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José D’Assungao Barros CIDADE E HISTORIA y EDITORA VOZES Petropolis Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barros, José D’Assungao Cidade ¢ historia / José D’Assungao Barros. — 2. ed. Petrépolis, RJ : Vozes, 2012. ISBN 978-85-326-3445-0 Bibliografia 1. Cidades 2. Histéria 3. Sociologia urbana 4. Urbanizagio 1. Titulo. 06-9542 CDD-307.76 Indices para catélogo sistematico: 1. Cidade como organizago social : Sociologia urbana 307.76 1 A EMERGENCIA DA REFLEXAO SOBRE A CIDADE As primeiras reflexdes modernas sobre a cidade A moderna reflex&o sobre a cidade como forma mais especifica de organizagao social data do século XIX, seja na area da historio- grafia, seja no campo do pensamento socioldgico. Nao que nos tempos antigos, no perfodo medieval e no inicio da Idade Moderna os homens tenham deixado de pensar a cidade e de expressar os seus anseios e expectativas sobre ela. A diferenga, contudo, mos- tra-se particularmente em dois A4mbitos que cumpre aqui ressaltar. Por um lado, ainda nao havia surgido nos perfodos anteriores 0 in- teresse de desenvolver uma reflexfo sobre o fendmeno urbano que es- tivesse mais firmemente ancorada em uma investigagao sistematica, em métodos apropriados, em teorizagGes capazes de compreender a cidade e o fendmeno urbano em todas as suas dimensGes possiveis. Isto é, nao havia se manifestado ainda a motivago para transformar a reflexdo sobre a cidade em um campo mais especifico do saber. Pensar e sentir a cidade fora muitas vezes uma tarefa dos poetas, dos cronistas e romancistas, dos tedlogos, também dos arquitetos e dos filésofos — mas neste tiltimo caso sempre como um caminho para compreender problemas humanos mais gerais, para pensar os modelos ideais de organizagéo do mundo politico, para impor hie- 2 - = ‘ = = rarquias sociais. Assim, pode-se dizer que, de outro lado, embora a cidade tenha sempre frequentado a reflexdo de fildsofos e pensado- res dos mais diversos tipos, ela ainda ndo aparecia, como dissemos acima, como uma forma “mais especifica” de organizagao social, contrastante em relagdo a outras, com um lugar préprio e proble- mas singulares que seriam s6 seus, com uma historia a parte, embo- ra integrada ao movimento mais geral da histéria humana. No século XIX isto se modifica sensivelmente. Comegam a sur- gir cada vez mais pensadores da sociedade — historiadores e tam- bém os estudiosos que hoje chamariamos de socidlogos e antropé- logos — preocupados em entender esta especificidade do “viver ur- bano”, em decifrar a histéria deste viver, as suas mutagGes, as suas diferengas em relagao a outros ambientes sociais, e em compreen- der também a complexidade dos varios tipos de vida social que po- diam ser abrigados nas diversas modalidades de formagées urba- nas. Estas preocupagées iriam se intensificar ainda mais, conforme veremos, no século XX. Por outro lado, também no campo mais especifico do Urbanis- mo comegam a surgir no século XIX as primeiras obras preocupa- das simultaneamente com a forma, a funcionalidade, e seus desdo- bramentos sociais. Havia, é claro, os tratados renascentistas que, desde o século XV, propunham agir sobre a vida citadina através de uma agao sobre 0 espago urbano que considerasse as suas necessi- dades econdmicas e sociais, e aqui, nas teorizacées destes arquite- tos renascentistas, j4 encontraremos os primeiros esforgos de con- cretizar uma verdadeira arte urbana. Mas um campo de estudos que comega a analisar a cidade como um espago que corresponde a um viver proprio que é passivel de ser estudado mais sistematicamente sob 0 ponto de vista das ciéncias sociais, aliés em formagao, eis aqui uma contribuigéo mais especifica que s6 poderia ser trazida pelo sé- culo