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BURLA E IMPOSTOS Pelo Prof. Doutor Diogo Leite de Campos Pela Dra. Ménica Horta Neves Leite de Campos 1 — Questao de direito Um dos autores das paginas que se seguem, tratou, ha alguns anos, do problema de saber se havia lugar para o principio da boa fé em matéria de impostos. Respondeu-lhe negativamente ('). Relacionada com este problema est4, como se vai demonstrar, a questo de saber se hd lugar para o crime de burla no quadro dos impostos. Julgamos que também a este problema haveré que res- ponder negativamente. Vamos partir da seguinte hipdtese que serviré de base @ ané- lise posterior. No decurso de um ano civil, uma pessoa fez pagamentos por conta de IRS ou IRC. No decurso do mesmo ano, foram levados em conta pelo contribuinte custos que tinham como suporte factu- ras que nao correspondiam a operagdes efectivamente realizadas nos termos af descritos. O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, ou sobre o rendimento das pessoas singulares, liqui- dado com referéncia a esse periodo, foi inferior ao que deveria ter sido liquidado na auséncia de tais facturas. E contribuinte viu res- titufda parte dos pagamentos por conta. () Diogo Leite de Campos, Onde se fala de boa f€ no imposto de transacgdes, Rev. O. Advs., 1985 pag. 807 € segs. 552 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS Perante a situago de facto para se descreveu tem-se levan- tado, por vezes, a questo de saber se estamos perante os elemen- tos essenciais do tipo de crime de burla. O artigo 313.° do Cédigo Penal dispde que «quem, com a intengdo de obter para si ou para terceiro, um enriquecimento ile- gitimo através de erro ou de engano sobre factos, que astuciosa- mente provocou, determinar outrem a pratica de actos que the cau- sem, ou causem a outra pessoa, prejufzos patrimoniais...». Haver, pois, que determinar se a factualidade descrita é sub- sumfvel, ou nao, nos elementos t{picos do crime de burla. Para este efeito, vamos assentar 0 discurso subsequente no quadro do IRC. Com efeito, é neste quadro que o problema se pée mais frequentemente e 0 que dissermos quanto a ele valer4 também para o IRS. Assim, comegaremos por descrever a natureza e a estrutura juridicas do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC), naqueles aspectos que interessam para elucida- ¢40 do problema: perfodo tributdrio; momento em que surge a obri- gacio; momento a partir do qual a obrigacdo € certa € exigivel; natureza dos pagamentos por conta. Para melhor definir o IRC, compara-lo-emos com 0 IVA. Este apresenta perante o IRC uma diferenga que se revelara fundamen- tal: a titularidade das quantias que vao ser entregues ao Estado. No caso do IRC, essas quantias pertencem ao que as entrega; ou seja, ao contribuinte, sujeito passivo da relacdo juridica. No IVA, essas quantias sao prestadas ao devedor por terceiro, para serem entre- gues ao Estado. 2. — O IVA — Imposto sobre o Valor Acrescentado O Imposto sobre o valor acrescentado (IVA) configura-se como um imposto que incide sobre as transmissées de bens e pres- tages de servicos efectuadas em territ6rio nacional, a titulo one- roso, por um sujeito passivo agindo como tal, € sobre as importa- des de bens (artigo 1.° do Cédigo do IVA). Sao sujeitos passivos de tal imposto: as pessoas singulares que, de um modo independente e com cardcter de habitualidade, exergam actividades de produco, comércio ou prestagao de servi- BURLA E IMPOSTOS: 553 gos, incluindo as actividades extractivas, agricolas e as das profis- ses livres e bem assim as que, do mesmo modo independente, pra- tiquem uma s6 operacdo tributdvel, desde que essa operagdo seja conexa com exercicio das referidas actividades, onde quer que este ocorra, ou quando, independentemente dessa conexio, tal operagdo preencha os pressupostos da incidéncia real do IRS e do IRC. As pessoas singulares ou colectivas referidas nesta alfnea sero tam- bém sujeitos passivos de imposto pela aquisi¢éo de qualquer dos servicos indicados no n.° 6 do artigo 6.