You are on page 1of 35
7 SEXO E VIOLENCIA, OU NATUREZA E ARTE No principio, era a natuteza. Pano de fundo a partit do qual ¢ contra 0 ‘qual se formaram nossas idéias a respeito de Deus, a naturcza continua sendo ‘supremo problema moral, Néo podemos esperar entender o sexo as identi- dades sexuais humanas enquanto nfo esclarecermos nossa atitude em selacdo ala, O sexo é um subconjunto da natureza. Sexo € 0 natural no homem. ‘A sociedade é uma construcio artificial, uma defesa contra 0 poder da na- tureza. Sem sociedade, estarfamas Sendo jogados de um lado para outro nas tem- ppestades do mar da barbaric que € a natureza. Podemos alterat essas formas, Jenea ou subitamente, mas nenhuma transformagio na sociedade vai mudar a satureza. Somos apenas uma dentre a multido de espécies sobre as quais na turera exerceindiscriminadamente sua forca. A natureza tem um programa mes- te que mal podemos conhecer. 'A vida humana teve inicio na fuga ¢ no medo. A ccligifo surgiu de situais de propiciagio, sorilégios para aplacar a violéncia dos elementos. Até hoje, sio ‘poucas as comunidades nas regises crestadas pelo calor ow agzlhoadas pelo ge- Jo. © homem civilizado esconde de si mesmo a extensio de sua subordinacio A natureza. A grandiosidade da cultura, a consolasio da religido absorvem suas atengées ¢ conquistam sua fé. Mas, basta a natureza dar de ombros ¢ tudo cai fem rainas. Incéndios, inundagdes, raios, tues, furacdes, vuleoes, texremotos = em qualquer parte, a qualquer hora. A tragédia abate-se sobte os bons ¢ os rmaus. A vida civilizada exige um estado de ilusio. A idéia da benevoléncia diti- ima da naruseza e de Deus € 0 mais poderoso dos mecanismos de sobrevivéncia do homem, Sem cla, a cultura reverteria 20 medo ¢ a0 desespero Sexualidade e erotismo formam a complexa intetsecsio de natureza ¢ cul- ura, As feministas supersimplificam grosseiramente o problema do sexo quan: do 0 teduzem 2 uina questo de convencio social: € 36 reordenar a sociedade, cdliminara desigualdade sexual, putificat os papéis sexuais, que teinario a fli ‘dade e a harmonia. Neste ponto o feminismo, como todos os movimentos so- tiais dos Gtimos duzentos anos, é herdeiro de Rouseat. O comtrato social (1762) omega dizendo: ““O homem nasce live, e por toda parte esté acorrentado” 3 Colocando a benigna nacureza romantica contra a sociedade corrupta, Rousseau produaiu a linha progressvista na culeura do século xix, para a quel a reforma ‘social era o meio de alcancar o Paraiso na terra. A bolha dessas esperancas foi ‘estourada pelas catastrofes de duas guerras mundiais. Mas 0 rousseaufsmo tor- nou a renascer na geragio do pés-guerra dos anos 60, da qual se desenvolveu ‘© feminismo contemporaneo. Rousseau rejeita o pecado original, a visio pessimista do cristianismo de que o homem nasce impuro, com uma tendéncia para o mal. A idéia de Rous- seau, que deriva de Locke, da bondade inata do homem levou a0 ambientalis- ‘mo social, hoje a ética dominante nos servicos sociais, cédigos penais e terapias behaviorstas americanos. Pressupte que a agtessto, a violencia eo crime tesul- ‘tam da privacdo social — um baitto pobre, um Jar aim. Assim, 0 feminismo culpa a pornografia pelo estupro, ¢, por um raciocinio presungosamente circu lar, interpreta os surtos de sadismo como uma reacio violenta contra o ptéprio. ferinismo. Mas estupto ¢ sadismo tém estado preseates em toda a hist, e, fem certos momentos, em todas as culeuss Este livto adota a opiniao de Sade, 0 menos lido dos grandes esctitores da licerarura ocidental. Sua obra é uma abrangente critica stirca a Rousscat, es crita na década seguinte & primeira experiéncia rousseauista fracassada, « Revo- lugio Francesa, que terminou no em paraiso politico, mas no inferno do Rei- nado do Terror. Sade segue Hobbes ¢ no Locke. A agressto vem da natureza; € 0 que Nietzsche chamara de vontade de poder. Para Sade, voltar & natuteza (© imperativo romintico que ainda impregoa nossa culeuta, dos conselheitosse- xuais aos comerciais de cereais) era dar rédea solta a violencia e a0 desejo. Eu concordo. A sociedade nfo é a criminosa, mas a forca que contém o crime. Quan- do 0s controles sociais enftaquecem, a crueldade inata do homem vem & tona. O estuprador nio é ctiado por més influéncias sociais, mas por uma falha de condicionamento social. As feministas, buscando eliminar do sexo as relacées de poder, colocaram-se contra a propria natureza. Sexo é poder. Identidade € poder. Na cultura ocidental, nfo hi relagBes que nao sejam de exploracéo. To- dos matam para viver. A lei natural ¢ universal de criagdo a partir da destruigio ‘opera tanto na mente como na matéria. Como afirma Freud, herdeiro de Nietzs-, che, identidade € conflito. Cada geracio passa seu arado sobre os 0350s dos mottos O liberalismo: tmodetno softe de ontiadieraio ieolidas- Balen o indi- vidualismo e a fiberdade, ¢ sua ala radical condena as ordens sociais como optes- sivas. Por outro lado, espera que 0 governo seja 0 provedor material de todos, um feito s6 alcancivel mediante a expansio da autoridade de uma burocracia inchada. Em outras palavras, o liberalismo define o governo como um pai tita- ‘no, mas exige que el aja como uma mfe que amamenta, O feminismo herdou cssas contradigbes. Encara toda hietarquia como repressive, uma fiego social todo aspecto negativo na mulher é uma mentira masculina, destinada a manté- Jaem seu lugar. O feminismo excedeu sua missio, a busca de igualdade politica para as mulheres, eacabou rejeitando a contingéncia, ou seja, a limitagio hu- ‘mana pela natureza ou pelo destin. “ Liberdade sexual, liberagio sexual, Uma ilusio moderna. Somos animais hhieedrquicos.E 6 vatter uma hierarquia, que outra tomar seu haga, talvez menos palatével que a primeira. Ha hierarquias na natureza e hierarquias alrernativas nnasociedade. Na natuteza, a forca bruta € lei, a sobrevivéncia do mais capaz Na sociedade, existem proteg6es para os fracos. A sociedade € nossa frgil bar teira contra a natureza. Quando o prestigio do Estado e da religito anda baixo, (os homens sfo lives, mas acham a liberdade intolerével ¢ buscam novos meios de escravizar-se, pot meio das drogas ou da depressio. Minha teotia € que, sem pre que se busca ou se alcanca a liberdade sexual, 0 sadomasoquismo nto, vem ‘muito atrés. O romantismo sempre se transforma em decadéncia. A natureza € um duro caparaz. £0 martelo ¢ a bigorna, esmagando a individualidade. A liberdade perfeita seria morrer por terra, ar, Agua ¢ fogo. © sexo é um poder muito mais sombrio do que admite o feminismo. As terapias sexuais behavioristas julgam possivel o sexo sem culpa, impecivel. Mas 6 sexo sempre foi cercado de tabu, independentemente de cultura. © sexo © ponto de contato entre o homem e a natureza, onde a moralidade e as boas intengGes caem diante de impulsos primitivos. Chamei ese ponto de intersec- ) fo. ssa intersecgto € a misteriosa encruzilhada de Hecate, onde tudo revorna Znoite. O erotismo € um reino tocaiado por fancasmas. Eo lugar além dos con- fins, a0 mesmo tempo amaldicoado ¢ encantado. Esce livo mostra quanta coisa, na cultura, vai contta o que mais gostatia- mos. A integrasao de corpo e mente humanos 6 um