XIX, simultaneamente contra 0 pano de fundo dos novos sabe- res especializados que ent&o surgiam e da prépria centralidade que 10 um mundo urbano em vias de se superpovoar passava a ocupar nos destinos humanos com a emergéncia das sociedades industriais. O préprio termo “urbanizagéo” aparece em uma de suas primeiras formulagdes em 1860, proposto pelo arquiteto espanhol Ildelfonso Cerda. Ele é também o autor da primeira obra, neste campo, que discute os desdobramentos sociais da industrializagéo, preocupan- do-se em elaborar uma Teoria geral da urbanizagd@o (1867)'. Para o afloramento destes varios interesses nos tempos moder- nos contribufram, como se disse, os processos acelerados de urba- nizagao e industrializagdo. Foi diante deste novo mundo urbano que ao mesmo tempo o fascinava e o ameagava — fendmeno que por ou- tro lado ajudou a gestar a contrapartida romantica de uma literatura evasiva que apregoava o regresso a natureza — que o homem oci- dental também se pés a refletir cientificamente sobre a cidade. Bus- cava, talvez, compreender os problemas especfficos deste habitat ao qual boa parte da humanidade parecia destinar-se. Queria refletir sobre a organizagdo da vida citadina, sobre as origens imemoriais do fendmeno urbano, e sobre as formas histéricas de urbanizagao — talvez na Ansia de legitimar aquela nova forma de urbanizagéo A qual a sua civilizagéo parecia estar cada vez mais confinada. Para além disto, o século XIX trouxera novas lutas sociais, mui- tas das quais plenamente desenvolvidas nos meios urbanos. O sécu- lo dos primeiros impulsos acelerados de industrializagéo era tam- bém o século das utopias, dos ideais revoluciondrios por diversas vezes traidos, das barricadas erguidas e destrogadas nos convulsio- nados ambientes urbanos europeus. Herdeiro dos sonhos iluminis- tas e dos pesadelos revoluciondrios, da crenga oitocentista no pro- gresso e da sua adaptag4o a um mundo que ndo exclufa grandes de- 1,0 urbanismo seria fundamentado como disciplina independente alguns anos depois, com a obra Stadt-Reweiterugem in Technischer de Reinhard Baumister (1876). Mas, na verdade, a expressao “urbanismo”, empregada como designativo deste novo campo do saber, aparece pela primeira vez em 1910, com o gedgrafo francés Pierre Clerget. 1 cepgdes, o século XIX gestara simultaneamente o positivismo e marxismo. Descjos de legitimar ou de transformar 0 novo mundo moderno, dentro do qual a cidade desempenhava um papel capital, produziam ambiguidades diversas, confrontagdes miiltiplas, pro- postas de combinar uma atitude e outra. Ainda vigorava amplamente, nos meios filos6ficos e cientificos, uma mentalidade evolucionista: 0 século XVIII fora o Século das Lu- zes, que muitos contemporaneos quiseram ver como a etapa maior na evolugao da humanidade; mas seria o século XIX quem assistiria ao impacto das ideias de Charles Darwin acerca da Origem das es- pécies através da selegdo natural (1859). No transplante das idcias do evolucionismo natural para o mundo humano, e sobre as cinzas da Fénix iluminista, abria-se a possibilidade de se pensar a cidade como uma etapa mais avangada do desenvolvimento humano, ou até a cidade especificamente ocidental como uma forma mais evoluida de urbanismo para a qual deveriam convergir historicamente formas urbanas menos elaboradas. O urbanismo ocidental apresentava-se para muitos como modelo a ser alcangado por outras civilizagdes, 0 que desqualificava os modelos urbanos diferenciados das socieda- des orientais. Esta perspectiva civada de etnocentrismo comegaria a ser questionada num futuro nao muito distante, no seio da grande crise de descentramento que se abateria sobre o homem ocidental moderno no século XX. Mas naqueles primeiros momentos da re- flexao urbana muitos passaram