor aos sentimentos mais intimos do poeta. Atribuindo “importancia essencial ao contetido da obra e a sua signi- ficacao espiritual”,? tal concepgao exacerba o subjetivismo e estimula © biografismo como perspectiva de abordagem critica. Esse viés ea prépria concepgaio de Hlegel foram sendo minados por suas fraquezas e pela busca de respostas alternativas para o entendi- mento do género litico e para seu estudo critico, que mobili ou, jd a GIULIAWA RAGUSA partir do século XIX, poetas, criticos ¢ tebricos. ‘Ainda em meados do reoulo XX, René Wellck ¢ Austin Warren, em Teoria da literatura,” preocupavam-se em fazer ressalvas contundentes & poderosa visio ro- eranrica da Itica e ao biografismo, como estas que cito abaixo: + [ud] na Itiea subjectiva, 0 “eu do poeta é um “eu” dramético, ficticio (p1Ds oP lagi entce a vida particular ¢ obra ndo € una simplista relagko de causa e efeito (p. 93); Tem relagao 20 poeta subjectivo, nfo deve nem pode desaparecer 8 distingao entre’ uma afirmagao pessoal de natureza autobiogrifica ¢ 0 temprego desse mesmo motivo numa obra de arte (p» 94}; mesmo quando uma ‘obra de arte contém elementos que possam com seguranga ser identificados como autobiograficos, tais elementos estarao. de tal modo reelaborados e transformados na obra que perdem o seu significado especificamente pessoal se tornamapenas o material humano saeerrero, partes intgrantes da obra [~] 6 falsa a propria concepoio de que a arte € auto-expressfo pura e simples a transergfo de sentimentos ¢ experiéncias pessoais (p. 95)- Hegel privilegiou 0 contesido da lirica, limitado pela tematicn res rita & expressdo da alma ¢ dos sentimentos do poeta,!' em detrimento datradigio e da convengao literérias, da mediagio da forma e da elabora- gio artistica, as quais, lembram Wellek ¢ Warren, diluem e filtram os y numa obra. A lirica nao elementos biograficos que porventura & a pura e simples expresso das emogdes que brotam da alma inspirada do poeta; ¢ este, ainda que se autonomeie no poema & fale consigo mes- smo, usa uma linguagem artisticamente claborada, diverse — na impor- ta quio proxima ela se pretenda — da linguagem cotidiana. O poeta pode estar falando do caos sentimental, mas seu discurso é pensado, Grganizado, arquitetado numa forma determinada e por componente crruturais inrinsecos conscientemente escolhidos. Conforme afirma Paul Vi «poesia é, fandamentalmente, fruto do trabalho com linguagett, sn ensaio “Poesia e pensamento abstrato” (1991, pp. 217-1 8), ‘A formagio da complexa teia em que se enredou a palavea lirica decorre da questo “extremamente delicada de diferenciar 0 "Eu" (a voz ee ee er do poema lirico) ¢0 poeta”."* Buscando romper aidentificagso do pocta tcom a persona de seus Versos, pensadores atuantes no inicio do século Sox formularam novas concepgées de poesia e de exitica lteréria» 38 uais pretendiam dirigi Iirica um olhar objetivo, atento as suas especi- fidadeslterdias e menos ideologico. Bara Pound, por exemplo, onan, ddo.o poema em sua materialidade e objetividade de forme ¢ contetido,” ddeclara, em ABC da literatura: *O método adequado para 0 cestudo da poesia e da literatura é 0 método dos biologistas contemporaneos, & saber, 0 exame cuidadoso ¢ direto da matéria ¢ continua comparagio de uma ‘lamina’ ou espécime com outra” (1970, p. 23). Umma expresso consagrada da critica lterdria ecoa aqui: close reading, método de leitura praticado pelo new criticism, um dos mo- vvmentos da primeira metade do século XX empenhados em criar con” digdes para uma abordagem néo-romantica da obra literérs, Os new critics visavam a “abordagem intrinseca do objeto literério”, abolindo cvicliberadamente os tragos das abordagens ‘extrinsecas’, hist6ricass biogcaficas e sociol6gicas que proliferavam na época”.!* O resultado, que acabou por desgastar 0 movimento, foi a radicalizasae do estudo oe cncoco da literatura e a tejeiglo da sociologia ¢ da historia — slg duramente contestado."* Colocando-se no que parece ser 0 extremo oposto a essa tendéncia, a atval voga norte-americana dos cultural and gender studies, ave vem) actuzinds muitos helenistas, supervaloriza aspectos extraliterérios em dletrimento daqueles intrinsecos 20 texto. Assim, questOes como 0 SX, sr cania e a opedo sexual de quem escreve sobrepdem-se & questo da cepecificidade da literatura — nao raro reduzida a um pretexto Pare discusses que Ihe so alheias. No caso da lirica grega arcaica, complica-s¢ consideravelmente al abordagem, pois sio escassos, quando néo inexistentes, 05 subsidios para se tratar da biografia dos poctas, de suas sociedades ¢ mssme das FelagGes entre eles, para ndo falar dos problemas de definig30 da autoria wre rertos textos e do pouco que se sabe sobre a circulagio, 0 estabe- ccinento ea edigio dos textos Iiricos, sobretudo na Grécia arcaica. Em face dessas circunstancias, 0s estudiosos da liriea grega veem-se obri- 29 GIULIANA RAGUSA gados a trabalhar com hip6teses, as quais, para que se sustentem mi mamente, precisam ser construidas do modo mais sélido e menos espe culativo possivel. Do contrario, arriscam-se a agravar imprecis6es ¢ @ ‘aumentar a margem de risco inerente a sua atividade. ‘A centralizagao na andlise do texto é sem diivida, um caminho vidvel de estudo da lirica grega arcaica, tanto mais se considerarmos sua condigdo material. Para se ter uma idéia acerca dessa condigao, cito &

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