problema profundo, que info seré resolvido com sexo recreativo nem com tuna expansto dos direitos eivis femininos. A encarnasZo, limitacao da mente pela matéria, €um ultraje 2 ima- ginacio. Igualmente ulirsjante € 0 sexo, que nto escolhemos, mas que & natu reza nos impés. Nossa fisicalidade € um tormento, nosso corpo a frvore da na- tureza na qual Blake nos vé crucificados. sexo é daiménico. Este termo, cortente nos estudos sobre 0 romantismo tealizados nos iltimos 25 anos, vem do grego daimon., que significa um espiito de divindade inferior & dos deuses do Olimpo (dai minha prontncia “daiméni- co”). Edipo, expulso, torna-se um daimon em Colona. A palavra passou a sig nificar a sombra guardia do homem. O cristianismo transformou daiménico ema demonfaco, Os daimons gregos nfo etam maus — ow melhor, eram ao mesmo tempo bons € maus, como a pr6pria natureza, na qual viviam. O inconsciente de Freud é um dominio daiménico. De dia, somos criaruras sociais, mas 3 noite ‘mergulhamos no mundo dos sonhos, onde reinz a natureza, onde nio existe lei mas apenas sexo, crueldade e metamorfose. O proprio dia € invadido pela noite daiménica. De instante a instante, a noite pisce na imaginagio, no erotis- ‘mo, subvertendo nossa tentativas de virtude e ordem, dando a objetos e pes- soas uma aura misterioss, que nos € revelada pelos olhos do artista. O carster espectral do sexo esti implicito na brilhante teoria do “romance familiar” de Freud, Todos temas uma constelacio incestuosa de personas se- sruais, que levamos do berco & cova, ¢ que determina a quem € como amamos ‘ou odiamos. Todo encantro com amigo ou inimigo, todo choque com a autori- 7 dade ou submissio a ela traz os tragos perversos do romance familiar. © amor € um teatro lotado, pois, como observa Harold Bloom: “Nao podemos abracat (exualmente ou de outro modo) uma pessoa, sem abracar todo o seu romance familiar”.* Quase nada conhecemos ainda do mistério da cathexts, o investi- mento de libido em certas pessoas ou coisas. O elemento de livre-arbitrio no sexo ou na emocio € pequeno. Como sabem os poetas, a paixio é itracional. ‘Como a arte, 0 sexo esti cheio de simbolos. Romance familiar significa que © sexo adulto € sempre uma representacéo, uma atuacio ritualistica derivada de realidades passadas. Um erotismo inteiramente humanitario talvez seja im- possivel. Em algum ponto de todo romance familiar ha hostilidade e agressio, 0s desejos homicidas do inconsciente. As criangas sf0 monstros de desenfreado ‘egoismo ¢ vontade porque vém diretamente da natureza, hosts sugestoes de imoralidade. Catregamos essa vontade daiménica conosco para sempre. A maioria das pessoas a esconde com preceites éticos adquiridos, ¢ s6 a enfrenta n0s s0- ‘abos, que logo esquece 20 acordar. A vontade de poder é inata, mas 0s rotiros do romance familiar sto aprendidos. Os seres humanos sfo as finicas criaturas ‘nas quais a consciéncia es to enredada com o instinto animal. Na cultura od dental, jamais pode haver um enconero puramente fisico ou despido de ansie- dade, Toda atracio, todo esquema de contato, todo orgasmo € modelado por sombeas psfquicas. ‘A busca de liberdade por meio do sexo esti condenada ao feacasso. No se- x0, dominam 2 compulsio e a velha Necessidade. As personas sexuais do ro- ‘mance familiar sto apagadas pela forga maremética da fegressio, o movimento para tis, para a dissolugzo primeva, que Ferenczi identifica com o oceano. To: do orgasmo € um dominio, uma rendicio, ou uma inovagio, A natureza nao ‘em nenhum respeito pela identidade humana. Por isso tantos homens se viram para o lado ou fogem depois do sexo, porque sentiram 2 aniquilacto do daimé- nico. O amor ocidental é um deslocamento de realidades eésmicas. £ um meca- rnismo de defesa que racionaliza forgas desgovernadas ¢ ingoverntveis, Como a teligito primitiva, € um artificio que nos possibilira controlar nosso medo pri mitivo Nto se pode entender o sexo, porque nifo se pode entender a natureza, A ciéncia é um método de anilise logica das operagoes da natureza. Aliviow a ansiedade humana em relacio 20 cosmos, demonstrando a materialidade das forcas da natureza, ¢ sua freqiiente previsibilidade, Mas a citncia vive correndo atris da bola. A natureza viola suas proprias regras sempre que quet. A ciéncia, ‘to pode cvitar um tinico raio. A ciéncia ocidencal é produto da mente apoli- nea: espera que, pela denominagio e classfieagfo, pela fria luz do intelecto, a noite arcaica seja repelida e derrotada, Nome ¢ pessoa fazem parte da busca de forma do Ocidente, que insiste na identidade distinta dos objetos. Denominar & conhecer; conhecer é contto- lar. Pretendo demonstrar que a grandeza do Ocidente vem dessa certeza ilus6- sia. A cultura do Extremo Oriente jamais lutou assim contra a natureza. A sub- missto, ¢ nfo o confronto, € a tegra. A meditagio budista busca a unidade ¢ 16 harmonia da realidade. A fisca do século xx, fechando o cficulo de volta a He- riclito, postula que toda matéria esti em movimento, Em outras palavras, nfo ‘exister coises,s6 enengia. Mas essa percepcao nto foi absorvida pela imagina- slo, pois anula as crengas intelectuais ¢ morais do Ocidente. © ocidental conhece por meio do olhar. As relacbes perceptivas esto no AAmago de nossa cultura, e produzisam nossas itanicas contibuighes& arte. Ca tminhaado em meio & natureza, vemos, identificamos, nomeamos, reconbece- nor, Ese reconhecimento € nosso aporropaion, ow seja, nosso isolamento do edo, O reconhecimento € cognoseéncia ritual, uma compulsto de repeticio. Dizemos que a natureza é bela. Mas esse julgamento estético, que nem todos «0s povos tém partlhado, € outta formacao de defesa, desgracadamente inade- Gquada para abranger a totalidade da natureza. O que & bonito na natureza se limita 2 fina pelicula do globo sobre o qual nos amontoames. £56 arranhar essa pelicula, que surgié a feitra daiménica da sacureza ‘Noss concentrarao no belo € uma estratégia apolinea. As folhas ¢ ores, ‘0s pfssates, as montanhas sto um desenho @ la colcha de retalho pelo qual ma- ppeamos 0 conhecido. © que o Ocidente reprime em sua visio da natareza € 0 Prémio, que significa “da tera" — mas das entranhas da terra, nfo da superfi- tie, Jane Harison usa o termo para a rligito pré-olimpica grega, © eu 0 adoto ‘como tum substituto para dionisaco, que se contaminot com gracejos vulgares. dionistaco nao € nenhum piquenique. Sao as realidades etbnicas de que foge “Apolo, o titurar cego da forca subtertinea, o longo ¢ lento suger, a treva ¢ a Jama, fa desumanizante brutalidade da biologia ¢ da geologia, o desperdicio ‘ederramamento de sangue darwinianos, a misétia¢ podridao que temos de barrar da conseitncia, a fim de manter nos integridade apolinea como pessoas. A ciéncia ea estética ocidentais sto tentativas de revisar esse horror dando-Ihe uma forma mais palatével para 2 imaginaslo (0 daimonismo da natureza cténica € 0 segredo indecente do Ocidente. Os snumanistas modemos fizeram do “sentido trigico da vida" a pedra angular da compreensto madura, Definiram a morcalidade humana e a tansitoriedade do tempo como temas supremos da literatura. Também nisso vemos, outra vez, fuga, e até mesmo sentimentalismo. O