a enxergar a cidade como um desti- no, ou até mesmo como uma etapa evolutiva. Do mesmo modo, das mutagdes desencadeadas pela Revolugéio Francesa comegavam a emergir naquele tempo novas disposigdes estatais, um novo conceito de “nag4o”, novos padrées de desenvol- vimento institucional. Os intelectuais do século XIX eram concla- mados a trabalhar para o Estado na montagem dos seus mecanis- mos institucionais fundamentais, na sua legitimagéio, na produgéo de sua meméria. Florescem a partir daf as bibliotecas e arquivos, re- 12 adaptam-se as antigas universidades, criam-se novas disciplinas e praticas académicas. Era preciso também legitimar 0 mundo mo- derno, o mundo do capital — um mundo que encontrava na cidade a sua armadura mais adequada. Na Ansia de encontrar uma racionalidade para este complexo mundo que os prdprios seres humanos criaram, desenvolvem-se no- vos campos como o da “economia cléssica”, buscando formular racio- nalmente as leis de mercado ¢ compreender os mecanismos de fun- cionamento do capitalismo. Marx parte da mesma preocupagao de compreender o mundo do capital, mas por um outro viés, e incorpora na sua linha explicativa a ideia da luta de classes, o compromisso com a mudanga dialeticamente determindvel, e por outro lado a esperanga de um mundo socialmente mais justo. Langa por seu turno as bases para uma reflexio sobre a relagéo dindmica entre a cidade ¢ o campo, e principalmente coloca a histéria no centro das possibilidades de compreender a trajetéria ¢ os destinos da humanidade. E a partir deste contexto diversificado, abarcando pontos de vis- ta e expectativas tao distintas, e no entanto produtos do mesmo sé- culo de fascinios e decepgdes diante das possibilidades humanas e sociais, que se produziram as primeiras reflexdes sobre a cidade no mundo moderno. A anilise institucional do fendmeno urbano Uma visaio panordmica sobre as obras produzidas no século XIX acerca do fenémeno urbano deixa entrever o cerne de suas princi- pais preocupag6es. A parte a contribuigaio de Karl Marx (1818-1873), que abre caminhos para uma anilise da cidade em concomiténcia com aspectos sociais ¢ hist6ricos mais amplos?— embora ele mesmo nao se detenha propriamente em uma reflexdo isolada sobre o fend- 2. MARX, K. Pre-capitalist formations. Também a segunda parte de A ideologia alema contém desenvolvimentos significativos sobre a cidade. 13 meno urbano — e do préprio Engels (1820-1895), que chega a re- fletir sobre aspectos da psicologia e do cotidiano citadino’, a grande preocupagao dos estudiosos oitocentistas do fendmeno urbano é vi- sivelmente relativa as suas bases institucionais. Dentre aqueles que refletiram sobre os aspectos institucionais da questao urbana no século XIX, alguns autores mostram uma ten- déncia a entender a cidade nao como um estado derivado da nature- za, mas como uma parte da prépria natureza. Procuram entender a origem da cidade a partir da associagao de agregados e células sociais basicas, como a familia, ou outros agregados elementares que dariam origem as formagdes mais complexas que corresponderiam As “insti- tuigGes”. Em perfeita conformidade com os interesses dos grandes Estados que buscam legitimar neste periodo as su: para estes autores pioneiros a cidade parece se constituir essencial- mente, e por vezes até exclusivamente, em torno de instituigdes so- ciais. instituigdes, A preocupagdo com as origens institucionais da cidade remete ao interesse de alguns historiadores oitocentistas ao estudo da Anti- guidade. Nao é a toa que surge em 1864 a obra ja cldssica de Fustel de Coulanges, denominada A cidade antiga‘. Nesta, suas preocupa- gOes com vistas ao entendimento do fendmeno urbano so bastante explicitas: familia, propriedade privada e religiao. Para Fustel de Coulanges, a cidade se constitui em torno de InstituigGes Sociais. “Ha trés coisas que, desde a idade mais antiga, encontram-se solidamente fundadas e estabelecidas nas sociedades gregas ¢ itdlicas: a religiéo doméstica, a familia e 0 direito a proprie- dade; trés coisas que tiveram entre si, na origem, uma relacdo mani- festa e parecem ter sido insepardveis” (p. 65). Nesta linha de refle- 3. ENGELS, F. A situagdo da classe operdria na Inglaterra, 1845. 