°, nas condi¢ées nele pre- vistas; as pessoas singulares ou colectivas que, segundo a legisla- ¢4o aduaneira, realizam importagao de bens; as pessoas singulares e colectivas que, em factura ou documento equivalente, mencio- nem indevidamente IVA (artigo 2.° n.° 1 do CIVA). O imposto € devido e torna-se exigivel nas transmissdes de bens, no momento em que os bens sAo postos 4 disposigéo do adquirente ; nas prestagdes de servigos, no momento da sua reali- zagao; nas importagdes, no momento em que for numerado o bilhete de despacho ou se realize a arrematagéo ou venda (artigo 7.°, 1, do CIVA). O facto tributdrio é, assim, composto de um elemento objec- tivo e um elemento subjectivo. O elemento objectivo é integrado pelas transmissées de bens e prestagdes de servigos, a titulo oneroso, e pelas importagdes de bens, nos termos descritos. O elemento subjectivo é constitufdo por um sujeito passivo, (tal como é definido no artigo 2.°), agindo como tal. Verificados estes dois elementos, a obrigagao de imposto surge imediatamente, sendo 0 imposto devido e exigivel nos ter- mos do artigo 7.° (vd. também o artigo 8.°). Note-se que, para o imposto ser exigfvel, nao é necessdrio qualquer procedimento da Administrago ou do sujeito passivo. Em termos, de por exemplo, 0 sujeito passivo ter de declarar o acto, ou a Administrago fiscal ter de liquidar o imposto com base na declaragao do contribuinte. Uma vez realizado 0 negécio juri- dico por um certo prego e conhecida a taxa do imposto, a liquida- 40 opera-se por forga da lei. seguro que 0 facto tributério é aqui instantdneo: logo que se verifica o elemento material, a transmissao do bem, a prestacaio do 554 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS servigo, etc., surge 0 imposto ('), a obrigacao de imposto, certa € exigivel. Isto, por que aquele que transmite o bem ou presta 0 servigo, denominado sujeito passivo, deve liquidar o imposto a contraparte. Esta conhece o imposto e deve paga-lo juntamente com o prego do bem ou do servigo. Nestes termos, parece impor-se a norma de que 0 sujeito pas- sivo entregaré imediatamente o que recebeu a titulo de imposto. Como pagaria qualquer imposto certo e exigivel, que € entregue imediatamente nos cofres do Estado. Mas daqui derivaria um imposto em cascata, em que cada transmissao do bem seria gravada com um imposto que se iria acrescendo ao valor do bem; sendo este valor cumulado, sujeito a um novo imposto a quando de uma nova transmissdo, e por af em diante. Foi este efeito acumulado em termos de cascata que 0 legisla- dor quis evitar, conforme o revela logo no preambulo do Cédigo do IVA (n.° 4). «O IVA visa tributar todo o consumo em bens materiais € ser- vigos, abrangendo na sua incidéncia todas as fases do circuito eco- n6mico desde a producao ao trabalho, sendo, porém, a base tribu- tavel limitada ao valor acrescentado em cada fase. A dfvida tributaria de cada operador econémico é calculada pelo método de crédito do imposto, traduzindo-se na seguinte ope- ragdo: aplicada a taxa ao valor global das transacgdes da empresa, em determinado perfodo, deduz-se ao montante assim obtido o imposto por ela suportado nas compras desse mesmo periodo, revelado nas respectivas facturas de aquisigao. O resultado corres- ponde ao montante a entregar ao Estado». E 0 que dispde, em regra geral, o artigo 9.° do CIVA: para apuramento do imposto devido, os sujeitos passivos deduzirao, nos termos dos artigos seguintes, ao imposto incidente sobre as opera- goes tributdveis que efectuaram, o imposto que lhes foi facturado na aquisicao de bens e servigos por outros sujeitos passivos; 0 imposto devido pela importacao de bens; etc. (°) Vd. neste sentido, em geral, A. Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, pég. 251. BURLA E IMPOSTOS S55 CO direito 4 dedugao nasce no momento em que o imposto dedutivel se torna exigivel, efectuando-se mediante subtrac¢aio ao montante global do imposto devido pelas operagdes tributdveis do sujeito passivo, durante o perfodo de declaragao, do montante do imposto dedutivel, exigfvel durante o mesmo perfodo (artigo 22.