sentimento trigico da vida € uma res posta parcial 8 experiéncia. E um reflexo da resisténcia do Ocidence & paturezt, {da falsaimpressao que tem dela, combinadas com os erros do liberalism, que fem sua romintica filosofia da natureza tem seguido mais 0 rousseauista Words- worth do que o daiménico Coleridge. ‘A tragedia € o mais ocidental dos géneros literdrios. S6 apareceu no Japto no final do século x1x. A vontade ocidental, insurgindo-se contra a natureza, ‘ramatizou sua prSpta c inevitivel queda como um componente humano uni ‘ersal, o que ela no 6. Uma das ironias da histia literaria € 0 nascimento da tragédia no culto de Dioniso, A destruicio do protagonista lembra a matanca de animais ¢, anteriormente, de seres humanos teais em rituais arcaicos. Nao Epor acaso que a ragédia, como a conhecemos, data do apotineo século V a.C. ds grandeva de Atenas, cuja obra fundamental € a Oréstia, de Esquilo, uma 7 celebrasio da derrota do poder ctonico. O drama, géneto dionisfaco, voltou-se contra Dioniso a0 passa: da mimese para o ritual, ou seja, da acio para a repre- sentagio. O “‘piedade e medo”” de Arist6teles € uma promessa quebrada, um pedido de visio sem hottor. Poucasixagedias gregas se adequam inteiramente a0 comentario humanis- ta de que foram objeto, O residuo bérbato niio se desprega. Mesmo no séeulo VaC., como veremos, surgi uma resposta satirica ao teatto apolinizedo, nas pecas decadentes de Euripides. Entre os problemas que se colocam para uma awvaliaglo precisa da tragédia grege, estd nfo apenas a perda de trés quattos do acervo otiginal de obras, mas a nao-sobrevivencia de qualquer pega satitica com- pleta, Esse era o final da trilogia clissica, um obsceno teatro cémico de vatieda- des. Na tragédia grega, a comédia sempre teve a tkima palavra. A critica mo- derna projetou uma grande seriedade vitoriana —¢, acho, protestante — sobre ‘cultura page, que ainda hoje abafa o ensino das humanidades. Paradosalmen- te, a accitagio des bérbazas realidades et6nicas conduz nfo @ tristeza, mas 20 humor. Daf a estranha risada de Sade, seu humor em meio as mais fancasticas ctueldades. Pois a vida nto 6 uma tragédia, mas uma comédia. A comédia nasce do choque entre Apolo ¢ Dioniso, A natureza esta sempre puxando 0 tapete de debaixo de nossos pomposos ideais So taras as protagonists femininas nas tragédias. A tragédia € um para- digma masculino de ascensio ¢ queda, um grafico em que os climax dramiticos « sexuis se encontram em sombria analogia. O climax € outta invencao moder- nna. As hist6rias tradicionais orienais slo picareseas,encadeamentos hotizontais de incidentes. Tem pouco suspense ou sentido de final. O agudo pico vertical dda nacrativa ocidental, como, depois, da misica orquestral, € exemplifiado por Edipo rei, de Sofocles, cujo momento de intensidade maxima Aristoteles chama de peripeteia, reversa0. O climax dramitico ocideatal foi produzido pelo agon da vontade masculina. Idencidade através da acio. A acio € a rota de fuga da natureza, mas toda agZo completa o citeuloe retorna &s origens, 0 titero-témulo da natureza. Edipo, tentando escapar de sua mic, corre direto pata os bracos dela. A narrativa ocidental € uma histéria policial, um processo de deteccéo. Mas, como o que se detecta € insuportivel, cada revelacdo leva a outra repressio. ‘As grandes mulheres da tragédia — Medéia e Fedra, de Euripides, Cledpa. trac lady Macbeth, de Shakespeare, Fedra, de Racine — desviam-se de sua iden- tidade sexual por sua relagdo com a ago masculina, que rompe esse vinculo. ‘A mulher trigica € menos moral que o homem. Sua vontade de poder € ostensi- ‘va. Suas ag6es esto sob uma nuvem cténica. Sto um conduto do irracional, abrindo «© género aintrusbes da forca barbara que o drama deixou de fora em sta origem. A tragédia € um veiculo ocidental de teste e putficacio da wontade masculina. A dificuldade para enxertar-lhe protagonistas femininas resulta nfo do precon- ceito masculino, mas de instintivas estratégias sexuais, A mulher introduz cruel- dade bruta nas tragédias porque é ela 0 problema que o género tenta cottgir. ‘A tagédia faz um jogo masculino, um jogo que ela mesma inventou pare sarrancat a vita das garras da destosa. O dilema humano decisivo nil € a esco- 8 Jha imperfita, a asko imperfeita, ou mesmo a morte. O mais grave desafio as nnossas esperangas e sonhos é 2 confusa atividade bioldgica nocmal, que prosse- auie dentro de nés e fora de nés a voda hora de todo dis. A consciéncia € uma pobre refém de seu envoltério de carne, cujos impulsos, crcuitos ¢ murmérios secretos ela nfo pode deter nem acelerat.£ esse o drama eténico, que nao tem climax, mas apenas uma interminével ronda, ciclo ap6s ciclo. O microcosmo re flee o macrocosmo, O livte-atbiio € natimorto nas células vermelhas de nosso corpo, pois nfo ha livre-arbitrio na natureza. Nossas escolhas nos vém pré- ‘embaladas ¢ por entrege especial, moldadas por mios que no sio as nossas ‘A inospitalidade da tragédia para com a mulher vem da inospitalidade da natureza para com o homem. A identificacio da mulher com a natureza era uni versal na pré-hist6ria. Nas sociedades de caga ou agritias, que dependiam da natuteza, a femcalidade era cultuads como um principio imanente de fertilida- de. Quando a cultura progredia, os oficios e 0 comércio proporcionaram uma concentragio de recussos que libertou o homem dos caprichos do tempo e das restigées da googralia. Deixando-se a nacureza um passo atti, a femealidade secuou em importancia ‘As culturas budistas mantiveram os antigos sentidos da femealidade muito ‘tempo depois que o Ocidente a eles renunciou, Macho ¢ fémea, 0 yang ¢ yin chineses, sfo poderes que se equilibram e interpenetram no homens ¢ na natu- tera, a que a sociedade esté subordinada. Esse cédigo de aceitagdo passiva tem raizes na India, terta de sGbitos exttemos, onde uma mongao pode climinar 50 iil pessoas do dia para a noite. A femealidade das religides de fertlidade tem sempre dois gumes. A deuse da narureza indiana Kali € criadora e destruidota, concedendo benesses com um conjunto de bragos ¢ cortando gargantas com © ‘outro, Ea mulher cercada de caveitas. A ambivaléncia moral das grandes deusas- ‘macs tem sido convenientemence esquecida pelas ferninistes smericanas que as ressusitaram. Nio podemos agarar lamina nua da natureza sem detramar nosso sangue, Desde infcio, a cultura ocidental desviou-se da femealidade. A tima gran- de sociedade ocidental a adorar os poderes femininos foi a Creta mindica. E, significativamente, caiu e nfo tornou a erguer-se. A causa imediata desse colap- s0— tetremoto, peste, ot invasto — nao tem importincia. A ligdo € que a fe- mealidade cultual nfo constitui garantia de forca ou viabilidade cultural. O que sobreviveu, o que venceu as circunstincias ¢ deixou a marca de sua mente na Europa fois caltra guerseita micénica, que nos chegou pot intermédio de Ho- rmeto. A vontade de poder masculina: micénicos do Sul e dotios do Norte isiam fundirse para formar a Atenas apolince, da qual veio a linha greco-romana da hise6ria ocidental, ‘As tradig6es apolinea e judeu-cristé sto igualmente transcendentais. Quer dizer, buscam superar ou trunscender a