4. FUSTEL DE COULANGES, N.D. A cidade antiga, 1864. Citada a partir da edicao ita- liana (La citta antica. Florenga, 1924), 14 xdes, Fustel de Coulanges foi um dos primeiros autores a chamar atengdo para o papel da religido como um dos fundamentos da cida- de. Afirma, por um lado, que a cidade formou-se a partir dos suces- sivos agregados desta célula primaria que é a familia. Por outro lado, Fustel de Coulanges chama atengo para o fato de que teria sido 0 sentimento religioso o que levara os homens a estabe- lecerem relagdes de solidariedade. “O culto dos antepassados agru- pou a familia a volta de um altar. Dafa primeira religiao, mas também a propriedade estabelecida, a ordem fixa da sucessao. Depois a cren- ¢a alargou-se e, da mesma forma e ao mesmo tempo, a associagao. A medida em que os homens sentem que existem para eles divindades comuns, vdo se unindo em grupos cada vez mais extensos. As mes- mas regras encontradas e estabelecidas para a familia aplicam-se su- cessivamente a patria, a tribo, 4 cidade” (p. 165-166). Este primeiro modelo institucional de andlise historiografica so- bre as origens e a natureza do fendmeno urbano teria sucessores no futuro, mesmo que introduzindo criticas 4s formulagées de Fustel de Coulanges. Apenas para dar um exemplo do século seguinte, ja marcado pela preocupag&o com o individuo mas ainda alicergado na preocupagdo com as instituigdes primordiais, tornaram-se noté- rias as criticas de Gustave Glotz ao historiador francés>. Chega a criticar a metodologia aplicada por Fustel de Coulanges, que teria caminhado “sem sair do mesmo sitio, colocando a familia no centro de uma série de circulos concéntricos”. Aresposta de Glotz (1928) a busca das origens institucionais da cidade é outra. Por um lado, tem o mérito de tentar estabelecer um “modelo conflitual de evolugao da cidade”. Por outro lado, introduz © individuo como elemento ativo na constituigéo do fendmeno ur- ano. “Nao sao duas as forgas que veremos em Juta, a familia e a ci- 5. GLOTZ, G. The greeck city and its institutions. Paris: [s.e.], 1928. ae) dade, mas trés: a familia, a cidade e o individuo. Cada uma delas foi se tornando sucessivamenté predominante. No primeiro momento a histéria das instituiges é formada por familias que conservam ciosa- mente o seu direito primordial e submetem todos os outros membros ao seu interesse coletivo; no segundo, a cidade subordina a si as fami- lias chamando em sua ajuda os individuos libertados; no terceiro, os excessos do individualismo causam a rufna a cidade, a ponto de se tornar necessaria a constituigéo de Estados mais vastos.” Retornando aqueles que refletiram sobre a questéo urbana no século XIX, podem ainda ser registradas outras obras marcadas pe- las preocupagGes institucionais, muitas vezes ancoradas na vincula- ¢40 profissional dos historiadores que as produziram as instituigdes estatais. Um exame da produgao historiografica sobre perfodos es- pecificos, como o Medieval ou o da modernidade do Antigo Regi- me, pode contribuir para dar uma ideia de como as investigagdes acerca de formagées urbanas especfficas encontram-se no século XIX penetradas de todos os lados por uma histéria predominante- mente, senao exclusivamente, institucional. Um exemplo tipico é a obra historiografica explicitamente