° do CIVA). De onde resulta que 0 sujeito passivo deve ao Estado o imposto que recebeu dos contribuintes com quem realizou negé- cios sujeitos a IVA; mas que pode compensar esta divida com 0 imposto que tenha pago a outros sujeitos a IVA. Se o contribuinte nao entregar (ilegalmente) uma parte do [VA que recebeu, estd a reter quantias que ndo lhe pertencem, que lhe foram entregues com destino ao Estado. 3 —O IRC — Imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas. O imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas (IRC) incide sobre o rendimento definido nos termos do Cédigo do IRC, auferido pelas pessoas colectivas e por outras entidades que lhes sao equiparadas. Quanto ao perfodo de tributagdo, o artigo 7.°, 1, do CIRC estabelece que o IRC é devido por cada exercfcio econémico, e que 0 ano econémico coincide com o ano civil. O lucro tributavel, ou seja, a matéria colectdvel, 0 rendimento sobre 0 qual incide o imposto, é constitufdo pela soma algébrica do resultado liquido do exercicio e das variagées patrimoniais positi- vas e negativas que se tenham verificado no mesmo perfodo de tri- butagao e nao tenham sido reflectidas no respectivo resultado (artigo 17.° do CIRC). Trata-se aqui de um facto tributério duradouro. O perfodo do imposto, um ano, aparece sempre «como elemento essencial do facto tributdrio» ('); 0 imposto surge por periodo anual e no fim deste. Nao nasce uma obrigacdo de imposto por cada receita que se (') Alberto Xavier, ob. cit., pég. 252. 556 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS cobra; como nio surge um «crédito de imposto» por cada custo que se suporta. Como, aliés, também no hé uma obrigagao de imposto de montante varidvel durante o ano, conforme os ganhos e os cus- tos que vao surgindo. H4, sim, uma obrigagao de imposto que se vai formando durante o ano, para s6 surgir no fim do ano, logo que se apura a matéria colect4vel. Note-se, aliés, que, se a obrigagdo de imposto existe desde o fim do periodo fiscal, s6 se torna certa e exigfvel com a liquidagao do IRC pelos servigos da Administracao fiscal e sua notificagao ao contribuinte. Devendo o contribuinte pagar o imposto devido no prazo subsequente fixado pelo Cédigo do IRC. Que natureza jurfdica assumem, neste quadro legal, os paga- mentos por conta previstos no n.° | do artigo 82.° do CIRC? Esta disposigao legal impde que as entidades que exergam, a tftulo principal, uma actividade comercial, industrial ou agricola, e as nao residentes com estabelecimento estdvel em territério portu- gués, efectuem trés pagamentos por conta do IRC desse ano, com vencimento nos meses de Junho, Setembro ¢ Dezembro do proprio ano a que respeite o lucro tributavel ou, nos casos dos n.* 2 ¢ 3 do artigo 7.°, no sétimo, nono e décimo segundo meses do respectivo periodo de tributacao. Posteriormente, e no prazo legal, os contribuintes limitar-se- o a pagar a diferenga que exista entre o imposto a pagar e os mon- tantes j4 pagos. Haverd lugar a reembolso quando o valor apurado na declara- go for negativo. Os reembolsos devidos pelo Estado nao vencem juros de mora se forem efectuados no prazo de trés meses a contar da data da entrega da declaracao. Do exposto resulta que os pagamentos por conta sao mesmo... «pagamentos por conta». Séo antecipagdes do paga- mento de um imposto futuro que, no momento em que tais paga- mentos sao feitos, nao existe, nem, muito menos, é exigivel. Trata-se de meros expedientes financeiros, de modo a ir ali- mentando, entre o pagamento de dois impostos, os cofres do Estado. BURLA E IMPOSTOS 557 Logo que se torne certo e exigfvel o imposto devido e se veri- ficar que este ultrapassa os pagamentos por conta, o contribuinte deverd pagar o excesso; se 0 imposto devido for inferior aos paga- mentos por conta, o contribuinte ser reembolsado. E serd reembolsado sem juros de mora. Que significa isto? Qual o alcance, para a natureza juridica dos pagamentos por conta, do facto de estes serem reembolsados sem juros de mora? Significa que se trata, repete-se, do pagamento de uma obri- gacao em formagio, e nao do pagamento de uma obrigacao jé exis- tente. O Estado nao tem direito definitivo a esses pagamentos. Mas s6 uma expectativa, embora juridicamente tutelada nos seguintes termos: se o montante do imposto a pagar for superior ao montante dos pagamentos por conta, entdo, mas s6 entdo, surgird no patri- ménio do Estado o direito definitivo a esses pagamentos. Se o imposto a pagar for inferior, haveré lugar a reembolso. Mas este reembolso sera, no o reembolso de um imposto ilegalmente pago pelo contribuinte — caso em que seriam devidos juros de mora desde o momento do seu pagamento; mas, antes, o pagamento por conta de um imposto devido mais tarde, sujeito ao pressuposto de esse imposto ser igual ou superior ao montante desses pagamentos. A referéncia € a uma obrigagdo de imposto futura; dai que a resti- tuig¢éo desses pagamentos nao determine juros de mora, por ter sido feita «sub conditione»; os juros sé existem se o Estado nao reembolsar no prazo devido, e s6 com referéncia a esta ultima mora. As quantias pagas por conta nao representam necessariamente pagamentos de um imposto; neste sentido, «nao so devidas»; pois © periodo tributério ainda nao acabou, s6 terminando no fim do ano; e s6 no fim do ano se gerando a obrigacao. Nao sao pois «devidos», os pagamentos por conta, a titulo de pagamento de uma obrigacao do imposto — por esta ainda nao ter surgido; e pode mesmo, nao surgir, se nao houver lucro tributavel. Mas, se nado séo pagamentos devidos (em virtude de uma obrigag4o de imposto ...), também a quantia que vai ser entregue nao pertence ao Estado; é do contribuinte que a vai desembolsar. Nao foi entregue ao sujeito passivo para este a entregar ao Estado; 558 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS € do sujeito passivo, que a vai buscar ao seu patriménio — quan- tas vezes, através de um miituo banc4rio — para a entregar ao Estado. Se nao a entregar, € um mero devedor inadimplente, como qualquer outro que nfo cumpre aquilo a que se obrigou (no caso, aquilo que o Estado lhe «impés»). 4 — Enquadramento do descrito quanto ao IVA e ao IRC no tipo legal do crime de burla. Comparando as caracteristicas do IVA e do IRC com relevo para o objecto da andlise em curso, ha a salientar 0 que se segue. O IVA € um imposto instanténeo; em que o montante devido ao Estado nfo pertence ao devedor, mas Ihe foi entregue por ter- ceiro para ser prestado ao Estado. O IRC é um imposto continuado, em que a obrigagao de imposto s6 surge no fim do ano civil, se houver lucro tributdvel. O montante a entregar ao Estado é do devedor, que 0 vai bus- car ao seu patriménio. Os «pagamentos por conta» nada mais séo do que pagamen- tos por conta de uma obrigacdo que pode surgir ou nao, devendo eventualmente ser reembolsados. A obrigagdo de imposto sé surge no fim do ano; também a obrigagdo de prestar s6 surge depois deste momento. Os pagamentos por conta s6 so adquiridos, s6 sao «propriedade» do Estado, se 0 montante a pagar de IRC for supe- rior ou igual ao total dos pagamentos por conta. Resulta, assim, que a situagdio de facto em andlise nao pode preencher os pressupostos do crime de burla. Uma sociedade realizou pagamentos por conta do IRC even- tualmente devido no fim do ano. No decurso desse ano introduziu na sua contabilidade facturas que ndo correspondiam a aquisicao de bens ou de servigos efectivamente realizados. O que veio a afec- tar o lucro tributével e, assim, o imposto. Em termos de o Estado ter reembolsado parte dos pagamentos por conta realizados. Trata-se do simples funcionamento de uma relagdo obriga- cional, O facto de ter havido pagamentos por conta nao pode alterar © tratamento jurfdico-criminal do problema. BURLA E IMPOSTOS. 