natuteza. Apesat do elemento dionista- co conttirio da culeura grege, que pretendo discutir, o alto classicsmo foi uma realizagio apolinea. O judaismo, seita mattiz do cristianismo, é 0 mais poderoso protesto contra 2 naguteza. O Velho Testamento afirma que um deus pai fez 19 ‘anatureza, e que a diferenciagio entre objetose exos proveio de sua masculi dade. O judeu-cristianismo, como a adoragio grega dos deuses do Olimpo, € ‘am calto do céu. E um estagio avancado na histria da religido, que em toda parte teve inicio como culzo da terra, veneragto da fércil aarureza ‘A evolugio do culto da terra para o culto do céu transfere a mulher para co reino inferior. Seus misteriosos poderes de procriacio, e a semelhanca de seus seios, batriga e quadris redondos com os conrornos da terra, a pdem no centro do simbolismo primitivo. Foi cla o modelo pata as figuras de Grande Mae que ‘coroaram o nascimento da religito em todo 0 mundo. Ao contririo, como mos ttarei 20 discutir Hollywood no livro que dari seqtiéncia a este, 08 objetos de culto sfo prisioneizos da inflacio de seu proprio simbolismo. Todo totem vive em tabu. “A mulher era um idolo da magia do vente. Ela parecia inchar ¢ dar 3 luz ppor sis6, Desde o comeco dos tempos, a mulher parece um ser estranho. © ho- mem cultuava-a mas temia-a, Era 0 negro bucho que o cuspira para fora ¢volta- rin a devoti-lo. Os homens, juntando-se, inventaram a cultura como uma defe- sa contra a natureza feminina. O culto do céu foi o passo mais sofisticado nesse processo, pois essa transferéncia do Jocus crativo da terra para o céu € uma pas sagem da magia do ventre para a magia da cabeca. E dessa defensiva magia da ‘cabeca veio a gléxia espetacular da civilizagfo masculina, que erguen a mulher consigo. Aré a linguagem c a Jogica que a mulher moderna usa para atacar a cultura patriaecal foram invengto do homem ‘Daf os sexos se verem colhidos numa comédia de endividamento historic. © homem, repetido por sua divida com uma mae fsica, criou uma realidade altemativa, um heterocosmo que Ihe dé ailusio de liberdade. A mulher, a prin- pio satisfeita em accitar a protecZo do homem, mas agora inflamada por sua r6pria liberdade ilus6ria, invade os sistemas masculinos e suprime sua divida om ele toubando-os. Por causa da magia da cabega, ela negari que algum dia teaha havido um problema de sexo e navureza. Herdow a ansiedade da influéncia "A identificagao da mulher com a nacureza € 0 componente mais perturba do e perturbador nessa discussto historia. Teri sido verdade algum dia? Ainda seri? A maiotia das leitoras feministas discordara, mas acho que essa identifica- fo nao é mito, e sim realidade. Todos os géneros da filosofia, ciéncia, grande arte, atletismo e politica foram inventados pelos homens. Mas, pela lei prome- téica de conflito e caprura, a mulher tem o direito de tomar o que queira € disputar com o homem nos rermos dele. Contudo, ha um limite para o que cla pode alterar em si mesma ena relagio do homem com ela, Todo ser humano tem de lutar com a natureza. Mas 0 fardo da natureza pesa mais sobre um dos sexos. Com sorte, isso néo limitaré a realizagao da mulhet, ou seja, sua aglo no espago social criado pelo homem. Mas tem de limitar 0 erotismo, ou seja, nossas vidas imaginativas no espaco sexual, que pode justapor-se a0 espaco s0- cial, mas ado lhe € idéntico (s ciclos da natuteza sto os ciclos da mulher. A femcalidade biol6gica € uma seqdéncia de retornos circulates, que comegam € acabam no mesmo pon 20 eo mos- je screws de ge rn vive jr = Sard luz yeaa. O ho- pac volta ye: =a defe- to. A centralidade da mulher dé-Ihe identidade estével. Ela nfo precisa tornar- se, mas apenas set. Sua centralidade € um grande obstéculo ao homem, euja busca de identidade ela bloqueia. Ele precisa transformar-se num ser indepen- dente, isto €, um set livre dela. Se no o fizer, simplesmente tetornara a cla. ‘A reuniio com a mfe € um canto de sereia que obceca nossa imaginacio. Antes hhavia felicidade, e agora hi luta. Talvez na origem das fantasia arcadicas sobre tuma cra de ouro perdida estejam tenes lembrancas da vida antes da tcaumética separacio do nascimento. A idéie ocidental de hist6ria como um movimento propulsor para o futuro, um designio progressivo ou providencial, que atingiré odimax na revelacio da Segunda Vinda, é ums formulagio masculina. Mulber neahuma, admito, poderia ter cunhado tal idéia, jé que se trata de uma estraté- gia de evasio da natureza cilica da mulher, na qual 0 homem tem horror de se vet apanhado. A hist6ria evolucionésia ou apocaliptica € uma lista de descjos masculina, com uum final feliz, um pico fico, ‘A mulher nio sonha com 2 fuga transcendental ou histética a0 ciclo natu ral, ji que ela é esse ciclo. Sua maturidade sexual significa casamento com @ Ima, crescendo e minguando nas fases lunares. Lua, més, menstruacio: mesma palavra, mesmo mundo.* Os antigos sabiam que a mulher esta presa a0 calen~ izio da natureza, um compromisso que nfo pode recusar. O padrio grego que vai de livte-atbitrio a Aybnis e eragédia € um drama masculino, uma vez que a mulher jamais se iludiu (até recentemente) com a miragem do livie-arbittio, Ela sabe que nao hi livr-arbitrio, que ela nfo é livre, Nao tem opeao senzo accitar. Deseje ou nfo a maremnidade, a natureza a atrela ao bruto ¢ inflexivel ritmo da lei da procriagio. O ciclo menstrual € um despertadat que azo pode ser parado enquanto a natureza nfo quiser. (© aparelho reprodutor da mulher € imensamente mais complicado que 0 do homem, ¢ ainda mal compreendido. Tudo pode dar exrado, ou causar an- sistia mesmo dando certo. A mulher ocidental esté em agénica relagi0 com © scu proprio corpo: pata ela, normalidade biol6gica € softimento, ¢ a safide uma doenca. Afitma-se que a dismenorréia € uma doenga da civlizasto, pois as mulheres das culturas tsbais im poucos males menstruais, Mas na vida te- bal a mulher tem uma identidade abrangente ou coletiva; a religito tibal cul- tua a natureza e a ela subordina-se. E precisamente na avancada sociedade oci- dental, que tenta melhorar ou ulteapassar 2 natureza, e que crige 0 individua- lismo ¢ a realizago pessoal como modelos, que 2 crta tealidade da condicko eminina emeige com dolorosa clareza. Quanto mais a mulher corre em busca de identidade e autonomia pessoais, quanto mais desenvolve sua imaginacto, mais feroz ser a luta com a natureza — quet dizer, com as obstinadas lis fisi- cas de seu proprio corpo. E mais a navureza a punici: nfo se atreva a er livre! ppois seu corpo aio Ihe pertence. corpo feminino € uma méquina cténica, indiferente 20 espfrito que 0 habita. Organicamente, tem uma missdo, a gravider, que podemos passat a vi (©) Hm inglés, natralmente: Moow, month, menses. (N. T.) a da repelindo. A natateza s6 se importa com a espécie, jamais com os indivé- ‘duos: as humilhantes dimens6es desse fato biol6gico sto experimentadas de ma- ncira mais diteta pelas mulheres, que provavelmente por causa disso tém maiot realismo e sabedoria que os homens. O corpo da mulher é um mar sobre o qual ‘tua o movimento lunar das ondas. Indolentes e adormecidos, seus tecidos adi- ‘posos encharcam-se de fgua, e depois se emxugam de