insti- tucional de Labande, denominada Histoire de Beauvais et de ses ins- titutions communales (1892). A histéria de Reinecke (1896) sobre a cidade de Cambrai mantém-se na mesma linha®, Sao obras em ge- tal minuciosas, descrevendo em detalhe as instituigdes citadinas ¢ a organizagéo municipal. Gregorovius, por seu turno, desenvolve uma minuciosa Histéria da cidade de Roma na Idade Média em oito vo- lumes’. A preocupagéo com o sistema de propriedade aparece em G. des Marez, com seu Etude sur la propriété fonciére dans le ville du Moyen Age et spécialement en Flandre (1898). 6. REINECKE. Geschichte der Stadt Cambrai. Marlourgo: [s.e.], 1896 7.GREGOROVIUS, F.A. History of the city of Rome in the Middle Age. Stuttgart: [s.¢.] 1859-1872. 16 Outro exemplo classico, mas j4 de uma historiografia que mes- mo no inicio do século seguinte perpetuava a tradicional reflexio institucional oitocentista, corresponde a famosa obra de Petit-Du- taillis: Les communnes frangaises, caractéres et évolution, des origi- nes au XVII siécle’. Chama atengao a preocupagio de Petit- Dutaillis em definir a cidade como um agrupamento voltado para a geréncia de interesses coletivos. Conforme se vé, a mesma linha de preocu- pagées acionada por Fustel de Coulanges perpetua-se como o cerne da questao para muitas das obras que lhe seguiram no seu mesmo século ou mesmo na primeira metade do século XX. Por outro lado, este novo século traria novas preocupagées ao estudo da cidade em geral, e da cidade medieval em particular. Aparecem notadamente as preocupagoes com a fungao econdmica, com o modo de vida do citadino, com a forma urbana e sua organizacao social, com a re- presentagdo ¢ com o imaginario da cidade, com as relages entre o publico ¢ o privado. A cidade j4 nao serd vista exclusivamente a par- tir do modelo polftico-institucional. Percebe-se no conjunto de reflexGes trazidas pelo século XX que, na sua Ansia de captar a esséncia urbana, 0 sociélogo ou histo- riador havia passado a fabricar imagens diversas, consoante os cri- térios de andlise priorizados. A cidade torna-se simultaneamente “artefato”, “produto da terra”, “ambiente”, “sistema”, “ecossiste- a”, “maquina”, “empresa”, “obra de arte”, ou mesmo um “texto” onde podem ser lidos os cédigos mais amplos de sua sociedade. De- senvolvem-se novos conceitos. “Armadura” ou “rede urbana”, a ci- dade revela a sua interagao com as outras cidades, com o campo que a circunda, com o sistema estatal mais amplo. Nuclear ou policéntrica, organismo em crescimento celular con- céntrico ou em fatias triangulares, a cidade deve ser vista também 8. PETIT-DUTAILLIS. Les communnes trangaises, caractéres et évolution: des origines au XVII siécle. Citada a partir de uma edicao posterior (Paris, 1970). 17 em termos da populagao citadina que ela abriga. Haveria uma cul- tura urbana, ou uma caracterologia fundamental do citadino? Oua cidade abre-se para uma mirfade de subculturas urbanas? As ques- toes perdem-se no infinito [...]. So talvez os indfcios de uma nova tendéncia a enxergar a cidade a partir de uma multiplicidade de as- pectos ¢ que, no decurso do século XX, passa a instigar nos socidlo- gos e historiadores as mais variadas imagens para uma aproximagao do fendmeno urbano. Reconhecer estas diversificadas bases imagi- narias a partir das quais se langa 0 estudioso, nos seus esforgos de perceber o fendmeno urbano, constituird um ponto de partida parti- cularmente interessante para construir um panorama sobre a refle- x4o urbana no século XX. 18 2 AS IMAGENS DA CIDADE NA REFLEXAO URBANA O cientista social fabrica as suas metaforas urbanas Diante dos mtiltiplos aspectos urbanos trazidos a tona pela his- toriografia e pela sociologia do século XX, uma pergunta se impde. O que vema ser, afinal, a