559 Se o Estado, ao operar o reembolso, tivesse sido forgado a pagar juros de mora, teria havido um prejuizo para o Estado — embora nao se verificassem outros dos elementos tfpicos do crime. Mas nao é 0 que sucede. Suponha-se que nao tinha havido pagamentos por conta e que 0 Estado, pois, nao tinha nada a reembolsar. Neste caso nao have- ria crime de burla; por o Estado nao reembolsar nada. O Estado ter- se-ia limitado a ver um crédito nio satisfeito, por engano Provo- cado pelo contribuinte sobre os pressupostos de facto, sobre a matéria colectavel. O que implicaria uma sangdo de cardcter tribu- trio, contra-ordenacional, mas mais nada: simples infrac¢do fis- cal. Nada se altera de relevo nesta matéria, se tiver havido paga- mentos por conta. O Estado nao tinha direito (definitivo) a esses pagamentos; esse direito s6 existiria se o imposto a pagar fosse igual ou supe- tior a esses pagamentos. Se nao for — embora no o tenha sido por alteragao da matéria colectével — tal direito desaparece. Por que motivo? Por essa alteracdo na contabilidade, que é, como vimos, uma infracgdo tributdria. No IVA, como se referiu, a situag’o altera-se por as quantias que nao se entregaram ja pertencerem ao Estado; terem sido entre- ues ao sujeito para serem devolvidas ao Estado. Nesta medida, o Sujeito passivo estd a privar o Estado de algo que lhe pertence. Enquanto que, no IRC, o contribuinte estd a privar o Estado de algo que Ihe seria devido. Algo que o Estado s6 poderd exigir depois de corrigida a matéria colectavel e liquidado o imposto. Admitir o crime de burla neste caso equivaleria a consagrar a prisdo por dfvidas ("). No caso concreto, o que hé é 0 nao cumpri- mento de uma obriga¢ao; nio cumprimento que envolve responsa- bilidade, mas nao a criminal. Mas, aprofundemos mais a nogao de crime de burla. () Vd, quanto a um caso semelhante, Eduardo Correia, O efeito da entrega como elemento constitutive do crime de abuso de confianga, R.D-ES., ano VII, 1984, pag. 64, 560 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS 5 — A questao do patriménio publico: a autonomia da vontade e a imposic¢ao No ntmero dos elementos essenciais do tipo de crime de burla, entra, como referimos 0 causar «prejuizos patrimoniais». Hé, pois, que fixar 0 conceito de patriménio no quadro da relagio em andlise, em que o patriménio «prejudicado» é do Estado, é piiblico. O patriménio que a tipificagao da burla pretendia proteger, era, na sua génese, e ainda € hoje, o patriménio privado; quer o das pessoas privadas, quer o das pessoas ptiblicas que se movimentam na esfera do Direito privado. A tutela juridico-penal do patriménio puiblico era, e é, garan- tida por um conjunto de tipos de crimes que se referem ao com- portamento (penalmente ilicito) dos funcionérios da Administra- ¢ao Publica, em prejuizo dos bens ptiblicos que lhes estiverem confiados. O legislador pretendeu proteger 0 patriménio publico «de dentro», contra as pessoas, as tinicas pessoas, que 0 podem fazer correr risco (no quadro em andlise) Comparemos a «dinamica», a circulagao, dos patriménios particulares com a «gesto» do patriménio piiblico. A dinamica dos patriménios particulares est assente numa estrutura e numa vontade. A estrutura é a da igualdade das partes, cidadaos livres e iguais. E nesta igualdade que assenta o princfpio da autonomia privada. Os particulares, livres e iguais, e por 0 serem, gerem como entendem os seus patriménios, transmitindo-os de acordo com os seus interesses. Estes interesses estarao satisfeitos, pressupde-se, quando a vontade livre de pessoas iguais — e livre, por as pessoas serem iguais — tiver intervindo. Ha, por isso, que salvaguardar cuidadosamente esta vontade na qual assenta a administragao e a circulagdo dos patriménios. Afastando dela nomeadamente 0 erro ea coacgdo. Erro que é elemento que entra na composigao do tipo de crime da burla. No campo dos patriménios privados, do Direito privado, vai- -se mesmo mais longe: exige-se que cada uma das partes coopere (até certo ponto) na defesa dos interesses da outra parte através, BURLA E IMPOSTOS 561 designadamente, do dever de boa fé. Do dever de cada uma das partes se comportar como um bom cidaddo, uma pessoa honesta. Sublinhe-se que o dever de boa fé nao existe s6 no momento do cumprimento do contrato, mas também no perfodo da sua for- magdo e no momento da celebragao. Tal dever de boa fé, tal colaboragao, cooperagao com a outra «parte», nao existe nas relagdes juridicas tributarias a cargo do contribuinte ou do Estado — a nao ser, reflectido de modo imper- feito e larvar no «devido procedimento». E, quanto ao contribuinte, de modo ainda mais larvar no contetido das obrigagdes que a lei expressamente lhe impée. O dever de boa fé nao existe nas relagdes entre o contribuinte e a Administragao, por duas ordens de razées. Primeiro, por nao estar previsto na lei — e as obrigagdes dos contribuintes devem estar previstas na lei, em virtude do artigo 106.