repente na maré alta hor- ‘monal. O edema é nossa recafda de mamifero no vegetal. A gravidez demonstra 6 catiter deverminista da sexualidade da mulher. Toda mulher grévida tem 0 corpo € 0 ego tomacdos por uma forgacténica além do seu controle. Na gravider desejada, € um sactfico feliz. Mas na indesejada, iniciada por estupro ou azar, € um horror. Pois o feto 6 um tumor benigno, um vampito que rouba para vi= ver. © chamado milagre do nascimento € a natureza dando as cares. ‘Todo més, para a mulher, é uma nova dertota da vontade. A menstruaco cra chamada outrora de ‘‘maldicao",* uma referéncia 3 expulsao do Jardim do den, quando a mulher foi condenada a parit com dor por causa do pecado de Eva. A maioria das primeiras culturas cetea as mulheres menstruadas de ta- bus riruais. As judias ortodoxas ainda se purifieam da sujeica menstrual com © mikueb, um banko ritual. As mulheres tém arcado com o fardo simbélico das imperfeigées humanas, suas bases na natureza, © sangue menstrual € a man- cha, a marca de nascenca do pecado original, a imundicie que a religiao trans- cendental deve lavar do homem, Seri essa identificacto apenas fébica, apenas misogina? Ou € possivel que hajz alguma coisa misteridsa no sangue menstrual, justficando sua ligacto 2o tabu? Sustentarei que nfo € o sangue menstrual em, si que perturba a imaginaco — por mais inestancivel que seja esse corrimento vermelho — mas antes 2 albumina no sangue, os iapos uterinos, a medusa pla- cental desse mar feminino. Essa € a mattiz eténica da qual surgimos. Sentimos ‘uma repugnincia evolucionéra pelo lodo, sitio de nossa origens biol6gicss. Todo més, € destino da mulher enfrentar 0 abismo do tempo e do set, 0 abismo que € cla mesma. ‘A Biblia tem sido atacada por fazer da mulher a responsivel pela queda ‘no drama c6smico humano. Mas ao pér um conspirador masculino, a serpente, como inimigo de Deus, 0 Géness se precavé e ndo leva sua misoginia longe de- ‘mais, A Biblia desvia-se do vetdadeito adversirio de Deus, a natureza cténica A serpente nilo est fora de Eva, mas nela, Ela éo jarcim ea serpente. Anthony Stott diz sobre as bruxas: "Num nivel muito primitive, todas as mas sao fli- as" O Diabo € uma mulher. Os movimentos de emancipacéo modemos, descartando estere6xipos que impedem o avanco social da mulher, recusam-se a reconhecer 0 daimonismo da proctiagio. A natureza é serpentina, um leito de cipés entrancados, plantas trepadeiras e rastejantes, tateantes dedos dormen- tes de fétida vida orginica, que Wordsworth nos ensinou 2 chamar de belos. Os bislogos falam do cérebro reptilico do homem, a parte mais antiga de nosso sistema nervoso superior, sobtevivente matador da eta atcaica. Eu digo que a (2) The cure, (N..) mulher pré-menstrual levada @itritagio ou féria ouve sina do cérebro reptii- co. Nela, a perversidade latente do homem é manifesta, Todo 0 inferno se de- sencadeia, 0 infemo da natureza ctdnica, que 0 humanismo modemo nega € reprime. Em toda mulher pté-menstrual que luta para conter seu génio, o culto do céu guerreia com o culto da terra. ‘A identificaczo da mulher com a natureza na mitologia €correta. A contti- buigZo masculina a procriagio € momentinea e ttansitétia. A concepeao € uma fracdo de tempo, outro dos nosso flcos picos de aco, do qual 0 macho destiza intl para fora. A mulher grivida € daim@nica, diabolicamente completa. Co- ‘mo entidade ontol6giea, ado precisa de nada nem de ninguém. Sustentarei que a mulher grivida, meditando nove meses sobre sua prOprtiactiacdo, € o modelo de todo solipsismo, que 2 atribuigao historia de natcisismo as mulheres € outro mito verdadeiro. A alianga masculina e o pattiarcado foram 0 recurso a que 0 hhomem se vit obrigado, por seu tertvel senso do poder da mulher, da imper- ‘meabilidade, da arquétipa confederagao dela com a natureza ctonica. O corpo da mulher é um labirinto onde o homem se perde. £ um jatdim murado, 0 hortus conclusus medieval, onde a navureza faz sua daiménica bruxatia. A mu- thet é2 fabricante primeva, a verdadeira Primeira Causa. Transfotma um ranho de detrito numa rede de set senciente, futuando no serpentino cordao umbil cal pelo qual tmz todo homem na corteia. © feminismo tem sido simplista a0 afirmar que os arquétipos fernininos so falsidades polticamente motivadas dos homens. A repugnancia histbrca pela ‘mulher tem uma base rucional: 0 nojo € a reacio adequada da razo a grosseria da natureza proctiadora. A razlo e a logica, inspitadas pla ansiedade, sto 0 dominio de Apolo, primeiro deus do culto do céx. O apolineo € severo e fobi- 0, isolando-se friamente da natureza por sua puteza sobfe-humana. Afirmo que a personalidade c as realizagdes ocidentais, pata o melhor para o pior, silo em grande parte apolineas. O grande adversirio de Apolo, Dioniso, gover- ‘na 0 ctbnio, cuja lei é a femealidade proctiadora, Como veremos, 0 dionistaco € naturcza liquida, um pantano miasmitico que tem como prot6tipo © poo ‘estagnado do ctero, ‘Devemos perguntar se a equivaléncia entre macho e fémea no simbolismo do Extremo Oriente foi tio culeuralmente eficaz quanto a hierarquizacio de ma- cho c fémea no Ocidente. Que sistema beneficiou mais a mulher, em dltima anilise? A ciéncia ea indastria ocidentais libercaram as mulheres dos trabalhos tediosos ¢ do perigo. Miquinas fazem as tarefas domésticas, A pilula neutraliza a fertlidade. Parit ndo é mais fatal. E a linha apolinea da racionalidade ociden- tal produziu a agressiva mulher moderna, que pode pensar como o homem ¢ escreverlivos desagradiveis. A tensio ¢ 0 antagonismo na metafsica ocidental clevatam os podetescorticais superiotes humanos. grandes alruras. A maior parce da cultura ocidental € uma distoncio da realidade. Masa realidade deve set dis rorcida; quet dizer, cortgida pela imaginacio. A equiescéncia budista 3 natute- za nfo é nem exata a tespeito da natuteza nem justa com o porencial humano. © apolineo nos levou as estrelas. 2B (Os arquétipos daiménicos da mulher, que enchem a mitologia mundial, representam a incontrolével proximidade da natureza. A tradicto deles passa quase intacta dos fdolos pré-histéricos, através da literatura e da are, para o ci- ‘nema moderno, A imagem bisica é da femme fatale, a mulher fatal para 0 ho- ‘mem. Quanto mais se repele a natureza no Ocidente, mais a femme fatale tea- patece, como tum retorno do reprimido. E 0 espectro da consciéncia de culpa do Ocidente em relacto & natureza. E 2 ambigiidade moral da nacureza, uma Ina malévola a romper incessantemente 0 nevoeiro de noss0s sentimentos de es peranga. (O feminismo descara a femme fatale como caricatura ¢calinia. Se cla exis tiu, foi simplesmente uma vitima da sociedade, recorrendo as manhas desteut- vas ferininas pela falta de acesso 20 poder politico. A fereme fatale eta mia executiva manquée, sua enezgia neuroticamente desviada para 0 bowdoir. Com cessas técnicas de desmistficagio, 0 feminismo se meteu numa enrascada. A se- snialidade € um dominio sombrio de contradicto e ambivaléncia. Nem sempre se pode entendé-lo por meio de modelos socais, que o feminismo, como her- deiro do utilitarismo do s€culo XIX, insste em impor-lhe. A mistficacto conti- nnuatd aser sempre a desordeiea