cidade? Na sua ansia de responder a esta questo, os homens tém produzide-metdforas diversas — entre es- tes homens 0 poeta, o pintor, o homem comum, e também o cien- tista social. Mesmo sem perceber, e por vezes acreditando-se li- berto dos recursos metaféricos que os homens da literatura e da arte tém o direito de empregar mais livremente, a verdade é que 0 pensamento do cientista moderno também opera por modelos, fre- quentemente espacializados. Nao ha nada de grave nisto. As metdforas de altura tém sido de longa monta empregadas para expressar niveis diferenciados de hie- rarquia social (o emprego da palavra “niveis” constitui jé em si mes- mo uma metéfora espacial). As metaforas (espaciais) de “centrali- dade” e “periferia” sao imperceptivelmente empregadas para tornar claras determinadas relagdes de poder. A metafora da “rede” reco- bre interagdes ¢ relacionamentos sociais diversos. A Informatica, por exemplo, sempre empregou sem nenhuma crise de consciéncia padrées similares de organizagao mental. Os usuarios que estabele- 19 cem contatos via internet “navegam na rede”, e em nenhum mo- mento isto prejudica nem a objetividade nem a intersubjetividade de suas relagées interativas. Por outro lado, a metéfora empregada — a forma externa medi- ante a qual se expressa ou se constitui determinado pensamento — também ela ajuda a reformular este mesmo pensamento, a recondu- zi-lo para uma determinada diregao mental sem que nem sempre 0 scu usuario disto se aperceba. No que concerne ao esforgo de compreensao do fendmeno ur- bano, diversas imagens tém sido empregadas desde tempos imemo- riais, cada qual acarretando em beneficios ¢ limitagées. A metafora do fmd, por exemplo, tem sido particularmente simpatica aos eco- nomistas contemporaneos e aos demégrafos. Polo de atragao, a ci- dade absorve homens e mercados'. Por outro lado, 0 “poder mag- nético” das cidades remete as nogées de centro e periferia, particu- larmente no que concerne A regido a elas adstritas. Desta forma, o ge6grafo R.E. Dickinson (1964) — que também trabalhou interdis- ciplinarmente com a Histéria (1971) — observa que “cada centro age como se fosse um ponto focal, situado na confluéncia de vias e correntes de tréfego por meio das quais se liga 4 area circundante que constitui o seu corpo de associagao”. 1. Atentando para 0 paradoxo deste “poder magnético da cidade”, Paul Goodman cri- ticaa tese de que a urbanizacao seja decorréncia natural do desenvolvimento tecnol6- gico: “E como se, por forga de uma lei a metafora preferida é a da cidade como ima — 75% dos americanos devessem viver em 1990 em densas reas metropolitanas. E, a0 contrario disto, nao é de modo nenhum verdade que a urbanizagao seja uma necessi- dade técnica. Pelo contrario, o impulso da tecnologia contemporanea — isto é, a eletri- cidade, novas fontes de energia, automéveis, comunicagdes de longa distancia e au- tomatizagdo — vai em direcdo da desurbanizagao, do descentramento quer da popula- cao quer da industria, Este era o pensamento de Marx e Engels |...] de Kropotkine, Geldes, F.L. Wright, e de tantos outros entusiastas da tecnologia cientifica. A verdade 6 que a urbanizagao ndo fica a dever-se a causas tecnolégicas, ou naturals ou sociopsi- col6gicas, mas a uma economia e a uma politica que nao tomam em linha de conta os " (GOODMAN, Paul & GOODMAN, Percival, 1970, p. 16) eu ssim, a cidade estabelece relagdes com o campo circundante, mas também com outras cidades. Nogdes como “reticulo urbano” e “armadura urbana” tém sido empregadas para dar conta de todo um conjunto de determinadas cidades pertencentes a uma mesma rea geografica (MERCADAL, 1965). Jé 0 conceito de domindncia metropolitana procura dar conta “do poder politico-econdmico de algumas cidades relativamente