°, 2, da Constituigéo da Republica; a lei definird a inci- déncia dos impostos. Esto subjacentes ao princfpio da legalidade razGes de certeza e de seguranca dos contribuintes ('). Estes s6 deverao pagar os impostos criados nos termos da lei (artigo 106.°, 3, da C.R.), ou seja, criados por eles, através dos seus representantes, para estarem eximidos ao arbftrio de outrém. Tais tipos de impostos deverao estar completamente e exaustivamente descritos na lei (?). Esta deverd ser clara, permitindo uma facil e, tanto quanto possfvel, automética subsungdo das situagdes reais nos seus quadros. O legislador deve, nomeadamente, abster-se de recorrer a clausu- las gerais ou conceitos indeterminados, precisando o mais possivel o contetido dos conceitos que utiliza (°). Caso contrario, deixar-se-ia entrar pela janela o que se proibiu que entrasse pela porta. Eximindo o contribuinte ao arbitrio do legislador através do principio da tipicidade, entregar-se-ia depois ©). Sobre esta matéria e 0 que se segue, vd. Diogo Leite de Campos, Onde se fala de boa fé no imposto de transagées, Rev. O. Advs., cit., pag. 807 e segs. © A. Xavier, ob. cit., n° 47 ¢ segs., esp. 49 e segs. ©) Diogo Leite de Campos, «Evolucio ¢ perspectivas do Direito Fiscal», Rev. O. Advs., 1983. 362 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS do arbitrio do intérprete, através de conceitos indeterminados, como o da boa fé. A doutrina desenvolve e integra o princfpio da tipicidade com o da tipicidade fechada, com a exigéncia de descrigéo exaustiva e clara das obrigagdes dos contribuintes. Nao deveria estar previsto na lei o princfpio da boa fé. E nao estd previsto, repetimo-lo. Nao é possivel deduzir do Direito fiscal portugués qualquer principio geral de confianga mtitua entre o Fisco e os contribuintes que o funde. Num sistema em que a matéria colectavel é determinada regu- larmente com base em critérios e avaliagdes administrativas; em que o valor dado pelo contribuinte é controlado sistematicamente pela Administracdo através de critérios e avaliagdes que prevale- cem sobre a aquele valor; etc., — afirmar, ainda, a confianga mitua entre o Fisco e o contribuinte parece humor negro. Num sistema em que os impostos s4o criados e regulamentados pelo legislador como este quer — verdadeiramente impostos ao cidadao; em que os actos do Estado tém «autoridade» perante o contribuinte, como actos administrativos (tributdrios) que sao; em que o legislador prevé uma verdadeira teia de obrigagées, de deveres de conduta, de contra-ordenagoes, de juros de mora, etc., para obrigar 0 contri- buinte a ter o procedimento que o legislador pretende; ir mais longe, impondo-lhe um dever de boa fé ou punindo-o através do crime de burla, é seguramente demasiado. Nas relagoes entre iguais, tudo é devido a outra parte. Nas relagées de imposigdo sé é devido ... 0 devido procedimento. Compete a quem impée definir 0 comportamento do sujeito. E a este, cumprir. Mais nada. E isto tanto se aplica 4 Administragao, como aos particulares, tal como acabamos de demonstrar. O patriménio publico € «gerido» através do devido procedi- mento administrativo: uma série de actos, pré-fixados, e uma vez verificados os quais (verificag4o quasi-formal e quasi-automitica) se considera que 0 interesse ptiblico foi servido. Assim, a tutela jurfdico-penal dos patriménios privados e do patriménio piiblico, por assentar em pressupostos, em dindmica, em sistemas diferentes, também pode — e deve — ser diferente. BURLA E IMPOSTOS : 563 Dirige-se contra pessoas diversas, que actuam de modo também diverso. Os tipos de crimes serao, pois, também diversos. A tutela do patriménio piiblico realiza-se por diversos modos no ambito do Cédigo Penal. E (s6) no ambito do Direito penal «secundrio» que se encon- tra manifestada a vontade «especffica» do legislador no sentido da protecgao do patriménio publico. E o que aqui est4 disposto nao é a burla: sao outros tipos legais de crime, particulares normas incri- minadoras — nomeadamente as que consagram a “fraude fiscal” (artigo 23.