companheira do amore da ate. Erotismo é mis tica; ou seja, a aura de emogio c imaginasto que cerca 0 sexo. Nao se pode "dar tum jeito” nele, com c6digos de conveniéncia social ou moral, seja da esquerda ou da direita politica. Pois 0 fascismo da natureza € maiot que o de qualquer sociedade. Hi nas rlagSes sexuais uma instabilidade daiménica que talvez te- nnhamos de accitar. ‘A femme fatale € uma das mais mesmetizantes personas sexuais. Nao é fic- «lo, mas uma extrapolagio de realidades biol6gicas, na mulher, que continua sendo constantes. O mito da vagina dentada (vagina densata) dos indios norte- americanos € uma transctiglo hediondamente direta do poder feminino ¢ do ‘medo masculino. Metaforicamente, toda vagina tem dentes seretos, pois o ma- cho sai.com menos do que 2o entrar. A mecanica bisica da concepcto exige acto do macho, mas apenas passiva receptividade da fémea. O sexo, como uma tran sagio mais natural que social, € pois na verdade uma espécic de drenagem da ‘energia masculina pela plenitude feminina. Castracto fisica ¢ espiritual € 0 pe- Figo que todo homem corre no intercurso com uma muller. O amor € 0 sorilé- gio pelo qual ele adormece seu medo sexual. O vampirism latente da mulher ‘do € una aberracio social, mas um desenvolvimento de sua fangéo maternal, para a qual a natureza a equipou com exaustiva minuciosidade. Para o homem, todo ato sexual € um retorno @ mae, ¢ uma capitulagto a ela. Para os homens, ‘sexo € uma luta por identidade. No sexo, o homem é consumido ¢ novamente liberado pelo poder dentado que o deu A luz, 0 dragio fémca da natureza 'A femme fatale foi produzida pela mistica da ligacdo entre mie e filho. Una das crengas modernas € que sexo e procriagdo sd0 medicamente, cientifica- ‘mente, intelectualmente “‘controléveis’’. Se mexermos bastante no mecanismo social, codos 0s problemas desapareceréo. Enquanto isso, o ndimeto de divércios sobe ds alturas, O casamento convencional, apesar de suas iniqtiidades, represa 24 v2.0 ca0s da libido. Quando 0 prestigio do casamento esté em baixa, todo 0 pervesso daimonismo do instinco sexual vem 3 tona. O individvalismo, 0 ego ‘io contido pela sociedade, conduz 3 servidio mais grosseira da concencio pela rnavureza. Todo caminho que parte de Rousseau leva a Sade, A mistica de nosso nascimento de mies humanas € uma das nuvens daimdnicas que néo podemos afasrar com pequenos gritos de independéncia. Apolo pode desviar-se da natu- teza, mas nfo pode obliteé-la. Como seres emocionais ¢ sexuais, seguimos © irculo todo. A velhice é uma segunda inféncia, em que tevivem as mais antigas embrancas. De modo azrepiaate, 0s pacientes em coma, de qualquer idade, cencolhem-se automaticamente pata a posicio fetal, da qual tém de ser arranca- dos por enfermeitos. Estamos atados 2 nosso nastimento por inabaléveis visbes dda memoria sens6tia, Peicologias rousseaulstas como 0 feminismo afirmam a benevoléncia tiki ma da emocio humana. Num sistema assim a femme fatale logicamente no tem lugar. Eu sigo Freud, Nietzsche e Sade em minha visio da amoralidade da vida instintual. Em certo nivel, todo amor & combate, uma luta com fantas- mas, $6 somos a favor de alguma coisa sendo conira outta. Quem julga estar tendo encontros sexuais agradaveis, casuais, descomplicados, com amigo, esp0- so ou escranho, esti bloqueando da consciéncia 0 emaranhado da psicodinimi- c2.em ago, do mesmo modo como bloqueia os choques hostis de sua vida nos sonhos. O romance familiar atua o tempo todo. A femme fatale & uma das so fiscicagbes do narcisismo da mulher, da ambivalente orientacio para si mesma que se completa com 0 nascimento de um filho ou a transformasio do esposo ou amante em filho. "As mies podem ser fatais para os filhos. Foi contra a mie que os homens exgueram seu alto edificio de politica e culto do céu. Ela € Medusa, em quem Freud vé 0 pais feminino castrador ¢ castrado. Mas a cabeleira de serpentes de Medusa € também o caredado matagal da natureza. Sua cateta hedionda €o medo masculino do rso das mulheres. Aquela que dé a vida também blo- aqueia o caminho da iberdade. Assim, concordo com Freud que temos 0 dieeito de frustrat as compulsdes procriativas da natureze, por meio da sodomia ¢ do aborto, O homosserualismo masculino talvez sea a mais corajosa das tentativas de fugir’ fomnre fatale ¢ dertorat a natureza. Dando as cosas 3 mae medusina, ‘em honta ou antipitia a ela, o homossexuat masculino € um dos grandes forja- dotes da identidade absolutista ocidental. Mas € claro que a natureza venceu, como sempre, fazendo da doenga o preco do sexo promiscuo, ‘A permanéncia da femmze fatale como persona sexual faz parte do incémo- do peso do erotismo, sob 0 qual sogobram a ética ¢ a ccligito. O exotismo © ponto fraco da sociedade, pelo qual a narureza ctbaica a invade. Ela pode aps recer como mie medusina ou frigida ninfa, mascatando-se na brilhance lu nosidade do grande fascinio apolineo. Sua fra inatingibilidade convida, encan- tae dest6i, No é uma neurbtiea, mas, se isso faz alguma diferenca, uma psico- ‘pata. Ou scja, tem uma amoral austacia de afeto, wma serena indiferenca pelo softimenco dos outros, que convida e observa desapaixonadamente, para testar 2 seu poder, Nao se pode traduzir inteiramente, em ermos masculinos, a mistica Ga femme fatale, Vou falar em devalhes do meaino bonito, uma das mais es tonteantes personas sexuais do Ocidente. Contudo, 0 perigo do homme fatal, Inaterializado no jovem prostituto de hoje, € que cle vai embora, desaparece tds de outros amores, outras terras. F um errante, um caubéi, um masinheito, Maso perigo da femme fatale é que ela fica, parada, plicida, e paralisante. Sua petmanéncia & um fardo daiménico, a ubiqiidade da Mona Lita de Walter Pa- fer, que sufoca a histéria. E um simbolo espinhoso da perversidade do sexo. Ela gruda, Encaminhamo-nos, neste capftulo, para uma teotia da beleza, Acredito que ‘0 senso estético, como tudo mais até agora, € um desvio do ctdnio. Eumdeslo- camento de uma area de realidade para outra, andlogo 4 passagem do culto da terra para o culto do céu. Ferenczi fala da substituigao do natiz animal pelo olho fumano, devido 4 nossa posigio ereta. O olho peremprério cm seus julga- mentos, Decide o que ver e pot qué. Cada um de nossos olhares € tanto exclu ‘ao quanto inclusio, NOs escolhemos, comentamos ¢realcamos. Nossa idéia do belo é uma nocio limitada, que nZo se pode aplicar ao submundo metamrfico da terra, um dominio cataclismico de violencia ctinica. Prefetimos no ver essa ‘ioléncia em nossos passeios didtios. Toda vez que dizemos que a natureza € bela, estamos fazendo uma prece, dedilhando as contas de nossas preocupasbes. "A fia beleza da femme fatale € outsa transformasao da feitira ct6nica. As femeas animais sio em geral menos bonitas que os machos. As penas sem grag da me pissaro consticuem uma camuflagem, para proseger o nino dos preda- ores. Os pastaros machos io criatutas de espetacular ostentagio, tanto na plu~ agem quanto no porte, em parce para imptessionat as fémeas ¢ vencer 08 t- vais, e em parce pata desviar os inimigos do ninho. Encre os seres humanos, a Dpiblgzo ritual do macho € igualmence extrema, mas pela primeira vex