ao resto do territério entendido co- mo um sistema social global” (BOGUE, 1949). Por outro lado, para fugir a linearidade que a nogao “centro-peri- feria” pode evocar, Sorokin e Zimmerman (1929) elaboram 0 concei- to de continuum urbano-rural, na ansia de dar forma a dinamicidade de relagGes existentes entre as duas realidades. No campo do aspecto da dinamicidade também se acham as imagens que procuram enfati- zar a dimensao da cidade como lugar privilegiado para as trocas. As- sim, para Fernando Braudel “as cidades séo como transformadores elétricos: aumentam as tensdes, precipitam as trocas, caldeiam cons- tantemente a vida dos homens” (BRAUDEL, 1967). Conforme se vé, as imagens e metéforas empregadas pelos cien- tistas sociais carregam ja dentro de si certas potencialidades e limi- tagGes que devem ser manejadas com vistas a determinadas finali- dades, ou em fungao da constituigéo de determinados objetos. A medida que se produzem novos métodos, novas abordagens, ou no- vas perspectivas dentro de cada disciplina, uma nova imagem pode emergir ou uma antiga metaéfora pode ser revalorizada. A cidade como artefato e como produto da terra Ja se disse que a cidade, mesmo que no seja o maior artefato produzido pelo homem, é sem dtivida o mais grandiosamente im- 2. Sobre a analise braudeliana do fendmeno urbano, cf. BRAUDEL, F. As cidades. in: Civilizagao material, economia e capitalismo. Vol. |. S40 Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 439-514 (trecho transcrito, p. 439). 21 eT pactante. Ainda que, em sua estrutura fisica, nenhuma cidade seja téo imensa quanto a Muralha da China, ou que um sistema urbano especifico esteja longe de ter a abrangéncia espacial e social de um sistema de telefonia com seus infind4veis fios que recobrem espagos incomensuraveis, uma cidade é seguramente o maior artefato pro- duzido pelo homem que pode ser apreendido a determinada distan- cia pelo olhar contemplativo (¢ bom lembrar que a “Muralha da China” sé pode ser percebida de maneira compacta e totalizante se 0 observador estiver situado a uma distancia extraordinaria, como por exemplo na Lua). Witold Rybezynski? observa que, enquanto uma rede de telefonia é um imenso artefato que permanece relativa- mente invisivel para os homens, a cidade deve muito de seu podero- so impacto no imaginario social ao atributo de poder ser contempla- da em toda a sua grandeza e totalidade pelo olho humano, desde que tomada a devida distancia’. A cidade, neste sentido, seria o maior artefato produzido pelo homem que pode ser integralmente apreendido pelo olhar comum. Seria de se perguntar antes de mais nada pelas formas que pode assumir 0 artefato urbano na sua prépria origem, pelos seus modos de funcionamento, pelos seus padrées de transformagao. Estas ques- tdes, a serem discutidas mais adiante, permanecem indelevelmente ligadas. De imediato, é bom lembrar que uma determinada imagem do que seja ou deva ser a cidade pode estar implicada na sua prépria formagao primordial e nas suas subsequentes transformagdes. Os préprios homens que se unem para constituir uma cidade j4 come- 3.RIBCZYNSKI, W. Vida nas cidades: expectativas urbanas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1995. 4. “O sistema telef6nico é imenso mas invisivel, e apenas uma parte da Grande Mura- Iha ou do Canal do Panamé podem ser vistos de uma vez; a imensidao destas inven- es faz com que elas s6 sejam apreendidas pela imaginagao. Mas uma cidade pode ser vista inteira de uma vez. Daf por que as vistas panordmicas sejam tao emocionan- tes” (RIBCZYNSKI, W. O tamanho de uma cidade. In: Vida nas cidades: expectativas urbanas no Novo Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 33). 22

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