° do Decreto-lei n.° 20-A/90 de 15 de Janeiro, com as alteragdes constantes do Decreto-Lei n.° 394/93, de 24 de Novem- bro). Normas que prevéem especializagdes do crime de burla que afastam deste 4mbito, «maxime» do Ambito fiscal, o crime (geral) de burla. Tais normas especiais afastam o crime de burla, por que no Ambito das relagdes de imposto — concentremo-nos nestas — a relagaéo entre as pessoas, Estado e particular, é «fundamental- mente» diversa da existente no campo das relagdes juridicas priva- das, como descrevemos e vamos repetir. Nos impostos, nao ha igualdade: ha supremacia do Estado; nao h4 vontade de vinculagao: ha imposi¢ao, preenchendo-se 0 tipo de imposto mesmo sem vontade do particular. Nao h4 boa fé (que pressupée a igualdade dos sujeitos e a autonomia da vontade): ha a normal tentativa do particular de nao preencher os pressupos- tos dos impostos... por meios nao proibidos. Nao estou a afirmar que, em matéria de impostos, como no noivado, «trompe qui peut». Estou a afirmar uma diferenga de posturas que justifica , axiolégicamente, a diferenga de incrimina- goes. A ponto de se afirmar, em geral, na melhor doutrina, como nés afirmamos em matéria de impostos, que o Estado nao pode ser sujeito passivo de burla, j4 que o patriménio piiblico se protege com outros tipos ('). ©) Miguel Bajo Fernandez ¢ outros, Manual de Derecho Penal, Parte Especial. Delitos patrimoniales y econémicos, Editorial Centro de Estudios Ramon Areces, p. 265. 564 DIOGO LEITE DE CAMPOS e MONICA H. N. LEITE DE CAMPOS Note-se, alids, que o argumento retirado da légica do sistema aponta também neste sentido. Para certos crimes (furto e abuso de confianga — artigos 299.° e 300.°, 3 do Cédigo Penal) est4o dis- postas agravacdes em fungao da natureza da coisa subtraida; e tal niio acontece para a burla. Assim, parece que esta s6 pode ser cometida perante um certo tipo de patriménio: o privado. Tanto mais que no crime de dano ha uma agrava¢ao quando este é prati- cado em monumentos ptiblicos ou em coisas destinados 4 decora- ¢4o ou utilidade piblicas. Nio se entende facilmente que na burla nao haja agravacao, a nao ser que admitirmos — e tal resulta das consideragdes expendi- das — que a burla s6 cabe nos quadros do patriménio privado. 6 — Trata-se de uma «mera» relacéo obrigacional. O que estd em causa é 0 funcionamento de uma mera relagéo obrigacional, em que o Estado-credor deixou de receber do deve- dor algo a que se julgava com direito. Se estivessemos no domi- nio do Direito privado tudo terminava aqui, com uma indemniza- go. Mas estamos no dominio do «patriménio ptiblico», do Direito dos impostos. E o que seria um mero facto ilicito gerador da obri- gacio de indemnizagao, transforma-se (sé) numa fraude fiscal — prevista e punida como tal. Ir mais longe, significaria esquecer duas «mAximas» do actual Direito Penal: a proibigdo da prisdo por dividas; a intervencao do Direito Penal como «ultima et extrema ratio». A prisdo por dividas deve entender-se como erradiada do sistema jurfdico portugués, desde 0 momento em que se julga que o artigo 190.° da OTM foi revogado tacitamente pela incriminaco aut6noma da falta de pres- taco da assisténcia a filhos necessitados. Pretender, neste caso, aplicar a pena prevista para a burla ao devedor de imposto faltoso, é, insofismavelmente, querer puni-lo com a prisio por dividas. Por outro lado, tudo tem levado a concluir pela nao aplicabi- lidade do crime de burla a tutela do patrim6nio publico. Vimo-lo e defendemo-lo. BURLA E IMPOSTOS 565 Essa nao aplicabilidade resulta da organizago de um sistema de tutela dos interesses patrimoniais do Estado credor (ptblico), nesta sede, que assenta, antes de mais, em sangGes pecunidrias; e depois em incriminagées do género da «fraude fiscal». Tudo revela a intencao de o legislador se contentar, nesta matéria, e pelos moti- vos indicados, com tal tutela, sem estender até af a «ultima et extrema ratio» que € o Direito Penal.

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