a femea se toma tum objevo de prodiga beleza. Por qué? A fémea se enfeita nfo s6 para gumentar seu valor enquanto propriedade, como gostatia de desmistficar o mat- wigmo, mas para assegurar sua desejabilidade. A conscigacia tomou-nos covar- es a todos. Os animais no rém medo sexual, porque no sio seres racionais. ‘Agem sob um impetativo biol6gico puro. A mente, que possibilitou & humani- divle adaprar-see florescer como espécie, também complicou infinitemente nosso fancionamento como setes fisicos. Vemos demais, e por isso temos de limitar severamente nossa Visio, O desejo € cercado de todos os lados por ansiedade tC diivida, A beleza, um éxtase para os olhos, nos intoxica e nos permite agit. ‘A beleza € nossa sevisio apolinea do ctOnio. "A natureza € um espeticulo darwiniano de comedores ¢ comidos. Todas as fases da proctiagio sio governadas pelo apetite: 0 intercutso sexual, dos bei jos’ penettagio, consste de movimentos de mal convida crueldade ¢ consumo. “A Tonga gravides da fémea humana e a extensa infincia de seu bebé, que nfo ce sustenta a si mesmo por sete anos ou mais, produziram o agon da dependén- ia psicoldgica que esmaga o homem a vida inte. © homem, justificadamen- te, seme ser devorado pela mulher, que € a procuradora da nacuseza, 26 ‘A repressio é uma adaptacto evolucionitia que nos permite funcionar sob o fardo da conscitnciz expandida. Pois aquilo de que temos conscincia poderia thos levar @ loucura. A grosseira giria masculina fala dos 6rgios genitais femini- nos como ‘“talho”” ou "‘racha"”. Freud observa que Medusa transforma os ho- mens em pedra porque, & primeire vista, o garoto acha o 6tgio genital femninino uma ferida, de onde o penis foi cortado. £ de fato uma fetida, mas foi o bebe que foi cortado, com violéncia: 0 cordéo umbilical é uma amarra, serrada pot ‘um grupo de resgate social. A necessidade sexual emputra o homem de volta esa cena de sangue, mas ele nto pode aproximar-se dela sem tremores de apreensio, que exconde com eufemismos de amor € beleza. Contudo, quanto ‘menos bem-educado — ou seja, menos socializado — mais agudo seri 0 seu senso da animalidade do sexo, ¢ ais grosseira a sua linguagem. O casca-g10ssa desbocado é produto nao do sexismo da sociedad, mas da auséncia de socieda- de. Pois a natureza & 2 mais desbocada de todos nés. (© atual avanco da mulher na sociedade nao € uma viagem do mito para a verdade, mas do mito pera um novo mito. A sscenséo da mulher racional, ‘ecnol6gica, pode exigit a repressao de realidades arquetipicas desagradaveis. Fe- renczi observa: “As peti6dicas pulsagbes na sexualidade feminina (puberdade, meastruasbes, gravideres e partos, climatério) exigem uma repressdo muito mais ‘poderosa da parte da mulher que 2 necesséria para o homem”’." Em sua briga com a sociedade masculina, o feminismo precisa suprimir « prova mensal do domfnio da mulher pela natureza cténica. A menstruacio € 0 parto sto uma aftonta 3 beleza e 3 forma. Em termos estéticos, sio espeticulos de assustadora miséria, A vida modema, com seus hospitais ¢ produtos de papel, distanciou ¢ sanitizou esses mistétios primitivos, como fez com 2 morte, que antes era uma horrorosa coisa doméstice. Muitissima coisa esté sendo vatrida para baixo do ta- pete: 0 espanto e terror que & nosso destino. "Acrucza semelhante uma ferida do Orgio genital ferninino € um sfmbolo da imedimibilidade da nacureza et6nica, Em termos estéticos, 0 6rgao genital feminino tem cores ligubtes, contomos inconstantes € arquitetura incocrent. Os 6rgios genitais masculinos, por outro lado, embora se artisquem a cair no ridfculo por sua borrachosa indeciso (uma hetoin de Silvia Plath pensa, me- moravelmente, num “‘pescogo de peru, com moelas de peru”), tém um dese- tho matemético racional, uma sintaxe. Mas isso nfo € uma virtude absoluta, jit que pode tender # confirmar o homem em suas muitisimas percepsGcs ext- rncas da realidade. A estética péra onde o sexo comeca. G. Wilson Knight decla- 1a: “Todo amor fisco €, de certo modo, uma vit6ria sobre sepredos ¢ repulsas fisicos”.* O sexo & sujo ¢ desordenado, um tetomo a0 que Freud chama de po- limorfa perversidade do bebé, um animado refocilat em todos os ftuidos do cor- po. Santo Agostinho diz: “‘Nascemos entre fexes ¢ urina”. Essa visio mis6gina {da saida do bebe, maculado pelo pecado, do canal de nascimento, esté préxima da verdade et6nica. Mas 2 excregio, pela qual a natureza uma vez na vida atua igualmente sobte os sexos, pode ser salva pela comédia, como vemos em Arist6- fancs, Rabelais, Pope e Joyce. A exctegéo encontiou um lugar na alta cultura 27 sani ‘A mensttuacio ¢ 0 parto sio demasiado batbaros para a comédia. Sua feitira roduzin o gigantesco deslocamento do status hist6rico da mulher como objeto sexual, cuja beleza se discute e modifica interminavelmente. A beleza da mu- Iher é um compromisso com sua perigosa fascinacio arquetipica. Dé ao olho a consoladora ilusio de controle intelectual sobre a natureza. “Minha explicagéo para o dominio do hortem na arte, citacia c politica, um fato indiscutivel da ist6ria, bascia-se numa analogia entre afisiologia sexual ¢ a cstética, Afitmo que toda realizagio cultural € uma projesao, um desvio para a transcendéncia apolinea, e que 0s homens se destinam, anatomicamente, a set projetores, Mas, assim como no caso de Edipo, o destino pode ser uma maldigéo. ‘A maneira como conhecemos 0 mundo, ¢ como ele nos conhece, baseia-se ‘em padroes de biografia sexual e geografia sexual. O que brota na consciéncia, é formado antes pelo daimonismo dos sentidos. A mente € esctava do corpo. Nao existe objetividade perfeita. Todo pensamento traz alguma carga emocio- nal. Houvesse tempo ou energia para iss, podia-se fazer com que cada escolha casual, da cof de uma excova de dentes& decisto sobre um menu, revelasse seu significado secreto no drama intetior de nossas vidas. O reino do ntimero, a ris- talina matemitica da pureza apolinea, oi inventado nos primeiros tempos pelo ‘homem ocidental como refigio contra o timido emocionalismo ¢ a espinhosa desordem da mulher e da natureza. A mulher que consegue sobressair em ma- temitica destaca-se num sistema imaginado pelo homem para dominar a natu- reza, O aiimero € a mais impositiva e menos natural das chupetas, a anclante esperanca de objetividade do homem. & para o ntimero que ele — ¢ agora ela —se retira fugindo do lodagal ctOnico do amor, do dio, ¢ do romance familiat. ‘Mesmo hoje, em geral so os homens, mais do que as mulheres, que afi ‘mam a superioridade da logica sobre a emocio. E tendem a fazer iso, comica- ‘mente, nos momentos de maior caos emocional, que podem ter causado © no conseguem evita, Os artistas e atores masculinos tém uma fungao cultural man- tendo aberta a linha de emocio do dominio masculino para 0 feminino, Todo homem abriga um territ6rio femiaino fatimo governado por sua mae, da qual cle jamais consegue se livas por completo. Desde 0 romantismo, a arte € 0 est do da are tomatam-se veiculos para explorata vida emocional reptmida do Oxi dente, embora jamais saberiamos disso se julgsssemos por metade da ediosa erudigéo que brotou a sua volta. A poesia €0 elo de ligacio entre 0 corpo a mente. Toda idéia na poesia se funda na emocio. Toda palavra € um apalpa- ‘mento do corpo. As méltiplas interpretagbes que cercam um poema refletem a violenta incontrolabilidade da emogio, na qual a natureza faz o que quet. Emo- (fo é caos. Toda emogio benigaa tem um reverso de negatividade. Assim, a fu- ia da emogio para o asimero é outra estratégia crucial do Ocidente apolinco ‘em sua longa luta com Dioniso. ‘Emosdo € paixio, um continuum de erotismo ¢ agressio, Amor € 6dio iio so oposts: ha apenas mais paixio ¢ menos paixio, uma diferenga de quantida 28 de, nao de espécie. Viver em amor ¢ paz é uma das maiores contradisdes que © ctistianismo impés a seus seguidores, um ideal impossivel e artificial. Desde o romantismo, os artistas ¢ intelectuais vém se queixando das regras sexusis da Igreja, mas elas séo apenas uma pequena parte da guerra cristZ contra a nature- 72 paga. S6 um santo pode manter cédigo de amor cristo. E os santos sto Drutais em suas exchusbes: tém de deixar de fora um enorme volume de tealida de, arealidade das personas sexuaise a da natureza. Amor a todos significa fie- 22 para com alguma coisa ow alguém. Mesmo Jesus, lembremos, foi desnecessa- tiamente made com a propria mie em Canad. O superfluxo cténico de emogio € um problema masculino. © homem tem de combatet essa enotmidade, que reside na mulher © na natureza. Ele s6 ode atingir a autonomia repelindo 2 nuvem daiménica que o engoliia: 0 amor materno, que bem poderiamos chamar de 6dio materno. Amot materno, 6dio materno, por ela ou dela, um imenso conglomerado de forca natural. A igualdade politica para 2s mulheres fard muito pouca diferenca nesee torvelinho ‘emocional que prosegue acima e abaixo da politica, fora do esquema da vida social. Enquanto todos os bebés nfo nascerem de jarras de vidto, nfo cessati © combate entre mie e filha. Mas num futuro totalitiri, que tenha titado a proctiasdo das mios da mulher, no haverd afeto nem arte. Os homens serio ‘méquinas, sem dot, mas também sem prazer. A imaginacfo tem um prego, que ‘pagamos todo dia. Nao ha como fugir das correntes biol6gicas que nos agrilhoam. Que deu 2 natureza 20 homem para se defender da mulher? Aqui chega- ‘mos 2 otigem das realizasdes culturais do homem, que resultam tio diretamen- te de sua singular anatomia. Nossas vidas como seres fisicos dio origem a meté- foras basicas de apreensio, que variam muitisimo entre os sexos. Aqui, nifo po- de haver igualdade. O homem é sexualmente compartimentado. Genitalmente, } esti condenado a um petpétuo modelo de linearidade, foco, mira e pontaia. ‘Tem de aprendet a mitar. Sem mira, a urina ea ejaculaclo acabam num empor- calhamento infantil de si mesmo ou do ambiente. O erotismo da mulher € di- fundido pot todo o compo. Seu desejo de carcias preliminares continua sendo uma tea de mé comunicacio entre os sexos. A concentracZo genital do homem: € uma reducio, mas também uma intensificacdo. Ele € vitima de indomaveis atose buon A sexalidae masulna intetemence manlacodepesive O | estrogénio trangilliza, mas 0 androgénio excita. Os homens vive em constan- | te estado de ansiedade sexual, pisando nas brasas de seus horménios. No sexo, como na vida, sd0 impelidos para mais adiante — adiante do ego, adiante do | corpo. Essa regra se aplica até no ventre. Todo feto torna-se fémea se nfo estver | ‘metgulhado em hotménio masculino, produzido por um sinal dos testiculos. | Antes do nascimento, portanto, o macho jaestadiante da fémea. Mas esaradiante | esta exilado do centro da vida. Os homens saber que sto exilados sexuais, Va- fam pela era em busca de satis, desjando edesprezando, jamais sats tos. Nio ha nada nesse movimento angustiado que a mulher possa invejar. ‘A metifora genital do homem € concentragio e projegto, A natureza di- Ihe concentracio para ajuds-lo a vencer seu meda. O homem aborda a mulher 29 «em explosbes de espasmédica concentragio, Iso lhe dé ailusio de conteole tem- potitio dos mistérios arquetipicos que o produziram. Dé-lhe a coragem de vol- tar, O sexo é merafisico para o homem de um modo que néo é para a mulher. As mulheres no tém problemas a resolver pelo sexo, No fisico € no psicol6gico, ‘segue séo serenamente auto-suficientes. Talvez prefiram realizar, mas nio precisam. a Nao sfo empurradas para mais adiante por seus corpos teftatitios. Mas 05 ho- mens esto em desequilfbrio. Tem de buscar, perseguir, cortejar ou tomar. Pom- bos no gramado, infelizmente: nesses rituais 2 beira do jardim, podemos sabo- reat 0 Pathos cémico do sexo. Quantas vezes avistamos um pombo macho fa- zendo avangos desesperados, inflados, para a fémea, que repetidas vezes the di 7 as costas ¢ se afasa indiferente. Mas, pela coneentragio € insistenca, ele pode ganhar o dia. A natureza abengoou-o com o esquecimento de seu prGprio ab- surdo. Sua objetividade 20 mesmo tempo uma ddiva e um fardo. Nos seres Irumanos, a concentracio sexual €o instrumento do homem pata recompor-se econter 3 forcao perigoso superfluxo crénico de emoclo e energia que identifi cocom a mulher € a natureza, No sexo, o homem € empurrado pata 0 pt6prio ; abismo de que foge. Faz uma viagem de ida € volta 20 nio-se. Concentrasio para projerar-se mais adiante. A projecio masculina de ere- flo ¢ ejaculacao & um paradigma para toda projecio e conceitualizagio — da arte efilosofia& fantasia, alucinagio e obsessfo. As mulheres tém conceitualiza : do menos na hist6ria nfo porque os homens as impediram de fazé-lo, mas por que elas no precisam conceitualizar para exist. Deixo aberta a questo das liferencas cerebrais. Conceituagio € mania sexual podem vir da mesma parte do eérebro masculino. O fetichismo, por exemplo, uma pritica que, como a aioria das perversbes sexuais, imita-se aos homens, é visivelmente uma ativi- dade conceitualizante ou criadora de simbolos. A preferéncia comercial muitis simo maior do homem pela pornografia € andloga. ‘Uma erecio € um pensamenio, ¢ 0 orgasmo um ato de imaginacio. O ho- e ‘mem tem de conseguir por forga de vontade sua autotidade sexual diante da ‘mulher, que € uma sombra de sua mae ¢ de todas as mulheres. O fracasso € ‘a humilhasfo esto sempre i espreita. Nenhuma mulher tem de ptovar-se mu- Iner do modo cruel que o homem tem de provat-se homem. Fle tem de atuat, sendo o espeticulo nao continua. A convencio social €ierelevante. Um fracasso um fracasso. De qualquer modo, ¢ ironicamente, o éxito sexual sempre acaba ¢m frouxidao, Toda projecio masculina é transitétia, ¢ tem de ser renovada an- siosamente, eternamente. Os homens entram em triunfo, mas saem em decte- ppitude. O ato serual imita cruelmente o declinio ¢ queda da histéria. A alianga masculina € uma sociedade de autopreservacio, uma reafirmacio colegial pot | meio de esquemas de referencia maioes, atficiais. A cultura € 0 féreo reforgo, (pelo homem, de suas projecdes privadas sempre periclitantes. Concentrasto projecto sto admiravelmente demonstradas pelo ato de usi- na, uma das mais eficientes compartimentas6es da anatomia masculina. Freud acha que o homem primitive se enaltecia com sua capacidade de apager uma fogucica com um jato de urina. Coisa esranha de orgulhar-se, mas certamente 30 \ L einen

You might also like